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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Miró e o imaginário: uma inscrição na análise de uma criança1
Miró and the originary: an inscription on the analysis of a child
Miró y lo originario: una inscripción en el análisis de un niño
Eunice Nishikawa2
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicananálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
A autora se propõe a correlacionar elementos de uma sessão analítica de uma criança com atraso importante da fala, com a linguagem pictórica de Joan Miró. Inicialmente tomando como referência: de um lado, as formas inatas (de Tustin) e o desenvolvimento do simbolismo no caso clínico, e, por outro lado, o quadro La masia, obra considerada a fundação e a chave do trabalho de Miró. No decorrer da investigação, a autora chega a algumas considerações em torno do conceito de pictograma-ideograma. No trabalho de Miró existe um período conhecido como mutação da realidade, no qual o artista rompe com a forma anterior criando uma nova linguagem, pictogramática, a linguagem mironiana. Na psicanálise, Bion deixou um legado, considerando o pictograma-ideograma como um passo importante para o desenvolvimento do pensamento e da linguagem.
Palavras-chave: Arte e psicanálise, Simbolismo, Pictograma-ideograma, Psicanálise de criança, Linguagem.
ABSTRACT
The author aims to correlate elements of an analytical session with a child who presents delay of speech, with the pictorial language of Joan Miró. Initially the author takes as a reference the innate forms (of Tustin) and the development of the symbolism in the clinical case, and then the picture La masia, considered the foundation and the key of Miró’s work. Throughout the investigation, the author comes up with considerations about the concept of pictogram-ideogram. In Miró’s work there is a period named mutation of reality, in which the artist ruptures with the previous form creating a new language, pictogramatic, a mironian language. In psychoanalysis, Bion left a legacy, considering pictogram-ideogram as a step towards the development of thought and language.
Keywords: Art and Psychoanalysis, Symbolism, Pictogram-ideogram, Psychoanalysis of children, Language.
RESUMEN
El autor se propuso correlacionar los elementos de una sesión analítica de un niño con retraso del habla, con el lenguaje pictórico de Joan Miró. En un principio tomando como referencia: de un parte, las formas innatas (en Tustin) y el desarrollo del simbolismo, en el caso clínico, y por otra parte, el cuadro La masia, obra fundante y llave del trabajo de Miró. El autor durante la investigación, llega al concepto de pictograma e ideograma. En el trabajo de Miró hay un período conocido como mutación de la realidad en el cual el pintor rompe con la forma anterior creando un nuevo idioma, pictogramático, conocido como lenguaje mironiana. En psicoanálisis, Bion ha dejado un legado, considerando el pictograma-ideograma como un paso para el desarrollo del pensamiento y del lenguaje.
Palabras clave: Arte y psicoanálisis, Simbolismo, Pictograma-ideograma, Psicoanálisis de niños, Lenguaje.
Introdução
As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca.
Cabem é no brilho da noite.
Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!
(Guimarães Rosa, 1988, p. 372.)3
Eu já tinha em mente uma relação entre Miró e a psicanálise há muito tempo, pois via no seu método de trabalho: sistemático, solitário, de rigorosa disciplina e, ao mesmo tempo, livre para captar a mancha-estímulo que daria origem à obra, um modelo para pensar o encontro com o paciente a cada dia, estando o analista disciplinadamente livre de memória e desejo (Bion, 1970/1973). Também foi com uma das suas obras que vivenciei uma “experiência estética”, quando me defrontei com ela no MOMA. Até então era um pintor que eu apreciava, mas não mais do que Van Gogh ou Picasso.
No entanto a correlação do trabalho desse pintor com a concepção das formas, inicialmente com o que Frances Tustin denominou formas inatas, surgiu no decorrer do trabalho analítico com uma criança de quatro anos, com diagnóstico de Transtorno Global do Desenvolvimento e que resultou no presente trabalho.
Há dois anos procurei nosso colega João Frayze-Pereira, conhecido por seus estudos sobre a relação entre arte e psicanálise, para dar andamento à minha proposta inicial. Naquela ocasião, resolvi ir a Barcelona para compilar material sobre Miró. Eu não sabia ao certo o que daria essa correlação entre a obra de um autor específico e um caso clínico.
Mas alguns posicionamentos se fazem necessários para o andamento do trabalho: em primeiro lugar, como pensamos a relação Arte-Psicanálise. Aqui, o trabalho de grupo coordenado por João Frayze-Pereira,4 se faz presente. Pude aos poucos, com o grupo, ir me apropriando de um modo de pensar essa relação não como uma psicanálise aplicada, o que nunca foi a minha proposta, no sentido de lançar um olhar exterior à obra, mas como uma psicanálise implicada, como formula Frayze-Pereira (2006c), “uma psicanálise derivada das artes ou engastada nelas” (p. 23). A proposta é um modelo no qual seria possível superpor trabalho de sonho e trabalho de criação, interpretação de sonho e interpretação de obra de arte: um trabalho minucioso, permitindo que a obra, assim como um paciente, se manifeste e tentando com humildade entender a gramática e os códigos de cada artista (Frayze-Pereira, 2006b, 2007).
Eu diria que, assim como Miró e outros artistas da sua época, beberam da fonte da psicanálise; com o movimento surrealista, por exemplo, podemos estar abertos para apreensão sensível do que um pintor pode com sua obra nos comunicar que permita uma ampliação da nossa apreensão clínica, principalmente num caso em que o desenvolvimento do simbólico se faz tão incipiente, mas presente.
