Introdução
A depressão é um transtorno mental comum e uma das principais causas de incapacidade em todo o mundo. Globalmente, estima-se que mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, são afetadas por essa condição. Sabe-se que a prevalência maior está entre as mulheres e que esse transtorno está ligado ao grande número de mortes por suicídio na faixa etária dos 15 aos 29 anos, atingindo a marca de 800 mil por ano (WHO, 2017). No Brasil, a depressão atinge cerca de 16,3 milhões de pessoas, equivalente a 7,6% da população (IBGE, 2020).
Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, mostrou que a proporção de brasileiros diagnosticados com depressão por um profissional de saúde mental aumentou 34,2% em seis anos (IBGE, 2020). Nessa mesma pesquisa foi feito um levantamento com 108 mil famílias, que apontou que 10,2% das pessoas com 18 anos ou mais foram diagnosticadas com depressão, acima dos 7,6% em 2013. Nas mulheres houve uma prevalência maior (14,7%) em comparação com os homens (5,1%). Daqueles com diagnóstico de depressão, 18,9% estavam sendo acompanhados em psicoterapia e 48% usavam medicamentos. No decorrer da pandemia da Covid-19, houve um aumento exorbitante de sintomas, como ansiedade, tristeza, estresse, esforço excessivo, irritabilidade, insegurança, inquietação, insônia, entre outros, o que tornou mais comum a manifestação da depressão (Noal et al., 2020).
A depressão pode ser caracterizada pela presença de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo (APA, 2023). Para além de uma concepção centrada no sintoma, utilizamos neste artigo a lente da psicopatologia fenomenológica, que prioriza a forma como o fenômeno se apresenta e seu significado para quem o experiencia, proporcionando a compreensão das várias formas de adoecer e de suas condições de possibilidade (Moreira & Bloc, 2021).
Durante toda a história da psicopatologia fenomenológica, o tema da depressão e da melancolia, seu modo de manifestação mais grave, tem sido discutido por diversos autores, como Minkowski, Binswanger e Tellenbach, e está, inclusive, vinculada ao próprio desenvolvimento histórico dessa perspectiva. Esses autores foram alguns dos primeiros psiquiatras que, seguindo um viés fenomenológico, ampliaram concepções e desenvolveram uma prática clínica, especialmente relacionada à melancolia, com base na descrição e na compreensão da experiência psicopatológica de forma existencial, ou seja, eles se distanciam dos modelos psiquiátricos clássicos ou modelos psicopatológicos gerais que se concentram na classificação e diagnóstico das doenças mentais (Souza & Moreira, 2018a).
Minkowski priorizava a experiência clínica e o encontro com o paciente, compreendendo, desse modo, o transtorno depressivo implicado na relação de fluidez e de movimento do devir. Ou seja, o entendimento da depressão por meio do enrijecimento da fluidez do devir, nesse âmbito, daria margem para se pensar, além da origem causal do adoecimento, a compreensão do significado do mundo vivido do paciente (Bloc et al., 2016). Diferente de Minkowski, Ludwig Binswanger buscou especificar uma fenomenologia que fosse capaz de alcançar a origem dos transtornos psicopatológicos, para que possamos compreender a gênese da depressão e seus fundamentos. Ele diria que o melancólico se encontra preso, colado em seu passado, ou seja, não consegue viver seu presente por estar preso a um acontecimento anterior (Pita & Moreira, 2013).
Tellenbach, por sua vez, contribuiu no sentido de desenvolver um estudo que privilegiava a gênese do problema melancólico com base numa concepção endógena das psicopatologias (Ambrosini et al., 2011). Ele utilizou o termo depressividade como um movimento presente nas mais variadas formas de estados depressivos. Sua forma de abordar o transtorno depressivo remete à ideia desenvolvida mais tarde por Tatossian acerca da depressividade (Souza & Moreira, 2018a). Já Tatossian defende que, ao tratar da depressão, é preciso considerá-la tanto no singular como no plural: no plural, por existirem várias formas de depressão, como as depressões acidentais ou reacionais, as depressões de toda a vida (situacionais) e a depressão-doença, que seria a mais grave, chamada de melancolia (Bloc et al., 2016); e no singular, em virtude de que há, para além dos diferentes tipos, algo comum que permanece em todos os tipos de depressão (Bloc & Moreira, 2016).
Para compreender a depressão, é preciso considerar os diversos elementos que impossibilitam sua compreensão psicológica e vão em direção a um fenômeno que é vivido no tempo, no corpo, no espaço e no outro (Tatossian et al., 2016). A psicopatologia fenomenológica nos fornece uma compreensão do modo de funcionamento, do modo de ser global do sujeito com depressão. Para além de uma compreensão teórica, partimos para a própria experiência que se expressa mediante um acompanhamento em psicoterapia. Utilizaremos como base de compreensão para o estudo de caso e método clínico a psicoterapia humanista-fenomenológica, que pode ser definida como um desenvolvimento contemporâneo originado da composição de duas principais vertentes: a psicologia humanista, em especial a abordagem centrada na pessoa de Carl Rogers; e a tradição da psicopatologia fenomenológica. Do ponto de vista filosófico, essa perspectiva teórica encontra seu fundamento na fenomenologia de Merleau-Ponty (Moreira, 2009).
