Introdução
Obesidade e cirurgia bariátrica
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a obesidade é uma doença crônica, de origem e manutenção multifatorial, envolvendo fatores sociais, emocionais, econômicos, estilo de vida, sedentarismo e maus hábitos alimentares, que interagem entre si (WHO, 2025). Ela é caracterizada pelo acúmulo excessivo de tecido adiposo, o que causa riscos à saúde, e afeta praticamente todas as idades e grupos socioeconômicos (ABESO, 2016; Malveira et al., 2021).
O índice de massa corporal (IMC) ainda é o parâmetro mais utilizado para classificação da obesidade, mas está sujeito a limitações importantes, pois não fornece informações sobre a distribuição de gordura, nem pode discriminar entre as diferentes massas corporais (músculos, ossos e gordura). Essas limitações podem levar a uma classificação incorreta dos níveis de obesidade (Saadati et al., 2021). Para determinar o nível de sobrepeso e obesidade, no Brasil usamos a classificação proposta pela OMS mediante o IMC, calculado dividindo o peso (em quilos), pela altura (em metros) elevada ao quadrado, portanto kg/m2, que é o indicador mais usado para determinar a adiposidade corporal. A classificação estabelece como sobrepeso um IMC de 25 a 29,9kg/m2, e a obesidade é dividida em grau I (obesidade de risco elevado: de 30 a 34,9kg/m2), grau II (obesidade de risco muito elevado: de 35 a 39,9kg/m2) e grau III (obesidade grave de risco muitíssimo elevado: a partir de 40kg/m2) (ABESO, 2016).
Klassen et al. (2012) e Courcoulas et al. (2018) apontam que a cirurgia bariátrica é um tratamento eficaz para a obesidade, contando com resultados de longo prazo para perda de peso significativa, bem como para remissão de comorbidades, tais como hipertensão e diabetes relacionadas à obesidade. É importante ainda destacar que a literatura nos mostra algumas consequências negativas ou indesejáveis que podem ocorrer após a cirurgia bariátrica, as quais perpassam a dinâmica psicológica dos pacientes. Mais comumente, essas consequências estão relacionadas à percepção e interpretação que o indivíduo tem de seu excesso de pele após grande emagrecimento, ou à compulsão alimentar ou dificuldade de adesão a uma dieta, que geram baixa perda de peso, fatores que acabam resultando em algum tipo de sofrimento ou adoecimento mental (Busetto et al., 2018; Ivezaj & Grilo, 2018; Kitzinger et al., 2012; Klassen et al., 2012; Lourdes et al., 2021; Sarwer & Fabricatore, 2008). Dentre esses adoecimentos, encontramos, por exemplo, transtornos depressivos, alcoolismo e a própria compulsão alimentar (Marek et al., 2021; Néspoli et al., 2015).
Dessa forma, a compreensão dos aspectos psicológicos de pacientes bariátricos desempenha um papel importante na avaliação pré-operatória e no manejo pós-operatório (Sarwer & Fabricatore, 2008). Não por acaso, para que uma pessoa seja autorizada a realizar tal tratamento cirúrgico, o Conselho Federal de Medicina, pela Resolução 2.131/2015 (CFM, 2016), e a Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, pela Portaria SAS/MS 492 (SAS/MS, 2007), definem a importância e exigência de avaliação psicológica, que constitui uma condição e obrigação legal. Ambas as normas também salientam a necessidade de uma equipe multidisciplinar, incluindo a avaliação e acompanhamento por profissional de saúde mental, respectivamente psiquiatra e psicólogo (CFM, 2016; SAS/MS, 2007).
Distúrbio da autoimagem corporal
A imagem corporal é um conceito complexo no qual estão envolvidos componentes cognitivos, emocionais e sociais que interagem entre si para formar a percepção e vivência que temos de nosso próprio corpo. Isto é, a imagem corporal é composta pela autopercepção e atitudes corporais, nas quais estão inseridos crenças, pensamentos, sentimentos e comportamentos, bem como a influência do contexto social nessa construção (Busetto et al., 2018). Não por acaso, os efeitos da cirurgia bariátrica no corpo impactam de forma importante a identidade corporal, ou seja, a forma como o indivíduo se reconhece. Consequentemente, também tem grande influência sobre os processos de autoestima e na depressão após a cirurgia (Bressan & Schuelter-Trevisol, 2019).
Podemos encontrar distúrbios de autoimagem corporal como componentes de transtornos psiquiátricos como anorexia, bulimia ou transtorno dismórfico corporal (APA, 2023). Contudo, há na literatura descrições dessas distorções como consequências psicológicas indesejadas de procedimentos cirúrgicos como a cirurgia bariátrica (Anjos et al., 2020; Costa et al., 2020; Gomes et al., 2021; Pugliesi et al., 2023; Segura et al., 2016; Silva et al., 2020). Dessa forma, verificamos que, independentemente do contexto, o termo “distúrbio de autoimagem” acaba sendo um termo ou conceito inespecífico usado para descrever qualquer fenômeno em que haja perturbação da percepção da própria imagem corporal. Isto é, a percepção que o indivíduo tem do próprio corpo, seja defeito, falha ou tamanho, não é observada ou compartilhada com os demais da mesma cultura. Além disso, essa distorção acaba provocando alguma forma de prejuízo para o sujeito. Assim, tal qual como usualmente é feito na literatura sobre o tema, neste trabalho usaremos o termo “distúrbio de autoimagem” não para se referir a um transtorno em si, mas para designar um fenômeno de distorção da autoimagem corporal, a ser descrito e especificado posteriormente.
Transtorno Depressivo Maior
Para o diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior, segundo o DSM-5-TR (APA, 2023), é necessário que pelo menos cinco dos seguintes sintomas estejam presentes durante um período de duas semanas, representando uma mudança no funcionamento anterior, e que um dos sintomas seja humor deprimido ou perda de interesse/prazer. Os sintomas incluem: humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias; acentuada diminuição do interesse ou prazer em quase todas as atividades; alteração significativa de peso ou apetite; insônia ou hipersonia; agitação ou retardo psicomotor; fadiga ou perda de energia; sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva; capacidade diminuída de pensar ou se concentrar; e pensamentos recorrentes de morte ou ideação suicida. Esses sintomas devem causar sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes, não serem atribuíveis aos efeitos de substâncias ou outra condição médica, e pelo menos um episódio depressivo maior que não seja melhor explicado por transtornos do espectro da esquizofrenia ou outros transtornos psicóticos. Além disso, nunca deve ter havido um episódio maníaco ou hipomaníaco.
