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Jornal de Psicanálise
Print version ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.39 no.70 São Paulo June 2006
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Questões epistemológicas e metodológicas em psicanálise
Epistemological and methodological issues in psychoanalysis
Cuestiones epistemológicas y metodológicas en psicoanálisis
Fernando Aguiar*
Professor no Departamento de Psicologia e no PPG em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
RESUMO
Este artigo discorre sobre alguns elementos que interessam à epistemologia da psicanálise, e que foram antes objeto de reflexão sistemática da parte de autores em psicanálise. O artigo é assim um compte rendu do estado atual das discussões que giram em torno da cientificidade da psicanálise. O lugar da clínica na pesquisa psicanalítica. Quando e sob que forma se pode falar de pesquisa no domínio da psicanálise. O lugar ocupado por tal pesquisa no seio da comunidade científica, em particular a universitária. As interações da psicanálise com outros campos do saber. O método psicanalítico de pesquisa.
Palavras-chave: Psicanálise, Epistemologia, Metodologia de pesquisa.
ABSTRACT
The article deals with some elements that concern to epistemology of psychoanalysis, and that are usually object of systematic reflection in psychoanalysis. The article is a compte rendu of the present state of discussions about the scientific status of psychoanalysis. The role of clinic in psychoanalytic research. When and how can we speak about research in the psychoanalytic domain. The role of that kind of research in the center of the scientific community. The interactions of psychoanalysis with others areas of knowledge. The psychoanalytic research method.
Keywords: Psychoanalysis, Epistemology, Research methodology.
RESUMEN
Este artículo discurre sobre algunos elementos que interesan a la epistemología del psicoanálisis y que antes fue objeto de reflexión sistemática por parte de autores psicoanalíticos. El artículo es, por lo tanto, un compte rendu del estado actual de las discusiones con relación al cientificismo del psicoanálisis. ¿Cuál es lugar de la clínica en la investigación psicoanalítica?. ¿Cuándo y bajo qué forma se puede hablar de investigación en el dominio del psicoanálisis?. ¿Cuál es el lugar que ocupa este tipo de investigación en el seno de la comunidad científica, particularmente, la universitaria?. ¿Cuáles son las interacciones del psicoanálisis con otros campos del saber?. ¿Cuál es el método psicoanalítico de investigación?.
Palabras-clave: Psicoanálisis, Epistemología, Metodología de investigación.
Em resumo-comunicação de sua tese de doutorado (Paris VIII), Micheli-Rechtman (2002) defende a urgente necessidade de examinar o lugar da psicanálise no campo social e de questionar, mesmo sustentar, sua epistemologia. Esta urgência se deve a que a psicanálise estaria hoje à mercê de três grandes perigos que, internamente, podem afastá-la de suas perspectivas originais. O primeiro refere-se às tendências à psicologização, revelada, por exemplo, quando se considera a psicanálise uma psicoterapia. O segundo perigo — a inclinação hermenêutica, adotada por algumas correntes contemporâneas (em particular, a IPA) — partilharia com uma terceira tendência — a tentativa de cientificidade e seu corolário metodológico — uma mesma vontade de limitar o campo teórico próprio da psicanálise freudiana e lacaniana.
Do lado "de fora", sabe-se que a psicanálise — à sua revelia, ainda que desde sempre às voltas com a resistência, e com a vexação psicológica dos homens diante de seus desejos inconscientes (Laplanche & Pontalis, 1973) — é parte integrante de inúmeros e instrutivos capítulos da história e filosofia das ciências, nos quais, pelos mais variados motivos, Wittgenstein e Popper, Sartre e Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Althusser, Habermas, Deleuze, Derrida e Badiou são (apenas) alguns dos personagens mais importantes. Para K. Popper, seu mais conhecido crítico, a disciplina freudiana representava tudo o que a ciência se proíbe, já que seus argumentos seriam tais que nenhum fato empírico pode refutá-los. Por sua vez Althusser, um amigo da psicanálise, situava sua função no eixo da pluridisciplinaridade e no campo das ciências humanas, e a partir da questão assim desdobrada por Naveau (2004): onde se situa a psicanálise? Qual é seu lugar e localização num espaço que ainda não existe? Quais são suas não-fronteiras com disciplinas existentes?
Para o autor, tal é a questão que persegue constantemente a reflexão de Lacan e, não seria exagerado dizer, a reflexão de Freud. Impressiona em ambos o paradoxo manifestado em dupla preocupação: separar radicalmente a psicanálise da disciplina que se apresenta como a mais próxima dela, a psicologia; e, ao contrário, tentar aproximá-la de outras que, aparentemente, dela estão afastadas, como a sociologia, a antropologia, a etnologia. Lacan teria respondido a Althusser, em 1970 (talvez em "Liminaire", de Scilicet 2/3, Naveau não referencia), que a articulação da psicanálise com as ciências humanas se faz pela via da lingüística e da lógica. Mas os pesquisadores que trabalham neste enquadramento — assim constituído a partir de uma pluralidade de abordagens disciplinares — partilham uma preocupação comum, sustentada menos na psicanálise como prática do que na nova relação com os saberes implicados em sua invenção. Neste sentido, dar conta do corte epistemológico introduzido pela disciplina freudiana significa tornar legível esta nova relação com os saberes.
Sabemos que a psicanálise nasceu do interesse de Freud por diversos campos do saber, que está na origem, por exemplo, de sua defesa intransigente, em 1926, de uma "psicanálise laica", e a idéia de "interação" com outras disciplinas será retomada na última parte deste artigo. Em contrapartida, para as ciências humanas, parece a Naveau (2004) "demonstrável" que nenhuma delas "escapa ao fato de ser impossível não se posicionar em relação a esse corte epistemológico". Experimentado por cada um de nós, a existência de um corte inaugural entre o signo e o sentido produz uma divisão do sujeito: "Pode-se aceitar ou recusar tal corte, pode-se optar por ignorá-lo, desdenhá-lo, mas não se pode evitar tomar posição, subjetivamente, em relação a ele" (s.p.).
R. Mezan (2002), em "Sobre a epistemologia da psicanálise", abordou com concisão e clareza admiráveis o que parece pertinente sobre o tema. Ele começa por assinalar como nessa discussão sobre a cientificidade da psicanálise estão embutidos inúmeros pressupostos, sobre os quais "reina uma considerável confusão". Ao tentar formulá-los mais precisamente, diz ele, "percebemos que o mais das vezes os interlocutores não se entendem porque não falam a mesma língua — termos como ‘ciência’, ‘realidade’, ‘verdade’ e outros significam coisas diversas para cada um deles", e o resultado "é a babel que conhecemos" (p. 436). Mezan apóia-se no artigo "L’idée d’épistémologie", do filósofo Gerard Lebrun, no qual o autor francês sugere em que consiste a especificidade da abordagem epistemológica. Segundo Lebrun, cada ciência constrói a sua própria racionalidade, e isso se diferencia profundamente da idéia de uma razão universal que se expressaria em todas as construções intelectuais realizadas pelo homem.
A esse tipo de abordagem, Lebrun denomina "reflexão racionalista sobre as ciências", e afirma que a epistemologia não trabalha da mesma forma. Ele postula que a originalidade de um saber implica uma racionalidade própria àquele saber, e deseja precisamente pôr a nu as estruturas daquela racionalidade [...]. É o caráter autóctone dessa montagem, implicando decisões e escolhas, que permite determinar objetos até então inéditos, tornando-os passíveis de serem conceituados por noções igualmente inéditas, as quais se disporão em enunciados cujo conjunto forma as teorias próprias àquela disciplina (Mezan, 2002, p. 438).
Este artigo visa destacar alguns elementos que interessam à epistemologia e à metodologia psicanalíticas, e que foram antes objeto de reflexão sistemática da parte de autores. Como tal, ele tem a função e a estrutura de um compte rendu (não-exaustivo) do estado atual dessas discussões. Essas discussões indagam sobre o lugar da clínica na pesquisa psicanalítica. Verificam quando e sob que forma se pode falar de pesquisa no domínio da psicanálise, e indagam sobre o lugar ocupado por tal pesquisa no seio da comunidade científica, em particular a universitária. Examinam as bases das interações da psicanálise com outros campos do saber, e o método próprio psicanalítico de pesquisa.
