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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.44 no.81 São Paulo dez. 2011
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Algumas considerações sobre o tempo
Some thoughts about time
Algunas consideraciones sobre el tiempo
Ana Maria Andrade de Azevedo1
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
RESUMO
A autora inicia seu trabalho trazendo contribuições de Freud em relação ao tempo, enfatizando a existência de no mínimo quatro tempos na obra freudiana. O tempo da transferência, da compulsão à repetição, do sonho e da cultura, propondo a ideia de levantar questões para expandir os temas. Dois autores são considerados, além de Freud, numa tentativa de aproveitar a releitura que estes dois autores, Jean-Claude Rolland e André Green, vem fazendo dos textos e temas mais importantes de Freud. A repetição na transferência, a compulsão à repetição, os sonhos, a temporalidade inconsciente, além de aspectos ligados à percepção e à memória são enfatizados em suas diferenças e semelhanças. Posteriormente, é proposto um modelo em que os fenômenos do sistema nervoso e os referentes aos sistemas perceptivos e psíquicos são utilizados discutindo-se a ideia de "retranscrição, de remodelação e de recontextualização". As diferentes temporalidades são apresentadas distinguidas dentro do possível e aproximadas naquilo que as caracterizam.
Palavras-chave: Transferência, Compulsão à repetição, Sonho, Retranscrição, Morte.
ABSTRACT
The author starts this paper bringing contributions of Sigmund Freud, in relation to the question of "time," emphasizing the existence of at least four different "times", in his work. The time of transference, of repetition compulsion, of dreams, and the time of culture. She proposes herself to raise questions to expand the themes. Besides Freud, two other important authors, Jean Claude Rolland and André Green, are considered in this paper. They have been rereading the most important Freud's works, in an attempt to take the best of it. The repetition in the transference, the repetition-compulsion, dreams, the unconscious temporality, in addition of aspects linked to perception and memory are stressed. Later on, the model proposed by Edelmam (1992) is considered, and the concepts of re-transcription, re-contextualization are proposed. Different temporalities are approximated when possible and a distinction is also proposed.
Keywords: Transference, Repetition-compulsion, Dream, Re-transcription, Death.
RESUMEN
La autora inicia su trabajo trayendo contribuciones de Freud en relación al tiempo, enfatizando la existencia de, por lo menos, cuatro tiempos en la obra Freudiana. El tiempo de la transferencia, de la compulsión a la repetición, de los sueños y de la cultura. Propone la idea de cuestionar para expandir los temas. Dos autores son considerados además de Freud – Jean-Claude Rolland y André Green - tendiente a aprovechar la relectura de los textos y de los temas más importantes de Freud que estos dos autores vienen haciendo. La repetición en la transferencia, la compulsión a la repetición, los sueños, la temporalidad inconsciente, además de los aspectos relacionados a percepción y a memoria, son enfatizados en sus diferencias y semejanzas. Posteriormente se propone un modelo donde son utilizados los fenómenos del sistema nervioso y los que se refieren a los sistemas perceptivos y psíquicos. Se discute la idea de "re-transcripción, de remodelación y de re-contextualización". Las diferentes temporalidades son presentadas y distinguidas dentro de lo posible y aproximadas a aquello que las caracterizan.
Palabras clave: Transferencia, Compulsión a la repetición, Sueño, Re-transcripción, Muerte.
Será que Freud se ocupou alguma vez, em toda a extensão de sua obra,
com alguma outra coisa que não o tempo?(Green, 2001)
Enquanto o tema do espaço foi e vem sendo bastante trabalhado pela psicanálise atual, pouca coisa tem sido dita em relação ao tempo.
Só para trazer alguns exemplos das ideias que se foram desenvolvendo sobre o espaço, cito as colocações de Winnicott (1975) e de Bion (1965), o primeiro introduzindo a noção de espaço transicional e espaço potencial, e Bion que, propondo a ideia de continente-contido, lança uma forma espacializada que irá marcar as relações de objeto, tanto internas quanto externas. Winnicott, assim como Bion, abriu inúmeras possibilidades para a consideração da ideia de um espaço abstrato, sendo a partir daí possível desenvolver teorias a partir de vários eixos.
Outro analista que precisa ser lembrado é Serge Viderman (1979), que talvez foi o primeiro a escrever um livro sobre o espaço analítico.
A teoria de Melanie Klein, bastante conhecida por todos nós, também fala do espaço e do tempo, enfatizando o tempo do desenvolvimento, isto é, propondo um começo a partir das experiências iniciais e primárias em direção ao alcance e ao desenvolvimento de uma mente capaz de processar fenômenos e emoções para elaborá-los. É também uma teoria que lida com o espaço, seja ele interno ou externo, além de propor um universo de objetos nesses espaços.
