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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.39 n.71 São Paulo dez. 2006
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
A Bela do Palco o feminino, de Freud a Winnicott
Stage Beauty & the femenine, from Freud to Winnicott
Belleza prohibida & lo femenino, de Freud a Winnicott
Edna Pereira Vilete*
Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Psinacalítica do Rio de Janeiro
RESUMO
A partir de um filme A Bela do Palco a autora estuda a bissexualidade humana, revendo as idéias de Freud sobre o tema e apresentando, em seguida, os conceitos originais de elemento feminino puro e elemento masculino puro, de Winnicott. Relaciona esses conceitos a uma identidade básica e à criatividade primária que podem estar prejudicadas no estabelecimento de um falso self, conseqüência de uma perturbação no desenvolvimento.
Palavras-chave: Bissexualidade, Elemento feminino puro, Elemento masculino puro, Criatividade, Falso self.
ABSTRACT
Starting with a film, Stage Beauty, the author studies human bisexuality, reviewing initially Freud's ideas on the subject and presenting afterwards, Winnicott's original concepts of pure female element and pure male element. She relates these concepts to a basic identity and to primary creativity which are impaired, resulting in the establishment of a false self, as a consequence of a developmental disturbance.
Keywords: Bisexuality, Pure female element, Pure male element, Creativity, False self.
RESUMEN
A partir de una película Belleza prohibida la autora estudia la bisexualidad humana, revisando las ideas de Freud sobre el tema y presentando en seguida los conceptos originales de elemento femenino puro y elemento masculino puro, de Winnicott. Relaciona esos conceptos a una identidad básica y a la creatividad primaria que pueden ser perjudicadas al constituirse un falso self, consecuencia de un transtorno en el desarrollo.
Palabras clave: Bisexualidad, Elemento femenino puro, Elemento masculino puro, Creatividad, Falso self.
I A Bela do Palco
Baseado em uma peça de Jeffrey Hetcher, o diretor Richard Eyre cria um filme instigante que nos ajuda a compreender as idéias que aqui serão expostas. Sua trama se inicia dizendo-nos que, em 1660, a mais bela atriz dos palcos londrinos chamava-se Kynaston e, de acordo com a tradição e as leis da época, em que somente os homens tinham licença para representar, esta atriz, ou seja, Kynaston, era, na verdade, um homem. Tão belo era esse rapaz, tão delicados seus traços faciais, tão verossímil sua caracterização feminina, que Kynaston era, com freqüência, aplaudido em cena aberta, e dúvidas circulavam sobre a realidade de ser ele, de fato, homem ou mulher.
Kynaston era ajudado no vestiário por uma jovem, Maria, camareira devotada que o amava em segredo e acompanhava fascinada cada representação sua, seguindo e repetindo as suas falas com viva emoção. A trama insinua, mesmo, uma atração entre os dois porque, por duas vezes, quase se beijam. Kynaston faz confidências a Maria sobre a sua arte, contando que fora retirado das ruas, junto a outros jovens, por um tutor que os ensinara a representar. Assim, sentindo-se entendido por ela, declara: "Maria, somos almas gêmeas" e Maria do mesmo modo devia se sentir, pois, com desejo intenso de também representar, secretamente se apresenta em uma taberna, desafiando a lei, repetindo o papel de Desdêmona, em Otelo, com o qual Kynaston alcançava tanto sucesso. Pela primeira vez uma mulher se apresentava publicamente e a representação de Maria é aclamada com interesse e surpresa. Ela, entretanto, logo depois, sofre profunda decepção, pois surpreende o ator tendo um encontro sexual com seu amante, no palco vazio e escuro após um espetáculo.
A novidade da atuação de Maria traz repercussões pois o rei, Charles II, sabedor do episódio e enfadado com o teatro da época, bem como instigado por sua amante, decide conceder o direito de representar às mulheres.
Desde então, a rivalidade se estabelece entre os dois jovens. Maria, ferida e enciumada com a descoberta da homossexualidade de Kynaston, defende seu propósito de representar, enquanto ele, ameaçado pelas novas rivais que, com entusiasmo, acorrem à nova possibilidade de trabalho, mostra-se enfurecido e arrogante, arrogância pela qual pagará um alto preço; ao contrariar a amante do rei, que também nutria ambições de atriz, consegue transformá-la em inimiga poderosa. Com artimanhas sedutoras ela obtém do rei uma nova lei: "Considerando que papéis femininos têm sido representados por homens em vestes femininas, fato com o qual muitos se ofendem, permitiremos que todo papel feminino seja representado por mulher. Nenhum homem, doravante em palco inglês, representará mulher".