Primeiras delimitações
Para Freud, como se sabe, a Weltanschauung da psicanálise é científica. Ele quis mesmo registrar sua disciplina no quadro das ciências da natureza de seu tempo, as Naturwissenschaften — na divisão clássica de T. Droysen, em 1854, as que pretendiam explicar, e que se opunham às ciências do espírito, as Gesteswissenschaften, que pretendiam compreender. A partir da asserção de Assoun, que associa às ciências do espírito uma "valorização dos fatos" e às ciências da natureza "juízos de realidade", Mezan (2002) entende a recusa de Freud em incluir a psicanálise entre as primeiras, em parte porque era "seu objetivo [...] descrever uma região da realidade (o inconsciente, tal como ele se apresenta nas condições do setting analítico), e nessa condição está implícita a neutralidade em relação à natureza desses processos". Por outro lado, ele acrescenta, "a interpretação — ferramenta psicanalítica por excelência — consiste numa explicação (...) e de forma alguma num exercício de compreensão" (p. 483).
Inscrevendo-se na subversão científica operada no início do século XX, o fundador da psicanálise professou um agnosticismo radical. Segundo Marie (2004), seu agnosticismo foi ao mesmo tempo uma posição técnica — essa neutralidade que o psicanalista deve assumir e que o obriga, na clínica, a abster-se de todo julgamento de valores — e uma posição epistemológica — a renúncia a qualquer concepção do homem e do mundo, preservando-se de qualquer pressuposto metafísico.
Lacan, com sua hipótese — o inconsciente estruturado como uma linguagem —, também chegou a pensar em sustentar a psicanálise, no campo das ciências, como "ciências conjecturais" (De Neuter, 1988). A posição conjectural diz respeito a uma asserção hipotética e, de fato, "uma hipótese como a do inconsciente não está de modo algum na mesma situação epistemológica de um postulado: a hipótese é um operador técnico, o postulado, um princípio que governa certa representação do mundo" (Marie, 2004, p. 132). Mais tarde Lacan optaria por situar a psicanálise num lugar específico fora da ciência, o que não quer dizer fora de rigor (De Neuter, 1988). Enfim, a psicanálise foi tomada por uma hermenêutica (Paul Ricoeur é disso o exemplo mais ilustre) e até por uma ética — ainda que, alheia a uma visão de mundo e uma visão do homem (Marie, 2004), ela não possa fazer mais do que se alinhar a uma ética que leve em conta a hipótese do inconsciente.
Há de outra parte aqueles que acusam os psicanalistas de praticar uma "ciência secreta" (Geheimwissenschaft) (Assoun, 1997). De fato o próprio Freud, imbuído da idéia de um "movimento", teria utilizado a expressão Geheimbündler para nomear os psicanalistas; ou seja, membros de "associações secretas" (Geheimbünden), associações de indivíduos unidos por "objetivos" comuns — sendo que o termo pode mesmo conotar a idéia de conspiração. Geheimwissenschaft designa assim um saber ou uma doutrina (Geheimlehre) que não é destinada à divulgação, mas antes reservada aos "iniciados" (Eingeweihten). Ora, para ele, muito ao contrário, tornar públicas as aquisições psicanalíticas (e, por conseguinte, validá-las) foi uma de suas tarefas mais constantes, e com o afinco e o zelo próprios e legítimos de um fundador.
A prática psicanalítica, embora elitista no que se refere aos custos de uma formação e tenha sua representação popular confundida com a do psicólogo, do psiquiatra ou, mais particularmente, com a do psicoterapeuta, é de domínio público e regulada intramuros desde 1920; e um século de exposição crítica talvez sem paralelo na história não se coaduna com o logro intelectual, que comumente caracterizou, junto ao côté elitista, as ditas ciências secretas. Enfim, o itinerário freudiano é emblemático dessa transitoriedade própria do conhecimento científico.
Eis alguns exemplos notáveis: a renúncia à teoria da "sedução real"; o Caso Dora, que se constituiu, apesar de "fracassado", num modelo de relato de caso, e admirável em suas possibilidades heurísticas; o enfrentamento das insuficiências de sua teoria, que leva Freud a revisá-la periodicamente (aparelho psíquico, teoria das pulsões, narcisismo, função da transferência na análise, fim da análise...); as inúmeras notas de rodapé que, a cada edição, vão sendo acrescentadas aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade... Considere-se ainda que, de maneira singular, a construção dessa teoria nos é apresentada de duas maneiras: obviamente, através dos textos publicados, e através de sua enorme e generosa literatura epistolar — ou cartas que obviamente não foram escritas para ser publicadas. Enfim, se nos textos, como se espera, Freud desempenha o papel "do expert que tem alguma coisa a comunicar e busca convencer", ele põe em cena ainda um outro papel, o de um "interlocutor imparcial", "que manifestamente ele inventou para colocar a crítica e lhe permitir argumentar sobre sua própria posição" (Delattre & Widlöcher, 2003, pp. 12-13). A condição iniciática da psicanálise refere-se antes ao fato de a pesquisa em psicanálise ser tributária da experiência analítica, e à recomendação (irritante para muitos epistemólogos) de o pesquisador colocar-se a si próprio como objeto de investigação. Canônica e axiomática, a recomendação faz parte do ato fundador da disciplina quando, único analista, Freud empreende sua auto-análise. Com a experiência analítica, pretende-se garantir a irredutibilidade de um saber verdadeiro que, no limite, pode somente ser indutivamente apropriado por quem tenha vivido, através da análise, certas experiências sobre sua própria pessoa. O argumento é que, embora construindo conceitos, como a filosofia ou o discurso matemático, e criando "os objetos com os quais vai trabalhar", a psicanálise não é apenas discursividade: ela tem a "ambição não só de descrever ou de inventar alguma coisa no plano ideal, mas também a pretensão de intervir nesse real e de modificar alguma coisa dele" (Mezan, 1994, p. 59); e é na experiência analítica que isso primeiramente acontece.
Em suma, disciplina especulativa e "criadora de teorias" como a filosofia, a psicanálise é uma forma de investigação e, ao mesmo tempo, uma intervenção clínica. Para Freud (1912/1998), "um dos títulos de glória" de sua disciplina "é que nela, pesquisa e tratamento coincidem" — feita a ressalva, fundamental, de que o trabalho científico pressupõe, em particular, "recompor a arquitetura [do caso], querer adivinhar sua progressão e fazer, de tempos em tempos, os relatos da situação presente" (p. 152). Nesse sentido, após certo ponto, a "técnica" exigida pelo trabalho científico opõe-se àquela requerida pelo tratamento. A distinção entre as duas "atitudes" só deixaria de fazer sentido se o trabalho psicanalítico tivesse alcançado "todo o conhecimento (ou, pelo menos, o conhecimento essencial) sobre a psicologia do inconsciente e a estrutura das neuroses".
Na clínica, ele prossegue:
Os casos mais bem-sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta, e enfrentando-os sempre sem prevenção e sem pressuposição. Para um analista o comportamento correto consistiria em passar num impulso, de acordo com a necessidade, de uma atitude psíquica a outra, em não especular nem ruminar sobre os casos enquanto eles estão em análise, e em somente submeter o material obtido a um trabalho de pensamento após a análise concluída (Freud, 1912/1998, p. 152)1.
Por um lado, tal posição metodológica permite levar radicalmente em conta, e a cada vez, o que há de singular no sujeito sob investigação, antes de considerar o que nele é pertença universal. Por outro lado, nesse processo em que coincidem pesquisa e tratamento a pesquisa psicanalítica, conduzida pelo psicanalista e sua escuta, visa a priori à função de tratar, num compromisso ético que se sobrepõe aos interesses propriamente científicos. "Não é bom elaborar cientificamente um caso com o tratamento ainda em andamento", insiste Freud junto aos praticantes da psicanálise. "Sofrem em seu resultado os casos destinados a priori à exploração científica, e tratados segundo as necessidades desta" (p. 153).