Terapia Cognitivo-Comportamental
Há muito se sabe que a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é uma modalidade de psicoterapia bastante eficaz no tratamento para depressão (Gloaguen et al., 1998; Li et al., 2018). A TCC é uma terapia orientada para o problema e, primordialmente, para o presente. Contudo, o passado não é desconsiderado. Os acontecimentos relevantes da história do indivíduo desde sua infância, bem como sua dinâmica de relações interpessoais e desenvolvimento são incorporados à conceitualização do caso, na medida em que ajudam a formular uma compreensão mais completa e um entendimento integral do sujeito (Wright et al., 2019).
Da perspectiva teórico-prática, a TCC sugere um modelo cognitivo, o qual propõe que crenças sobre nós mesmos e sobre o mundo são construídas e reconstruídas ao longo de nossas vidas. A partir delas, ao vivermos situações, emergem em nós pensamentos automáticos (PAs), os quais são rápidos e difíceis de notar. Esses PAs, então, vão gerar respostas comportamentais, fisiológicas, emocionais e, por vezes, pensamentos secundários a respeito das cognições primeiras. Esse processo não é puramente linear ou em sentido único, mas essas nossas dimensões influenciam umas às outras. Portanto, quando temos cognições disfuncionais ou desadaptativas, teremos reações também disfuncionais ou desadaptativas (Beck, 2021).
Tendo por base tal modelo cognitivo, ao se fazer a conceituação de caso de um sujeito, busca-se investigar e mapear as reações disfuncionais, os PAs ligados a elas e as situações que lhes servem de gatilho. Num nível mais profundo de análise, investigam-se também as crenças, centrais e intermediárias, desse sujeito, que suscitam os PAs. Além disso, também são averiguadas as estratégias compensatórias e comportamentais que permitem a manutenção de suas crenças, ou seja, condutas que fazem com que o indivíduo evite lidar com suas crenças disfuncionais (Beck, 2021). Dessa forma, a TCC busca, por meio do viés cognitivo-comportamental, a partir de uma visão biopsicossocial do sujeito e instrumentalizada por uma variedade de técnicas e estratégias, produzir mudanças positivas na vida dos indivíduos e evitar recaídas, num processo único e diferenciado para cada sujeito (Beck, 2021; Wright et al., 2019).
A Terapia do Esquema
A Terapia do Esquema (TE) é uma abordagem que surge originalmente como uma ampliação da TCC, na tentativa de se adequar melhor a pacientes mais resistentes a mudanças (Klosko & Young, 2004). Tal abordagem nasce da integração de diversos elementos e modelos de psicoterapia, como a cognitivo-comportamental, teoria do apego, gestalt, relações objetais, construtivista e psicanalítica (Young et al., 2008). A TE parte do entendimento que as pessoas têm necessidades emocionais básicas que, se não satisfeitas adequadamente na infância e adolescência ou caso se experimentem situações traumáticas ou diversas situações nocivas recorrentemente em seu desenvolvimento, podem gerar Esquemas Iniciais Desadaptativos (EIDs). Além desses fatores ambientais, o tipo de temperamento emocional que cada pessoa carrega consigo desde o nascimento, em interação com um ambiente nocivo, também influencia em grande medida na construção dos EIDs (Farrel et al., 2024; Rafaeli et al., 2023; Young et al., 2008).
Os EIDs são padrões emocionais e cognitivos, compostos por crenças centrais a respeito de si mesmo e do mundo, memórias, sensações corporais e experiências emocionais, que giram em torno de um tema de infância, como abandono, abuso, negligência ou rejeição. Os EIDs ainda são dimensionais, isto é, apresentam diferentes níveis e potenciais de penetração. Quanto mais grave for o nível, mais situações poderão ativá-los. Tal ativação se dá quando o sujeito, de forma inconsciente, percebe a situação que está vivenciando no momento como semelhante a uma situação nociva que vivenciou em sua infância e que foi responsável pela construção de seus esquemas (Farrel et al., 2024; Rafaeli et al., 2023; Young et al., 2008). Em consequência, por serem padrões cognitivos e emocionais disfuncionais, os EIDs provocam comportamentos desadaptativos como resposta, os quais reforçam e mantêm os esquemas. Ainda que os EIDs e estilos de enfrentamento gerem sofrimento para o sujeito, eles acabam sendo familiares e confortáveis, já que ele aprendeu que a realidade funciona dessa forma. Assim, temos que os esquemas e os comportamentos de enfrentamento já foram úteis para o sujeito em dado momento de sua história, ou seja, foram a forma que o jovem conseguiu encontrar para lidar com as situações que ocorriam. Porém, ao longo de seu desenvolvimento, se tornaram disfuncionais (Farrel et al., 2024; Rafaeli et al., 2023; Young et al., 2008).
Em relação ao papel do terapeuta, podemos citar algumas prioridades. No que se refere ao trabalho dentro do que compete aos esquemas, o profissional deve concentrar-se em compreender as necessidades que não foram atendidas, sobretudo na infância e na adolescência dos pacientes; facilitar que os sujeitos se tornem conscientes de seus esquemas, compreendendo seu funcionamento e assim enfraquecendo as memórias, emoções, sensações corporais, cognições e comportamentos associados a eles; e auxiliá-los a encontrar formas de controlar suas respostas aos esquemas (Farrel et al., 2024; Rafaeli et al., 2023; Young et al., 2008).
A Terapia de Aceitação e Compromisso
A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT – Acceptance and Commitment Therapy) é um modelo de psicoterapia comportamental e contextual, o qual propõe que a origem do sofrimento humano advém da rigidez ou inflexibilidade psicológica. O objetivo maior da ACT é promover flexibilidade psicológica, isto é, aceitar acontecimentos privados, tais como emoções, pensamentos, memórias e sensações, tidos como desagradáveis, a fim de manter ou modificar ações significativas para o sujeito (Hayes et al., 2021). Conforme expresso no próprio nome da abordagem, seus elementos centrais são a aceitação e o compromisso: aceitação do que está fora de nosso controle, seja do mundo interno, seja externo, e compromisso de praticar ações para uma vida mais significativa, independentemente de eventos internos ou externos desconfortáveis (Pergher & Melo, 2014).