A proibição deixa Kynaston perdido. Não consegue representar papéis masculinos a possibilidade de trabalho que lhe resta e é, ainda, rechaçado pelo amante que se casará, em breve, com uma jovem da corte. Termina por se apresentar, embriagado, em um teatro de categoria inferior, travestido de mulher em um espetáculo decadente com diálogos obscenos. É desse cenário que Maria o resgata, levando-o para um albergue tranqüilo onde, de maneira maternal, lhe oferece cuidados para que possa se recuperar. Da intimidade que surge entre os dois e dos sentimentos que conseguem, agora, expressar, muito se pode pensar sobre a polaridade de masculino e feminino; mas é mais adiante, quando chamado a ajudar Maria a compor a personagem de Desdêmona e tomando, então, a decisão de formar um par com ela, assumindo o papel de Otelo, que teremos as mais significativas revelações a nos inspirar sobre o tema aqui abordado.
II O feminino, de Freud a Winnicott
É fácil reconhecer a importância que a idéia de feminilidade teve para Freud, pois a investigou em inúmeros trabalhos ao longo de sua obra. Com freqüência, entretanto, refere a respeito um sentimento de insatisfação, como se algo sempre lhe escapasse e o conceito permanecesse incompleto. Assim, já em 1915, acrescenta aos Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade (1905/1972, p. 196) uma extensa nota de rodapé, expondo a dificuldade em encontrar uma significação psicológica para "masculino" e "feminino". Bem mais adiante, em 1930, em outra nota de rodapé, ao final do capítulo IV de O mal-estar na civilização (1930/1974, p. 126), ele reconhece sua dificuldade quanto à questão da bissexualidade: "... a teoria da bissexualidade contém, ainda, numerosas obscuridades, e não poderíamos deixar de estar seriamente embaraçados em psicanálise por não termos podido encontrar a sua ligação com a teoria das pulsões".
Assim, o feminino, em sua essência, mostrou-se um mistério até o fim, pois Freud declara na conferência sobre o tema "Feminilidade" em 1933: "... o que tinha a dizer sobre feminilidade está incompleto e fragmentário... estive apenas descrevendo as mulheres na medida em que sua natureza é determinada por sua função sexual" (p. 165). Reconhecendo a insuficiência de suas descobertas, faz ele, então, o convite "se desejarem saber mais a respeito, indaguem da própria experiência de vida dos senhores, ou consultem os poetas, ou aguardem até que a ciência possa dar-lhes informações mais profundas e mais coerentes".
O precário conhecimento sobre o feminino não trouxe prejuízo somente ao entendimento das mulheres, já que em um de seus últimos trabalhos estritamente psicanalíticos "Análise terminável e interminável", de 1937 Freud constata que dentre as mais fortes resistências transferenciais no trabalho analítico estaria, no caso dos homens, seu repúdio à feminilidade, ou seja, a dificuldade ou a reação em aceitar uma atitude passiva com outros homens, por confundi-la com castração. Nesse mesmo texto ele apresenta, como contrapartida, a resistência na mulher:
Em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre mais da sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita de que estivemos "pregando ao vento", do que quando estamos tentando persuadir uma mulher a abandonar seu desejo de um pênis, com fundamento de que é irrealizável... (Freud, 1937/1975, p. 286).
A partir das idéias acima expostas podemos supor que as dificuldades referentes ao tema existissem em conseqüência de relacioná-lo à teoria das pulsões ou à afirmação da preponderância do falo. Entretanto, em sua genialidade, nesse como em outros assuntos que desenvolveu, Freud deixa um caminho em aberto, quando conclui, na conferência citada acima: "Em suma, fica-nos a impressão de que não conseguimos entender as mulheres, a menos que valorizemos essa fase de vinculação pré-edipiana à mãe" (p. 148). Ele se volta, assim, para o desenvolvimento primitivo, para o tempo inicial da vida e à relação estabelecida com o primeiro objeto. Tudo isso, porém, que vislumbrou e não pôde desenvolver, ele resume em uma entrevista concedida a um jornalista americano, ao completar setenta anos: "Consegui desencavar monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir continentes" (Freud, 1926/2006, p. 3). Assim, dentre os que se aventuraram nesse território ainda inexplorado, escolho ressaltar as idéias desenvolvidas por Winnicott, em virtude de sua originalidade.