Enfim, por ser a investigação sua condição essencial, o tratamento não é mera aplicação técnica — pelo menos não da maneira como faz o engenheiro civil que ao construir uma ponte "aplica" seus conhecimentos das ciências matemáticas e físicas. Em contrapartida, também por ser essencialmente uma investigação, deve ser exercido sem qualquer "orgulho terapêutico", como o fundador da psicanálise recomenda, citando a máxima atribuída a Antoine Paré: "Je le pansai, Dieu le guérit" (apud Freud, 1912/1998, p. 149); e como, ao longo de sua obra, Lacan sublinha com seu aforismo: a psicanálise cura... em acréscimo.
Pesquisa psicanalítica no espaço universitário
Na universidade, o pesquisador em psicanálise é convocado a afirmar, cotidianamente, a irredutibilidade da experiência analítica, sua constituição como um campo epistemológico específico e autônomo, com suas problemáticas próprias e seu método. Por um lado, ele deve reafirmar que a pesquisa em psicanálise, contemporânea ao tratamento, é parte integrante da formação e da atividade clínica do psicanalista. Por outro lado, deve levar em conta que, na academia, a atividade de pesquisa adquire por inúmeras razões outros significados: nesse caso, contrariamente ao que ocorre no setting analítico, em que "o psicanalista não explicita nada além de que ele é um psicanalista, [...] é necessário que ele acrescente especificidade e clareza em sua atividade de pesquisa" (Berlink & Magalhães, 1997, p. 3). Esta é a tradição universitária.
A teoria em psicanálise possui um estatuto próprio: ela é ao mesmo tempo saber constituído e saber sempre sujeito a remanejamentos. Toda investigação psicanalítica é de tipo qualitativo, e é esta imersão profunda "na singularidade de um caso que permite extrair dele tanto o que lhe pertence com exclusividade quanto o que compartilha com outros do mesmo tipo"; como tal, "o caso ganha um valor que se pode chamar de exemplar" (Mezan, 2001, p. 157). Disciplina que lida com fenômenos ou processos que não se apresentam de maneira unívoca e comportam diferentes apreciações, a psicanálise trabalha igualmente no plano da singularidade, segundo o ponto de vista de que "o ‘caso’ singular é ao mesmo tempo o acesso ao universal e seu ‘avalista’ (garant)" (Assoun, 1997, p. 14). Tal posição certamente não exclui um efeito cumulativo. Apenas na aparência um "pequeno novo fragmento da teoria" se baseia numa única observação, lembra Freud (1913/1973) em "A predisposição à neurose obsessiva", de 1913, preocupado em diferenciar sua invenção das dissidências adleriana e jungiana: "Na realidade, [este pequeno novo fragmento da teoria] concentra um grande número de impressões mais antigas, cujo sentido só advém depois da última experiência" (p. 192). O conhecimento psicanalítico dá-se, portanto, a posteriori — isto é, no sentido clássico, filosófico, como resultado da experiência ou dela dependente.
Contudo, recomenda-se ler os parágrafos iniciais de "Pulsões e destinos de pulsões", de 1915, apontados por Assoun (1981) como a plataforma epistemológica da psicanálise freudiana, e onde se pode observar o caráter relativo, nuançado e jamais ingênuo e fundamentalista de sua opção empirista. Ali, amparado em E. Mach (cf. Mezan, 2002), Freud afirma que a ciência começa por observar fenômenos e descrevê-los, para em seguida tentar explicá-los por meio de "idéias tiradas daqui e dali", que aos poucos vão formando um sistema, por definição provisório e aberto às modificações impostas pela experiência, pois, se a imaginação especulativa sugere nexos e relações "que não se reduzem apenas à experiência atual" (Freud, 1915/1988), o primado pertence ao teste de realidade (que ele, na correspondência com Ferenczi, chama de "crítica impiedosa"). Na pesquisa psicanalítica trabalha-se assim no plano da generalidade, num "processo de construção do conhecimento por generalização crescente", e cuja organização se dá em três planos: para o próprio indivíduo, para um grupo de indivíduos e, mais adiante, para toda a humanidade (Mezan, 2001, p. 161).
Ainda assim, parece-me que, mais importante do que o próprio saber, é a via para se chegar até ele, tal como Freud sustentou com os sonhos. O maior valor encontra-se antes em explicar o trabalho de condensação, deslocamento, figurabilidade e elaboração secundária a que os pensamentos oníricos são submetidos, do que em eventualmente interpretá-los.
Tais postulados epistemológicos repercutem inevitavelmente na questão do método. "As condições de domínio e de método têm de ser definidas a cada vez" (Laplanche, 1998, p. 15). Em nossas pesquisas (em, sobre ou com a psicanálise), cada tipo de questão pressupõe uma forma particular e única de organizar os dados e pensar os problemas (Mezan, 1998) — logo, um modus operandi próprio, e no sentido preciso de um esforço para atingir um fim. Mas esse programa de pesquisa, sem renunciar ao rigor (quer dizer, fundamentação e contextualização), é avesso à regulação prévia e definitiva de uma seqüência de operações a executar, salvo no limite e em caráter estratégico: os progressos táticos se fazem no devir cotidiano. Além disso, nesse percurso, se tentamos evitar o erro como princípio, tampouco o desprezamos, não fosse a noção de ato falho uma invenção freudiana — e uma subversão après-coup, nesses tempos em que se assiste a um forte recrudescimento da ideologia da performance no campo científico (Stechen, 2003).
Sobretudo, sustentando o desejo no centro de toda atividade humana, a pesquisa psicanalítica jamais pode garantir a priori um resultado determinado. Seu programa está antes subordinado à montagem paulatina de uma questão e à própria construção da pesquisa, visto que, ao contrário do que ocorre, por exemplo, nas ciências naturais, essa questão "consiste em muito mais do que o seu simples enunciado" (Mezan, 1998, p. 105).
Tratamento da alma, a psicanálise dispõe de um protocolo muito estrito: a regra estrutural da livre associação para o analisando, e a neutralidade do analista, que lhe possibilita uma escuta (livremente) flutuante; uma teoria clínica precisa, assentada no conceito de resistência (o equivalente na clínica ao conceito metapsicológico de recalcamento) e no de repetição; e um processo constitutivo, chamado transferência, pelo qual os desejos inconscientes do analisando se repetem, no quadro da relação analítica, sobre a pessoa do analista, colocada na posição de diversos objetos exteriores (Roudinesco & Plon, 1997).
O protocolo é a psicanálise, ele é sua condição de possibilidade e de legitimidade (Marie, 2004). No limite, é o protocolo que faz a psicanálise, e não a teoria (por definição, sempre provisória) que eventualmente lhe acrescentamos. Por um lado, temos a associação livre, que, na situação de (neurose de) transferência, impele o paciente a expor seus pensamentos, inclusive aqueles ordinariamente censurados; por outro, a atitude de neutralidade do analista: nem simpatia compreensiva, nem moralização, nem representação de um terceiro, revelado ou não. Em contrapartida, como o analisando crê que o analista sabe decifrar o caráter enigmático de seus sintomas e lhe indicar a solução, é esta expectativa crédula, mola da transferência, a causa do desdobramento de suas produções inconscientes.
A psicanálise é definida como um método de investigação que busca evidenciar o significado inconsciente de toda e qualquer produção imaginária, seja ela individual seja coletiva (Laplanche & Pontalis, 1973). Ora, no estudo dos processos psíquicos e das operações do espírito, o método próprio da psicanálise — cito Freud em "Convém ensinar psicanálise na universidade?", de 1919 — é não somente "aplicado ao funcionamento psíquico patológico, mas também à solução de problemas artísticos, filosóficos e religiosos..." (Freud, 1919/1996, p. 113). Como se sabe, suas incursões nesses domínios resultaram em obras capitais para o desenvolvimento da própria teoria psicanalítica: por exemplo, no terreno da sexualidade, com o estudo sobre Leonardo, sobre o fenômeno totalitário; em Psicologia das massas e análise do eu; e não se limitando às referências etnográficas em Totem e tabu (Roudinesco & Plon, 1997, p. 827).
Dito de outra maneira, o exercício da interpretação analítica, como Freud pretendeu desde o livro dos sonhos, seu livro inaugural, não se restringe às condições "ideais" proporcionadas pelas livres associações dos pacientes, estendendo-se também às produções humanas em que tais condições não estão presentes de maneira genuína. Ora, se as mesmas forças que "animam toda e qualquer produção mental, individual ou coletiva, podem ser detectadas não apenas na situação clínica, mas também nas produções secundarizadas" (Mezan, 1994, p. 67), segue-se necessariamente que a operacionalidade dessas noções e sua imbricação recíproca não se restringe à situação clínica, e se estende também a outras práticas psicanalíticas.