Na perspectiva da clínica humanista-fenomenológica, Moreira (2009) acentua a relevância das condições facilitadoras: aceitação positiva incondicional, compreensão empática e autenticidade. Portanto, considera o poder da mudança no andamento psicoterapêutico e, ainda que de forma crítica, da tendência atualizante do cliente. A psicoterapia humanista-fenomenológica exige, além das atitudes facilitadoras de Carl Rogers, intervenções fenomenológicas que favoreçam o aprofundamento dos conteúdos que constituem o mundo vivido do cliente. Estas atitudes são adotadas pelo psicoterapeuta não apenas a fim de “passear” pelo Lebenswelt (mundo vivido) do cliente, mas como ferramenta crítica que proporcione a compreensão desse mundo vivido por meio da relação objetiva-intersubjetiva psicoterapeuta-cliente-mundo (Moreira, 2013).
Diante do exposto, observa-se o quanto uma pandemia pode afetar negativamente a saúde mental das pessoas. Por meio de um estudo de caso, este artigo tem como objetivo compreender, sob um viés humanista-fenomenológico, a experiência de depressividade vivida por um paciente acompanhado em psicoterapia durante a pandemia de Covid-19 (2020-2023). A partir da clínica humanista-fenomenológica, busca-se ir além da visão inferencial e nosológica do diagnóstico de depressão e alcançar as tessituras que compõem o Lebenswelt (mundo vivido) de Antônio (nome fictício). A depressividade é aqui situada no encontro entre a experiência depressiva de Antônio, expressa ao longo do processo de psicoterapia, e a compreensão da psicopatologia fenomenológica, que fornece bases para se compreender a experiência daqueles que vivem com depressão.
Método
Tipo de pesquisa
Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, que investigou o processo de psicoterapia de um paciente com depressão que foi atendido por seis meses, pelo primeiro autor deste artigo, segundo a abordagem humanista-fenomenológica. Esta pesquisa seguiu, prioritariamente, um desenho qualitativo com a utilização de instrumentos de registro de caso. Como proposto por Yin (2015), alguns passos foram seguidos para a construção do estudo de caso em psicoterapia, tais como a escolha do caso a ser investigado, a coleta de dados, a análise do caso e sua explanação final.
Os atendimentos foram realizados como parte de um projeto de pesquisa e intervenção, nomeado como Cuidar-Psi, que tinha como objetivo oferecer um espaço de cuidado e escuta para pessoas em sofrimento emocional durante a pandemia da Covid-19. Os atendimentos eram vinculados a uma clínica-escola de psicologia de uma universidade na cidade de Fortaleza. Em decorrência do isolamento social causado pela pandemia da Covid-19, todos os atendimentos ocorreram completamente de forma remota, por meio de videochamadas no WhatsApp.
Participante
O participante é um paciente do sexo masculino, heterossexual e que tinha 31 anos de idade no período dos atendimentos. Os seguintes critérios de inclusão foram utilizados para a realização do estudo de caso: ter queixa depressiva; ter idade a partir de 18 anos; ter disponibilidade para atendimento psicoterápico semanal durante seis meses; e ter capacidade cognitiva de seguir as instruções dos protocolos. Foram excluídos pacientes em crise emocional grave que impossibilitasse o acompanhamento psicoterápico sistemático.
Instrumentos
Foram utilizados os seguintes instrumentos de coleta de dados: (a) transcrições das sessões e (b) versões de sentido. A versão de sentido é um instrumento que se caracteriza pelo exercício de escrita livre sobre a experiência do atendimento realizado, auxiliando na compreensão da percepção do encontro com o cliente (Amatuzzi, 2010). Tanto as transcrições de sessões, mais voltadas para os aspectos objetivos e concretos que aconteceram na sessão, quanto as versões de sentido, centradas na experiência do psicoterapeuta, foram realizadas ao final de cada sessão.
Procedimentos de coletas de dados e aspectos éticos
Após ter procurado o serviço e estar na fila de espera por atendimento, Antônio passou por um processo de triagem em que assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), foi informado sobre o tipo de pesquisa, sobre o processo terapêutico e foram identificadas suas demandas. Em seguida, foi encaminhado para um estagiário da equipe para dar início ao processo de psicoterapia. Em função do isolamento social, os atendimentos ocorreram na modalidade on-line, com encontros de cinquenta minutos, uma vez por semana, de maio a novembro de 2021, totalizando 27 sessões. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e está registrada no processo 43071020.5.0000.5052.
Análises de dados
A análise das transcrições e das versões de sentido se deu mediante o método fenomenológico crítico de pesquisa em psicologia operacionalizado à clínica (Moreira, 2004). Os seguintes passos da análise fenomenológica mundana foram seguidos: (a) Divisão do texto nativo em movimentos, ou seja, as transcrições de sessão e versões de sentido foram divididas de acordo com os temas que emergiram; (b) Análise descritiva do significado emergente do movimento, buscando uma compreensão mais ampla do vivido depressivo de Antônio; e (c) Sair dos parênteses, no qual o pesquisador deixa de praticar a redução fenomenológica e busca dialogar com o fenômeno que emerge do material coletado conforme a teoria.