Durante o atendimento de um paciente, Winnicott se viu surpreendido por uma interpretação que lhe deu. Tratava-se de um homem de meia-idade, com várias análises anteriores e com um longo trabalho já realizado com o próprio Winnicott. Entretanto, como o próprio paciente afirmava, ainda existia algo que o impedia de terminar seu tratamento, pois sabia que não havia encontrado aquilo que o levara à análise. Se fosse embora tudo que alcançara teria sido em vão. Aproveitando, então, as próprias palavras de Winnicott:
Certa sexta-feira, o paciente falava da maneira usual, quando me impressionou o que ele dizia sobre inveja do pênis. Utilizo esse termo de caso pensado e devo aquiescer ao fato de que o termo era apropriado ali, em vista do material e de sua apresentação. Evidentemente, a expressão inveja do pênis geralmente não se aplica na descrição de um homem (Winnicott, 1971/1975, p. 104).
Logo em seguida ocorreu o fato novo, quando Winnicott lhe diz: "Estou ouvindo uma moça. Sei perfeitamente que você é homem, mas estou ouvindo e falando com uma moça. Estou dizendo a ela: você está falando sobre inveja do pênis. Quero enfatizar que isso nada tem a ver com homossexualidade" (p. 105). Após uma pausa o paciente responde: "Se eu falasse a alguém sobre essa moça seria chamado de louco" (p. 105). Winnicott, então, esclarece: "Foi minha observação seguinte que me surpreendeu, pois falei `Não é que você tenha contado isso a alguém; sou eu que vejo a moça e ouço uma moça falar quando, na realidade, em meu divã acha-se um homem. O louco sou eu'... o paciente disse que agora se sentia são, num ambiente louco... aquela loucura que era minha, capacitou-o a ver-se como uma moça, a partir de minha posição. Sabia-se homem, nunca duvidara que o fosse" (p. 106).
Diante dessa compreensão singular, e em função de um trabalho de elaboração, puderam concluir que sua mãe, tendo já um primeiro filho, vira uma menina quando ele era um bebê, antes de aceitá-lo como menino. "Em outras palavras", conclui Winnicott, "esse homem teve de ajustar-se à idéia da mãe de que seu bebê seria e era uma menina". Ele saiu profundamente comovido dessa sessão, convencido de que tinha atingido a primeira mudança significativa em sua análise desde um longo tempo.
Tal experiência clínica e a continuação da análise com esse paciente conduziram Winnicott a uma nova compreensão da bissexualidade, pois, embora tenha ela a qualidade de unidade dentro do self total, poderia, em determinadas distorções do desenvolvimento, estar dissociada. A propósito ele diz: "A primeira coisa que eu notei foi que antes eu nunca aceitara integralmente a dissociação completa entre o homem (ou mulher) e o aspecto da personalidade que tem o sexo oposto. No caso desse paciente, a dissociação era quase completa" (Winnicott, 1971/1975, p. 108). Estudando essa dissociação Winnicott percebeu que estava lidando com o que ele chamou de elemento feminino puro, sentindo-se surpreso com que pudesse chegar a isso pela observação do material apresentado por um paciente masculino. O progresso que o paciente pôde apresentar a partir de então levou-o a entender por que suas interpretações nunca puderam ser mutativas, embora tivessem bons fundamentos dentro do conhecimento teórico clássico. Entretanto, agora, o paciente vivia uma relação intensa com Winnicott, com o elemento feminino puro dissociado encontrando uma unidade primária com ele, como analista, e esta nova condição proporcionava ao paciente um sentimento básico de identidade com a sensação de que começava a viver. Esse pormenor influenciou a teoria de Winnicott, levando-o a aproveitar e ampliar suas idéias sobre a constituição do verdadeiro self, e consolidando seu conceito de criatividade como o resultado da relação com o objeto original.