Tomemos o conceito de transferência (mas poderia ser algum outro conceito-chave, como os de repetição, de retorno do reprimido, de posterioridade), que amiúde costuma chocar os defensores da objetividade experimental. Revelada de maneira privilegiada na clínica como manifestação de apelo a um sujeito suposto saber (Lacan, 1968) que dá sentido à privação, a transferência diz respeito a um "fenômeno humano geral" (Freud, 1924/1992, p. 89), e, como na própria vida, também se manifesta em nossas atividades de pesquisa. Munido do conceito de transferência, quero supor que a pesquisa psicanalítica é capaz de suportar a díade interação mais influência (logo, sugestão), freqüentemente associada ou atribuída à investigação dita "qualitativa"; e se diferencia radicalmente, como investigação sujeito-sujeito, do modelo experimental, por sua vez assentado numa investigação sujeito-objeto. Mas também se distingue da dita pesquisa qualitativa, da qual ela faz parte, no sentido de que essa interação e essa influência são moduladas pela "neutralidade analítica" — que, avancemos mais um pouco, diz respeito à recomendação de no limite manter em suspenso sua própria subjetividade, eivada de valores religiosos, morais e sociais, e de se abster de qualquer conselho. Neutralidade quanto às manifestações ditas transferenciais, quanto ao discurso do analisando e, sobretudo, no sentido de "não privilegiar a priori, em função de preconceitos teóricos, um determinado fragmento ou um determinado tipo de significações" (Laplanche & Pontalis, 1973, p. 263).
"Como ciência", Freud (1915-17/2000) escreve nas lições introdutórias, "a psicanálise é caracterizada não pela matéria que ela trata, mas pela técnica com a qual trabalha" (p. 402). A psicanálise é assim antes de tudo o nome de um método, vale insistir. O método da psicanálise é interpretativo. Decifrar, traduzir, interpretar é algo que sempre foi feito, mas Freud inventou um método de interpretação próprio, assentado na livre associação do analisando, só possível pela via da transferência e mediante a escuta (livremente) flutuante do analista, como conseqüência da exigência técnica da neutralidade.
Na universidade em particular, a aposta encontra-se, no limite, na transposição desse método interpretativo para o domínio da leitura de textos.
Da leitura de textos
Por que ressaltar a leitura de textos? Porque a pesquisa universitária trabalha com textos escritos (Garcia-Roza, 1994). O que é fazer uma pesquisa em cima de textos? O que eu busco no texto? O que eu espero do texto? Que tipo de pergunta ali está presente? Nesse sentido, depois de lembrar o primeiro passo de uma pesquisa séria, em psicanálise e em qualquer disciplina (conhecer sua história, o que existe, como foram surgindo os problemas, as soluções propostas, os novos problemas), Mezan (1993) descreve o método proposto por Laplanche (cf. 1978 e 1998) como sendo uma leitura histórica, problematizante e interpretativa dos textos psicanalíticos.
[Laplanche] pretende mostrar que é possível ler os escritos analíticos de um modo analítico, não interpretando as fantasias de seus autores, mas utilizando como instrumento o método psicanalítico e suas categorias heurísticas: a atenção ao detalhe dissonante, a reconstrução do contexto, a temporalidade própria instaurada pela psicanálise, com seus conceitos-chave de repetição, de retorno do reprimido, de a posteriori. O objeto da pesquisa [...] é aqui constituído por textos, e não por aquilo que se costuma designar como "material clínico". Mas se trata de textos bem particulares, na medida em que buscam descrever, conceituar e explicar um universo de fenômenos que, em última instância, remetem à — quando não diretamente originados pela — situação analítica (Mezan, 1993, p. 89).
Segundo Laplanche, o objeto (a "coisa") e o discurso que dela fala são igualmente processos, o que sustenta entre eles um paralelismo comum: "As articulações complexas da ‘coisa’ — o inconsciente, digamos — são transpostas no e pelo discurso; este reflete e refrata aquela, como um prisma. É evidente que este sistema de correspondências é complexo; o termo paralelismo não deve ser tomado ao pé da letra". Evoluindo em seu meio próprio, ou seja, a linguagem e o raciocínio, o discurso "capta diferentes aspectos da coisa estudada; mas esta tem sua dinâmica própria, seus pontos de inflexão ou de impasse, e tudo isso é reproduzido de um modo ou de outro no nível discursivo". A conclusão de Mezan (1993): "É este encadeamento constritivo do pensamento pelo seu objeto que, na ótica de Laplanche, torna possível e legítimo o emprego do método analítico para estudar os escritos analíticos". Nas palavras do professor francês, "percorrer a obra em todos os sentidos, sem nada omitir e sem nada privilegiar a priori, talvez seja para nós o equivalente da regra fundamental do tratamento" (apud Mezan, 1993, p. 89).
Seria assim todo um programa, enunciado para justificar a pesquisa histórica e crítica do pensamento freudiano. Como em Hegel, a exigência é a noção central de seu procedimento: exigência do pensamento no sentido não apenas de rigor na formação das hipóteses e no respeito ao pensamento do autor estudado, mas, sobretudo, "captação das direções em que este pensamento é impelido por suas afirmações de base, por seus postulados e, em última análise, pela teoria da verdade que o anima e que, explícita ou implicitamente, ele visa demonstrar" (Mezan, 1993, p. 89). No caso da teoria psicanalítica, supõe-se que todo fenômeno psíquico — inclusive ela própria — é determinado por um "domínio heterogêneo e não-paralelo à consciência", o inconsciente. A regra metodológica de Laplanche assenta-se na idéia de que parte das "elaborações secundárias e camuflagens do ego" deposita-se na superfície legível dos enunciados, o que permite tomá-los pelo avesso e deles destacar outras redes de significações. Pensar esses enunciados psicanaliticamente é o que ele denomina "desmantelamento" ou "aplainamento" (mise à plat) dos enunciados textuais. "Achatar" os elementos do texto significa conferir ênfase e valor idênticos a qualquer uma das partes e ao conjunto delas: não há relações de subordinação da parte ao todo, um detalhe recebe a mesma atenção (eqüiflutuante) que o todo da narrativa.
Esta posição não é mais do que uma variante, no plano do texto escrito, da noção freudiana de neutralidade analítica. A neutralidade analítica é, no limite, uma atitude de abandono de todo a priori e de suspensão de todo julgamento e de todo saber — ainda que, paradoxalmente, jamais nos seja possível desembaraçarmo-nos completamente de nossos partis pris, opiniões, preconceitos, limites (Beauchamp, 1991).
A neutralidade que define o analista não é uma disposição psicológica, uma espécie de sabedoria adquirida pela adesão a um código de conduta. Ela reenvia a uma verdadeira instrumentalização do analista, elaborada ao longo de uma formação específica, da qual o resultado é a possibilidade da atenção flutuante. Essa neutralidade é uma conversão interior obtida no término de um processo, do qual não é possível prever em seu início se ele é susceptível de ser atingido, mas que permite ao analista ocupar este lugar. Esses dois critérios, a regra da associação livre e a neutralidade, conferem de imediato a essa experiência um caráter extramundano, já que nada é mais estranho à relação dos homens que dizer tudo que se apresenta em seu espírito ou se preservar dos preconceitos teóricos, referências morais e sentimentos nos propósitos que lhes são colocados (Marie, 2004, pp. 149-150).
Essa posição de neutralidade, na clínica ou na leitura de um texto, não é obviamente uma atitude "natural" (não é uma espécie de disposição psicológica), posto que nossa "escuta" é seletiva: tendemos a privilegiar o que conhecemos de antemão, a representação familiar, a idéia do momento. "Proteger-se da evidência, não temer a contradição, o estranho ou o desconcertante não é uma coisa natural" (Beauchamp, 1991, p. 70). Em contrapartida, "o conhecimento (...) nem sempre tem um efeito de abertura — ele também reforça a resistência..." (Beauchamp, 1991, p. 97).