Resultados e discussão
Para apresentar os resultados e discuti-los, apresenta-se, inicialmente, o caso clínico. Em seguida, discutem-se dois tópicos: a corporeidade descrita por Antônio e as implicações de seu sofrimento e sua depressividade. Por último, serão abordadas algumas questões sobre o significado do mundo vivido (Lebenswelt) de Antônio na depressão por meio da compreensão empática no processo psicoterapêutico.
O caso clínico
Antônio tinha 31 anos no período dos atendimentos, estava solteiro e residia com a mãe, com o irmão mais velho e com a sobrinha. No total ele tinha quatro irmãos, uma era falecida e dois estavam presos. Seu círculo social era bastante limitado, sem amigos nem contatos constantes. Teve um relacionamento de dois anos e, mesmo após o término, continua mantendo contato com a ex-esposa. Tem uma filha de seis anos que é fruto desse antigo relacionamento.
Não conseguiu concluir o ensino fundamental, mas pretendia concluir o ensino médio e cursar direito ou medicina. No início do processo, estava trabalhando num supermercado como auxiliar de almoxarifado. Com pouco tempo foi demitido e, posteriormente, trabalhou vendendo jujuba e caneta pelas ruas de Fortaleza. Seu maior desejo era trabalhar com carteira assinada novamente, para ter melhor estabilidade financeira e dar melhores condições para a filha.
As queixas que surgiram desde o início do processo psicoterapêutico foram: crises de choro, tristeza frequente, insônia e ideação suicida. Além disso, trouxe de forma intensa e exaustiva questões relacionadas ao seu sofrimento, explicitando estar angustiado, sozinho, ansioso, isolado, sobrecarregado e sem esperança. Falou também de sua preocupação com questões familiares, sobretudo com relação à filha, afirmando que a ama muito e que sempre que pode faz de tudo para agradá-la.
A relação com a família foi um tema abordado nas sessões, tendo em vista que a sua vivência em casa era difícil, pois muitas vezes foi julgado ao expor que precisava de ajuda psicológica. Outra grande apreensão era o fato de perceber que estava afetando sua filha, pois a filha sempre presenciava quando ele se encontrava triste, angustiado e isolado e Antônio tinha receio de que aquilo a afetasse negativamente. Outro ponto era o fato de ter a obrigação de assumir as responsabilidades pelo sustento da família, se sentindo muitas vezes pressionado.
Quando criança foi violentado pelo pai, que foi embora na adolescência ao se separar de sua mãe. Desde então, não tem contato com o pai. Costumava falar muito pouco sobre os dois irmãos que estão presos, mas sempre dizia que tinha muita saudade e que eles já estavam há seis anos na prisão. Sempre trouxe um discurso extremamente confuso, além de, em muitos momentos, falar de forma direta, sem detalhes, dificultando bastante a imersão na experiência vivida.
A relação com o trabalho da época era fonte de aflição para Antônio. Ele estava se estressando com facilidade, por conta de estar vendendo jujuba na rua e sofrendo opressão por parte de algumas pessoas e estabelecimentos. Pensou, muitas vezes, em desistir, mas pelo fato de ter uma filha para sustentar não o fez. Já tinha sido parado pela polícia e dizia que passar por tudo aquilo era extremamente chato, que se sentia incomodado e humilhado. Em diversos momentos teve crises intensas, em que relatava ouvir uma voz que lhe dizia para “tirar a própria vida” e “acabar com o sofrimento”. Entretanto, imediatamente pensava na filha e essa voz ia embora. Teve dificuldades de alimentação, ficando dias sem dormir de forma regular.
Além do acompanhamento psicológico, relatou ter sido atendido durante dois anos por um clínico geral de um hospital de Fortaleza, que lhe prescreveu clonazepam e amitriptilina quando estava em crise, além de um remédio para dormir. Com a proximidade dos seis meses de atendimento e diante da gravidade do caso de Antônio, foi decidido que os atendimentos psicológicos continuariam. No entanto, com o retorno da presencialidade, Antônio desistiu, alegando não ter disponibilidade, a pretexto de ir ao trabalho e por ter que levar a filha à escola. Orientamos que ele procurasse o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) mais próximo de sua casa, a fim de dar continuidade ao acompanhamento por um profissional de saúde mental.
Na avaliação final do processo, Antônio relatou que a psicoterapia o ajudou bastante, pois ele pôde refletir melhor sobre a vida, aprendeu a ter mais controle, a pensar e agir com mais cuidado quando está estressado. Disse se sentir melhor desde o início dos atendimentos e que seu maior receio era a recaída em outra crise, por isso passou a prestar mais atenção sobre como se sentia.