Como dissemos no início, o mesmo interesse dado ao espaço não aconteceu em relação ao tema do tempo, embora Freud, em sua obra, tenha oferecido e sugerido inúmeras formas de tempo.
Para levar adiante nossa proposta de falar sobre o tempo, decidimos focalizar os trabalhos de Freud, fazendo uso, além da leitura do próprio Freud, de dois autores, André Green e Jean-Claude Rolland, que, de nosso ponto de vista, contribuem com uma releitura muito interessante dos trabalhos freudianos, além de oferecerem ricas contribuições ao tema.
Freud (1905/1973o), em seu trabalho "Três ensaios para uma teoria sexual", propõe a ideia de fases, a fase oral, anal e genital, contribuindo ele também com uma versão da passagem do tempo que leva em conta o desenvolvimento.
No entanto, Freud, concomitantemente ao falar das fases, o que conduz à ideia de tempo, propõe conceitos como o de regressão e o de fixação (1906/1973b), bem como na "Interpretação dos sonhos" (1900/1973e) havia sugerido um tempo totalmente peculiar, o tempo do sonho; todas essas colocações diferentes daquela do tempo do desenvolvimento.
A ideia de desenvolvimento sugere, dentro de nossa perspectiva, a aproximação a uma concepção de tempo linear e sequencial – o que não prevalecerá dentro do trabalho freudiano.
Além desses diferentes tempos, Freud também insere o ser humano numa perspectiva filogenética e ontogenética, durante toda sua obra. O tempo da espécie, o tempo do ser humano, o tempo da cultura. A posição de Freud em relação às diferentes noções de tempo é riquíssima; relativiza-se a cada momento deixando entrever novas perspectivas, outros movimentos.
Em muitos aspectos, a presença ou não presença do objeto não irá fazer muita diferença quando o tempo é levado em conta, a não ser pelo fato de que a ausência ou o negativo do objeto terá seu tempo particular, ou seja, os efeitos de uma reversibilidade da perda e da ausência serão determinantes na concepção do tempo da ausência (negativo).
Esse tópico, bastante estudado por André Green (1995), vai adquirir enorme importância, chamando a atenção sobre uma nova aproximação à noção de presença e ausência, ser e não ser.
A existência desses vários modelos e concepções do tempo é talvez o que torna extremamente difícil uma tentativa de abarcar as diferenças e peculiaridades de cada modelo ou concepção, em cada instante do trabalho analítico, tanto de Freud como de seus seguidores.
Reconhecemos na obra freudiana pelo menos quatro tempos: o tempo do sonho, o tempo do inconsciente, o tempo da repetição e o tempo da sexualidade e da cultura, cada um destes constituindo-se em elemento organizador das situações psíquicas complexas com que Freud trabalhava.
Se pensarmos a partir de nossa experiência clínica, teríamos de incluir também o tempo da sessão, o tempo da transferência, assim como o tempo de duração de uma análise.
Esta é apenas uma aproximação às questões da temporalidade, a "nossa" perspectiva. Provavelmente analistas com outros vértices levarão em consideração diferentes aspectos e alcançarão outras noções sobre a temporalidade.
A transferência e a repetição, a compulsão à repetição, o tempo do sonho, o inconsciente, a sexualidade e a memória
Iniciaremos nossa exposição colocando algumas ideias sobre o tempo da transferência, o que na verdade supõe falarmos sobre o tempo da repetição e o tempo do sonho. De certa maneira, ao falarmos da repetição, estaremos falando do tempo da lembrança (memória) e do tempo do esquecimento, enquanto que o sonho nos propõe um tempo de transformação e de revelação.
De nosso ponto de vista, ambos estão presentes na transferência, que embora conceitualmente suponha um deslocamento no espaço (é uma relação de objeto), supõe também um tempo, ou seja, o tempo do passado transformado em presente.
O conceito freudiano proposto no "Projeto..." (1885/1973k), de après-coup – que mais tarde será aproximado à ideia de nachträglichkeit, no trabalho "O sinistro" (1919/1973m) –, é, provavelmente, a primeira aproximação à noção do tempo colocada por Freud, deixando entrever a grande complexidade e o desafio que deveria ser enfrentado por ele no início do século XX.
Sabemos que Freud era um homem do século XIX, que enfrentava os ideais positivistas da época, sendo a noção de après-coup reveladora de um posicionamento relativista e, portanto, contrário ao pensamento científico da época.
O antes e o depois aí se confundem, os movimentos psíquicos se dão por saltos e não linearmente de forma causal e controlada. O après-coup, de certa forma, passa a fazer parte do tempo da repetição, contrariando uma posição onde a previsibilidade dependeria da sucessão linear do tempo.