Vendo-se no campo transferencial como a mãe desse paciente-bebê, Winnicott entendeu que o elemento feminino puro se relaciona com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-se o seio (ou a mãe), ou no sentido de que o objeto é o sujeito. Ele, em trabalhos antigos, lançara já o conceito de objeto subjetivo, a área em que o sujeito e o objeto são um só, entendendo o fenômeno como uma condição de identificação primária, a primeira experiência de identificação, de importância vital porque representa o início de todas as experiências posteriores de identificação. Agora ele entendia que a relação de objeto do elemento feminino puro estabelece o que é, talvez, a mais simples de todas as experiências humanas, ou seja, a experiência de ser. Entretanto, anteriormente ele ressaltara a necessidade de que a mãe estivesse inteiramente absorvida pelo seu bebê para que tal fenômeno ocorresse. No trabalho citado ele redefine essa condição dizendo:
Ou a mãe possui um seio que é, de maneira que o bebê também pode ser, quando bebê e mãe ainda não estão separados na mente rudimentar daquele, ou então a mãe é incapaz de efetuar essa contribuição, caso em que o bebê tem de se desenvolver sem a capacidade de ser, ou com uma capacidade mutilada de ser (Winnicott, 1971/1975, p. 116).
De fato, o paciente descrito acima sofrera uma mutilação quando a mãe, cedendo ao seu desejo de ter uma filha (assim podemos supor), deixara de refletir o que ele era em sua masculinidade e o vira como uma menina. O olhar distorcido da mãe representou uma invasão que rompeu a unidade com seu bebê, a identificação que fazendo nascer o elemento feminino puro daria origem ao sentimento de existir e à capacidade de se autodescobrir. Winnicott relaciona a criatividade, inicialmente, a esta qualidade de estar vivo, a qual, quando alcançada por seu paciente, na experiência clínica compartilhada, permitiu-lhe aproveitar todo o trabalho feito até então.
Voltando à idéia de uma predisposição humana para a bissexualidade, Winnicott inclui na criatividade primária também um elemento masculino puro que diria respeito à relação de objeto apoiada pelo impulso instintivo. A relação de objeto do elemento masculino pressupõe, porém, a existência de uma separação entre o eu e o não-eu, estando, portanto, em um momento posterior do desenvolvimento. Aqui, os processos de identificação baseiam-se em mecanismos mentais complexos que necessitam de tempo para surgir e se estabelecer como recursos do bebê. Ao contrário, o elemento feminino puro faria parte de uma identidade primária, como vimos, em uma estrutura mental rudimentar, onde os alicerces do ser estariam alojados. A respeito, Winnicott comenta que a psicanálise talvez tenha concedido atenção especial a esse elemento masculino ou aspecto impulsivo da relação de objeto, e negligenciado a identidade sujeito-objeto que se encontra na base da capacidade de ser. Sintetizando ele conclui: "O elemento masculino faz, ao passo que o elemento feminino (em homens e mulheres) é" (Winnicott, 1971/1975, p. 115).
III Voltando à Bela do Palco
Já, ao início do filme, fazendo confidências a Maria e lembrando de palavras do seu tutor, o homem que desde a infância o iniciou na arte de representar, Kynaston revela seu problema de identidade: "Nenhum personagem pertence ao ator. O ator é que pertence ao personagem. Não esqueça jamais. Você é um homem em pele de mulher". Entretanto, pensativo, Kynaston se pergunta: "Ou seria o contrário?". "Ele já morreu. Mas é difícil saber", diz, voltando-se para Maria, que, de pronto, lhe responde, tranqüilizadora: "Acho que você será sempre bom, homem ou mulher".