“É como se tivesse levando uma flechada no peito”: A corporeidade de Antônio
Nos atendimentos iniciais, Antônio descrevia exaustivamente suas experiências, situando seu sofrimento no corpo. Não se trata aqui do corpo dos fisiologistas, mas do corpo vivido, no qual o fisiológico e o psíquico se ligam numa integração da existência, que se constitui de instante a instante (Fuchs, 2019; Tatossian, 1979/2006). Em um dos encontros, ele disse que não era o mesmo de antes: feliz, alegre e sorridente. Pelo contrário, se considerava uma pessoa infeliz, abatida e melancólica: “É como se eu estivesse andando dentro de um vulcão se queimando, se machucando e não consigo sair”. É explícito o quão triste e doloroso Antônio se encontrava, o quanto esse corpo sofria, gritava, pedia socorro. O corpo na depressão é, por vezes, vivido como sem âncora no mundo e o sujeito parece viver no vazio, pois não se liga ao mundo, está no limbo, distante, longínquo, vago, fora de seu alcance (Tatossian, 1983/2012). Isso ficou evidente não somente na forma como Antônio se expressava corporalmente, mas também pela maneira como ele falava e descrevia a sua experiência.
No decorrer das sessões, era possível perceber que havia um outro modo de experienciar o próprio corpo, um corpo intersubjetivamente dessincronizado, ou seja, um corpo sem ressonância com as próprias emoções e com o outro (Fuchs, 2019). Em uma das sessões, Antônio relatou o incômodo com o seu corpo, o estranhamento ao olhar para si próprio: “Emagreci seis quilos na última semana, estou me sentindo feio. Me senti mal quando minha ex-esposa disse que eu estava magro”. A maneira como o corpo de Antônio se mostrava era justamente a de um corpo extremamente pesado, preso, sem projeção no mundo, mas de algum modo suspenso no ar, sem nenhum suporte e, portanto, nenhum ponto de ancoragem a partir do qual possa agir no e sobre o mundo exterior (Tatossian, 1983/2012). Antônio dizia não querer levantar da cama por não ter ânimo para andar e, tampouco, para viver.
Durante alguns encontros Antônio descrevia crises intensas. Certa sessão, afirmou que estava com a mente perturbada e pensando em “fazer besteira”, que andava muito triste, chorando sem motivo algum. Dizia sentir grande angústia no peito e que não queria falar e nem ver ninguém, apenas ficar isolado e chorar: “Eu tenho a sensação de estar levando uma flechada no peito. É como se eu estivesse numa caverna escura, em que não consigo ver luz, não consigo ver nada”. Antônio parece ser prisioneiro do seu próprio corpo. Na melancolia, o espaço fenomenal deixa de ser corporificado e se torna um obstáculo, como algo estranho, impedindo o sujeito de se lançar ao mundo. O sujeito toma consciência deste corpo que tem como pesado e vulnerável (Fuchs, 2014).
Durante alguns encontros Antônio cogitava tirar a própria vida. Dizia que escutava uma voz, porém, não conseguia descrever quem era e como era essa voz. Ela sempre aparecia quando ele tinha crise de choro e estava triste, o que ocorria quase toda semana. A voz ecoava em sua mente e lhe dizia para “tirar a própria vida” e “acabar com sofrimento”. Entretanto, imediatamente pensava em sua filha e essa voz ia embora, ou seja, para ele, o outro, ainda, existia como possibilidade. Para Tatossian (1983/2012), aquilo que o melancólico almeja é seu corpo como objeto, e não a si próprio. Através do gesto suicida, “o melancólico tenta se fazer reaparecer na totalidade de seu corpo vivido” (p. 118). Ao tentar eliminar o corpo-objeto, o ato suicida permite ao sujeito acessar esse corpo uma vez perdido, dando-lhe, supostamente, o controle do objeto perdido, apagado, no momento em que o destrói (Tatossian, 1979/2006, 1983/2012).
Antônio dizia que a voz lhe falava coisas tenebrosas, mas sempre lutava para não atender aos seus pedidos. Certo dia, quando ele estava muito angustiado, essa voz lhe disse para “pegar a moto, andar a mais de 100 km/h sem capacete e bater num muro”. Esse corpo que sofre quer ser liberto e a morte aparece, ilusoriamente, como solução. A morte, nesse sentido, parece ser uma saída para a dor, como se fosse uma escolha para eliminar por completo o sofrimento (Dutra, 2000). Através do suicídio, paradoxalmente, busca-se a vida com uma última chance de realizar uma ação. A dualidade do suicídio melancólico está na fantasia de que a morte e o fracasso poderiam ser repensados (Tatossian, 1975/2012, 1979/2006, 1983/2012). A experiência de Antônio era paradoxal porque, ao mesmo tempo em que ele queria acabar com a dor, com a vida, ele também queria viver, se fazer como existência.
Durante um dos atendimentos, Antônio relatou que estava muito triste após o término do namoro. No dia seguinte ao término, foi chamado para “fazer um bico” e o local de trabalho era um ambiente alto de instalações de energia solar. Quando estava no alto, a voz na qual sempre costuma ouvir veio a sua cabeça dizendo para “pular e acabar com tudo”. Olhou para baixo, mas não conseguiu seguir o que a voz dizia. Na experiência depressiva, as tentativas ou ideações suicidas são, por vezes, associadas à solidão absoluta (Souza & Moreira, 2018b). A solidão demarca a experiência de Antônio e o torna mais vulnerável.