Acredito que a discussão sobre o campo do simbólico, simbolismo, simbolização é importante e intrigante tanto para o psicanalista como para o filósofo, o artista, entre outros, mas ainda não temos um consenso quanto à sua teorização.
Daniel Delouya (2010), retomando o tema do simbolismo dentro da teoria freudiana, faz uma síntese que considero primorosa: nas conferências introdutórias de 1917, que trata dos sonhos, “Freud atribui a origem do simbolismo ao modo animista de pensar da atividade perversa polimorfa infantil em que o mundo imanta-se de formas, figuras e movimentos do corpo” (Grifo da autora). Para o presente trabalho tomo como ponto importante as formas e movimentos que ocorrem na relação entre o bebê e o objeto (mãe), no momento mítico em que se dá o início da separação: o momento em que o “o objeto se perde”, o seio é então percebido pela primeira vez como pertencente a um outro corpo. É esse entre originário que interessou a nossa discussão sobre formas. É nesse nível que situo a discussão do caso clínico e do trabalho de construção de formas de Miró.
O caso clínico
Thiago, nome fictício que dei a esse meu paciente, foi me encaminhado por uma colega para uma avaliação psicanalítica após já ter sido avaliado por neurologistas e psiquiatra tendo sido diagnosticado como um caso de Transtorno Global do Desenvolvimento. Quando chegou ao meu consultório ainda não fizera quatro anos. Do encontro inicial com ele esteve presente um “fiapo” de olhar logo que nos apresentamos um ao outro, o que apesar da aparente inacessibilidade, me deu indício de que haveria uma brecha para desenvolvermos um trabalho analítico. Esse ocorreu já no início com cinco sessões por semana.
Fui percebendo que Thiago parecia viver a separação como insuportável e ao final da primeira observação lúdica, quando teve que largar o trenzinho que escolhera como objeto de interesse, notei um movimento brusco, seguido de flapping5 e em seguida pareceu-me que ele se refugiava numa carapaça muscular, o que lhe permitiu deixar a sala. Nas sessões seguintes, ele tinha que levar algo do consultório, como o pano que forrava a parte do divã ou os lenços de papel, objetos esses que pareciam dar a ele um sentido de continuidade. Quando ele chegava, eu tinha que buscá-lo na sala de espera, assim como o motorista o retirava de dentro da sala ao final da sessão. Era como se ele passasse de um braço para outro, sem com isso viver a ruptura da separação.
Nos primeiros nove meses, tivemos dois períodos de interrupção. Nessas duas ocasiões, Thiago voltou dormindo: o motorista o colocou deitado no divã na chegada e o retirou ainda dormindo ao final da sessão. Entendemos o sono como sendo a expressão dos efeitos de uma separação mais longa vivida como insuportável.
Uma mudança aconteceu nas férias do verão seguinte, quando Thiago retorna acordado, entra na sala assim que o chamo. Parece que a separação pôde ser tolerada sem que se rompesse o nosso vínculo, “algo” possibilitou a ele manter-se desperto ao nosso reencontro.
No meio dessa sessão, enquanto ele retoma a sua caixa de ludo, passa um avião; uma forma sonora invade a sala. Thiago imediatamente reconhece o som e diz: “Vião!”, movimentando-se rápido para a janela. Mostra o céu, onde passou o avião e diz: “VÉÉÉ!”, e parece mostrar algo que não entendo o que é. Ele é insistente na sua comunicação: “VÉÉÉ!”. Pergunto: “O que é VÉÉÉ, Thiago?” Ele então mostra que quer a ajuda do motorista: vai até a porta dizendo Dê (nome do motorista). Eu o acompanho e ele diz para o motorista: “Dê, VÉÉÉ’!. Pergunto para o motorista o que é véé, e digo que ele parece ter associado com avião. O Dê após pensar um pouco traduz: “na praia, passava o avião e atrás, amarrado na cauda vinha uma faixa escrita – isso ele chamava de véé. Não é isso Thiago?” Thiago acena que sim com a cabeça parece dar-se por satisfeito e voltamos para a sala.
Essa sessão deixou-me intrigada e considerei esse um momento importante em que após um momento de separação, o paciente pôde encontrar formas mentais que sustentaram no ar, o hiato criado entre nós dois pelas férias. Levanto aqui as seguintes considerações:
1. Um primeiro ponto é em relação às emoções: Ferenczi considera que a condição para o surgimento de um verdadeiro símbolo não é de natureza intelectual, mas afetiva, embora a intervenção de uma insuficiência intelectual seja igualmente necessária à sua formação. Parece-me que as formas mentais seriam nesse momento imagens em movimento, que veiculariam emoções, protofantasias, pré-simbolizando o que seria um vínculo. Seria então uma forma vincular: vião-véé. Eunice-Thiago.
2. Um segundo aspecto é a faixa: VÉÉÉ! Uma faixa escrita. Bion (1963/2004), em Elementos de psicanálise, considera que a atividade do pensar ao lidar com emoções primitivas dependeria da produção de sinais. “Isso quer dizer que o indivíduo teria que reunir elementos para formar sinais e, então, formar sinais para poder pensar. Nesse caso, não apenas o falar, mas também o pensar, são precedidos pelo “’escrever’” (p. 51). Compara a escrita como forma de evacuar elementos que poderiam então ser examinados.
3. A forma avião-faixa, a faixa que sai pela cauda do avião. Tomando as zonas erógenas corporais, teríamos a faixa como PUM COCÔ, que saem pelas costas, que seriam as primeiras produções do bebê. A excreção toma a forma de uma inscrição.