Assim, podemos resumir a proposta da ACT como flexibilidade psicológica, que é a união de aceitação de eventos privados e ações compromissadas com os valores do sujeito e, portanto, mais compatíveis com uma vida significativa (Saban, 2010). Portanto, a ACT se dá como um modelo que enfatiza a mudança da relação do sujeito com os eventos psicológicos, e não, como propõe a TCC, a mudança dos eventos em si.
Psicoterapia Breve em contexto hospitalar
Podemos dizer que o foco e a temporalidade norteiam todas as formas de psicoterapia breve. Assim, as psicoterapias breves têm objetivos limitados, visto que se dão em função de necessidades imediatas do indivíduo. Tais objetivos geralmente se apresentam na forma de superação de sintomas e problemas atuais da realidade do paciente. O foco diz respeito à problemática ou situação atual do paciente. Ainda que questões adjacentes ou mais centrais atravessem os problemas atuais e possam ser minimamente trabalhadas paralelamente, aquelas serão preteridas em relação a estes. Isto se dá, geralmente, por conta da temporalidade exigida pelas circunstâncias do contexto (Almeida, 2010).
Os modelos clínicos tradicionais da psicologia normalmente não se aplicam ao hospital, de forma que não devem ser igualmente transpostos do consultório para a instituição. Questões sociais ou mesmo a quantidade de pacientes exigem que o tempo da psicoterapia seja abreviado e focal; portanto, o ambulatório do hospital é o ambiente em que a psicoterapia breve mais se enquadra (Almeida, 2010).
O objetivo deste estudo é demonstrar os resultados do tratamento por psicoterapia breve, integrando TE e ACT, num caso de paciente com depressão em decorrência de distúrbio de autoimagem após rápido e grande emagrecimento pós-cirurgia bariátrica. Também buscamos descrever esse fenômeno incomum em tal circunstância.
Metodologia
Este trabalho segue o delineamento de estudo de caso único (Peres & Santos, 2005), focado numa paciente diagnosticada com Transtorno Depressivo Maior de gravidade moderada-grave, conforme os critérios do DSM-5-TR (APA, 2023), após distúrbio de autoimagem no pós-cirurgia bariátrica. O tratamento se deu por psicoterapia breve, partindo do modelo teórico da TCC e integrando Terapia do Esquema e Terapia de Aceitação e Compromisso. Não foram utilizadas escalas ou testes psicológicos. O acompanhamento psicoterapêutico foi conduzido pelo psicólogo e pesquisador principal deste trabalho, sob supervisão do chefe do Serviço de Psicologia do hospital.
A paciente começou o acompanhamento no ambulatório do Serviço de Psicologia do hospital em maio de 2021 de forma online, devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19, com atendimentos semanais de aproximadamente 50 minutos nos primeiros cinco atendimentos. Em seguida, os atendimentos passaram à forma presencial, quinzenalmente, com duração de aproximadamente 30 minutos. No total, foram realizadas 13 sessões. A paciente ainda se encontrava em acompanhamento, finalizando o tratamento cerca de um mês após este estudo. A observação relativa a este estudo foi feita até setembro de 2021. Como dados, foram usados os registros das sessões feitas em prontuário. Os dados qualitativos e os resultados obtidos nas sessões foram analisados utilizando a observação clínica, identificando padrões e mudanças nos relatos da paciente ao longo do tratamento.
Procedimentos éticos
A pesquisa foi submetida à avaliação do Comitê de Ética do hospital onde foi realizado o estudo e aprovado sob nº de parecer 5194196. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado pela paciente participante, conforme orientações da Resolução 466 do CNS (Ministério da Saúde, 2012).
Relato de caso
A paciente Dora (nome fictício) tem 37 anos, é casada, tem um filho de 11 anos, trabalha em regime de meio período e faz faculdade à noite. Dora foi submetida à cirurgia bariátrica do tipo bypass pela rede privada, por meio de plano de saúde. A cirurgia ocorreu em outubro de 2020, após sete meses de acompanhamento por equipe multiprofissional, contando com médico, nutricionista e psicóloga. Na ocasião da cirurgia, Dora, com altura de 1,76m e 119kg, apresentava com um IMC de 38,4kg/m2, tendo obesidade grau II. A paciente afirmou nunca ter feito ou sentido a necessidade de fazer acompanhamento psicológico ou psiquiátrico ao longo da vida antes da cirurgia bariátrica.
Dora procurou o Serviço de Psicologia do hospital porque, após ter tido um acelerado emagrecimento, não estava conseguindo lidar com sua imagem e passava por grande tristeza por conta disso. A paciente já tinha prontuário no hospital e disse ter procurado acompanhamento ali porque seu plano de saúde passara a negar cobertura para o atendimento psicológico depois da cirurgia. Quanto ao acompanhamento psicológico pré-operatório, de acordo com os relatos, parece ter sido bem preparada e orientada quanto ao processo, riscos e benefícios da cirurgia. Como esse acompanhamento foi realizado por uma equipe particular fora do hospital, tal como a cirurgia, não há mais detalhes de como se deu. Contudo, não observamos qualquer indício ou problema relativos a essa etapa que necessitasse de maiores investigações.
Estava naquele momento com 66kg e não tinha qualquer deficiência nutricional. Sua queixa era a de uma sensação muito incômoda de aparentar estar doente, por conta dos “olhos fundos” e dos ossos proeminentes, bem como um desagrado com o excesso de pele. Reportava ter começado um processo de tristeza quatro meses após a cirurgia, quando ficou muito magra; até então estava muito feliz com o resultado da cirurgia. Relatava vir apresentando desânimo, tristeza, baixa autoestima, vergonha do corpo e abandono de diversos hábitos de autocuidado, tendo inclusive coberto os espelhos da casa para não se olhar neles. Não conseguia se engajar em atividades prazerosas, tinha vontade de se isolar e dormir boa parte do dia, mas mantinha o trabalho, faculdade e afazeres domésticos. Reportava falta de concentração e estar fazendo seu trabalho e atividades acadêmicas no automático. Dizia ter pensado em querer morrer, mas sem planejamento. Ao começar o acompanhamento, já não pensava mais nisso, tendo mudado após longa conversa com a mãe e também por pensar no sofrimento que geraria para seu filho. Tais sintomas vinham impactando sua qualidade de vida, sobretudo no relacionamento conjugal, trabalho e faculdade. Ainda se queixava de estar com o sono muito fragmentado, mas sem dificuldades para iniciar o sono. Afirmava sentir-se muito cansada e sonolenta ao longo do dia.