O desejo de Antônio querer acabar com o sofrimento era enorme. No seu olhar transparecia vontade de mudança, de findar essa dor e angústia. Embora se questionasse sobre sua situação em diversos momentos, a determinação de acabar com o sofrimento parecia, muitas vezes, ceder espaço para a aflição, retornando à ideia de tirar a própria vida. A ausência de uma rede de apoio, além do julgamento diante da necessidade de ajuda psicológica, dificultava o trabalho psicoterapêutico.
Para Tatossian (1983/2012), o sofrimento na depressão não pode ser situado somente no psiquismo, mas, também, e talvez principalmente, no corpo. Na experiência de Antônio, o corpo estava constantemente em cena, percebido através de suas feições, do seu olhar, na sua maneira de sentar e no seu tom de voz. Parecia não haver mais fluidez e nem movimento. Um corpo instável, sem sincronia com o mundo, flutuante, vago e fora do fluxo (Fuchs, 2019).
“Eu quero viver, eu não estou mais vivendo! Eu quero respirar como antes!”: O sofrimento e a depressividade vivida por Antônio
Durante todo o processo com Antônio, tivemos o cuidado em compreender o seu modo de funcionamento no mundo, não focando apenas nos seus sintomas, mas procurando mergulhar na experiência da sua condição de sofrimento. A depressividade evoca o modo de ser global do indivíduo, algo próprio da depressão, estando presente em todos os depressivos como uma possível condição de possibilidade, pois ela é continuamente construída através da experiência única de cada sujeito e envolve movimentos que se adequam à sua relação com o mundo (Souza, 2013; Souza & Moreira, 2018a). Compreender a depressividade vivida por Antônio significa ir ao encontro de sua experiência, na sua dimensão empírica, junto às concepções apriorísticas de uma leitura fenomenológica da depressão, aquilo que Tatossian (1979/2006, 1983/2012) nomeava como uma dupla experiência.
Quando estamos com um paciente que tem depressão, na verdade, estamos com ele e com a sua depressão, já dizia Tatossian (1979/2006). Existem, de modo entrelaçado, elementos comuns que permitem a percepção de um modo de ser depressivo de Antônio e também algo que lhe é próprio, particular de um sujeito que possui uma história e que é atravessado por tantas vulnerabilidades. É importante enfatizar que o diagnóstico não é suficiente para definir a integridade da existência do paciente. O vivido depressivo evoca um estilo existencial, uma forma de estar no mundo (Moreira & Chamond, 2012) cujo acesso nos ajuda a compreender a complexidade dos modos de adoecimento (Moreira & Bloc, 2021).
Antônio dizia sentir falta de ser a pessoa de antes. Não conseguia dormir regularmente, trocando o dia pela noite. Havia uma alteração do modo de viver o tempo. De acordo com Tatossian (1983/2012), na depressão, o tempo é cortado do futuro, em um presente vazio que escapa ao sujeito desde o momento em que ele quer se apoiar nele, uma espécie de pseudopresente, constantemente atraído para a sombra de um passado que invade o presente continuamente sob forma de arrependimentos e escrúpulos. Perde-se a sincronia com o tempo do mundo, encontrando-se inibido, estagnado e desacelerado, impossibilitado de se lançar ao futuro. Antônio não conseguia agir no mundo e isso representava sua maneira de encarar esses desajustamentos.
Antônio usava algumas metáforas para falar de sua dor. Durante um dos atendimentos, ele disse que tinha a sensação de que estava “num buraco escuro precisando de ajuda”. Antônio dizia que o seu desejo era ficar o tempo todo no seu quarto trancado, sobretudo quando se sentia triste, pois chorava bastante e não sentia vontade de sair de casa. Parecia haver ali um espaço vivido como “desesperadamente vazio, plano, sem relevo e sem perspectiva” (Tatossian, 1983/2012, p. 115). Ele se insere nos interstícios de um espaço que não lhe é próprio, por não o ter produzido. Trata-se de “um espaço restrito, fechado e sem possibilidades” (Moreira & Bloc, 2021, p. 110). Antônio se fechava em seu “mundo” oculto, sem abertura, sem perspectiva, sem vida.
Um dos maiores medos de Antônio era que sua namorada e sua filha fossem afetadas negativamente, ou seja, que qualquer delas sofresse por sua culpa. Então, ele preferiu se “afastar”, não somente delas, mas também da família e dos poucos amigos, se isolar de todos por não conseguir confiar em ninguém. Antônio não conseguia socializar e, tampouco, interagir. Sentia-se como alguém influenciável de forma negativa com relação ao outro, criando expectativas sem fundamentos. Tatossian (1983/2012) aponta que, ao perder a confiança no mundo, o depressivo fecha-se em si mesmo, alienando-se. Essa perda de confiança basal no mundo ressoa como perda de confiança em si mesmo, confirmada pela impossibilidade de agir e se movimentar e pelo modo de se relacionar com as pessoas, que foi se deteriorando. Com a perda da comunicação vital com o mundo, a confiança basal do sujeito é abalada, dificultando suas condutas e trocas cotidianas. Isso nada tem a ver com a confiança como sentimento psicológico, mas ocorre num nível mais primitivo que envolve trocas importantes entre as pessoas e o mundo ao seu redor (Tatossian, 1977/2016).