Lembrei-me de Francis Tustin que, trabalhando com crianças autistas, foi se deparando com o mundo das formas. Ao lado das formas e objetos autísticos, essa autora escreve sobre o que ela chama de formas inatas. Essas primeiras formas originam-se da “sensação” de substâncias corporais macias como fezes, urina, muco, saliva, o alimento na boca, e até o vômito, que formariam uma espécie de pseudópodos psicológicos na relação com o mundo externo. À medida que as crianças autistas começam a suportar a separação, formas geométricas ajudam-nas a suportar o espaço decorrente da separação e flutuam na consciência espontaneamente, como ocorrem com as formas musicais e estéticas.
Como entra Miró nessa história?
De imediato, quando começamos a discutir sobre as formas que surgiram na sessão, o contexto da inscrição-excreção, lembrei-me de uma entrevista do pintor realizada com George Raillard, e que muito me impressionara. Farei uma edição dessa entrevista realizada no ateliê de Miró em 1974, quando o mesmo tinha 84 anos:
George Raillard: “Você está sempre à procura de novos materiais...
Miró: Não procuro: elas me atraem, vêm a mim. [Miró se aproxima de uma mesa cheia de manchas] Por exemplo esta mesa para colocar meus pincéis. Fatalmente, à medida que ela vai se manchando, me excita: essas manchas negras, um belo dia, vão se tornar algo. É um choque. É preciso haver choques na vida (Raillard, Miró, 1990, p. 33).
Atualmente estou trabalhando nestes papelões que possibilitam nascimentos, coisas novas. Mas, para as duas telas grandes, sei o que lhes falta: dois toques de cor.
Nestas lixas no chão [ele mostra três grandes lixas amarelas espalhadas no chão], usei carvão, por ter sido a primeira ideia que me veio, mas, hoje em dia, isso é raríssimo.
G.R.: Você cortou essas lixas, por assim dizer, num gesto raivoso. E a matéria dessas duas manchas castanhas, espessas, que se repetem simetricamente nas duas folhas, lembra excremento.
Miró: Sim, sim, é merda. Eu estava aqui, me deu vontade de cagar, baixei as calças e, pronto, caguei nas lixas amarelas novinhas. E depois, plaft! Apertei o papelão em cima. Deixei assim, e deu essa bela matéria. Quem sabe, eu não devesse dizer, pois os marchands. Para mim, isso não é provocação, como aquele italiano que fez latas de conserva e colocou a etiqueta: “Merda de artista”. Não. É uma bela matéria, uma bela matéria. E agora trabalho nos três ao mesmo tempo [os três trabalhos no seu ateliê] (p. 37-38)
Numa outra entrevista:
G.R.: Tenho, entretanto, a impressão de que não é a infância que se encontra atrás de você, mas de que é você que não para de ir em direção a ela.
Miró: Sim, é preciso esgaravatar a terra para encontrar a fonte; é preciso escavar (p. 73).
Talvez tomada por essa ideia que de é preciso encontrar a fonte, resolvi, em 2008, ir a Barcelona. Não foi algo premeditado, foi algo casual, assim: “Se o Miró nasceu em Barcelona, teremos que ir para Barcelona”. Talvez eu já soubesse que ele nascera em Barcelona de forma inconsciente. Mas, enfim, tive que ir para Barcelona.
Pude recolher o material para o início de um contato com os instrumentos, a gramática que está na base do trabalho de Miró. Essa é apenas uma aproximação de uma analista capturada pelo mundo das formas, que quer encontrar instrumentos para poder adentrar esse mundo rico, em que a palavra falada não é a moeda corrente, mas que precisarei me servir da apreensão e das palavras dos críticos de arte, naquilo que eles escreveram para me aproximar um pouco mais da obra desse pintor.
A professora de Teoria e História da Arte Contemporânea, Maria Josep Balsach, no prólogo do seu livro Joan Miró. Cosmogonias de um mundo originário, faz uma síntese da obra mironiana que acho que tem a ver com a proposta de uma investigação de um psicanalista, naquilo que se refere à busca do originário:
Segundo Balsach (2007), Miró desde o início dos seus trabalhos encontra-se imerso na busca por “adotar um conceito de pintura cujo sentido está ligado ao originário, à origem como sinônimo de verdade, de autenticidade. … Trata-se de buscar a origem não no mundo pretérito, helenizado e idealizado, senão nas verdadeiras raízes originárias: a força da natureza e a emanação da paisagem vivida” (p. 8). Miró voltará sempre a Montroig na Catalunha. “Montroig é a força que me nutre. Montroig é o choque preliminar, primitivo, ao que sempre regresso” (p. 111).
Em Miró essa recuperação da obra de arte [Para Miró a arte é sempre uma forma de recuperação, pois a vida não se descobre (citado pela autora, p. 9)] aludirá, desde o início, a uma realidade “profunda e objetiva” que não está vinculada ao inconsciente nem à aparência das coisas, senão que provém de um conhecimento que abraça o sentido epifânico do mundo visível, de um mundo inédito que está no coração da criação. (p. 9)
Em Miró a visão do mundo é cosmoteândrica, conceito no qual sujeito e objeto não existem como tais senão que o homem é autenticamente ingênuo, que em seu verdadeiro significado quer dizer “o que não separa”: o homem em plenitude, o que não se separa do objeto que contempla, nem separa os objetos da totalidade. (p. 9)
O ponto que pretendo aqui destacar é quanto à origem das formas ditas mironianas ao que os críticos e historiadores da arte contemporânea apontam como sendo o quadro La Masia6 de 1920-1921. É o próprio Miró que considerava ser La Masia a fundação e a chave para todo o seu trabalho.