Considera-se assim que toda e qualquer pesquisa em psicanálise se beneficia — a rigor, talvez seja mesmo sua condição — da experiência analítica, e esta ocorre de maneira privilegiada no tratamento; mas não de modo exclusivo, afirma Laplanche (1998), que agrupa, além dela, a psicanálise exportada (psicanálise aplicada; psicanálise em extensão; interação da psicanálise), a teoria e a história como lugares e objetos dessa experiência (Erfahrung). No fim das contas, o pesquisador em psicanálise, como o analista praticien de maneira radical, não tem senão um instrumento de trabalho: seu próprio inconsciente. Ora, "o inconsciente [...] é o nome de uma região de realidade da qual não podemos conhecer senão as manifestações; não é um homúnculo escondido que impõe à nossa revelia seus desejos; isso se passa na relação com o Outro". Em uma palavra: "os ‘significantes’ surgem na transferência, ‘causados’ pela função e pela realidade daquele a quem nos dirigimos" (Marie, 2004, p. 156).
No que diz respeito à pesquisa universitária, dirigimos-nos ao autor que pesquisamos, aos colegas, orientandos e alunos com quem dialogamos, ao Programa que nos acolhe, à comunidade científica de um modo geral. Para os pós-graduandos, em particular, deve-se mencionar o lugar ocupado pelos orientadores ("transferência na orientação") que maneja (manobra?), um misto explosivo de poder real, conferido pela instituição, e poder imaginário, conferido pelo orientando (Mezan, 2001) — e tantas vezes, inadvertidamente ou não, assumido por nós próprios, orientadores. Herrmann (1994) fala ainda em "transferência na pesquisa".
A notar essa obviedade de que a criação de uma variante da "neurose de transferência" não é exclusiva das pesquisas psicanalíticas2 — a diferença é que a psicanálise dispõe de um aparato conceitual que a evidencia, para eventualmente dar conta dela e mesmo contar com ela a seu favor. A realização de uma pesquisa, psicanalítica ou não, será sempre uma experiência transformadora.
Os desafios e as possibilidades da pesquisa psicanalítica na universidade
Ainda não foi avaliado de que maneira o campo psicanalítico vem se constituindo na universidade brasileira, embora se possa observar que os analistas têm-se voltado com crescente interesse para a universidade na esteira da estrutura de pós-graduação montada no Brasil ao longo dos últimos vinte ou trinta anos. Este processo, de maneira paulatina mas consistente, ampliou o espaço de atuação da psicanálise para além de seu ensino convencional nos cursos de graduação em psicologia. Em uma palavra, com a pós-graduação, a pesquisa em psicanálise vem se instalando palmo a palmo no seio da universidade, por sua vez, tradicionalmente o lugar da pesquisa em sua associação com o ensino dito "superior". Deve-se registrar (e conferir) que em fevereiro de 2005 foi enfim concedida pela CAPES a rubrica "psicanálise" entre os campos do saber praticados pelos professores universitários em nosso país. Seja como for, não é evidente o lugar ocupado pela psicanálise na universidade.
Historicamente, registra-se o combate militante travado por Freud para que a admitissem e reconhecessem como uma disciplina em toda sua extensão. Se hoje não há por parte da psicanálise a reivindicação de ser uma ciência (há mesmo a colocação em questão de o que é ciência), sem dúvida Freud obedeceu a uma lógica de exposição que é uma lógica científica (Conrath & Winter, 2006). Houve a recusa que de dentro da universidade ao menos em parte lhe opuseram: deve-se lembrar que, na Universidade de Viena, o fundador da psicanálise não passou da condição de Professor Extraordinarius. Como resultado afirmou-se entre os próprios psicanalistas, que por sua vez jamais deixaram de aceitar as regras da racionalidade, uma vontade sempre renovada de extraterritorialidade, fundada sobre a natureza mesma de seu objeto, o inconsciente (Mijolla-Mellor, 2004).
O termo "extraterritorialidade" é de J. Laplanche, e remonta pelo menos a 1974 quando, ao criar um DEA (Diplôme d’études approfondies) de psicopatologia clínica e de psicanálise, pioneiro na universidade de seu país, o professor francês definiu-se por "uma política de noyau dur e de descentramento da psicanálise no interior da pluridisciplinaridade" (Roudinesco, 1986, p. 556). Laplanche (1980) defende então a idéia de uma "extraterritorialidade" (extraterritorialité de la psychanalyse) pela qual a psicanálise não deveria estar no centro de uma formação: no caso da universidade, o ensino do freudismo deveria ser exterior aos outros domínios. Para ele, o analista nasce e se desenvolve apenas na marginalidade e na ruptura, e não se pode garantir senão preservando "todo um jogo de extraterritorialidades" em todos os níveis: marginalidade da cura em relação às instâncias da "vida cotidiana"; marginalidade da análise pessoal em relação aos requisitos e inquisits das sociedades de analistas; marginalidade do exercício da análise em relação às profissões reconhecidas (médico ou psicólogo); marginalidade das instituições analíticas em relação às instituições e aos reconhecimentos oficiais, etc. "Como analistas, como pesquisadores e como universitários", escreve o professor francês, "afirmamos [...] que a experiência analítica constitui um campo epistemológico específico e autônomo, que não poderia ser a chasse gardée de um indivíduo ou de uma instituição" (p. 8).
Na universidade impõe-se assim retomar questões jamais resolvidas, pois elas tocam o coração mesmo do objeto da psicanálise, e que são assim formuladas por Mijolla-Mellor (2004): quando e sob que forma pode-se falar de pesquisa neste domínio? Como esta pesquisa se organizou inicialmente em torno de Freud? Que lugar ocupa tal pesquisa no seio da comunidade científica, em particular a universitária? O que se espera da clínica: emergência de um questionamento? Colocação à prova de uma hipótese? Ou, mais radicalmente, adubo do qual a teoria tenta extrair-se, permanecendo ao mesmo tempo o mais próximo do exemplo que é "a coisa mesma"? (p. 28).
Segue-se uma tradução resumida, quase editada, de parte do artigo (ainda recente) de Mijolla-Mellor (2004), no qual, além de formular as questões acima, a professora francesa de Paris VII com elas propõe esclarecimentos preciosos. Parece-me também relevante retomar um texto publicado em revista, em seu primeiro número (ainda que herdeira de Psychanalyse à l’Université) e em língua estrangeira — e ao qual, talvez, nem todos entre nós tiveram acesso.
Mijolla-Mellor define "pesquisa" como um conjunto de trabalhos que visam o aprofundamento de um campo do conhecimento, por meio tanto de descobertas novas, como de uma reflexão histórica e epistemológica no domínio concernente. Ela propõe retomar a distinção que faz Freud (1996), em "Convém ensinar psicanálise na universidade?") entre:
— Aprender a psicanálise, isto é, a prática efetiva da psicanálise e, em primeiro lugar, a experiência que dela podemos fazer no tratamento;
— Aprender algo sobre a psicanálise;
— Aprender algo proveniente da psicanálise.
A autora entende o "sobre" a psicanálise como o fato de se informar do contexto histórico de sua descoberta e de sua elaboração, assim como noções que compõem os aparelhos psíquicos, indissociáveis das condições práticas de sua formação no próprio tratamento. Mas, simultaneamente, ela sublinha que este ensino, se verdadeiramente recebido, opera uma subversão nas referências habituais conscientes de quem as recebe. Neste sentido, um ensino sobre é sempre um ensino proveniente da psicanálise. Em consonância com a natureza da transmissão de um objeto científico vivo, esta perspectiva defende a idéia segundo a qual quem transmite não tenha apenas um saber livresco, mas também uma prática.
Tais considerações freudianas sobre o ensino podem ser transpostas para o domínio da pesquisa. A pesquisa "sobre" parece implicar uma posição de exterioridade, mas que não deve ser confundida, neste caso, com uma extraterritorialidade. Isso não quer dizer que o pesquisador "sobre" a psicanálise possa ficar imune e colocar seu objeto à distância; contudo, é-lhe também necessário desprender-se desse objeto para interrogá-lo, relativizá-lo, colocá-lo em questão, sem concessão nem conivência. Não se pode pesquisar "sobre" sem vir a ser de uma maneira ou de outra, e nos limites da própria análise, um pesquisador "em" — isto é, um pesquisador da singularidade dos mecanismos inconscientes, tal como o tratamento revela (Mijolla-Mellor, 2004, p. 29).