Dizia escutar comentários das pessoas sobre ela parecer estar doente, estar com câncer ou algo do tipo. Disse ainda não estar conseguindo relevar esses comentários; pelo contrário, havia incorporado essas crenças em si. Revelou não saber o porquê de isso estar acontecendo e não conseguir acreditar que esse emagrecimento para além do peso ideal em relação a sua altura fosse apenas uma fase do processo pós-cirurgia bariátrica, tal como seu médico, sua mãe, marido e amigas lhe diziam, e pensava que não retornaria ao esperado.
Relatou sempre ter sido magra; porém, após a gravidez parou com as atividades físicas por preguiça e falta de tempo. Colocou como fatores decisivos para o processo de obesidade a falta de rotina alimentar e más escolhas de alimentos desde que iniciou no emprego no qual ainda se mantinha, aliados à interrupção da atividade física. Afirmou ainda ter iniciado alguns meses antes da cirurgia um quadro de compulsão alimentar, no qual chegou a ter episódios em que ingeriu mais de 1kg de comida de uma só vez. Tal quadro cessou após a cirurgia.
Dora decidiu buscar a cirurgia bariátrica ao ser incentivada por amigas que já haviam feito tal cirurgia, com a finalidade de perder peso e devido às comorbidades, tais como esteatose hepática e hipertensão, crise de vesícula, dores e cansaço. Afirmou ter tido completa remissão das comorbidades após a cirurgia, bem como não fazer mais uso de medicamentos, apenas vitaminas.
Sobre a história familiar, Dora disse que sua relação com a mãe e irmãos sempre foi ruim, e que a mãe sempre a preteriu em relação aos irmãos por ela ser fruto do primeiro casamento. Contou que a mãe sempre a “esculachou”, sendo muito crítica, cobrando-a excessivamente e a pondo para baixo, ao dizer que nunca conseguiria ser alguém na vida. Afirmou que ficava triste, mas nunca respondia à mãe e também não internalizava essas críticas, tendo o apoio de sua madrinha.
Resultados e discussão
Inicialmente, na primeira sessão, foi feito contrato verbal com a paciente, no qual se estabeleceram questões relativas a faltas, periodicidade e duração das sessões, bem como foi explicado sobre o tipo de psicoterapia, breve e focal, praticada no ambulatório geral de psicologia do hospital. Desse modo, foi pactuada a duração da psicoterapia preconizada pelo ambulatório de psicologia do hospital, qual seja, seis meses, com possibilidade de renovação para mais seis meses de acordo com a necessidade do caso. Também, em consonância com Almeida (2010), foi explicado sobre a importância do foco na psicoterapia breve em tal contexto. Isto é, abordar e tratar questões que estejam relacionadas a doenças físico-orgânicas, ao adoecer e ao tratamento realizado em função destas enfermidades, com o objetivo de sanar ou atenuar sintomas e disfunções psicológicas decorrentes desses fatores, possibilitando maior qualidade de vida. Nesse caso, os focos identificados foram o distúrbio de autoimagem no pós-cirurgia bariátrica e o consequente episódio depressivo. Vale ainda apontar que, de acordo com a literatura sobre o tema (Busetto et al., 2018; Ivezaj & Grilo, 2018; Kitzinger et al., 2012; Klassen et al., 2012; Lourdes et al., 2021; Marek et al., 2021; Néspoli et al., 2015; Sarwer & Fabricatore, 2008), a percepção de parecer excessivamente magra e doente se mostra incomum no pós-cirurgia bariátrica.
Feita a anamnese, constatou-se um distúrbio de autoimagem, ou seja, a paciente se via de forma disfuncional e não compatível com a realidade. Enxergava a si mesmo como magra demais, o que a levava a uma crença inflexível de que estava fisicamente doente, porém sem correspondência com os dados do mundo real e a percepção das pessoas no seu entorno. Também foi evidenciado o decorrente Transtorno Depressivo Maior. Os sintomas depressivos (tristeza intensa e choro frequente, desesperança, falta de concentração, falta de interesse e prazer nas atividades da vida, esgotamento, perturbação do sono e pensamentos de morte), em conjunto com sofrimento e prejuízo significativo para a paciente num período maior que duas semanas foram critérios suficientes para concluir o diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior de gravidade moderada-grave (APA, 2023). O diagnóstico em questão foi feito pelo próprio psicólogo responsável pelo caso logo na primeira sessão e continuamente revisado e consolidado ao longo do processo terapêutico, em vista da sintomatologia e processos funcionais da paciente. É importante destacar mais uma vez que, apesar de ter passado por cirurgia bariátrica, a paciente não sofria de qualquer deficiência nutricional no momento e fazia acompanhamento com seu médico regularmente, sem ter qualquer problema orgânico que explicasse melhor seus sintomas e funcionamento na ocasião.
Assim, foram inicialmente escolhidas estratégias comportamentais da TCC clássica, com o objetivo de causar rompimento dos comportamentos que reforçavam e mantinham o estado depressivo, bem como reestruturar distorções cognitivas e crenças disfuncionais. Portanto, para ganho de qualidade de vida, buscava-se a remissão dos sintomas e transformações em suas crenças a respeito de si e do mundo.