La masia, ou The farm (figura 1) é a pintura de uma pequena propriedade da família de Miró em Montroig, na Catalunha, local onde o pintor pôde se recuperar de um momento depressivo e de um quadro de febre tifóide aos 18 anos e local para onde sempre retornava. Esse é um quadro que encerra uma fase do pintor conhecida como período detalhista.
Segundo seu biógrafo oficial, Jacques Dupin, após sua segunda estada em Paris, onde entra em contato com os principais artistas, poetas e intelectuais ligados ao movimento surrealista, Miró retorna à propriedade de sua família em Montroig, com as mãos vazias, [“a exposição individual dedicada ao pintor em Paris de 29 de abril a 14 de maio de 1921, teve poucos visitantes e não vendeu um quadro sequer” (Dupin, 2004, p. 77; Balsach, 2007, p. 31)] mas a cabeça cheia de ideias. “De regresso a Montroig, Miró tem dificuldade para avançar, para dar forma e intensidade a uma realidade esquiva” (Balsach, 2007, p. 31).
Miró (2010) escreve:
Nove meses pintando cada dia, apagando, fazendo estudos e voltando a destruir! La masia foi o resumo de toda minha vida no campo. Desde uma árvore até o caracol, quis pôr tudo o que eu amava no campo. Creio que é insensato dar mais valor a uma montanha que a uma formiga (porém isso os paisagistas não sabem ver), e por isso não duvidava em passar horas e horas dando vida a uma formiga. Durante os nove meses que trabalhei em La masia pintava sete a oito horas diárias. Sofria muitíssimo, terrivelmente, como um condenado. Apagava muito, e comecei a desfazer-me das influências estrangeiras para retomar meu contato com a Catalunha. (p. 31)
Acredito que o período detalhista – expressão cunhada por seu amigo Rafols, seja o menos conhecido da trajetória de Miró. Temos nesse período de sua obra a influência da pintura dos primitivos: tanto da arte românica, como do realismo gótico catalão e Miró como frequentador do Museu de Montjuic, conhecia bem a iconografia medieval.
É também influenciado pela pintura do extremo oriente, tanto a pintura chinesa como a japonesa. Um dos seus pintores preferidos é Hokusai, pintor de Cem vistas do monte Fuji (figura 2) que segundo Miró: “Hokusai dizia que queria sentir uma vibração no ponto mais minúsculo dos seus desenhos. Tudo o que não tem essa vida é nulo. Toda melhora que apenas seja externa é pura decadência. É necessário aperfeiçoar-se desde o ponto de vista interno, ainda que isso pareça um fracasso para o mundo exterior, como frequentemente acontece” (p. 22).
Uma terceira influência será a poesia: Apollinaire será um poeta de referência, embora eles nunca tenham se encontrado. Em entrevista a George Raillard, Miró diz: “Mas o que me impressionou mesmo foi um poema-imagem de Apollinaire, reproduzido em cores, todo vermelho e ouro, com diversos tipos de letra. Chamava-se L’horloge de demain (figura 3). Recebi um golpe. Lembro-me bem”(Raillard & Miró, 1990, p. 17). Desde a sua formação em Barcelona, na academia Gali, o seu aprendizado não se restringia à pintura: “foi na academia que comecei a ler os poetas. … E nunca mais parei. Também era um leitor de Goethe. (Mink, 2005, p. 20). Em Paris, convive com os pintores, poetas, escritores, entre eles destaco Michel Leiris. Segundo Von Wiese (2008): “o repertório expandido dos elementos pictoriais de Miró, que inclui palavras, sílabas e frases, não são fenômenos marginais em seu trabalho mas elementos de fundamental importância. Ele pretendia ser mais do que um pintor. Com sua pintura-poema, ele queria levar a pintura a um nível mais elevado, onde poderia unir-se com a poesia” (p. 51).
Voltemo-nos então para o quadro La masia:
Na pintura o tempo parece suspenso, como a hora sem sombra de Pan. Calma e imobilidade reinam. O tema poderia parecer ser as eternas leis da vida de campo, se não fosse a primeira página do Jornal de Paris – L’Intransigeant – pintado no quadro como um corpo estranho …. Na pintura as colunas do jornal aparecem alinhadas com o regador, criando esse par dissociativo de objetos uma metáfora: uma nova espécie de poeta – representado pelas colunas do jornal de Paris – água do solo ressecado, levando a um renascimento intelectual. (p. 57)
O quadro se desenvolve a partir do eixo do eucalipto, a árvore que centra toda a representação. À esquerda vemos a fachada da casa. Da porta de entrada podemos ver a parte posterior de um asno. Do lado oposto, à direita, centrado sob os ramos da árvore, está representado o galinheiro, emoldurado por um retângulo de cor vermelha. A parede do galinheiro foi retirada para que visualizássemos o seu interior.
A árvore do La masia, nasce de um grande círculo negro. Esse círculo estaria relacionado com as forças renovadoras que vêm da terra. De cada lado do círculo aparecem outros dois círculos: o sol está simbolizado na roda do carro – pintado de vermelho, e a lua – está à direita do quadro.
Tal disposição simbólica em forma invertida – lua (D) e sol (E) faz parte de um motivo da iconografia medieval que representa Cristo como ser que “domina o tempo” como um novo Adão que faz com que o mundo das trevas passe ao reino da luz.
