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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.41 n.74 São Paulo jun. 2008
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Formação psicanalítica: algumas reflexões sobre a análise didática
Psychoanalytic education: some reflections on training analysis
Formación psicoanalítica: algunas reflexiones sobre el análisis didáctico
Ana Maria Andrade de Azevedo*
Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
Empreende aqui a autora um exame da formação psicanalítica oferecida pelo Instituto de Psicanálise da SBPSP nos últimos trinta anos. Para isso, retoma questões ligadas à análise didática e expõe algumas idéias e posicionamentos, que visam esclarecer o ponto de vista adotado, enfatizando a importância da análise de formação. O presente trabalho não pretende constituir um levantamento em relação ao posicionamento de outros autores, refletindo apenas uma reflexão da autora.
Palavras-chave: Formação psicanalítica, Análise de formação, Analista didata, Relação analítica, Conformação, Criatividade.
ABSTRACT
The author brings up some ideas and personal reflections about the psychoanalytic education as offered in the Institute of Psychoanalysis (SBPSP) for the last thirty years, reviewing mainly the issues related to training analysis. Some of the author’s ideas and positions are exposed, aiming to clarify the adopted point of view, which emphasizes the importance of training analysis. The paper has no intention of responding to positions other authors have risen, constituting only the author’s reflections.
Keywords: Psychoanalytic training, Training analysis, Training analyst, Analytical relationship, Conformation, Creativity.
RESUMEN
La autora presenta algunas ideas y reflexiones personales en relación a la formación psicoanalítica ofrecida en el Instituto de psicoanálisis de la SBPSP en los últimos treinta años, retomando principalmente cuestiones relacionadas al análisis didáctico. Algunas ideas y posiciones de la autora son propuestas para esclarecer el punto de vista adoptado, en relación a la importancia del análisis didáctico. El texto presentado no tiene la intención de ser una colección de propuestas de colegas y de otros autores, sino, nada más que una reflexión personal de la autora.
Palabras clave: Formación psicoanalítica, Análisis de formación, Analista didacta, Relación analítica, Conformación, Creatividad.
Escrever sobre a análise de formação não me parece tarefa simples nem fácil. A começar pelo título: não me agrada nem um pouco a denominação “análise didática”, pois se há uma qualidade que não pode estar presente na análise durante a formação é a didática.
De outro lado, parece impossível falar de análise de formação sem uma reflexão mais ampla sobre toda a formação psicanalítica. Por parte do Instituto de Psicanálise responsável pelo ensino teórico da Psicanálise e, de certa maneira, pelo acompanhamento dos candidatos e dos seminários , um enorme esforço vem sendo feito, acredito, no sentido de preencher as necessidades e demandas, tanto dos coordenadores como dos candidatos. Uma questão que me parece muito séria e complicada é o grande número de candidatos atualmente atendendo aos seminários, já que um sistema como o proposto pela própria Instituição, que supõe um acompanhamento constante e cuidadoso, dificilmente poderá se impor.
Nos últimos anos, uma reforma ampla do currículo do Instituto e dos métodos de escolha dos cursos veio ao encontro dos inúmeros apelos feitos em relação a uma abertura maior do leque de autores considerados. Também a reestruturação dos seminários de Freud e Melanie Klein parece ter se dado de maneira satisfatória.
Não quero com isso dizer que não existam problemas, algo que seria impossível. Porém, dentro de um campo mais amplo de consideração da formação psicanalítica, penso que o ensino oferecido no Instituto é talvez o que mais tem ocupado a instituição psicanalítica, com a organização de jornadas, simpósios, etc.
Já a questão das supervisões individuais, ao lado da análise de formação, envolve algumas questões e dificuldades que fazem parte do tema que gostaria de discutir aqui.
A mais ou menos quarenta anos atrás, quando se ingressava na SBPSP, através de seu Instituto, a expectativa em relação à formação psicanalítica era enorme, caracterizada por uma grande idealização em relação ao que significava “ser psicanalista”. Esse lugar e suas funções de certa forma constituíam uma instigante incógnita, que só os mais adiantados e os já membros da Sociedade conseguiam saber. A Psicanálise não era tão difundida ou tão popular como é hoje o que para alguns era considerado como uma condição propícia para a análise, enquanto para outros, entre os quais me incluo, o desconhecimento contribuía para a idealização e para a manutenção de um certo lobby.