Buscou-se então explorar o que estava por trás da sua percepção de parecer doente e das emoções e comportamentos a partir dela, por meio da técnica seta descendente. Nessa técnica, partindo de um PA, fazemos sucessivos questionamentos a fim de chegarmos aos significados mais centrais desse pensamento, os quais geralmente estão intimamente ligados às crenças mais nucleares (Beck, 2021). Assim, partimos da percepção de alguém que se vê como doente e chegamos a alguém que relaciona “ser doente” com fraqueza. Isto é, quando se via como doente, Dora atribuía a isso o significado de fraqueza, visto que não conseguia atender às crenças de que precisa dar conta de tudo e ter tudo sob controle. Por ser fraca, era alguém com menos valor (crenças nucleares de desamparo e desvalor). Resumidamente: Ver-se como doente → não dou conta, não controlo → sou fraca e sem valor (PA → crenças intermediárias → crenças centrais). Ao mesmo tempo, ao explorar algumas situações da vida de Dora, notou-se que ela tinha postura muito crítica consigo mesma, sem considerar a possibilidade de ser falível. Também manifestava estratégias de hipercompensação, como se forçar a trabalhar e estudar cada vez mais após episódios em que julgava não ter alcançado o desempenho idealizado. A seguir são descritas algumas situações em que Dora se mostrou intensamente autocrítica e usou a estratégia de hipercompensação, ou evitação, quando hipercompensar não era possível.
Dora contou que naquela semana recebeu uma demanda maior no trabalho, ficou com medo de aceitar, mas aceitou. Quando viu que não daria conta dentro do prazo estabelecido pela chefe, fez diversas autocríticas, tendo pensamentos automáticos e até verbalizações do tipo “Sua burra!”, “Por que não fez direito?”, dentre outras. A paciente descreveu as emoções sentidas no episódio como raiva, tristeza e preocupação. Por seta descendente, viu-se que Dora tinha medo de não dar conta e ser demitida. Se fosse demitida, ficaria desesperada e não conseguiria pagar sua faculdade e colégio de seu filho. Assim, se sentiria sem controle da situação. Logo, seria uma pessoa incompetente e fraca, e identificava esses como os significados de seus PAs. Dessa forma, a partir de suas autocríticas e do vislumbre de ser incompetente e fraca, hipercompensou ao ficar até muito depois de seu horário de trabalho para terminar e fazer tudo de acordo com sua autoexigência.
Dora disse que vinha se irritando muito com o marido, por ele sofrer de uma doença e ser muito displicente com a própria saúde. Contou ficar irritada porque se preocupava com o marido e também por ter que ficar repetindo e insistindo para que ele fosse ao médico, embora ele não fosse e negasse estar se esquecendo das coisas. Depois, quando sozinha, ficava remoendo as discussões, ficava triste, chorava, se via sem controle e frustrada em relação à condução do relacionamento. A partir disso, ficava mais reclusa em casa, distante do marido, e fazia menos atividades. Ao conversar com Dora sobre esses episódios, percebemos que a irritação surge de sua frustração por não conseguir controlar o comportamento displicente do marido com a própria saúde. Já a tristeza advém de sua culpa (autocrítica) em relação à falta de controle sobre o casamento, evidenciada por sua conduta nas discussões, que autorreprovava. Dessa vez, como Dora não conseguiu hipercompensar, deprimiu-se e recorreu a evitações.
Dessa forma, a conceitualização cognitiva do caso começava a se desenhar e tomava forma. Podemos resumir conceitualização cognitiva como o retrato do funcionamento do paciente. Esse é um dos primeiros passos a serem dados pelo terapeuta, e é algo a ser constantemente revisado e aprimorado ao longo da terapia. Conceitualizar o caso consiste em descrever e sistematizar o funcionamento do paciente, basicamente em termos de crenças predominantes, PAs, situações disparadoras e respostas comportamentais e emocionais, a partir do que se pode considerar a forma mais eficaz de intervenção (Beck, 2021). Poderíamos descrever essa conceitualização cognitiva de Dora como: em situações de desempenho (tarefas de trabalho ou de estudo, cuidado do relacionamento, estética e performance do próprio corpo), as crenças centrais de Dora sobre ser um fracasso ou incompetente, junto às crenças secundárias, na forma de regras fixas sobre necessidade de controle e alta performance, faziam com que PAs, principalmente na forma de autocríticas, disparassem em sua mente, PAs que significavam justamente aquilo que suas crenças lhe mostravam, ou seja, que “se eu não tiver tudo sob controle / resolver, então estou falhando / irei falhar e assim tenho / terei menos valor, gerando raiva e apreensão”. Assim, Dora tinha primeiramente a hipercompensação como resposta comportamental para que não se visse nesse lugar de fracasso. Quando não conseguia hipercompensar, sentia-se impotente e frustrada, ficava triste e recorria à evitação como estratégia comportamental.
Ao levar em consideração essa conceitualização, o planejamento do tratamento se daria em termos de reestruturação cognitiva, ou seja, utilizar técnicas cognitivas para auxiliar a paciente a modificar seus pensamentos e crenças disfuncionais, juntamente com técnicas comportamentais que a levariam a mudar comportamentos que reforçavam e alimentavam o funcionamento que gerava sofrimento para comportamentos saudáveis e adaptativos. Tal terapêutica não é genérica, isto é, não se trata de um modelo pronto, aplicável da mesma maneira a todas as pessoas, mas compreende que há uma conceitualização de cada caso e que a forma como as técnicas são adaptadas a cada pessoa respeitam o que de singular for identificado.
Contudo, visto que a condução do caso teve logo uma mudança de perspectiva, tal planejamento não se concluiu nesses moldes, como se verá mais adiante. Ainda assim, desde o início, foram promovidas algumas intervenções comportamentais com o objetivo de diminuir e aliviar os sintomas, para tornar mais viável, posteriormente, trabalhar as crenças e emoções da paciente. Assim, logo na primeira sessão, ela foi instruída a fazer ativação comportamental e pequena exposição ao tentar se maquiar ou arrumar o cabelo, porém sem sucesso. Dora afirmou não ter conseguido pôr em prática tal exercício por conta da aversão ao próprio corpo e por medo de não conseguir executar a tarefa. Ainda assim, pensando que a exposição, além de enfraquecer os comportamentos evitativos, também geraria ganho de crença de autoeficácia, decidiu-se manter a aposta nessa técnica.