A ideia fundamental do après-coup é que não há vínculo direto entre o sintoma e a recordação inconsciente; a relação e o sentido do traumático só se revela posteriormente, por meio da repetição.
A teoria da transferência reforça a importância do tempo da repetição, pois ela supõe a repetição de experiências já vividas, até então reprimidas, que só serão resgatadas pelo après-coup para então serem armazenadas na memória pré-consciente e/ou inconsciente.
No início dos trabalhos sobre técnica (Freud, 1912/1973c; 1912/1973a; 1913/1973j; 1914/1973l) a posição de Freud é claramente controladora, pedagógica, pregando mesmo a ideia de que inevitavelmente no trabalho analítico se desenvolveria uma "neurose de transferência", que necessitaria ser tratada. Ou seja, nesse momento (1912-1914), a transferência não se diferenciava de um sintoma, de um obstáculo.
No entanto, como a maioria das propostas freudianas, essa colocação sofrerá com o tempo inúmeras mudanças e alterações.
Por exemplo, no artigo "Novas recomendações…" (Freud, 1913/1973j), a neurose de transferência é definida por Freud como uma situação paradoxal, que tanto pode funcionar contribuindo com o trabalho e com o desenvolvimento da cura analítica, como, em outros momentos, pode vir a se constituir numa projeção de elementos e aspectos indesejáveis do analisando sobre o analista, dificultando a elaboração e agindo como resistência ao trabalho analítico.
De veículo facilitador do sucesso analítico à resistência dificultadora do trabalho de análise, ou seja, tendo diferentes funções e objetivos, a transferência é, a partir do trabalho "Recordar, repetir e elaborar" (Freud, 1914/1973l), incluída como um dos elementos mais importantes presentes na situação clínica, como um aspecto fundamental da técnica e da teoria psicanalítica.
Nesse momento, assim como com os sintomas, a transferência, em vez de ser apenas uma repetição de situações do passado, é vista como uma projeção e deslocamento que precisam vir a ser elaborados. Isto é, aos elementos do passado que são repetidos acrescentam-se emoções e sentimentos que requerem elaboração no presente. Novamente o tempo será o do passado presentificado e transformado.
Em um trabalho apresentado em 1980, chamamos atenção para como a centralização dos conflitos na transferência produz, na situação analítica, a repetição de situações não resolvidas, muitas vezes totalmente inconscientes, dando origem então ao que denominamos "passado-presente", talvez uma das mais importantes noções de tempo encontrada em Freud, e salientada por nós. (Azevedo, 1994)
Além da repetição e da transformação, acreditamos que também o tempo do sonho está presente no fenômeno da transferência. Pois como não sonhar, não fantasiar, não tornar presente na relação analítica os personagens trazidos pelo analisando, muitas vezes responsáveis pelos conflitos e angústias?
Angústias que tornaram imperiosa a busca de uma análise. Como não sonhar junto com o analisando, para acompanhá-lo em seu desejo de ser um herói que irá resgatar o sofredor que é ele mesmo e terminar com a dor? Essas situações, na verdade sonhadas e partilhadas pela dupla analítica, serão possivelmente o que permitirá que mudanças tenham lugar.
Acreditamos ser fundamental um estado mental no analista que permita-lhe sonhar junto com o analisando na situação transferencial. Citamos aqui uma colocação de Rolland e outra de Green, ambas referindo-se ao fenômeno da transferência:
Em direção ao analista, seja em sua presença ou ausência, se forma uma corrente psíquica que recolhe e drena os fluxos pulsionais, ainda ligados às representações inconscientes. O deslocamento desses traços psíquicos na memória, acrescentados das lembranças e das emoções que lhe são associadas, dirige-se à pessoa do analista, o que evidentemente se caracteriza como "transferência". (Rolland, 1999, p. 29)
Freud deduz que a transferência é apenas um fragmento da repetição, assim como a repetição é a transferência de um passado esquecido. O que Freud visualiza em 1920, é a possibilidade de uma repetição que irá minar a análise da transferência (a compulsão à repetição). (Green, 2001b, p. 101)
Transferir é, pois, um movimento que inclui a memória e a repetição; no entanto, não se refere apenas ao deslocamento de algo do passado projetado na situação analítica. A repetição que se faz presente na transferência pode vir a ser um movimento psíquico positivo, que não apenas se repete, mas que acrescenta emoções e lembranças associadas ao processo vivenciado ali com o analista.
É um movimento subjetivo, encontrado não só na situação da análise, mas em muitos outros momentos da vida, como na paixão, na poesia, na literatura, momentos em que o tempo da repetição e o tempo do sonho se aproximam, pois, na verdade, a transferência é sonho, ela é feita de deslocamentos, condensações, de memória e de transformações.