Kynaston, entretanto, apesar de aplaudido, aclamado, vive em permanente dúvida, saindo do palco insatisfeito com sua apresentação: "Não fui bem hoje. É monótono. Felizmente a platéia é sempre nova". Sua incerteza o leva mesmo a se perguntar: "O que significa atuar?". A insatisfação exige que ele ensaie, uma vez mais, a cena da morte de Desdêmona, a de que ele menos gosta pois a considera curta demais, embora a razão principal de sua crítica esteja no comentário que acaba por formular: "Tem de tudo nela, menos emoção". É bem provável que a emoção seja suprimida pelos gestos impostados com que Kynaston expressa os trejeitos femininos. Embora pressinta o que de falso existe em sua forma de representar ele nada pode mudar, pois defende, mesmo, o seu aprendizado quando, arrogante e agressivo, interpela Maria quanto às suas pretensões de atriz: "Você conhece as cinco poses da submissão feminina? Talvez conheça a pose de resignação trágica? Ou da boa conduta, a do pavor, a de súplica, a da prostração? Eu trabalhei a vida toda para isso. Quatorze meninos num porão. Para me preparar eu não pude usar vestes femininas por três anos, não pude usar peruca por outros quatro, até eu provar ter eliminado todo gesto masculino e entonação viril do meu ser. Onde a senhora aprendeu? Em que porão?". Ao que Maria retruca, com ironia: "Eu não tive mestre. Nem mesmo aulas. Por isso precisei de menos treinamento". Só mais adiante, porém, quando no albergue a que leva Kynaston para se recuperar, decepcionada porque ele, curioso, pergunta sobre sua maneira de morrer como Desdêmona, interrompendo, assim, um momento de intimidade física entre os dois, ela irritada irá responder a estas questões: "Seu tutor lhe pres tou um grande desserviço! Ele o ensinou a falar, a desfalecer, a fazer gestos, mas ele nunca lhe ensinou a sofrer como uma mulher, ou a amar como uma mulher. Ele o encerrou em uma forma feminina e o deixou lá... para morrer". E, referindo-se à atitude passiva e suplicante de Kynaston na peça, acrescenta: "Eu sempre o detestei em Desdêmona. Você nunca lutou! Você apenas morreu lindamente. Mulher alguma morreria assim, por mais que amasse o marido. Uma mulher lutaria!".
As palavras de Maria denunciam a artificialidade da interpretação de Kynaston, travestido de mulher, e justificam o sentimento de tédio do rei, que, a certa altura da trama, sugere mudanças porque deseja surpresas. A propósito, a expressão "surpreenda-me" é, várias vezes, repetida no filme, como que à espera de uma atitude espontânea e criativa. Essa criatividade só irá surgir nos momentos finais quando Kynaston é solicitado e aceita dirigir Maria no papel de Desdêmona. Antes ele perguntara como era ela no palco, pois nunca a vira representar, e lhe respondem: "Como ela é? Você! Em cada inflexão, cada expressão, gesto, entonação. Mas não funciona!". Assim alertado, ele se dirige para um ensaio com Maria, que, insegura, não deseja se apresentar, pois não acredita em seu próprio talento.
Kynaston ordena que ela se dispa das roupas luxuosas que compõem seu personagem e use uma camisola branca e simples; retira sua maquiagem, pois seus lábios devem estar pálidos, a pele branca. Desalinha seus cabelos. Maria protesta: "Acaso pensa ensinar-me a ser mulher?". "Não a ensinarei a ser mulher, mas a ser Desdêmona." É categórico: "Você não deve ser insinuante". De fato, estimula sua espontaneidade ao ver que ela copia seus trejeitos e sua voz em falsete: "Não, isso é como eu..., não atue com o que não existe... guarde algo para o momento... faça diferente do planejado... improvise um pouco. Surpreenda-me!".
É Maria, porém, quem primeiro tem a surpresa, pois Kynaston decide representar Otelo e o par então se forma. Apoiada por ele, Maria se entrega à emoção do momento e a cena da morte ganha intensidade dramática. "Realista até demais", define o rei ao final da peça. Refere-se ele à comoção que tomou conta dos espectadores, levando-os, mesmo, a temer que Kynaston tivesse realmente sufocado Maria, suspirando, aliviados, quando ela, em meio à cena, mexe-se e geme enquanto agoniza. Aplaudem, em seguida, chamando o seu nome e é Kynaston quem lhe dá a mão para que ela se levante do solo e agradeça a homenagem. Ao se retirar, no fim do espetáculo, a platéia se mostra entusiasmada e não poupa elogios: "Essa foi a melhor noite que já passei no teatro! Que interpretações!" "Decerto, foi o mais extraordinário espetáculo de minha vida!" "Foi maravilhoso!".
Kynaston e Maria, também excitados, mas afastados do público, comentam a récita: "Por pouco você não me matou!" "Eu a matei, mas você não morreu", diz ele, e acrescenta: "Finalmente acertei a cena da morte".