Portanto, na sessão seguinte foi feita psicoeducação a respeito de como os comportamentos evitativos que vinha praticando reforçavam sua depressão. Além da psicoeducação, com objetivo de aumentar as chances de engajamento na estratégia de exposição e a fim de auxiliar Dora a dissociar-se e distanciar-se da percepção de parecer doente, ela foi levada a fazer um exercício de imaginação, ao visualizar o comportamento genérico a respeito de autocuidado de pessoas que estão realmente doentes e de pessoas que não estão doentes: comportamentos tais como se maquiar, arrumar o cabelo, escolher uma roupa de que gosta, entre outros. Dora então, a partir de descoberta guiada, percebeu e chegou à conclusão de que pessoas saudáveis costumam manter tais comportamentos de autocuidado, ao passo que pessoas doentes costumam relegá-los. Como Dora não queria parecer doente, concluiu que retomar esses hábitos seria um bom caminho para voltar a sentir-se melhor com sua imagem e percepção de si. Assim, foi conversado com a paciente sobre seu exercício para a próxima sessão. Aproveitou-se a informação dada por ela sobre sua irmã ter dito que iria até sua casa arrumar o cabelo de Dora naquela semana e, apesar de estar algo relutante, verificou-se que havia inclinação para se permitir. Foi então combinado com a paciente que ela deixaria que sua irmã arrumasse seu cabelo. Além disso, pediu-se que, quando a irmã terminasse de fazer seu cabelo, Dora se maquiasse, vestisse uma roupa com a qual se sentisse bonita, tirasse uma foto e a enviasse ao terapeuta por mensagem. Pedir a foto foi uma estratégia para aumentar a chance de conclusão da tarefa.
Dessa vez, a intervenção trouxe resultados expressivos. Dora conseguiu fazer o exercício como foi orientada e, na sessão seguinte, já revelava melhora significativa dos sintomas relacionados ao humor, choro e volição. Já havia retomado alguns hábitos de autocuidado, como voltar a passar creme, sair mais de casa, cuidar do cabelo, escolher roupas com as quais se sentia melhor e procurar uma academia com o marido. Também dizia estar fazendo outras coisas para se animar e se distrair, como ler e ver filmes. Contudo, a aversão ao próprio corpo ainda permanecia, tal como o desconforto ao lidar com ele, seja olhando para si no espelho, no contato com seu corpo ou com o marido. Também permaneciam as crenças de parecer doente ao se deparar com o corpo magro, com os ossos do colo e da face proeminentes, e com os olhos fundos. Além dessas crenças, por mais que racionalmente tivesse a informação de seu médico e soubesse que é uma fase normal do pós-cirurgia bariátrica, Dora ainda não acreditava nesse fato, angustiava-se ao notar o emagrecimento ainda em evolução e também ao vislumbrar a possibilidade ilusória de não retornar ao peso e forma ideais.
Posteriormente, ao passo que a conceitualização foi rapidamente se refinando, associaram-se os dados relevantes de sua infância e adolescência aos processos internos e comportamentos em diversas situações de vida. Assim, visto que a TE não é uma abordagem completamente nova, mas uma ampliação da TCC clássica (Klosko & Young, 2004), pensou-se em iniciar uma conceitualização do caso a partir da TE, a fim de conseguir mudanças mais profundas, eficientes e abrangentes na vida de Dora. Dessa forma, considerando que a paciente já havia conseguido substancial redução dos sintomas e partindo da hipótese de que Dora tinha problemas caracterológicos que impactavam o foco inicial da terapia e toda a sua vivência, optou-se por suspender o componente focal da psicoterapia breve ao considerar que, ao se trabalhar a partir da conceitualização por esquemas, haveria mais ganhos, os quais se refletiriam em todos os âmbitos da vida da paciente, inclusive no distúrbio de autoimagem e depressão.
Assim, em relação à conceitualização focada em esquemas, em síntese, podemos verificar que o esquema de padrões inflexíveis é supervigilante e estava sempre ativo em Dora quando ela se deparava com uma função a desempenhar ou problema a resolver. Para evitar críticas de outros, a paciente tinha uma postura de resignação em relação a esse esquema, formulando diversas autocríticas e esforçando-se muito para ter tudo sob controle e obter sucesso. Contudo, quando entrava numa situação em que se via perdendo o controle, sem obter o resultado esperado, ativava-se o esquema de fracasso, no qual a paciente se via na condição de impotente e incapaz, fazendo com que as autocríticas aparecessem intensamente para Dora, levando-a hipercompensar esse esquema e retomar o esquema de padrões inflexíveis. Esse padrão de resposta que Dora desenvolveu atuava atenuando suas autocríticas, suas crenças e suas emoções desagradáveis subjacentes; contudo, fazia a manutenção desses esquemas. Por outro lado, quando a paciente não conseguia hipercompensar o esquema de fracasso, a autocrítica se mantinha e aumentava, ativando agora o esquema de defectividade, o qual levava Dora a se ver com menos valor e valer-se da evitação como estratégia de enfrentamento disfuncional, no intuito de não lidar com o problema.
De acordo com Young et al. (2008), Rafaeli et al. (2023) e Farrel et al. (2024), o esquema de padrões inflexíveis / postura crítica exagerada corresponde ao domínio de supervigilância e inibição, e é aquele em que a origem familiar típica é severa e exigente. Aqui podemos relacionar com a criação de Dora, que foi intensamente marcada por esse tipo de comportamento. Sua mãe, segundo seus relatos, exigia grandes esforços e dedicação em suas tarefas. Ainda nesse domínio, há ênfase excessiva no cumprimento de regras e expectativas internalizadas e rígidas sobre desempenho, geralmente associada à preocupação de que as coisas desabarão se não houver vigilância e cuidado o tempo todo (Farrel et al., 2024; Rafaeli et al., 2023; Young et al., 2008). Dentre as características desse esquema, há crenças subjacentes sobre ser necessário realizar “grande esforço para atingir elevados padrões internalizados de comportamento e desempenho, via de regra para evitar críticas. Costuma resultar em sentimentos de pressão ou dificuldade de relaxar e em posturas críticas exageradas com relação a si mesmo e aos outros” (Young et al., 2008, p. 31) Esse é um ponto importante do funcionamento de Dora. A paciente desenvolveu regras rígidas a respeito de ter tudo sob seu controle, a fim de não falhar. Contudo, quando esse controle falhava, as autocríticas apareciam.