Uma paciente, já há alguns anos, repete sempre uma situação, penso eu que para ter certeza de que eu a admiro e posso tolerá-la, não importa o que ela faça: ela me diz com frequência, repetitivamente: "eu sei que você não vai gostar do que vou dizer, não queria dizer, mas tenho que falar, tenho que dizer". Fico pensando: com quem ela fala ao enunciar essas palavras? Quem não gosta do que ela diz? Como poderia saber de que alguém gosta ou não gosta? Por que usa duas negações, que na verdade significam um sim?
Uma possibilidade seria considerar que para ter certeza de que é amada, reafirma para si mesma que a analista é capaz de ouvir e tolerar qualquer coisa, qualquer desagrado, pois o afeto e a admiração por ela são cegos.
Nesse sentido, aqui o tempo da repetição claramente se aproxima ao tempo do sonho e ao tempo da compulsão à repetição (por exemplo, sonho traumático).
Com essa paciente, a posterior elaboração vai conduzir a seus intensos sentimentos de desamparo e à fantasia de que não pode ser quem ela é de fato sem desagradar. Insistir no fato de que pode me desagradar na verdade a agrada, pois afirma a si mesma que eu não me afastarei dela. Foi fundamental para o prosseguimento do trabalho analítico considerar a repetição como um elemento da transferência, a serviço da resistência.
Talvez seja necessário, para um maior esclarecimento conceitual, estabelecer aqui as aproximações e as diferenças entre a teoria da transferência e o fenômeno da compulsão à repetição, este último enfatizado por Freud principalmente no artigo "Recordar, repetir, elaborar" (Freud, 1914/1973l) e, mais tarde, em "Mais além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1973h). Na transferência, a repetição está a serviço do trabalho analítico, seja para estabelecer vínculos positivos, seja para alimentar uma transferência negativa. Caracteriza um fluxo de movimentos pulsionais dirigidos para o analista e para a situação analítica, possibilitando que a interpretação surja e o processo de elaboração tenha lugar. O mesmo não acontece com a compulsão à repetição.
No artigo de 1914, Freud propõe que o que não puder ser lembrado será atuado na relação transferencial. Obviamente refere-se ao reprimido (memória reprimida) e ao traumático (après-coup), que ressurgirão como atuação no processo analítico, sendo possivelmente projetados, deslocados e atuados na figura do analista e na situação de análise, constituindo-se em elementos a serem negados e ignorados pelo analisando.
O tempo do passado-presente (Azevedo, 1994) e o tempo da repetição se impõem, ameaçando tornar presente o que a repressão pretendia controlar, sufocando a lembrança: surge então a atuação (acting-out), que tanto pode acontecer fora do sujeito, na situação externa, como dentro do próprio espaço mental.
A atuação vai funcionar como um elemento paralisante e/ou disruptor, impedindo muitas vezes o prosseguimento da análise. Enquanto a repetição trabalha, como coloca Rolland (1999), "drenando e deslocando os traços psíquicos em direção à consciência, e a exteriorização destes na transferência," a "compulsão à repetição" terá seu próprio tempo, e tentará com seu próprio funcionamento deter o desenvolvimento mental do analisando, portanto da análise.
A duração de uma análise representa assim o tempo necessário para esgotar a compulsão à repetição via compulsão à representação à qual o analisando submete sua fala. (Rolland, 1999, p. 191)
Na compulsão à repetição há um isolamento de elementos difícil de ser penetrado e superado. Prevalece a força da pulsão, sendo esta mais forte que o desejo de comunicar. A pulsão pulsa como um ritmo vital, seja de vida ou de morte, sem consideração pelo objeto. Elaborar e reelaborar, o que Rolland chama de compulsão à representação, são condições que, quando presentes, permitem o trabalho analítico. Isso acontece quando a prevalência da compulsão à repetição se instaura por um tempo específico, que não é mais apenas o da repetição.
A compulsão à repetição acontece num tempo peculiar, o tempo da paralisação e do congelamento. Certamente não se trata mais de um tempo do passado tornado presente, ou do tempo da transferência. É um tempo ligado aos elementos traumáticos que sofrem a influência da espacialidade, sempre visando uma descarga com a atuação, totalmente estranhos ao próprio sujeito.
Descarga, no sentido contrário ao de conservação; sem consideração pelo que se conserva ou se expele: como poderia um organismo vivo sobreviver, sem reter, sem conservar algo? Green (2001a) fala do modelo de um "aborto", uma situação de vir a ser tem que ser abolida.
A compulsão à repetição nos coloca frente à destruição do tempo; não há passado, nem presente, apenas automatismos inconscientes. A descarga produz o vazio no interior do espaço psíquico, é a dessimbolização das representações.