Antônio gostaria muito de ser a pessoa alegre de antes, alguém que gostava de sorrir, brincar, sair com os amigos, correr, se divertir. Entretanto, não se sentia motivado, sua vida se resumia a chorar com facilidade, ficar retraído em seu quarto, triste, abatido e sem esperança: “Eu quero viver, eu não estou mais vivendo! Eu quero respirar como antes!”, disse Antônio no final de um atendimento. Van den Berg (1994) aponta que a pessoa com depressão vê e vive o mundo de forma diferente. Tudo se torna incolor, escuro, sem brilho e sem vida, e a pessoa perde o interesse e o prazer nas coisas que antes a satisfaziam. Em diversos momentos, Antônio se encontrava nessa obscuridade, e demonstrava dor e sofrimento.
Numa sessão, Antônio falou que sua semana havia sido uma das piores de sua vida, que foram dias difíceis. Ele inclusive afirmou que não conseguira dormir durante três dias seguidos, sentindo tristeza e angústia. Além disso, relatou que não conseguia nem mesmo se alimentar e emagreceu bastante. Solomon (2010) considera que um aspecto da experiência da depressão é quando a pessoa descobre que não consegue mais realizar as tarefas diárias, como conversar, comer e tomar banho. Como afirma Tatossian (1979/2006), perde-se o poder de ação, o que esteve presente de forma significativa na cotidianidade de Antônio.
Antônio vivia um tempo alterado, trocando o dia pela noite, e estagnado, sem fluxo. Seu corpo parecia pesado, seu espaço vazio, sem contato e sem horizonte. Suas relações com os outros se mostravam dispersas, indo da dependência extensa ao completo abandono desse outro. Ainda que não se deva tratar a depressão como algo passível de esgotar ou definir (Bloc & Moreira, 2016), com a depressividade é possível promover uma compreensão que se assenta na interseção da experiência de Antônio e aquilo que a lente fenomenológica discute acerca do vivido depressivo. Seguimos o caminho das condições de possibilidades do vivido depressivo (Tatossian, 1983/2012) por meio do foco no modo de funcionamento global de Antônio.
A busca do significado do mundo vivido (Lebenswelt) por meio da compreensão empática no processo psicoterapêutico
Ao longo dos atendimentos, sempre se buscou ouvir Antônio com muita atenção e cuidado. A intenção era compreender melhor o seu mundo vivido (Lebenswelt) e, assim, construir uma relação, um vínculo terapêutico sem o qual o processo não fluiria (Moreira, 2009).
Antônio vivenciava, quase diariamente, crises que o deixavam muito angustiado. Relatou que em uma delas suas mãos ficaram trêmulas e sentiu também falta de ar. Dizia que era sempre julgado pela família, que afirmava ser um drama. Buscamos compreender com mais clareza o que essas crises de choro significavam, como ocorriam e, sobretudo, o que ele sentia durante essas experiências. Como marca da perspectiva humanista-fenomenológica, busca-se captar e compreender os diferentes significados da experiência vivida na perspectiva do paciente, sempre considerando seu entrelaçamento com o mundo. Quando na psicoterapia buscamos o significado da experiência vivida do paciente, estamos pretendendo, juntos, psicoterapeuta e paciente, compreender seu Lebenswelt, o mundo vivido (Moreira & Bloc, 2021). O Lebenswelt refere-se ao mundo em sua abertura, antes de ser pensado, e que não tem nenhum traço de dualidade. É, simultaneamente, sujeito e objeto, e se realiza no mundo, no entrelaçamento entre o universal e o singular, o que institui seu caráter ambíguo (Moreira, 2012). Ter o Lebenswelt como fio condutor em psicoterapia significa focalizar a realidade primária da experiência imediata do paciente, o mundo de significado tal como ele se apresenta (Moreira, 2009, 20, 2013, 2016).
As crises de choro de Antônio tinham um significado de efeito doloroso, o de se sentir firme, forte e resistente, ao mesmo tempo em que ele se dava conta de tantas batalhas diárias: trabalho, família, questões financeiras, amorosas e afetivas. Quando, no decorrer dos atendimentos, Antônio vai “compreendendo” essas crises, ele consegue se abrir para as possibilidades da vida – não que ele tenha deixado de tê-las, mas, de algum modo, houve uma redução e aquilo não parecia ter mais tanta importância. Sob essa perspectiva, Moreira (2016) aventa que, enquanto psicoterapeutas, quando tentamos compreender o Lebenswelt, buscamos, na verdade, entender a mistura do vivido, que é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo, consciente e inconsciente, individual e social. A mistura do vivido de Antônio está justamente na composição da força e da intensidade quando em momentos difíceis ele consegue de forma surpreendente ter resiliência, ou seja, a capacidade de suportar as adversidades em meio às crises e vulnerabilidades junto com o peso, a obscuridade e a densidade da dor, do sofrimento e da dificuldade, tudo isso de forma entrelaçada.