Em relação também à iconografia gótica catalã, temos então no espaço enquadrado pintado de vermelho, e dentro do espaço desse galinheiro, os motivos que têm a ver com a crucificação e paixão de Cristo, representando a dolorosa despedida das coisas do mundo visível, e o nascimento para outro espaço de significados, uma nova visão da pintura.
As chamadas “Armas de Cristo” estão aqui representadas: a escada, o galo, o cíngulo (o cordão amarrado) e a coluna. As demais armas são indicadas: os ramos eriçados de espinhos fazendo referência à coroa de espinhos, o comedouro alude às moedas de ouro, a esponja, a enxada ou instrumento agrícola representando a lança e o dado que tem um ponto marcado em negro.
Dentro dessa iconografia temos também os animais, onde a cabra e o coelho representariam o princípio de renovação cíclica da vida.
Na frente do galinheiro a vida brota em cada pequeno elemento, como o caracol, o lagarto, os seixos e vão desempenhar um papel crucial no desenvolvimento das formas mironianas.
No caminho que vai das lajotas até o tanque, vemos a camponesa nas primeiras luzes do dia. Ao lado temos um menino desnudo, uma figura estranha, agachado sobre a terra que parece um homúnculo, o único elemento alheio à vontade realista de Miró. O homúnculo – aparece em Fausto, de Goethe, e simbolizaria o caminho da transmutação espiritual para a culminação da obra. Atrás, a roda d’água gira e gira para extrair a água das profundezas. As sete marcas pintadas no começo do caminho, último elemento a ser pintado no quadro, são, junto com a babosa, o cachorro e a letra alfa que forma uma pequena mesa de madeira, a entrada alegórica que indica esse novo começo da arte mironiana (Balsach, 2007, p. 35-46).
O quadro atualmente encontra-se na National Gallery of Arts em Washington, tendo sido comprado por Ernest Hemingway. Em função desse trabalho estive em Washington com a finalidade de ver o quadro com toda sua dimensão real. Certamente, se não tivesse toda a informação que tive até o encontro com a obra, eu não teria me detido nela: outros trabalhos de Miró pareceram-me mais intrigantes e impactantes. Mas pude me deter para reencontrar nele os elementos até então descritos e que eu vinha assimilando, para também apreciar a obra. Dei-me conta, ao escrever este trabalho que, como Miró, andara com o quadro debaixo do braço por quase dois anos – acho que aprendi a amar cada elemento que está no quadro.
Entendi que La Masia seria a porta de entrada para o universo mironiano, mas tive uma apreensão pessoal a partir da escrita de Hemingway quando de posse do quadro: “Há dentro dela tudo o que sentimos da Espanha quando lá estamos e também tudo o que sentimos quando não estamos lá e não podemos ir. Ninguém mais foi capaz de pintar essas duas coisas tão diferentes” (citado por Miró & Lolivier-Rahola, 2010, p. 35).7
Pareceu-me que é nesse equilíbrio instável, que entendo essa obra, um momento de pura positividade: é a Espanha quando lá estamos e quando não estamos. Não há a experiência da ausência: o quadro se apresenta como uma natureza morta, o tempo está suspenso, o espaço sem sombra e dentro da tradição iconográfica: o ausente se faz presente através da imagem. Aqui nesse espaço estão presentes todos os elementos do universo mironiano, num tempo mítico, tendo o homúnculo como elemento central.
Esse marco zero “originário” da poética mironiana, associei com o conceito freudiano pouco difundido de Eu (ego) realidade original, tendo a sua melhor definição no artigo “A negativa” (Freud, 1925/2007b):
devemos nos lembrar que todas as representações mentais [Vorstellungen] se originaram de percepções e de fato elas são repetições destas últimas. Dessa forma, a própria existência de uma representação já é, na sua origem, uma garantia da realidade do representado. Assim, a oposição entre o subjetivo e o objetivo não existe desde o início. (p. 149)
Outro autor que penso trabalhar essa relação subjetivo-objetivo de uma forma criativa, é Winnicott, com seu conceito de objeto e fenômeno transicional, em relação com o simbolismo. Ele concebe uma terceira área de experimentação, intermediária entre o mundo interno e externo, situando aí a raiz do simbolismo, zona em que o bebê/homúnculo pode realizar a sua jornada “desde o puramente subjetivo até a objetividade”, criando e entrando em contato nesse trajeto com os objetos e fenômenos transicionais. Fariam parte dessa zona intermediária, as experiências inerentes à arte e à religião. Pensei, ao olhar esse quadro, que teríamos miticamente o marco zero do fenômeno transicional (Winnicott, 1951/1982, 1971/1975).
Voltemos a Miró: “Os cadernos de desenho conservados pela Fundação Miró revelam mudanças profundas e progressivas entre La Masia e as paisagens de 1923-1924”. Nesse período seguinte, conhecido como Mutação da Realidade, o pintor sofre uma transmutação radical em sua maneira de pintar, encaminhando-se para a criação de uma linguagem pictórica pessoal. Os quadros mais conhecidos desse período são: Terra lavrada; Paisagem catalã: o caçador e Pastoral. (Catálogo da Fundação, 1983, p. 18).