Trata-se, portanto, de um fenômeno intenso, incômodo, tanto para o analista como para o analisando. Este pode vir a ter alguma consciência do que se passa, mas a percepção consciente não é suficiente para desatar os nós, impedimentos que se mantém em estado de inconsciência. A insistência na repetição, e a tolerância da dupla a esse estado, é o que muitas vezes permitirá a transformação desta em compulsão à representação.
É comum escutarmos a menção ao inconsciente como sendo atemporal. Talvez devido ao fato de que o tempo do inconsciente é o tempo do sempre. Não há um antes ou um depois. Os elementos que se encontram nesse estado, de inconsciência, estão sempre presentes, como que mantidos minimamente carregados, portanto passíveis de serem estimulados e de terem presença, se necessário. É o caso do sonho e da alucinação, onde as imagens armazenadas nos sistemas de memória são utilizadas na formação desses dois fenômenos.
O analisando repete, sem saber o que, ou o porquê. Simplesmente não pode evitar fazê-lo, como não podemos evitar sonhar determinadas cenas, mesmo que traumáticas.
A temporalidade do inconsciente não pode ser justificada pela existência de um passado. Nada do que já passou, cujos traços mnêmicos se encontram no inconsciente – autoerotismo, sexualidade infantil, excitação pulsional, traumatismos etc. –, não aconteceu para o Eu, a única e fundamental testemunha de uma história e de uma temporalidade subjetiva. O que se organizou no inconsciente não aconteceu para o Eu (consciência), se passa para sempre, indefinidamente, repetitivamente… pois a coisa inconsciente é mais que apenas o traço mnêmico de uma experiência. Ela é a própria experiência, instalada integralmente no inconsciente, pela eternidade, conservando todas as virtualidades de sua repetição … Freud não hesitará em dramatizar esse eterno retorno do mesmo denominando-o como "o Demoníaco". (Rolland, 1999, p. 212)
Talvez o tempo da compulsão à repetição, aproximando-se mais ao tempo do sonho e da alucinação, tenha relação ao tempo do sempre, como mencionam Rolland (1999), e Green (2001); o tempo do eterno retorno. A ideia de eterno retorno, que chama tanto nossa atenção no trabalho de Freud de 1920, conduz a questões interessantes e importantes, que são por ele também discutidas, a da ontogênese e a da filogênese, outros tempos, propostas questionadoras e provocadoras.
Green (2001b) chama atenção para uma ideia contida na "Interpretação dos sonhos", que propõe de certa maneira a bidirecionalidade dos processos psíquicos. Movimentos progredientes e/ou movimentos regredientes. O fundamental é que há um dinamismo que não segue o tempo lógico, linear, mas sim o tempo do processo que está em jogo. Nesse sentido, a regrediência e a progrediência são recursos do mundo psíquico sempre disponíveis ao sujeito.
O tempo do sonho é um tempo fora do tempo, um tempo fragmentado, que nos permite ter acesso à maioria dos mecanismos psíquicos. É a atividade psíquica por excelência, que se dá independente da consciência do sujeito, seguindo as regras propostas pela elaboração onírica, tendo a imagem como sua representação fundamental.
Como sabemos, no sonho, a partir dos restos diurnos, se dá uma estimulação da memória, e elementos inconscientes se ligam às imagens mnêmicas, produzindo o sonho, via elaboração onírica, condensação, deslocamento e regressão tópica, caracterizando o processo onírico pela representação em imagens.
O sonho demonstra a existência de um tempo fragmentado, quer dizer, de um tempo que já não tem quase nada a ver com a ideia de uma sucessão organizada e ordenada, segundo a tripartição passado-presente-futuro. No sonho tudo é puro presente. O conteúdo manifesto, no entanto, parece obedecer a certa linearidade, adquirida sem dúvida après-coup, por obra da elaboração secundária, sendo nada mais que uma aparência superficial que se desvanece frente a um mínimo trabalho associativo… Esta experiência que está ao alcance de todo mundo é suficiente para perguntarmo-nos sobre a relação do tempo com o inconsciente. Ou, em termos mais exatos, para integrar aquilo que a teoria psicanalítica, articulando as relações do consciente com o inconsciente, nos obriga a rever nossas concepções sobre o tempo. (Green, 2001b, p. 13)
O tempo do sonho, segundo Green, com quem concordamos, é o melhor modelo para compreendermos o processo que ocorre numa sessão analítica. Em seu livro O tempo fragmentado (Green, 2001b), aponta para o tempo do sonho como fruto de um trabalho inconsciente que, portanto, reflete o tempo do inconsciente. É o tempo do sempre presente, onde passado-presente-futuro, tempos do consciente, pouca ou nenhuma importância terão.
O setting analítico, com sua delimitação, tanto de horário como de número de sessões, pode ser visto como uma tentativa de criar, no espaço analítico, uma experiência que se aproxima à experiência onírica (rêverie de Bion).