IV De novo, o masculino e o feminino
Durante a crise que viveu, quando foi proibido de representar papéis femininos, Kynaston é consolado por um crítico amigo que busca animá-lo dizendo: "Sempre o preferi em papéis masculinos, como em Rosalinda. Seu desempenho masculino foi tão correto, tão autêntico! Foi o papel mais autêntico da peça". Irritado e inconformado Kynaston replica dizendo uma verdade que, em seu sarcasmo, não consegue perceber e, assim, só mais adiante se tornará evidente: "Sabe por que pareceu tão real? Porque eu fingia. Vê-se o homem pelo espelho da mulher espelhada no homem. Na falta de um deles nada se vê. Só se vê o homem em contraste com a mulher que ele é. O homem sem a mulher não é visível a ninguém!".
O espelhamento de que Kynaston fala aparece, concretamente, no filme, quando estão os dois a sós no albergue. Ali, deitados, lado a lado na cama ambos vivendo a primeira experiência de contato físico com o sexo oposto iniciam um jogo erótico desencadeado por uma pergunta de Maria: "Como vocês, homens, fazem?", referindo-se ao ato sexual. "Homem com homem", esclarece ela. À resposta de Kynaston "Depende. Depende de quem é o homem e de quem é a mulher" põem-se a ensaiar posições onde, estando de costas, o homem é sempre aquele que está por cima. Quando, afinal, ficam frente a frente na brincadeira que fazem, isto se modifica e eles se definem em sua própria identidade de gênero, independente de quem monta ou de quem é montado. Nesse momento, atraídos e excitados, beijam-se com sofreguidão. De súbito, olham-se atentamente e Kynaston começa a fazer gestos cariciosos em Maria, que os retribui, refletindo-os em uma igualdade de espelho, o que reacende a paixão e reinicia o ato sexual. Como vimos lá atrás, Kynaston interrompe esse clima apaixonado com suas perguntas: "Diga-me uma coisa. Como você morre... como Desdêmona... como você morre?".
"Vê-se o homem pelo espelho da mulher espelhada no homem." Por essa afirmação entendemos a ira de Maria, pois Kynaston desperdiça o momento, pretendendo, ainda uma vez, tal como aprendera, copiar, tão somente, a forma feminina, sem alcançar o seu segredo, o que poderia ter ocorrido no espelhamento da paixão de que estavam possuídos. No estado de enamoramento, absorvidos um pelo outro, os amantes repetem a primitiva fusão ocorrida entre a mãe e seu bebê, proporcionando, assim, uma nova oportunidade de identificação oferecida pelo elemento feminino puro, relacionado ao sentimento de ser. Podemos, porém, pensar que tudo o que, desde então, acontece na história teve como precursora essa experiência no albergue, pois a atração entre os dois vai ser retomada logo em seguida, quando Kynaston e Maria ensaiam a peça.
"Só se vê o homem em contraste com a mulher que ele é." No ensaio Kynaston aparece transformado, firme, definido, viril, seguindo os conselhos da amante do rei: "E se você a tomasse pelas mãos?" "Um homem não é seu caminhar ou suas palavras... mas seus atos!", o que nos conduz de volta ao elemento masculino puro que está relacionado ao fazer.O crescimento alcançado por Kynaston, semelhante ao processo vivido pelo paciente que antes descrevemos, inclui a bissexualidade dentro do self total, traduzido na frase final de Winnicott: "Após ser fazer e deixar-se fazer. Mas, antes de tudo, ser".
Assim, integrado, Kynaston começa o ensaio dizendo:
"Você é a mulher,
Eu sou o homem.
Comece na cama".
V Criatividade e morte
O texto em que Winnicott apresenta seus conceitos sobre os elementos feminino e masculino diz respeito às origens da criatividade, que ele entende como um colorido de toda a atitude com relação à realidade externa. A partir do sentimento de ser, de estar vivo, o verdadeiro self com sua espontaneidade pode se constituir e se expressar. Ao contrário, qualquer perturbação dessa identidade primária, básica, pode conduzir ao estabelecimento de um falso self ou, no caso, um falso feminino, com sentimentos de futilidade, de tédio, vazio e insegurança. Nosso personagem, submetido a um treinamento que o transformara em uma caricatura de mulher, experimentava a falsidade de sua atuação com insatisfação e monotonia. De forma semelhante, o rei assistia à peça, o que se evidencia em sua opinião: "Quanto ao Otelo que vi... é ótimo, mas requer mudanças". Mudanças que só ocorreram porque Maria, preocupada e devotada a Kynaston, vendo nele um homem por quem se apaixonou, favoreceu a integração do elemento masculino dissociado.