Já o esquema de fracasso está compreendido no domínio de autonomia e desempenho, em que a família de origem, dentre outras características, costuma solapar a confiança da criança e não a estimular a ter um desempenho extrafamiliar competente (Farrel et al., 2024; Rafaeli et al., 2023; Young et al., 2008). Mais uma vez, podemos fazer um paralelo com a criação de Dora. Sua mãe, além de superexigente, invalidava seus esforços e seu desempenho, assim como profetizava uma vida falida e sem conquistas. Esse esquema se traduz como aquele em que há uma “crença no fracasso inevitável em áreas de atividade (como estudos, esportes, trabalho) e na própria inadequação em termos das realizações nessas atividades, […] via de regra, envolve crenças de ser pouco inteligente, inepto, sem talento e malsucedido” (Young et al., 2008, p. 32). Tal como previsto por Young et al. (2008), vimos exatamente esses tipos de crenças internalizadas em Dora quando esse esquema estava ativo.
Ainda segundo Young et al. (2008), o esquema de defectividade / vergonha está dentro do domínio de desconexão e rejeição, no qual a “origem familiar típica é distante, fria, rejeitadora, refreadora, solitária, impaciente, imprevisível e abusiva” (p. 28). Aqui vemos novamente uma imagem do trato frequente da mãe de Dora. Tal como relatado por ela, desde a infância a paciente sentia que sua mãe a tratava diferentemente em relação aos irmãos, e se percebia como preterida. Esse esquema configura-se como um “sentimento de que se é falho, ruim, inferior ou imprestável e de que não se seria digno de receber amor de outros, caso exposto” (Young et al., 2008, p. 28). Também pode haver hipersensibilidade à crítica e vergonha dos defeitos percebidos (Young et al., 2008). Podemos notar que essas crenças e sensações vêm à tona quando Dora se enxergava como alguém falho e com menos valor, por não ter tido controle sobre uma situação ou ter tido um desempenho menor que o idealizado.
Portanto, no que se refere à relação de Dora com seu corpo após a cirurgia bariátrica, temos que seu esquema de padrões inflexíveis ativado fazia com que ela desaprovasse sua estética atual, se percebesse errada (exageradamente magra e doente) e se reprovasse constantemente (autocrítica exacerbada). Como seu corpo continuava no processo de emagrecimento, ativava-se o esquema de fracasso, intensificando a autocrítica e as crenças de incapacidade. Como Dora não podia hipercompensar esse esquema, constatava sua impotência ao não conseguir controlar seu corpo, e então ativava o esquema de defectividade, disparando suas crenças de desvalia, evitações e seu processo depressivo.
Young et al. (2008) expõem que
Os pacientes desenvolvem estilos e respostas de enfrentamento desadaptativas desde cedo em suas vidas para se adaptar a esquemas, para que não tenham de vivenciar as emoções intensas e pesadas que os esquemas geralmente engendram, mas é importante lembrar que, embora os estilos de enfrentamento auxiliem os pacientes a evitar um esquema, não o curam. Dessa forma, todos os estilos de enfrentamento desadaptativos ainda servem como elementos no processo de perpetuação do esquema. (p. 44)
Assim, temos que Dora hipercompensava para não viver as emoções que vivera quando sua mãe a criticava e diminuía. Quando era impossibilitada de hipercompensar, fazia da evitação seu estilo de enfrentamento desadaptativo. Contudo, como vimos, essas respostas mantêm e perpetuam os EIDs. Compreendemos que em Dora esses esquemas tinham força moderada e respostas moderadamente fortes.
Em relação ao tratamento em si, Young et al. (2008) afirmam que
O primeiro objetivo da terapia do esquema é a consciência psicológica. O terapeuta ajuda os pacientes a identificar seus esquemas e a se tornar consciente de suas memórias de infância, emoções, sensações corporais, cognições e estilos de enfrentamento associados a eles. Uma vez que entendam seus esquemas e estilos de enfrentamento, os pacientes começam a exercer algum controle sobre suas respostas, aumentando o exercício de livre-arbítrio em relação aos esquemas. (p. 41)
Assim, com o objetivo de trazer consciência para seu funcionamento, buscou-se em sucessivas sessões explorar situações em que Dora se mostrou excessivamente autocrítica e as respostas derivadas, evidenciando como esse movimento se repetia em diversas esferas da vida, como era disfuncional e provocava sofrimento. Também se buscou, sempre que possível, explorar suas emoções e cognições nos episódios em que ficava desconfortável com o próprio corpo, comparando-as com as situações de autocrítica em que não podia hipercompensar. Não apenas esse seu funcionamento, mas a construção desses esquemas e respostas a partir de sua história inicial de vida também foram evidenciados em diversas dessas reflexões promovidas.
Em relação à mudança de suas respostas desadaptativas, para além da tomada de consciência a partir de reflexões sobre sua exacerbada autocrítica, realizamos uma estratégia de intervenção vivencial de bipartição do self com diálogo entre voz crítica e voz compassiva, tendo como objetivo uma reestruturação dessa resposta e consequente enfraquecimento do esquema de padrões inflexíveis, ao reforçar seu eu compassivo e atenuar seu eu crítico. Nessa intervenção, Dora, enquanto representava sua voz-crítica, trazia pensamentos e falas de autocrítica elevada e, em seguida, a cada crítica disfuncional, a paciente era solicitada a tomar o lugar da voz-compassiva e formular, de acordo com a situação em questão, uma alternativa compassiva e funcional.
Visto que as disfunções de Dora se relacionavam, sobretudo, com regras rígidas sobre necessidade de controle e dificuldade de aceitação do processo natural de emagrecimento do seu corpo pós-cirurgia bariátrica, utilizou-se a ACT como abordagem complementar. Isso se deu sob o entendimento de que esse referencial teórico-prático foca na flexibilidade psicológica a partir de aceitação e ações compromissadas. Portanto, ao falar com a paciente sobre sua necessidade de controle e os malefícios que tal padrão trazia para sua vida, foi feita psicoeducação a respeito da rigidez e da importância da flexibilidade psicológica para evitar sofrimento e ganhar qualidade de vida. Também foram abordados como a aceitação de circunstâncias sobre as quais não há como ter controle e as ações compromissadas com o tipo de vida que se quer favorecem essa flexibilidade.