Ao abrir uma sessão é, como dizia Freud, convocar os demônios, chamar a sexualidade infantil, para que se atualize e se realize na cena transferencial, mas para submetê-la logo em seguida ao trabalho associativo… fechar a sessão seria interromper o fluxo associativo, o famoso, "bem…". (Rolland,1999, p. 207)
Uma sessão sem fim não seria uma sessão analítica.
No processo analítico, presenças e ausências, assim como as relações entre o si mesmo e o outro, ou seja, a transferência estando presente cria condições propícias para que as fantasias e imagens possam surgir, além de criar uma outra unidade de tempo. Até a imobilidade do divã, de certa forma, contribui para a instalação do modelo da associação livre e do pensamento onírico.
Citamos novamente Rolland que, de nossa perspectiva, desenvolve ideias muito interessantes sobre a relação – por ele estabelecida – entre o sonho, a transferência e a paixão. Diz ele:
O sonho, a paixão e a transferência analítica eram três graus de um único processo psíquico. Este atualizava o objeto de memória e substituía o recalcamento, que nem esquece nem lembra, por uma rememoração que se lembra para esquecer. Ele garantia a elaboração do afeto amoroso partindo do segredo (do sonho), passando pela clandestinidade (da paixão), até seu reconhecimento pelo juízo consciente (na transferência). (Rolland, 1999, p. 25)
Neste trecho Rolland está se referindo ao trabalho com um paciente, mas acreditamos que é possível considerar aí, para ele, a importância do pensamento onírico na experiência transferencial, passando pelo que ele chama de "clandestinidade", até que o elemento possa vir a se tornar consciente.
Importante lembrar aqui a proposta de Green (2007a) sobre uma atividade de "ligação" (binding) anterior à formação de representações, responsável em grande parte pela formação de elementos inconscientes, sugerindo também uma mudança na concepção de localização (pensando no modelo neurológico), privilegiando um modelo de categorização, isto é, de grupos organizados, dinâmicos, em lugar de uma referência a elementos fixos isolados (modelo de rede).
A importância dessa atividade de ligação, no desenvolvimento da capacidade para representar e, portanto, para pensar, é grande, pois é o que vai possibilitar que os impulsos instintivos adquiram a possibilidade de transformação em palavras e possam a partir daí ser usados pelo pensamento.
Elementos não ligados só podem ser utilizados para a atuação, seja dentro do psíquico seja fora deste, no corpo ou no mundo externo. Podemos então afirmar que o tempo do sonho se aproxima do tempo da sessão analítica, ou seja, imagens e palavras referem-se a elementos ligados, que podem ser enunciados.
Voltaremos um pouco atrás para esclarecer o conceito de nachträglichkeit, o demoníaco, que, assim como o de après-coup, constitui-se em ideia fundamental quando pretendemos falar do tempo.
Em "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895/1973k), ao tratar a questão dos traumas infantis relacionando-os à memória, Freud diz que "apenas um pequeno efeito é produzido na época em que o trauma é vivido", continuando a propor que o "importante será o efeito posterior, que surgirá numa outra etapa do desenvolvimento, quando uma nova e mais intensa reação terá lugar" – o après-coup, ou o fragmento de memória reativado.
Essa nova reação, tendo origem nos traços mnêmicos já esquecidos e deixados de lado (experiências sexuais infantis, experiências traumáticas etc.), será reativada, dando lugar a reações psíquicas que incluem a repetição, o sonho e finalmente a representação.
A ideia de um tempo posterior e um anterior, naquele momento do trabalho freudiano, fala também do tempo da cultura, do tempo da história, ou seja, de um tempo dado por condições externas ao próprio sujeito, determinante de repressões e ao mesmo tempo responsável por certo continuum necessário.
Nesse mesmo artigo, Freud (1895/1973k) afirma que pretende trabalhar com a hipótese de que os mecanismos psíquicos sofrem um processo de estratificação.
O que se constitui inicialmente em traços de memória, sofre de tempos em tempos, retroativamente, um rearranjo de acordo com as circunstâncias mais recentes. Com esse modelo de estratificação, entendemos que diferentes camadas sobrepostas podem vir a ser modificadas de tempos em tempos; portanto o que Freud está propondo nesse momento é um modelo de funcionamento interno diferente do modelo externo, cultural, com um tempo também muito peculiar agindo sobre as camadas de memória.
Mais tarde, volta a propor que a memória sofre remodelação com o tempo, como uma "nação que constrói lendas sobre sua verdadeira história" (Freud, 1895/1973k, p. 138).