Na busca da compreensão do mundo vivido de Antônio, algo importante nesse processo foi a tendência atualizante, entendida, aqui, de forma mundana. A partir de Rogers (1961/2009), ela pode ser definida como a capacidade inerente ao indivíduo no desenvolvimento de suas potencialidades, desde que certas condições sejam atendidas. Seguindo a contribuição da fenomenologia de Merleau-Ponty, Moreira (2009, 2013) salienta que devemos partir de uma compreensão mundana desse conceito que enfatiza a mútua constituição entre ser humano e mundo e a possibilidade de que esse homem, de forma ambígua, também tenha uma tendência destrutiva.
Durante alguns atendimentos com Antônio, perguntávamo-nos justamente por essa suposta força motriz presente em Antônio. Ao longo das sessões, tornou-se perceptível que, mesmo diante de tanta angústia, dor e sofrimento, Antônio ainda conseguia, mesmo que minimamente, desvelar um novo significado para suas experiências que, em muitas vivências, foram construtivas, quando, por exemplo, ele consegue comer regularmente, tomar banho diariamente e voltar a passear com a filha. Por outro lado, em momentos destrutivos, Antônio desconstruía ganhos alcançados, tinha recaídas em suas “crises de choro” e recuava em seu processo de crescimento.
É preciso dizer que a tendência atualizante foi potencializada pelas atitudes facilitadoras: aceitação positiva incondicional, compreensão empática e congruência ou autenticidade (Rogers, 1961/2009). Durante todo o processo com Antônio, buscamos ao máximo atendê-lo utilizando essas atitudes, ou seja, demonstrando que a história que ele estava contando importava e que estávamos inteiros naquele processo de escuta. Buscava-se acolhê-lo incondicionalmente, aceitando-o do jeito como ele era, sem querer convencê-lo dos seus valores, sem querer convencê-lo do que é certo ou errado, sem expressar julgamentos, sem expressar juízo de valor, sem interromper a fala, o que permitia que ele se expressasse de forma livre e espontânea. Buscávamos andar de “mãos dadas” no mundo vivido de Antônio, procurando compreender junto com ele os significados desse mundo (Moreira, 2009).
Compreendemos que a compreensão empática foi primordial na busca para alcançar os significados do mundo vivido de Antônio. Rogers (1975/1977, p. 73) afirma que a compreensão empática “significa penetrar no mundo perceptual do outro e sentir-se totalmente relaxado dentro dele”. Durante vários encontros adentramos nesse mundo perceptual de Antônio e “sentimos juntos” suas dores, aflições, sentimentos de tristeza e solidão. A compreensão empática busca, justamente, captar o mundo particular do paciente “como se” estivesse sentindo suas angústias, ansiedades e medos. Envolve movimentar-se pelo mundo do cliente, entender esse mundo e comunicar esse entendimento a ele. Tal acesso ao mundo do cliente se dá por meio dos sentimentos expressos. Dessa forma, o cliente pode passar a se sentir seguro na relação e a ter novas maneiras de se relacionar com o mundo e consigo mesmo (Fontgalland & Moreira, 2012; Moreira, 2009; Moreira & Torres, 2013). A busca por compreender Antônio empaticamente foi um processo árduo, devido a sua dificuldade de abertura e à complexidade de seu discurso. Movimentar-se por seu mundo particular e buscar entender seus sentimentos junto com ele foi desafiador. Mesmo diante disso, esse empenho foi importante e tornou mais fácil compreender os significados de seu Lebenswelt que foram emergindo no decorrer do processo.
Durante o processo, utilizamos também intervenções fenomenológicas que favorecem o aprofundamento dos conteúdos que constituem o mundo vivido de Antônio e se apresentam como uma ferramenta crítica (Moreira, 2013). A primeira atitude fenomenológica utilizada foi a descrição. Ela é o “motor” do processo psicoterapêutico. pois nos permite compreender o significado das experiências pelas quais o paciente está passando. O significado só pode surgir por meio de uma abordagem descritiva e compreensiva (Moreira, 2007). No caso de Antônio, ao mesmo tempo em que a descrição se repetia, ela desvelava novos significados. Isso fica explícito no discurso exaustivo de sofrimento, dor, angústia e solidão. Antônio mergulhava nesses discursos e os significados dessa experiência eram reconhecidos a cada sessão. Moreira (2009) afirma que é importante que o psicoterapeuta encoraje o paciente a descrever suas experiências vividas, pois é pela descrição exaustiva que ele poderá explorar essa experiência e compreender seu próprio mundo vivido. A descrição permite que tanto o psicoterapeuta quanto o paciente possam se dar conta dos diferentes significados das experiências vividas.
Outra atitude fenomenológica é a fala autêntica que é construída na relação cliente-psicoterapeuta (Moreira, 2009). Como mostra Amatuzzi (1989), a fala autêntica é uma fala genuína, uma expressão autêntica, original e proferida pela primeira vez, fruto da experiência vivida de maneira imediata. No caso de Antônio, emergiu quando, numa sessão atípica, ele expôs que estava alegre e com uma novidade para contar: havia iniciado um namoro. Foi a sessão mais diferenciada de todas, no sentido de que Antônio trouxe pela primeira vez algo “positivo” e se mostrou motivado durante o processo, além de demonstrar “estar bem”. Vale ressaltar que em todos os encontros seu sofrimento era exorbitante, e sempre estava atrelado a um cenário trágico, sombrio, macabro, perfurante e nefasto.