A autora não hesita em sublinhar a questão que cabe aqui ser formulada: a pesquisa em psicanálise corresponderia então à idéia de que não há verdadeira pesquisa em psicanálise que não seja aquela conduzida pelo analista no próprio espaço analítico, constituído como uma espécie de "laboratório in vivo"? Quer-se dizer com isso que tal pesquisa deveria então respeitar a especificidade de seu método, ou seja, a livre associação, que responde mais à lógica da descoberta, e não se ater a um objetivo previsto na esteira de um programa preestabelecido — tal como ocorre nas pesquisas ditas quantitativas.
Esta perspectiva — a verdadeira pesquisa como sendo aquela realizada nos consultórios — seria sedutora, pois coloca o método em harmonia com seu objeto; contudo, pode-se questioná-la de várias maneiras. Em primeiro lugar, convém não confundir o movimento de investigação do analista às voltas com a psicanálise de um paciente com a pesquisa em psicanálise que inclui necessariamente outras dimensões — não fosse a própria confrontação com a teoria —, enquanto durante a escuta a teoria está supostamente "em suspensão" ou "flutuante".
Por outro lado, se o sentido é encontrado e se desvela na sessão, este desvelamento é, entretanto, tributário de uma busca — e não se pode esquecer que em todo domínio, científico ou outro, "pesquisa" e "descoberta" são duas faces diferentes da mesma medalha: é preciso pesquisar para descobrir, mas não se descobre forçosamente o que se procurava, argumenta Mijolla-Mellor. Enfim, se o processo da pesquisa em análise é endógeno e não se confunde com a necessidade de provar diante do mundo — não-analítico — o bom fundamento de uma descoberta analítica, tampouco se pode esquecer que essa necessidade foi para Freud um elemento motor, e que nós lhe devemos ao mesmo tempo a profundidade de sua argumentação e a clareza de seu estilo.
Ainda assim a questão insiste sob um outro ponto de vista: poder-se-ia então dizer, além disso, que a necessidade de uma unidade profunda entre o observador e o observado torna necessário que a pesquisa em psicanálise não abandone o terreno do tratamento? Este argumento, ela concede, se é justificado, não é específico — dá-se o mesmo com as ciências humanas em geral —, nem totalmente pertinente. Com efeito, quem afirmaria ser uma mesma coisa quando se escuta um paciente e quando se redige um artigo ou um livro, com o pensamento voltado para a maneira como ele vai ser recebido, entendido, discutido...? Enfim, se as "descobertas novas" são inseparáveis da clínica, isso não quer dizer que elas possam se limitar à clínica. Primeiro porque a própria clínica só é fecunda na medida em que se apóia numa "teorização flutuante": não há clínica sem teoria e vice-versa. Segundo, porque essas "descobertas novas" em psicanálise não são indissociáveis de uma reflexão histórica e epistemológica no domínio concernente, logo, uma pesquisa "sobre" a psicanálise.
Em outros termos, se todo analista no exercício de suas funções utiliza sua "pulsão de pesquisar", isso não faz dele um "pesquisador". Assim, conforme seu exemplo, a "descoberta" por Winnicott da "transicionalidade" não é somente o resultado da observação do uso de uma criança de seu ursinho de pelúcia. Muito pelo contrário, se Winnicott pôde observar este fenômeno, é porque ele já possuía uma teoria sobre a relação entre o externo e o interno, o Eu e o não-Eu.
Cabe aqui uma digressão pertinente. Se a clínica é o lugar próprio, original e por excelência da investigação analítica, na universidade parece haver uma predominância de pesquisas ditas de psicanálise aplicada e histórico-conceituais. "Psicanálise aplicada" neste sentido, que remonta aos primeiros psicanalistas, de mostrar que as mesmas forças que "animam toda e qualquer produção mental, individual ou coletiva, podem ser detectadas não apenas na situação clínica, mas ainda nas produções secundarizadas" (Mezan, 1994, p. 70). "Histórico-conceituais", porque nelas a teoria psicanalítica ocupa um papel de maior relevo.
Na universidade, seriam mais raras as pesquisas com material clínico (Mezan, 2001), e pode-se presumir que mesmo entre os clínicos de origem os candidatos a mestres e pesquisadores optam, em sua maioria, por trabalhos de psicanálise aplicada ou histórico-conceituais — o que faria dessas variantes de pesquisa a vocação natural da psicanálise universitária. Embora não seja a única explicação, parece determinante o fato de que a realização de uma pesquisa com material clínico, como assinala Mezan (1994), demanda do pesquisador um grau necessário "de familiaridade com a clínica, com a teoria, com o método, com seu próprio funcionamento enquanto investigador, enquanto estudioso, enquanto terapeuta..." (p. 66), logo, demanda anos de experiência profissional. Estaríamos assim diante do paradoxo apontado por Fédida (1997): "Aquele que pode constituir um discurso que se origina de sua prática psicanalítica é quem tem muitos anos de prática e, geralmente, quando se tem muitos anos de prática, não se faz isto" (p. 67). Sem negar a contradição, é preciso também afirmar que a opção por uma pesquisa não originária diretamente do material clínico não desmerece por si mesma a psicanálise universitária.
Sabe-se da importância das inúmeras incursões freudianas para além da clínica de origem. Sem abdicar da prerrogativa de aplicar o método psicanalítico aos domínios literário, artístico, mitológico e histórico, Freud tampouco permaneceu na aplicação pura e simples, buscando sempre extrair subsídios desses seus trabalhos para avançar teoricamente. "O futuro julgará verdadeiramente que a significância da psicanálise como ciência do inconsciente [Wissenschaft des Unbewubten] ultrapassa de longe sua significância terapêutica", escreve Freud (1926, p. 291), em "A questão da psicanálise leiga". Mas o "homem imparcial" — para usar a referência ao fictício e cético interlocutor de Freud — não deve aqui se precipitar e ler a afirmativa como mais um indício do conhecido "pessimismo terapêutico" freudiano. A questão não é clínica, mas epistemológica: tivesse a psicanálise o poder de curar todas as formas de patologia mental, ainda assim seu julgamento e reconhecimento viriam de sua contribuição ao saber enquanto ciência dos processos inconscientes — escreve Assoun (1997), sem dúvida inspirando-se na frase de Freud citada acima.
Fechando o parêntese, retomo o artigo de Mijolla-Mellor para recolocar a questão: como situar, reciprocamente, clínica e teoria no movimento da pesquisa? Ela não evita precisar os termos.
Por "clínica", podemos entender coisas muito diferentes: o processo de um tratamento (prólogo, início, o próprio tratamento), o momento hic et nunc do encontro: tempo de uma sessão, momento interpretativo, etc., ou bem o tempo reflexivo que se segue (a situação de supervisão), e eventualmente o tempo de sua colocação em forma escrita.
Podem-se entender por "teoria" coisas muito diferentes: um modelo etiológico que dá conta de um quadro sintomático (teoria da histeria, da neurose obsessiva, etc.), uma reflexão sobre o processo analítico, ou bem hipóteses metapsicológicas (ciência conjectural) que "nascem do apelo à ‘feiticeira’ quando falta a teoria no sentido experimentalista" (Mijolla-Mellor, 2004).
Esses diferentes níveis jamais podem ser separados, nem pensados separadamente. Conscientes disso, insiste a autora, compreendemos que "a multidirecionalidade da teoria torna impossível (ou absurda) uma ‘aplicação’ na clínica". A clínica é, portanto, "o lugar onde se redescobrem e se colocam à prova e em ato as hipóteses teóricas múltiplas que esta mesma clínica conduziu o analista a elaborar para poder dar um sentido ao ‘isso fala’ do inconsciente" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 30). Essa teoria (ou ao menos seu fundamento, ou seja, o inconsciente) constitui a hipótese fundamental comum entre o analista e o analisando, sem o que não haveria análise. O "saber" do analista sobre a teoria e sua "experiência" clínica seriam vazios e inoperantes sem o saber do "analisando" sobre sua história, seus sintomas e o que ele aceita deixar aparecer na transferência.