Em Terra lavrada, a árvore que desempenha o mesmo papel que em La Masia, é um estranho pinheiro antropomórfico cujo tronco apresenta orelha de homem e a massa da folhagem um olho. Numa entrevista de Miró a Raillard, o pintor esclarece: “Como você sabe, quando pintei Terra lavrada, eu coloquei um olho e uma orelha, o olho que tudo vê e a orelha que tudo ouve. É um olho geral. A orelha desapareceu inteiramente de minha obra. O olho não, o olho volta constantemente. A orelha é inteiramente simbólica, o olho absolutamente não, é uma coisa bastante objetiva, que vê. A tela fita o espectador” (Miró & Lolivier-Rahola, 2010, p. 39).
Na mesma entrevista, em relação aos pequenos bichos que estavam na frente do galinheiro ganham em tamanho e vida anímica, Miró fala da ruptura dessa tela em relação a La masia:
Logo após La masia, trabalhei na Terra lavrada, que é um desenvolvimento de La masia. Nela há os animais, as lagartixas, o caracol. Mas há também uma ruptura. A escolha dos planos não mais seria feita segundo a perspectiva, e sim segundo uma escolha afetiva. Escolhi os animais, as pequenas plantas, tudo o que tem ritmo. (Miró & Lolivier-Rahola, 2010, p. 39; Raillard & Miró, 1990, p. 56)
Em Paisagem catalã: o caçador, uma história é rapidamente contada: um caçador atirara num coelho e acendeu o seu cachimbo (Wiese, 2008, p. 58). O corpo do caçador é reduzido a um fio, mas ao mesmo não falta nada: a espingarda, a faca, o coelho, o sexo, o coração, a barba, o bigode, o cachimbo, o barrete. O mesmo acontece com o corpo do peixe, aparecendo ao lado a palavra sard, de sardinha.
A árvore se reduz a um círculo claro do qual sai uma folha e nela se abre um olho.
Segundo Dupin, neste segundo quadro da fase da mutação da realidade, o traço se libera da sua função descritiva, a forma destaca-se do objeto e, ao ganhar independência, cada elemento se converte por metamorfose em seu próprio pictograma. Com isso favorece as possibilidades combinatórias de uma linguagem poética e plástica engendrando o ideograma (Dupin, 1983, p. 19).
Creio que é essa liberdade expressiva que permite-lhe, em contato com aquilo que emerge do seu interior, das entranhas, dar vida às formas, e encontrando, com isso, o que seria uma linguagem básica universal. Considero aqui, que encontra o substrato que permite a expressão pictórica das primeiras (originárias) transformações simbólicas. Mas para o presente trabalho devo me ater apenas a esse momento originário da Poética Mironiana.
O que tudo isso tem a ver com a psicanálise?
Escolho aqui um viés, que tem a ver com o olhar, com o(s) olho(s)/sem olho(s), visão/não visão, pensando principalmente na afirmação de Miró de que na sua poética o olho não é simbólico, é uma coisa objetiva, que vê. A tela fixa o observador.
Lembrei-me do sonho de Freud, na noite anterior aos funerais do seu pai, que retomo aqui, como formulado no livro A interpretação de sonhos [esse mesmo sonho foi narrado a Fliess na carta 50, como tendo ocorrido após os funerais – de fato, a carta é enviada ao amigo logo após os funerais do pai de Freud (Freud, 1896/1977, p. 316)]:
Durante a noite anterior aos funerais de meu pai tive um sonho com um aviso
impresso, no qual aparecia:
Pede-se fechar os olhos
Pede-se fechar um olhoGeralmente eu escrevo isto na forma:
(Freud, 1900/1972, p. 338)
Há no texto a criação de uma forma gráfica/visual. Como é de conhecimento dos analistas, Freud pede aos seus pacientes que não o olhe, criando a técnica psicanalítica do divã, em que o paciente fica deitado, de costas para o analista. Há nesta proposta a privação de um elemento sensorial, a visão, privilegiando a audição. Na segunda tópica, Freud, na apresentação gráfica que faz de um aparelho psíquico, desenha o “pavilhão auricular” assentado sobre o Eu, em um ângulo inclinado (Freud, 1923/2007a, p. 37).
Bion (1965/1984), no início do livro Transformações, escreve: “Suponha um pintor que vê uma picada através de um campo semeado com papoulas e que a pinte: numa das extremidades da cadeia de eventos está o campo de papoulas, na outra uma tela com pigmentos depositados na sua superfície” (p. 13). Bion introduz tomando como referência o quadro de Monet (Campo de papoulas) os conceitos de transformação e invariância: há a transformação efetuada pelo pintor para que algo tome a forma de uma pintura, assim como há as invariâncias que permitem que o espectador reconheça na tela o campo de papoulas. No entanto, o que lhe interessa é o processo: de um lado, o estímulo original que deu origem ao quadro (as impressões de sentido) e, de outro, a obra terminada (que é a expressão final), ou seja, as transformações efetuadas dentro da mente do artista; esse mesmo princípio ele vai tomar como modelo para considerar as ‘transformações’ que ocorrem na mente tanto do analista como do paciente, propondo não uma nova teoria, mas uma teoria de observação psicanalítica (p. 63 e 30). Chamo aqui a atenção: Bion toma como referência um quadro onde o pintor trabalha usando planos dentro de uma perspectiva. Fala também de um conceito muito interessante que é a visão binocular, considerando até a hipótese de correlacionar o desenvolvimento do controle ocular na criança em torno dos quatro meses, com a emergência da situação edipiana (Bion, 1950/1977, p. 36). A visão binocular também criaria uma visão tridimensional, a terceira dimensão permitindo a visão de profundidade.
Qual seria então o desdobramento dos conceitos em psicanálise tomando como referência a ruptura mironiana, em que o olho da tela fixa o expectador não havendo mais os planos de perspectiva, mas sim os planos afetivos e do movimento/ritmo?