Em muitos momentos, Antônio estava desconectado de si mesmo, sem saber exatamente o que sentia, e muito menos os significados do que sentia. Ele não conseguia descrever com clareza o que sentia, como de fato acontecia, tinha dificuldade de se situar, de falar mais detalhadamente dos seus sentimentos. Buscamos pouco a pouco fazer com que ele próprio enxergasse e entendesse os significados de suas experiências (Moreira, 2009). Nesse contexto, entra justamente a intuição eidética, na qual o cliente apreende o significado da experiência, ou seja, “o psicoterapeuta busca facilitar ao cliente a compreensão dos significados de sua experiência” (Moreira, 2009, p. 63).
Em alguns momentos, era possível perceber certa comoção de Antônio, por sua história, sua vulnerabilidade social, seu desamparo, seus discursos tão melancólicos e obscuros. Tivemos, por vezes, dificuldade de nos “distanciar”, para poder enxergá-lo como uma pessoa que precisava de ajuda. Apenas quando nos demos conta disso foi que pudemos nos aproximar de Antônio, buscando pôr entre parênteses sentimentos como o de pena. A redução fenomenológica entra justamente nesse contexto, como atitude necessária para se aproximar do fenômeno que emerge. Moreira (2007) acentua que a redução fenomenológica é parte do método fenomenológico e uma atitude facilitadora do próprio processo terapêutico. Ou seja, o psicoterapeuta deve duvidar de sua própria experiência, suspendendo o conteúdo da atitude natural, sem esquecer, como salienta Merleau-Ponty (1945/2006), que sua principal característica é que ela não pode ser completa.
Na avaliação final, conversamos com Antônio sobre o processo psicoterapêutico. Chamou-nos atenção a maneira como ele se expressou, dizendo que estava sendo muito bom, que estava aprendendo muito, refletindo bastante sobre coisas da vida e que tinha feito muita coisa boa. Aprendeu a ter mais controle, a pensar e agir com mais cuidado quando se estressava. A psicoterapia estava contribuindo para que ele voltasse a jogar bola, a fazer caminhada, jogar videogame e assistir filmes, indo com mais frequência à casa da filha, se sentindo motivado para atividades sociais. Relatou que o ajudou a superar a crise e a cair em si, sem causar um acidente em diversos momentos de dúvidas, como por exemplo, sobre a ideação suicida. Disse, ainda, que teve força, acolhimento e superação. Ajudou-o, inclusive, a buscar a Deus e a abrir a mente, refletir mais, mesmo diante de momentos difíceis. Isso coaduna com aquilo que Moreira (2009, p. 56) diz: “com o tempo, na medida em que o cliente conhece melhor os caminhos de seu Lebenswelt, ele passa a identificar, também, quais são os melhores caminhos, as estradas mais seguras, as ruas sem saída de seu mundo vivido”. Ou seja, passa a conhecer melhor o seu modo de funcionamento no mundo, identificando seus limites e potencialidades e compreendendo os significados de sua experiência vivida.
Considerações finais
A depressividade vivida por Antônio se apresentou como uma experiência de grande sofrimento e angústia. Em muitos momentos, ele se mostrou despotencializado, enfraquecido e num mundo restrito e sem possibilidades. Conclui-se, por este estudo, que a depressividade não pode ser entendida como uma psicopatologia que atinge e afeta apenas algo específico e isolado. A depressividade se apresenta entrelaçada em dimensões do tempo, do corpo, do espaço e da relação com o outro, constituindo o mundo vivido depressivo. Para além de seus sintomas observáveis, há um modo singular de ser-no-mundo que se expressa na depressividade de Antônio.
A depressão ainda é extremamente estigmatizada em nossa sociedade, e é ignorada e criticada por muitos, gerando constrangimento e mais sofrimento a quem é acometido. Esta pesquisa demonstrou que alguém com depressão pode sofrer preconceito e discriminação na família, no trabalho ou com os amigos, como foi o caso de Antônio em muitos momentos. Esses tipos de comportamento só reforçam a vergonha e levam a evitar buscar ajuda psicológica, o que pode gerar consequências graves, como o silêncio velado e até mesmo o suicídio.
O processo psicoterapêutico de Antônio, embora breve, foi sustentado pela prática clínica descritiva e compreensiva, que permitiu explorar e entender melhor seu mundo vivido (Lebenswelt). Além de buscar compreender o funcionamento de Antônio, o processo psicoterapêutico buscou ajudá-lo a conhecer a si mesmo, bem como sua depressividade, como modo particular de funcionamento no mundo. Trata-se de uma via de escuta que busca compreender aquilo que é comum, objetivo, de uma experiência de depressão e aquilo que é particular, subjetivo, oriundo do vivido de Antônio, que constitui a depressividade de Antônio, revelada em cada encontro.