Somente o self verdadeiro pode ser criativo e o gesto espontâneo é o self verdadeiro em ação (Winnicott, 1960/1982, p. 135). O artista de talento, por sua vez, é o espelho do homem, capaz de refletir o que ele sente, e, quando isso ocorre, a emoção se apossa do espectador. Para tanto o artista cria e oferece um espaço de ilusão onde "a brincadeira, na verdade, não é uma questão de realidade psíquica interna, nem tampouco de realidade externa", mas uma superposição das duas (Winnicott, 1971/1975). Os atores do nosso filme, ainda envolvidos em sua interpretação, traduzem esse paradoxo, dizendo: "Por pouco você não me matou!"; "Eu matei, mas você não morreu". Do outro lado, na platéia, o rei, em tom jocoso, comenta, em contrapartida: "Emocionante! E o novo final... muito realista. Quase demais, até. Mas assaz revigorante. Assim são as tragédias, após tanto horror ainda podemos jantar!".
O percurso que vai do elemento feminino puro ao elemento masculino no desenvolvimento pressupõe sofrimento e perda, pois a criança irá se separar da mãe como um objeto subjetivo seu uma parte de si mesma e alcançará a consciência do não-eu, ou seja, da realidade da mãe como um objeto objetivamente percebido. Curiosamente, no filme, enquanto se recusa a renunciar à sua condição e papel de atriz, Kynaston sofre um violento ataque de inimigos, que dele se vingam, espancando-o e levando-o quase à morte, deixando-o com uma invalidez de que demora a se recuperar. A morte representa para ele um mistério durante todo o drama, morrendo "lindamente", falsamente, o que Maria denuncia e ele próprio admite: "Homens não são belos, nem seus atos são belos... Mulheres fazem tudo lindamente, principalmente ao morrerem... Nunca pude deixar a beleza morrer... Talvez por isso eu nunca acertei a cena da morte".
Após o ensaio, enquanto se prepara para entrar em cena, Kynaston tem um diálogo com Maria que talvez esclareça esses seus sentimentos e nos encaminhe na compreensão do desfecho da trama. Ele a orienta na profissão recomendando que interprete Cleópatra morrendo pela picada de uma serpente: "Aqueles que morrem jamais se recobram", e complementa: "Eu a culpo por minha morte". Intrigada, Maria lhe pergunta, sem ter resposta: "De que peça é essa fala?". Estaria Kynaston culpando Maria por sua morte como mulher ao lhe ceder o lugar? Teria, entretanto, acertado a cena da morte exatamente por ter feito essa renúncia, apresentando-a ao público com um sorriso emocionado para que seja aplaudida? Só assim podemos entender o que eles dizem depois nos bastidores: "Por que você não acabou comigo?", e Kynaston simplesmente conclui: "Finalmente acertei a cena da morte".
Deixando de ser a mãe, porque reconhece sua realidade externa, a criança cura a dor da sua perda ingressando em um espaço potencial que, ao mesmo tempo, une e separa e onde o brincar é a ponte que liga realidade e fantasia.
Morrendo como mulher, Kynaston pode encontrar em Maria o que lhe faltava. Assim, na última cena do filme, Maria, com um jeito malicioso, pergunta: "Quem é você agora?", repetindo o jogo homem-mulher com que brincaram no albergue. Olhos nos olhos, beijando-a com paixão, Kynaston responde: "Eu não sei... eu não sei...", porque na atração que os unia, no contato do seu corpo fundido com o dela, ele finalmente podia viver a ilusão de serem dois em um só.
Referências
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Endereço para correspondência
Edna Pereira Vilete
Av. Epitácio Pessoa, 3400/903 & Lagoa
822471-000 Rio de Janeiro, RJ
Fone: (21) 2539-4230
E-mail: edvilete@uol.com.br
Recebido em: 15/08/06
Aceito em: 02/10/06
* Membro Efetivo e Analista Didata da SPRJ.