Obviamente, a análise pessoal revelava-se o espaço e a experiência mais importante para o desvendamento dessa incógnita. Ser psicanalista num certo momento era praticamente “ser e pensar” como o analista didata, a referência possível e mais presente. Esse personagem, o didata, como já disse, era extremamente idealizado, narcisicamente investido e representava o modelo a ser alcançado. (Será que tudo isso está muito diferente hoje?)
Sem dúvida, essa situação era compreensível: a SBPSP contava na época com apenas treze analistas didatas, todos com seus consultórios repletos de pacientes e candidatos, sendo naquele momento muito difícil conseguir uma vaga para a famosa “análise didática”. (Mais tarde, quando ocupei cargo de diretoria, ao lado de Marcio Giovannetti, viemos a descobrir que havia mais de 250 pessoas na fila, à espera de uma vaga com um didata para iniciar a formação. Depois de uma investigação mais detalhada e de uma seleção, acredito que ficamos com uns 150 pretendentes.)
Pode se imaginar como, após anos e anos de espera, essa análise se transformava em algo misterioso, vital e importantíssimo, pois sem ela não seria possível iniciar o Instituto e fazer os cursos, para finalmente ser considerado psicanalista. Os poucos que o conseguiam formavam turmas de cinco a dez pessoas e, creio, não podiam deixar de se sentirem privilegiados e escolhidos. Uma das críticas mais constantes acusava então a SBPSP de ser um grupo elitista e seletivo.
Talvez devido a enorme dificuldade em ser aceito, talvez porque os contatos com o meio externo e universitário eram muito restritos naquele instante, talvez por serem os honorários cobrados bastante altos, além de inúmeras outras razões, incluindo as advindas da própria análise pessoal, os candidatos em sua maioria pareciam ver a “profissão de psicanalista” como uma carreira profissional privilegiada, e ansiosamente visavam galgar etapas e alcançar o que parecia ser a trajetória percorrida pelos analistas mais antigos.
Não quero aqui generalizar uma situação, desmerecê-la ou dar a idéia de que não era possível ter uma boa formação naquele momento. Faço uso desse modelo sabendo muito bem que pode o mesmo continuar se repetindo hoje ou em qualquer outro instante da nossa história psicanalítica. Na verdade, acredito que não é só na Psicanálise ou na instituição psicanalítica que nos defrontamos com essas questões. A vida parece nos propor o tempo todo indagações que dizem respeito a quem somos, como somos e para onde vamos.
Quero chamar a atenção para as dificuldades ligadas aos processos de identificação, a busca da diferenciação psíquica e da alteridade, como situações angustiantes, ante as quais é possível ceder à tentação de adotar uma atitude de conformação ou de conformidade, com um modelo idealizado, preestabelecido, no qual a identificação com a figura do analista e com as teorias adotadas pelo analista poderá ser vista como uma conseqüência natural e inevitável.
Não se pode esquecer que, dentre aqueles primeiros treze analistas didatas, muitos eram, ao mesmo tempo, membros fundadores da SBPSP, o que provavelmente reforçava posições e conquistava adeptos. Talvez a criação de diferentes grupos, com preferências teóricas distintas, seja decorrente dessa etapa do desenvolvimento da Instituição, alguns mais freudianos, outros mais kleinianos e, mais tarde, com a chegada de Frank Philips em São Paulo, os bionianos.
Nestas colocações, certamente minha experiência pessoal e a experiência de alguns colegas mais próximos estão sendo consideradas. Em nenhum momento estas idéias pretendem ser críticas ou desvalorizadoras da formação dos candidatos nos anos 70. Muito pelo contrário, penso que sempre prevaleceu entre nossos antecessores uma atitude de dedicação e seriedade, fossem eles candidatos, professores ou analistas.
Essa situação foi alterada completamente após a intervenção da IPA em nosso Instituto, no começo dos anos 80. A exigência imposta foi a de que era necessário acabar com o que denominavam de bottleneck (gargalo), imposto pelos didatas, que desejavam manter a hegemonia da formação. Para tanto, seria preciso triplicar o número de didatas rapidamente, ou o Instituto ficaria fechado indefinidamente.
E assim foi feito. Manter a formação paralisada era impraticável: além daqueles que aguardavam, havia os que estavam para começar os cursos e outros que desejavam ser aceitos como associados ou efetivos. Em menos de dois anos, passamos a ter em torno de quarenta analistas didatas, seja devido a certa facilitação que se procedeu, seja porque o fantasma do didata foi se esvanecendo.