Com essas colocações fica claro que o que Freud entendia como memória não se tratava de um conjunto estático de cenas e lembranças passadas, mas sim de um universo dinâmico (consciente e inconsciente), sujeito a processos de transformação, que incluem a presença de construções e remodelações de ideias, muitas vezes até então mantidas em estado inconsciente.
A referência feita por Freud a essa remodelação e rearranjo, segundo alguns autores (Modell, 1990; Green, 1995), captura melhor o sentido da palavra alemã por ele utilizada, nachträglichkeit, que foi traduzida para o inglês por Strachey como ação postergada (deffered action).
Voltando a Freud, em "Lições introdutórias à psicanálise" (Freud, 1917/ 1973f), ele afirma que o ego constantemente remodela a memória de acordo com as experiências vivenciadas em diferentes momentos. Essa afirmação sem dúvida tem relevância quando pensamos a ideia de repetição na transferência e no tempo da transferência.
Pensamos que a percepção é um dado de informação pouco confiável, pois esta é sempre afetada não apenas pela memória, mas também pelos desejos daquele que percebe (por exemplo, a alucinação negativa). A remodelação da memória é, pois, inevitável, dependendo de como os elementos da experiência serão vivenciados. Psiquismo é sinônimo de espaço e tempo, inclui a ideia de virtualidade, ou seja, de um tempo sempre presente virtualmente no inconsciente.
A tradução inglesa de Strachey, ação postergada, no que concerne ao termo nachträglichkeit, pode vir a ter uma conotação e um sentido muito diferente daquele proposto por Freud, segundo a discussão sobre essa tradução comentada por Thomä em 1989.
Para Thomä, o termo nachträglichkeit aponta para um sentido que pode diferir daquele oferecido por Strachey. Trata-se de uma palavra composta que, na verdade, significa estender ou transferir de um lugar para o outro, ou seja, supõe a ideia de um deslocamento no espaço, numa temporalidade posterior, ressignificado (Thomä, 1989).
A grande diferença diz respeito a concepções diferentes na noção de tempo e de espaço; na tradução de Thomä fica praticamente invalidada a noção de tempo linear e, consequentemente, a ideia de desenvolvimento psíquico linear que estaria presente na ideia de apenas postergar um movimento. O movimento é de transferir de um lugar a outro; podemos pensar na ideia de um salto de uma época a outra, o que nos faz pensar no tempo do sonho, e no après-coup, quando a temporalidade é outra.
Consideramos que as propostas de Freud, de rearranjo e de reativação da memória, incluídas no uso do termo nachträglichkeit, constituem-se num insight, que na verdade só mais tarde será retomado e proposto por outros autores como retranscrição.
Aproximando a palavra nachträglichkeit à ideia de retranscrição, alguns autores, como Green (1991), Modell (1990) e outros, fazem associações desse fenômeno à certas ideias provenientes da área das neurociências.
Gerald Edelman, Prêmio Nobel de medicina e fisiologia em 1972, propõe, em seu livro Bright air, brilliant fire, que a memória não é apenas uma gravação no sistema nervoso da experiência passada: a memória na verdade é concebida pela neurociência como recontextualização da experiência. O que é armazenado é o potencial de ativar certas categorias da experiência, o que nos remete a uma nova compreensão tanto da função biológica da compulsão à repetição como dos sonhos e, por que não, da transferência.
Um ponto importante nos achados de Edelman nos mostra como a percepção está constantemente fazendo redescobertas, como uma forma de refinamento de categorias já instaladas na memória. Fica claro no trabalho de Edelman que o homem, assim como a natureza à qual ele pertence, necessita preservar um continuum de informações sob a forma de memória, fazendo uso dessas informações como uma espécie de banco de dados, ao qual recorre sempre que necessário. No entanto, esse fato em si mesmo não é impeditivo nem impossibilitador de um trabalho mental e psíquico criativo, em que a assimilação do existente adquire novas configurações.
O processo descrito por Edelman, "Teoria da seleção dos grupos neuronais" (TSGN), aproxima-se da hipótese freudiana de nachträglichkeit. Os mecanismos de deslocamento, condensação e de ligação (binding) seriam as formas essenciais na recategorização da memória, acrescidas, é claro, das informações trazidas pelas novas experiências.
As propostas de Edelman sobre categorização e recategorização dos fenômenos neuronais, em lugar das concepções que consideravam apenas a localização, podem também ser aproximadas ao trabalho desenvolvido pela mente durante o sono e o sonho. Na verdade a recategorização supõe um elemento organizador, capaz de, fazendo uso das impressões já arquivadas na memória, desenvolver um novo arranjo, num tempo específico, que dará origem às imagens do sonho, e ao texto do sonho.