Estou esboçando aqui, de forma quase pictográfica, três modos de se conceber a visão/olho no desenvolvimento do pensamento psicanalítico. Para introduzir a terceira visão tomo como referência um texto de Frayze-Pereira (2006) – “O corpo como obra de arte: a unidade do múltiplo” – que me ajudou a elucidar as consequências da ruptura mironiana:
Não foi por acaso que, para compreender não apenas o visual, mas a própria percepção, Merleau-Ponty tenha convocado não a ciência da óptica, mas os pintores, sobretudo aqueles que romperam com as leis da perspectiva. Foram os pintores que permitiram ao filósofo restituir à visão o conjunto da percepção, foram eles que chamaram a atenção dele para a questão da visão como perda da visão8 e também a problemática da intersensorialidade do mundo e suas possibilidades expressivas. (p. 166)
Dentro da nova perspectiva sem perspectiva, caímos então na problemática da intersensorialidade do mundo. Como diz Merleau-Ponty (1961/2004), o mundo está ao redor de mim, não diante de mim (p. 33).
Se, por um lado, as diversas modalidades perceptivas nos dão diversos aspectos do mundo, constituem vias de acesso ao mesmo mundo. Sendo o mesmo corpo que vê e toca, “o visível e o tangível pertencem ao mesmo mundo”. Os sentidos se comunicam. (Merleau-Ponty, citado por Frayze-Pereira, 2006a, p. 161)
Em relação a esse aspecto, temos a seguinte formulação de Susane Langer (1941/1989) quanto ao desenvolvimento da linguagem:
A infância é o grande período das sinestesias … a mente capta analogias que uma experiência madura rejeitaria como absurdas. Funde sensações que o pensar prático deve manter separadas. No entanto, é precisamente este jogo doido de associações, esta confusão não crítica de impressões, é que exercita os poderes de transformação simbólica. Projetar sentimentos em objetos externos é a primeira maneira de simbolizar e, destarte, de conceber os referidos sentimentos. Tal atividade pertence aproximadamente ao mais antigo período da infância que a memória é capaz de recuperar. (p. 129-130)
Em relação ao conceito de profundidade, Merleau-Ponty (1961/2004) entende a profundidade não como uma terceira dimensão, mas a profundidade buscada pelo pintor durante toda vida. Citando o próprio autor:
Ela (a profundidade) não pode ser o intervalo sem mistérios que eu veria de um avião entre as árvores próximas e as distantes. Nem tampouco a escamoteação das coisas umas pelas outras que um desenho em perspectiva me representa vivamente: essas duas vistas são muito explícitas e não suscitam questão alguma. O que constitui enigma é a ligação delas, é o que está entre elas …. Da profundidade assim compreendida não se pode mais dizer que é “terceira dimensão”. Para começar, se houvesse alguma dimensão, seria antes a primeira: só existem formas, planos definidos se for estipulado a que distância de mim se encontram suas diferentes partes. (p. 35)
Quando trago para reflexão essa sessão específica, de um menino que não tem ainda o desenvolvimento da fala, tem um olho que olha de lado, olha, mas não sempre, isso mobiliza algo em mim como analista, algo da ordem do mistério. Em primeiro lugar, da ordem de um “choque” como expressa Miró: “É necessário haver choques na vida”. Eu já escrevera um trabalho sobre esse mesmo paciente: “Outro olhar: o espelho como projetor” (2007), fazendo trabalhar a questão do olhar, a fenomenologia do olhar, de outro ponto de vista. Eu já tinha em mente a correlação com Miró, mas como escrevi no início, não sabia o que iria acontecer, mas foi algo enriquecedor me ver acompanhada, neste trabalho, por um pintor. No sentido de Merleau-Ponty, acho que buscava a profundidade.
Acompanhando Miró, na sua ruptura, vamos ao encontro da forma, quando esta se destaca do objeto e, segundo Dupin, cada elemento se converte por metamorfose em seu próprio pictograma que favorecem ao se combinarem o surgimento de uma linguagem poética e plástica engendrando o ideograma, tendo a visão como um sentido (sensório) de síntese que dá unidade aos outros sentidos (tátil e auditivo, principalmente).
Bion deixou-nos um legado, ainda pouco explorado, da sua concepção do pictograma e ideograma. No livro publicado postumamente, Cogitações, ele considera que as impressões sensoriais precisam “ser transformadas de modo que sirva para armazenagem e recordação” (Bion, 1992, p. 77). Esta ‘tarefa’ é realizada por aquilo que ele chama de trabalho-onírico-alfa (tomando como referência a teoria do sonhar de Freud), considerando que essas impressões sensoriais, assim como as emoções, precisam ser ideogramatizadas para serem utilizadas na atividade onírica e no pensar. Em uma das suas cogitações, Bion faz referência ao texto de Fenollosa, The chinese written character as a médium for poetry, mostrando o seu interesse pelos caracteres chineses: os ideogramas, em relação ao trabalho-onírico-alfa, a evolução do pensamento e da linguagem (p. 332). No nosso meio há um livro organizado por Haroldo de Campos, onde consta esse texto de Fenollosa e os desdobramentos a partir dele no campo da poética e linguística.