Mas para que toda essa rememoração? De que maneira tudo isso pode contribuir com o tema da análise de formação? Do meu ponto de vista, acredito que sempre podemos aprender com nossos erros e com nossos acertos.
O que a IPA viu e rejeitou aqui em São Paulo, penso, foi realmente a hegemonia de um grupo, que sem dúvida continuaria a manter uma posição idealizada e certo elitismo na formação, caso algo não fosse feito. Não que eu esteja sempre do lado da IPA. Muito pelo contrário, pretendi ser candidata à presidência, como candidata da oposição. Não consegui.
Um dos aspectos que podemos apreender com toda essa situação é que a análise de formação é algo básico e fundamental; que não pode ser manipulada, nem estar a serviço de outra coisa que não seja sua própria tarefa: o trabalho analítico transformador.
Escuto muitas vezes argumentos de que a análise dos candidatos deveria ser separada do Instituto. Que cada qual escolhesse seu analista e fizesse análise quantas vezes fosse possível, durante o tempo que achasse necessário, cabendo ao Instituto apenas sancionar essa análise.
Para mim, tal possibilidade está fora da perspectiva do que pode vir a ser uma formação psicanalítica. O que pode um Instituto ensinar sobre análise pessoal, senão promover as condições para que esta aconteça? Seminários clínicos? Supervisões? Teoria analítica? Será que é possível na verdade formar analistas na Instituição? Ou será um outro processo, o da análise pessoal, que talvez possa ajudar alguém a vir a ser analista?
Será que nossos membros analistas são tão despreparados que não têm a menor condição de lidar com a presença e uma possível interferência do Instituto? E o que dizer de outras interferências, que eventualmente podem surgir numa análise pessoal, como um pai ou uma mãe inadequados ou uma atuação violenta? Isto também inviabilizaria a análise e o analista?
Afinal, que formação essa oferecida aos nossos analistas, que não propicia sejam eles analistas de formação? A tal ponto que precisamos importar um modelo de outro país, acreditando que, em cinqüenta anos, só oprimimos os candidatos e violamos seus direitos concordando, assim, com Otto Kernberg, quando este menciona que “a análise didática produz efeitos tóxicos e destrutivos para a educação psicanalítica”?
Não gostaria de ser vista como conservadora, nem como saudosista, porque, no fundo, não o sou: aqueles que me conhecem mais de perto sabem disso. Tenho idéias bastante claras em relação ao que de fato possibilita, ou não, uma boa formação psicanalítica. Nesse sentido, provavelmente, sou exigente.
A Psicanálise, seja ela análise pessoal ou de formação, inevitavelmente lida com questões da identidade, com conflitos, com a reconsideração dos acontecimentos, a força de teorias pessoais de vida no analisando, buscando encontrar soluções novas e criativas para problemas antigos e para o desenvolvimento do mundo mental e psíquico.
Desse modo, pode ser vista como constitutiva de uma situação propícia e favorável, pela própria condição de transferência estabelecida, para a doutrinação, para a dogmatização e para a idealização.
Isso esteve presente desde o início? Possivelmente, sim. Aliás, com o breve histórico que ofereci, quis exatamente chamar atenção para situações muito próximas a nós, nas quais é possível constatar a tentação em direção ao poder, à força e à presença da arrogância. Estes são aspectos humanos e, como seres humanos que somos, fazem parte de todos nós.
Acredito que atualmente essas questões delicadas e difíceis vêm sendo tratadas mais abertamente, assim como os debates e a pesquisa constante em relação à formação e ao ensino têm contribuído para dissolver muitos obstáculos.
Certamente não concordo com uma colocação que amplie e generalize as dificuldades da análise de formação, preconizando que a abolição desta vá conduzir à criação de situações mais livres.
A liberdade de pensamento é uma condição básica para que qualquer análise e qualquer analista possa vir a ter êxito. Liberdade e responsabilidade caminham juntas. Cabe a nós, analistas, assumir a responsabilidade por nossa liberdade individual, só assim poderemos também propiciar um clima de liberdade para o outro.
Sinto-me bastante confortável em minha posição de analista de candidatos; em nenhum momento, pareceu-me que tal condição estivesse prejudicando ou dificultando a análise pessoal de meus analisandos ou a sua educação psicanalítica. Tive experiências em que, de ambos os lados, meu e do analisando, concluímos que não valia a pena continuar. Por quê? Não saberia dizer exatamente.