Mas o exercício clínico só dará lugar à pesquisa — "pesquisa" nesse sentido de produção de novas hipóteses teórico-clínicas — na medida em que a teoria foi trabalhada, investida e interrogada previamente. Se não é assim, "aplica-se" mecanicamente a teoria à clínica, e com isso não fazemos nenhuma clínica. Ora, esse saber é também aquele que herdamos (e que chamamos acima de "efeito cumulativo" da ciência) em mais de um sentido: "Somos tributários não somente dos conteúdos a que chegaram as pesquisas precedentes, mas também, mais obscuramente, da maneira pela qual essas pesquisas foram conduzidas, e dos afetos que nelas se manifestaram" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 31).
Aqui a autora dá ao termo "pesquisa" uma significação restritiva e limitada a um projeto que se dá por objetivo propor novos modelos para pensar uma dada questão, a partir do conhecimento das hipóteses maiores sobre a mesma questão. Esta restrição seria necessária, por mais que se queira objetar que a confrontação entre a teoria e a clínica, presente em todo momento de uma sessão, já é em si uma pesquisa, e é uma pesquisa porque não há jamais aplicação da teoria, mas ao contrário "suspensão da teoria, colocada na latência necessária à escuta". Também não haveria "um hiato entre essa pesquisa empírica permanente e a Pesquisa [com p maiúsculo], que procede sempre à maneira do título muito conhecido do artigo de Freud ‘Um caso de... que contradizia a teoria de...’" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 37).
Mas, conclui a autora, o que distingue uma pesquisa de uma elaboração teórico-clínica é o tempo passado pelo pesquisador a ler, avaliar, discutir o que outros puderam escrever sobre o tema que é o seu. A comunidade científica virtual é por isso muito vasta e só tende a crescer com o aperfeiçoamento dos instrumentos da pesquisa ligada à informática e aos novos meios de comunicação que abolem a distância, ao menos na aparência.
As interações da psicanálise
Privilegio ainda no artigo de Mijolla-Mellor uma questão que me parece ser (como é a clínica psicanalítica na instituição, nesses tempos de franco recuo da clínica privada) a vocação e o futuro da psicanálise (não apenas) universitária. Trata-se da noção de pluridisciplinaridade, ou seja, a (re)combinação dos saberes especializados, como define Figueiredo (2004).
Mas a noção de pluridisciplinaridade não se limita, para Mijolla-Mellor, a uma justaposição de disciplinas separadas que mutuamente se ignoram, ela antes acentua seu caráter plural, isto é, um grupo heterogêneo, como falamos de "maioria plural". A pluridisciplinaridade implicaria, portanto, alguma complementaridade de seus componentes, eles próprios independentes segundo um outro ponto de vista. Encontrar essa complementaridade "não é evidente nem em política, nem no domínio da política científica das disciplinas"; mas ela pode ser esquadrinhada de maneiras diversas.
Eis seu raciocínio: podemos nos colocar, por exemplo, numa perspectiva interdisciplinar, isto é, nos situar nos interstícios das disciplinas, em seu ponto de contato. Mas o ponto de contato é também o lugar de uma separação. Estar no interdisciplinar consiste, portanto, em fazer ressaltar a diferença das abordagens disciplinares frente a um mesmo objeto. Ela exemplifica: a noção de violência pode ser o objeto de abordagens históricas, sociológicas, antropológicas, psicológicas, filosóficas, etc. Cada disciplina descortina sua definição dessa noção e o que disso decorre.
Para ressaltar essa diversidade, podemos tentar uma abordagem transdisciplinar. Aqui não se está interessado nos interstícios e pontos de contato, mas tenta-se tomar como objeto uma superfície que possa atravessar várias disciplinas. Outro exemplo: a noção de autoridade pode constituir um analisador que permite atravessar os diferentes campos invocados acima. Recolhe-se assim sobre essa noção uma somatória de abordagens diversas, mas sem se furtar à indagação se é bem da mesma coisa que se fala nessas travessias diversas.
Pluri ou multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar: a autora se pergunta o que acrescentaria um quarto termo, o de "interações da psicanálise", por ela proposto ao criar, em 1990, uma equipe interdisciplinar na Universidade Paris 7. Sua justificativa faz uso de uma série de considerações.
Para a autora, a perturbação fecunda que representa a introdução do inconsciente não mais no campo do tratamento, mas nas relações com as outras disciplinas, as ciências humanas e também a arte, a literatura, a medicina, o direito e outras, permite que se amarrem novas e inesperadas conexões. Deve-se perguntar como fazer e qual método seguir para alcançar tais aproximações e, sobretudo, permitir alguma fecundidade. Deve-se perguntar como fazer, por exemplo, para que "o ponto de vista da psicanálise não seja pura e simplesmente rejeitado como não-pertinente, mesmo como impertinente — isto é, que pretende um imperialismo do saber assentado sobre uma linguagem esotérica, como tantos ‘cientificistas’ não cansaram de alardear ao longo da história da psicanálise" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 42).
Para tentar responder a esta pergunta, a autora retoma a significação mesma do termo "psicanálise": um procedimento de investigação e um método aplicável em diversos campos.
Comecemos pelo procedimento. Trata-se, diz Freud, de um procedimento de investigação para processos mentais que são mais ou menos inacessíveis de outra maneira. O procedimento é a análise, isto é, a decomposição (analuein: desamarrar, desfazer os nós) de uma substância em elementos. Mas aqui a metáfora reenviaria à química. Trata-se de encontrar os elementos ativos que compõem a substância. A substância no caso pode ser um sonho, um sintoma, ou mesmo o comportamento. "As associações livres sobre um elemento particular prolongam-no em linhas emaranhadas, com pontos de interseção nodais. Há uma recomposição, portanto, depois da decomposição, mas não se chega à mesma coisa" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 43).
Chegamos assim ao processo, isto é, a conjuntos de fenômenos que são ativos e organizados no tempo. No exemplo da autora: compreende-se a angústia de pegar o avião ou o elevador como o resultado de certo número de mecanismos que organizam uma angústia relativa a outra coisa que não os elevadores ou os aviões. Neste caso, o procedimento (a associação livre das idéias) leva a decompor e recompor um processo no interior de um comportamento (evitar o elevador, mesmo sendo preciso subir ao décimo andar). Este processo é um conjunto de forças e de contraforças: as pulsões e as defesas contra as pulsões. Os processos são inconscientes, a análise faz com que eles se manifestem graças às associações dos pacientes.
O procedimento de investigação funda um método, isto é, uma démarche que se apóia sobre um conjunto de regras e de princípios. O método vai ser uma aplicação, uma aplicação dos procedimentos num certo objetivo, sendo o mais evidente o objetivo terapêutico. "Esse objetivo exige considerar a situação psíquica do paciente e não formular a interpretação senão nos termos que lhe possam ser úteis. O método é a interpretação, mas uma interpretação controlada e formulada em função do objetivo procurado, isto é, a melhora do estado de sofrimento psíquico do paciente" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 44). Procedimento de investigação, método de tratamento são as duas fontes a partir das quais se constitui a teoria psicanalítica. Compreende-se por que a teoria psicanalítica não se reduz a um conjunto de leis teóricas, mas sempre se apresenta como um "teórico-clínico" aberto à investigação e adaptável às situações clínicas.
Mas voltemos ao ponto que nos concerne na universidade: o método não se aplica somente à terapia do sofrimento psíquico ("terapia" aqui no sentido de diminuição do sofrimento psíquico, mas parece-me necessário acrescentar, por minha conta e risco, que o termo é questionável em mais de um sentido em psicanálise). O método psicanalítico, como já observado anteriormente, é de fato aplicável aos fatos humanos, sejam eles individuais ou coletivos. Para Freud, logo ficou claro que a psicanálise, como teoria do inconsciente, se tornaria indispensável a todas as ciências que se ocupam da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições como a arte, a religião, ou a ordem social. Ele pensava mesmo, conforme também já referido, que a utilização da psicanálise para a terapia das neuroses era apenas uma de suas aplicações, e que talvez o futuro demonstrasse não ser a mais importante. Em "O interesse da [ou na] psicanálise" (Freud, 1913/1984), Freud mostra em que a psicanálise poderia interessar a psicologia, as ciências da linguagem, a filosofia, a biologia, a história da civilização e, enfim, a estética.