Mas em relação ao ideograma, temos uma reflexão de Avzaradel (2006) que considero preciosa: “No processo de compor, duas coisas que se somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma relação fundamental entre elas” (p. 191). Essa relação é a terceira coisa. É um modo de construir uma ideia em movimento. Podemos pensar a forma VIÃO-VÉÉÉ como um ideograma, como uma ideia em movimento, buscando os elos de ligação entre os dois elementos (sob forma de associação de ideias, usando como base também a associação de formas – do pictograma ao ideograma) e inclusive gerando o presente trabalho.
Acredito que a investigação do processo de ideogramaticização a partir dos estímulos sensoriais pode ser de grande valia na clínica, dando mais liberdade ao analista para “ver” além do sensorial, sem desqualificar esse elemento. Junqueira (2004), sobre esse mesmo conceito, traz uma síntese que considero importante para este trabalho: “Essa cogitação de Bion de que a impressão sensorial deve ser ideogramaticizada encerra, por assim dizer, uma motivação essencialmente econômica à medida que é uma solução funcional para produzir ‘incisões visuais’ na personalidade que, no seu entender, são muito mais propensas a desencadear associações livres do que as letras do alfabeto” (p. 791). Chamo a atenção aqui para as “incisões visuais” que entendo como um modo de esculpir uma forma. Eu conjeturo se não seria também um modo de produzir inscrições mentais, através inclusive de uma “poda neuronal”.9
Grotstein (citado por Junqueira Filho, 2004, p. 795), considera que a produção onírica requer uma habilidade para pensar e criar vinda das entranhas, ou seja, uma presença que transcende o natural, algo que ressalta a complexidade não linear de se estar vivo, como seres humanos, na presença de mistérios intrínsecos à interioridade de outras pessoas: isso requer qualidades e capacidades excepcionais outrora atribuíveis a deuses, Messias e místicos. Creio que aqui se encontra outro elemento essencial que pude apreender no trabalho de Miró, qual seja a dimensão transformacional dada pelo sagrado representado na sua obra pelas Armas de Cristo – a paixão de Cristo: sua morte e renascimento. Acredito que tanto Miró como nós necessitamos das armas de Cristo para entrarmos em contato com os mistérios e enigmas do que está entre mim e o outro (incluindo o outro dentro de mim), e estando no meio, o mundo. Estaria aí outra dimensão do trabalho onírico, que nos torna pintores das nossas experiências a cada noite.
Thiago abriu-me nesta sessão a janela para enxergar o invisível e a porta para alcançar o incomunicável. Creio que pude comunicar e tornar visível algo do nível desta nossa experiência usando o trabalho e a poética de Miró como um guia.
Segundo Dupin (1983), “Miró veio a encontrar, sem o saber, o vazio vivo dos taoístas, um espaço aberto ao infinito de onde o traço parece surgir e desaparecer para trazer-nos formas e signos em estado nascente” (p. 22).
Referências
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Endereço para correspondência
Eunice Nishikawa
R. Dr. Alceu de Campos Rodrigues, 247, cj. 14
04544-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3846-6926
E-mail: eu.nishi@uol.com.br
Recebido em: 10/05/2010
Aceito em: 14/06/2010
1 Trabalho apresentado no Simpósio: Traço, Forma, Psicanálise (realização da Sociedade Brasileira de Psicananálise de São Paulo SBPSP, 9 e 10 de abril de 2010), mesa redonda: “Formas e rupturas na clínica psicanalítica: Miró, Stravinsky, De Kooning”, no dia 09/04/2010.
2 Médica, psiquiatra, psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicananálise de São Paulo SBPSP. Em formação como analista de crianças e adolescentes pela SBPSP.
3 Inscrição na entrada do “Espaço Museológico”, na XXIII Bienal de São Paulo, 1996.
4 Comissão de estudos sobre clínica e cultura da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP, 2010. Coordenação de João Augusto Frayze-Pereira. Participantes: Daniel Delouya, Dora Tognolli, Elizabeth Antonelli, Eunice Nishikawa, Liana Pinto Chaves, Luiz Meyer e Milton Della Nina.
5 Movimento das mãos como um bater de asas, considerado um movimento estereotipado, encontrado em alguns casos de Transtorno Global do Desenvolvimento, do espectro autista.
6 The Farm, A Quinta, A Fazenda, algumas traduções.
7 Essa declaração de Hemingway foi publicada em 1934 no Cahiers d’Art. Ver a semelhança com o conceito do fenômeno e objeto transicional de Winnicott, de 1951.
8 “Diz-se que Monet e Degas, à medida que foram ficando cegos, apalpavam os objetos para pintá-los. ... Assim é que para o pintor, como para o fotógrafo (como Evgen Bavcar, cego acidentalmente desde os 10 e 12 anos), o corpo reflexivo, ainda que ferido ou cego, é esse ser que traz consigo a possibilidade de fazer surgir imagens a partir das trevas” (Frayze-Pereira, 2006a, p. 164). Em relação a este aspecto temos algo a considerar sobre a formação de Miró como pintor: “Miró contou que tinha que reconhecer pelo tato um objeto colocado nas suas costas e reproduzir-lhes as formas no papel através da memória tátil. Um aprendizado útil para ele que queria dominar a forma, porque embora se dissesse que era bom colorista, considerava-se fraco desenhador” (Mink, 2005, p. 11).
9 Pensei aqui no desenvolvimento de sinapses neuronais, criando uma rede neuronal, mas assim como são importantes as conexões, é necessário haver a chamada poda neuronal, por morte (apoptose) de alguns neurônios. Por exemplo, Carlson et al. enfatizam a importância dos fatores “psicológicos” na poda e no esculpir das redes neuronais, para criar funções especializadas (citado por Schore, 1994, p. 257).