Acredito que, em geral, encontramos boas análises e/ou análises que deixam a desejar não devido ao nome que damos a essa análise, mas sim em consonância ao trabalho que aquela dupla específica, analista-analisando, consegue ou não desenvolver naquele momento.
Não existe o bom analista e os “realmente bons” (referência feita aos didatas pelo colega Luiz Meyer, 2007), existem analistas e duplas analíticas; a análise pode prosseguir até onde for possível àquele analista acompanhar aquele analisando.
Seria possível evitar a idealização e a dogmatização, eliminando-se a análise de formação? Acredito que não. O caráter messiânico e a doutrinação, que eventualmente encontramos em algumas análises de candidatos, parecem fazer mais parte das questões do analista do que da análise como tal.
Será que não teríamos grupos diferentes, às vezes antagônicos na Sociedade, será que as diferentes correntes teóricas que estão presentes entre nós não teriam a força que têm, caso o sistema de análise de formação não existisse?
As idéias psicanalíticas, sem dúvida, são muito poderosas, penso que muitas vezes os psicanalistas acreditam que este poder não está nas idéias e, sim, neles mesmos. Talvez exista uma confusão entre esse poder das idéias e um outro tipo de poder, exercido por analistas onipotentes, que acreditam ser possível formatar analisandos dentro de suas crenças e teorias. Em um determinado momento da nossa história, ouviam-se referências ao que seria a “verdadeira psicanálise”, em contraste com outras aproximações, talvez menos avançadas. Só podemos imaginar que alguns analistas de fato acreditavam que estavam do lado da verdade, oferecendo então o seu próprio caminho como o melhor caminho para seus analisandos.
É bastante óbvio que são necessários dois para que isso aconteça: ou seja, um analista que, dentro de suas perspectivas acredite que suas aproximações são as mais apuradas e as mais verdadeiras e, por outro lado, um analisando que precise de um modelo onipotente e onisciente de analista.
Ser como meu analista, adotar suas teorias, defender os mesmos postulados, possivelmente significa, não conseguir me apropriar de mim mesmo, “conformar-me”, em lugar de “formar-me”. A alteridade é uma das condições mais difíceis de ser alcançada não podemos, no entanto, prescindir dessa busca.
Em menor escala, penso que isso pode acontecer também na supervisão, quando a aceitação do outro com suas escolhas e características tem que ser respeitada.
Dentro dessa perspectiva, só posso reforçar o ponto de vista já exposto, de que uma análise de formação, quanto mais ampla e mais intensa, com um analista experiente e livre, é o que está na essência da formação psicanalítica. Sei muito bem que não é fácil definir o que significa ser um analista livre.
Este é, em poucas palavras, o tema que proponho para discussão. A doutrinação, a conformação aos modelos preestabelecidos, a adesão sem reflexão a grupos e idéias, como elementos, estes, sim, nocivos e tóxicos em qualquer circunstância.
A análise pessoal do analista surge, assim, como uma condição desejável, sempre que necessária. Quem decidirá quando ou como e com quem deve ser o próprio analista. Só podemos esperar que aqueles que estamos formando atualmente possam se dar conta da natureza de nossa atividade, da constante dificuldade que nos assola diariamente, ao estarmos disponíveis e abertos para aceitarmos ser ocupados pelo sofrimento e pela angústia dos nossos analisandos.
De acordo com meu colega Nosek, proponho, enfim, uma nova maneira de considerar a alteridade e a importância da individualidade, pressupondo uma nova ética “a da bondade de permitir a existência do outro. Em vez da experiência de conhecer, a permissão de existir. Em vez da possessão, a acolhida e a hospitalidade ao estranho, ao outro” (Nosek, 2007, p. 12).
Referências
Meyer, L. (2007). A análise didática deve ser mantida? Revista Brasileira de Psicanálise, 41(3), 33-40. [ Links ]
Nosek, L. (2007). Editorial: A metáfora da ecologia. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(4), pp. 11-12. [ Links ]
Endereço para correspondência
Ana Maria Andrade de Azevedo
Av. Brig. Faria Lima 1903, cj. 92 Jd. Paulistano
01452-911 São Paulo, SP
Fone: (11) 3034-2730
E-mail: amaaz@osite.com.br
Recebido em: 15/05/2008
Aceito em: 10/06/2008
* Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.