Desse modo, a aceitação foi um pilar da ACT (Hayes et al., 2021) exaustivamente trabalhado com Dora; aceitação não como resignação ao sofrimento, mas como atitude de abertura e permissão para entrar em contato com a experiência interna sem crítica, portanto sem praticar esquiva experiencial. Em sessão, trabalhou-se a partir de reflexões sobre se permitir não ter controle sobre tudo, bem como por meio da busca por comportamentos alternativos mais funcionais nos momentos em que se sentia sem controle da situação. Ainda, trabalhou-se com exercícios propostos para serem praticados entre sessões, os quais visavam treinar e aperfeiçoar a flexibilidade psicológica, ao estimular a autopercepção das autocríticas e da necessidade de controle, bem como a aplicação de pensamentos e comportamentos mais funcionais e saudáveis.
Outros dois pilares da ACT explorados com Dora foram a atenção ao momento presente e a ação compromissada (Hayes et al., 2021). Ao explorar diversas situações, focamos no que ela poderia fazer naqueles momentos e que ao mesmo tempo estaria de acordo com seus valores. Desse modo, a paciente se via empoderada ao encontrar soluções possíveis para um problema, aumentava sua crença de autoeficácia e entendia que o controle que tinha sobre o mundo não é e nem precisa ser absoluto.
A título de ilustração, trazemos uma ocasião trabalhada com Dora à luz da ACT. Ao conversar com a paciente sobre a situação de medo de perder o emprego, foi perguntado o que ela poderia fazer nessa situação. Dora disse que, mesmo ficando desesperada, no dia seguinte mandaria currículo para vários lugares e entraria em contato com pessoas que pudessem ter alguma oportunidade para ela. Perguntou-se então o que mais seria possível fazer. Dora disse que não haveria mais nada, a não ser aceitar que fez o que estava ao seu alcance. Aqui vemos Dora num momento mais adiantado da terapia, no qual se valeu do momento presente e da ação compromissada com o valor de responsabilidade (um dos valores que Dora trouxe como importante para ela).
Vemos, portanto, que trazer a ACT para o processo psicoterapêutico foi uma escolha clínica importante, visto que não só obtivemos ganho sob a perspectiva da própria abordagem, ou seja, diminuição de sofrimento a partir do aumento de flexibilidade psicológica, como também proporcionamos enfraquecimento dos EIDs na perspectiva da TE. Ao desenvolver aceitação e atenção no momento presente, enfraquecemos processos mantenedores importantes do esquema de defectividade e do esquema de fracasso. Do mesmo modo, quando proporcionamos ganho de flexibilidade psicológica de modo amplo, enfraquecemos, sobretudo, o esquema de padrões inflexíveis.
Considerações finais
Com o caminhar da psicoterapia, Dora revelou padrão de contínua melhora. Em relação aos sintomas depressivos, deixou de querer se isolar, passando a sair de casa sem vergonha do corpo e frequentando ambientes sociais, inclusive usando maiô na praia. O desânimo, falta de energia, desesperança e tristeza profunda também cessaram, bem como sua dificuldade de dormir. Retomou aos poucos os hábitos de autocuidado até voltar a seu comportamento e autoestima habituais. Voltou ainda a ter pleno desempenho na faculdade e no trabalho. Teve diminuição gradativa do desconforto com o próprio corpo até não apresentar desconforto algum. Também foi extinta a percepção de parecer doente, aceitou o processo de emagrecimento natural do seu corpo e manteve a crença de que se trata de um processo normal do seu tratamento pós-cirúrgico.
Além disso, suas autocríticas e necessidade de controle diminuíram significativamente, bem como aumentaram sua percepção e mudança ativa sobre elas. Consequentemente, a paciente apresentou mudanças significativas de ganho de consciência sobre seu funcionamento psicológico e mudanças de crenças centrais, esquemas e atitudes que repercutiram noutras esferas da vida para além do foco inicial da psicoterapia, tais como sua relação com trabalho, estudo e familiares. A paciente sentia-se mais leve e tranquila em todos esses âmbitos.
Levando em consideração o que nos mostra a literatura e o caso aqui apresentado, podemos afirmar que este estudo contribui para o repertório científico a esse respeito, visto que reafirma a importância do acompanhamento psicológico no processo que envolve a cirurgia bariátrica, não apenas na fase preparatória, mas também em todo o pós-operatório. Ainda a respeito do campo da cirurgia bariátrica, vimos como a literatura aponta para a carência de descrições semelhantes ao fenômeno relatado neste trabalho. Esse fato torna de grande relevância a apresentação de um distúrbio de autoimagem no qual a paciente se percebe muito magra e doente.
A partir da articulação feita mediante referências consolidadas das abordagens, concluímos que a discussão e os resultados do caso descritos neste estudo podem ser de grande contribuição para psicologia clínica. Salientamos como é possível e bem-vinda a integração da TCC, da TE e da ACT, visto demonstrarmos que processos mobilizados pela ACT podem estar alinhados com técnicas da TE e da TCC promotoras de mudanças, ainda que por vias ou finalidades diferentes. Ao utilizar constructos da TE, por exemplo, podemos estimular a flexibilidade psicológica e a aceitação, processos fins na ACT, e com isso atuar no enfraquecimento de EIDs preconizados na TE. Assim, a integração coerente de abordagens afins nos permite pensar que um profissional munido de diferentes estratégias e portas de entrada para mobilizar os mesmos processos em casos diferentes pode ter mais chances de sucesso e tornar a terapia mais breve.
Como limitações deste trabalho, podemos destacar o próprio desenho da pesquisa, qual seja, estudo de caso único, visto que as variáveis não podem ser fielmente replicadas, bem como os resultados não podem ser falseáveis. Portanto, mais estudos são necessários para qualquer validação das proposições e intervenções aqui relatadas. Outra possível limitação que podemos mencionar seria a falta da utilização de escalas ou outros instrumentos para fins diagnósticos ou mensuração de melhora da paciente. Cabe lembrar que tanto a conceitualização cognitiva, quanto, posteriormente, a conceitualização focada em esquemas foram apresentadas para a paciente, obtendo-se bom entendimento e plena concordância.