A autora coloca sem pudor o dedo na ferida: ao falar do interesse que teriam esses campos do saber em utilizar os dados da psicanálise, Freud pode dar a impressão de ser imperialista, enquanto, de fato, ele não faz mais do que prolongar o que foi o movimento mesmo de seu próprio pensamento, "interessado" por todas essas disciplinas. "A aplicação da psicanálise fora do campo do tratamento parece-lhe então quase natural. Assim, quando escolhe trabalhar sobre Leonardo da Vinci, como dissemos, Freud está em via de refletir sobre as ‘teorias sexuais infantis’ e os efeitos de inibição que elas comportam" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 44). Diversas fontes coincidem para levá-lo a trabalhar sobre este pintor: primeiro, seu interesse pela inibição, que não é jamais uma falta de desejo, mas o resultado de um conflito de desejos (para Leonardo, o conflito entre a arte e a ciência). Segundo, seu encontro com um paciente que se parece com Leonardo, ainda que, como ele escreve a Jung, sem ter o gênio do mestre italiano.
A aplicação da psicanálise a Leonardo da Vinci não é gratuita, afirma a autora. Há uma lógica que impele Freud para este trabalho, e por isso ele ocupa um lugar nos prolongamentos da teoria freudiana. Mas há mais do que isso. "É provável que Freud, como descobridor, sentisse afinidades profundas com Leonardo da Vinci, assim como dizia de Copérnico ou de Darwin, que, como ele próprio, infligiram grandes feridas narcísicas à humanidade com suas descobertas" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 44). Tais afinidades, mais ainda a dimensão narcísica nelas implicadas, diriam respeito a esta dimensão auto-analítica indissociável de toda pesquisa em psicanálise.
A argumentação da autora é precisa: "Leonardo da Vinci, ou Michelangelo, não têm evidentemente nada a fazer com as interpretações de Freud. Em troca, a teoria psicanalítica tem muito a ganhar com o que Freud nos fala deles, e não apenas de seus pacientes, porque, frente a Leonardo ou Michelangelo, nós estamos na mesma situação de exterioridade em que se encontrava o próprio Freud". Como resultado, o estudo de uma obra de arte ou de uma obra literária desenvolve e coloca à prova o método psicanalítico. "Ela o impele aos limites de sua compreensão, mas também o torna mais facilmente comunicável que um caso clínico, por definição, apenas conhecido pelo analista que fala dele" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 45).
Eis então uma das razões pelas quais Mijolla-Mellor propõe o termo "interações da psicanálise", diferente de "aplicações" da psicanálise. O termo "interação" sublinha que, antes de interessar os outros campos do saber ou da cultura, a própria psicanálise está interessada nesses campos, na medida em que eles são parte constitutiva dela própria. Tomada assim, a aplicação da psicanálise fora do campo do tratamento não é uma ocupação estéril ou um exercício arriscado e perigoso no qual não se encontraria nada além do já posto desde o início.
A autora considera que se pode ir ainda mais longe. Ela retorna ao já referido sobre inter ou transdisciplinaridade para afirmar que se pode tomar um objeto de estudo — um fato de sociedade, ou uma noção geral — e examiná-lo através dos pontos de vista específicos de diversas disciplinas. Teremos assim um esclarecimento multifocal, mas disso não se retiraria muita coisa, salvo o interrogar sobre as aproximações possíveis entre esses esclarecimentos. Por "interações" da psicanálise, a autora entende a confrontação dos discursos mantidos por diversas disciplinas sobre um mesmo objeto, de tal forma a permitir destacar as especificidades de cada uma. Não se trata de buscar uma unidade dialógica, a seu ver ilusória, mas ao contrário permitir a cada disciplina desalojar reais especificidades, às vezes mesmo oposições, por trás de aparentes similitudes nocionais.
Essa confrontação deve também permitir precisar os métodos utilizados. Poderíamos assim trabalhar os empréstimos de modelos de uma disciplina a outra e a penetração recíproca dos conceitos. Um exemplo poderia ser a noção jurídica de processo, presente inúmeras vezes na obra de Freud. Ou ainda a noção filosófica de "coincidência dos opostos", que pode ser aproximada àquela do sentido oposto das palavras primitivas, tal como o lingüista Abel a definiu. A psicanálise retoma a idéia de que uma mesma imagem possa exprimir duas coisas opostas, e isso vai servir-lhe para precisar o funcionamento do sonho que ignora o não (negação), e representa um elemento pelo desejo de seu oposto. Segundo a autora, os exemplos poderiam se multiplicar, e seriam em número correspondente ao de objetos de tese potenciais.
Visto de maneira ampla, a competência psicanalítica se apoiaria sobre três elementos: "o que a própria análise do analista lhe ensina sobre o funcionamento de seu inconsciente; o que seus pacientes lhe ensinaram do funcionamento do inconsciente deles; o que ele aprendeu nos textos psicanalíticos, quer se trate de clínica quer de teoria, ambos não sendo jamais dissociáveis" (Mijolla-Mellor, 2004, p. 46). A autora não hesita em dizer que as interações da psicanálise constituem uma quarta fonte de abordagem. Ela seria precisa no tanto em que permite precisar e relativizar o saber analítico e seu método, comparando-os e confrontando-os com outros campos. Enfim, não somente a pesquisa sobre a psicanálise teria tudo a ganhar com sua integração ao vasto domínio das Ciências do Homem, mas a pesquisa em psicanálise pode se ver renovada e provocada de maneira fecunda pelos resultados provenientes dessas interações.
A universidade seria uma base privilegiada para pôr em obra e na prática essas interações, acrescentando à pesquisa "em" psicanálise (diríamos: metapsicológica e clínica) e "sobre" a psicanálise (histórico-epistemológicas) a dimensão de uma pesquisa "com" a psicanálise (interações da psicanálise). Lembro que na universidade Freud pretendia, muito modestamente através de cursos elementares, a "fecundação [pela psicanálise] de alguns ramos das ciências" (ele cita: história da literatura, filosofia, mitologia, história das civilizações, da religião), "[criando] um vínculo mais estreito, no sentido de uma universitas literarum, entre a medicina e os ensinamentos reagrupados na filosofia" (Freud, 1913/1984, p. 113). A situação hoje da psicanálise na universidade, que inclui, para além de cursos elementares, uma prática efetiva de pesquisa, deveria tornar virtualmente mais próximo o sonho freudiano.
Referências
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Endereço para correspondência
Fernando Aguiar
R. do Calafate, 79/204 — Pantanal
88040-008 Florianópolis, SC
E-mail: fabs@cfh.ufsc.br
Recebido em: 15/04/06
Aceito em: 01/06/06
* Doutor em filosofia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica), é professor no Departamento de Psicologia e no PPG em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
1 Deve-se ao Autor a tradução de trechos de obras referidas em língua estrangeira.
2 A implicação transferencial do pesquisador em psicanálise na sua pesquisa, se intensa, não chega a ser necessariamente uma experiência tão dramática como a descrita pelo historiador inglês Anthony Beever, na revista Veja (04/05/2005), a respeito de suas pesquisas sobre a Segunda Guerra e, em particular, sobre "as atrocidades cometidas pelo soldado comum". "Quando estava analisando um documento histórico, eu me concentrava em fazer uma seleção não emocional das informações que podiam servir ou não para o livro. Só no dia seguinte à noite, às 3 ou 4 horas da madrugada, eu acordava subitamente angustiado pela lembrança dos horrores sobre os quais eu tinha lido, e não conseguia voltar a dormir. Isso acontecia com maior freqüência quando eu lia sobre as descrições dos casos de canibalismo. Em Stanlingrado [São Petersburgo], os soldados alemães deixavam os prisioneiros russos sem comida e eles tinham de comer carne humana para sobreviver. Às vezes, eu me sentia mal no almoço ou no jantar só de olhar para a comida e imaginar o que seres humanos foram forçados a fazer para não morrer de fome. Tive a mesma reação quando fiz a pesquisa sobre a queda de Berlim. Ao terminar o livro, eu estava próximo de um colapso nervoso" (p. 137). A noção (clínica) de "neurose de transferência" talvez fosse a mais adequada para descrever tais experiências — mas sua condição (de grau), parafraseando Freud, depende dos fenômenos transferenciais possíveis em cada caso.