Como nos propôs Green,
O sonho é paradigmático porque é um dos raros momentos em que podemos perceber pontos de contato entre a neurobiologia e a psicanálise. Nos sonhos, estes campos se defrontam diretamente e podemos comparar suas aproximações, hipóteses, descobertas e concepções sobre a vida mental. (Green 1995, p. 51)
Acreditamos que todas essas considerações nos levam a pensar que, embora Freud tenha enfatizado durante todo seu trabalho a ideia de repetição, em nenhum momento passou despercebida a ele a noção de uma temporalidade dinâmica, em que o tempo se repete sem nunca repetir-se na verdade.
É importante diferenciar aqui a repetição enquanto retorno a um estado anterior (Freud, 1920/1973h), característica da compulsão à repetição, da ontogênese e da filogênese, a busca do retorno ao inanimado, de uma outra forma de repetição (Freud,1914/1973l), característica do sistema de percepção e de memória, que vai caracterizar o processo de retranscrição e de rememoração.
Propomos que essas novas aproximações podem e precisam ser utilizadas na aproximação ao tema do "Os tempos da psicanálise", que, de nossa perspectiva, sofre constantemente os efeitos do nachträglichkeit, ou seja, da busca de uma nova representação (recategorização) e de novas significações, de vivências e fenômenos aparentemente já conhecidos.
Associar memória à recategorização e à retranscrição permite considerar o fenômeno da repetição de outra perspectiva e, até certo ponto, também modifica nossas aproximações aos sonhos, desde que a retranscrição, acrescida da ideia de reconhecimento (um novo conhecimento a partir do anterior), propõe que dinamicamente passado e presente estão o tempo todo se construindo e se considerando, enquanto que o futuro se propõe apenas como virtualidade.
Talvez fosse interessante aqui falar alguma coisa sobre reconstrução e construção. De fato acreditamos que, dentro de tudo que vem sendo enfatizado até agora, só podemos pensar que o tempo todo construímos e não reconstruímos. No trabalho clínico de Freud sobre o "Homem dos lobos" (Freud, 1914/1973d), ele tenta incessantemente reconstruir, para no final acabar construindo sua versão do caso.
Antes de terminar gostaríamos de dizer alguma coisa sobre o tempo da cultura, não menos importante daquilo que apresentamos até agora. Sabemos que, em determinado momento, muito precocemente, a necessidade de um objeto surge, sendo então necessário estabelecer vínculos fora de si mesmo, abrindo mão do próprio narcisismo, investindo nos objetos.
A noção fundamental de realidade psíquica que Freud nos ofereceu e que até agora consideramos caracterizando diferentes tempos e dinâmicas, necessariamente precisa colocar-se lado a lado com o que conhecemos como o tempo do outro, o tempo da cultura, que também está em constante mutação, visando lidar com diferentes fenômenos de diferentes formas.
O tempo do Édipo, ou melhor, o tempo da sexualidade, tratado por Freud tanto nos "Três ensaios para uma teoria sexual" (Freud, 1905/1973o), como em "Totem e tabu" (Freud, 191/1973n), em "Moisés e o monoteísmo" (Freud, 1939/1973i) e em "Mal-estar na cultura" (Freud, 1930/1973g), nos mostra que uma das tarefas que cabe à psicanálise é a de modificar e transformar a fidelidade do sujeito à sexualidade infantil, à satisfação alucinatória, ao apego às figuras parentais em capacidade para desenvolver a própria identidade, integrando-se ao universo da cultura. Também o tempo da sexualidade não é o tempo do desenvolvimento.
Freud propõe, ao falar da sexualidade infantil, uma versão que rompe violentamente com as lógicas temporais costumeiras que a teoria das fases conservava, pelo menos parcialmente.
Posteriormente, o que surge é um modelo da sexualidade infantil congelada, conservada indefinidamente, constituindo-se muitas vezes numa ameaça. Ameaça de repetição, ameaça para a destrutividade de outras relações e de outros sistemas psíquicos.
O número de anos de uma pessoa e sua capacidade para sentir prazer ou desprazer não serão os elementos determinantes do amadurecimento sexual. O tempo de vida sexualizada, de um homem ou uma mulher, provavelmente dependerá muito mais de como a pessoa se organizou psiquicamente e de quanto pôde expandir seu processo de individuação e separação ou não.
Será a presença de um objeto que permitirá o prosseguimento desse processo, mediando às satisfações, colaborando com a instalação de formas temporais e espaciais alternativas. Assim, será possível ao sujeito a instauração, dentro de si mesmo, de um espaço, o espaço psíquico interno, e de um tempo, o tempo da subjetividade.
A esses tempos, que nos remetem à transferência, ao sonho, e à repetição, acrescenta-se o tempo do outro, o tempo da cultura, que, sendo introjetados, farão parte do mundo psíquico subjetivo.
A visão cultural nos afasta de nossa condição de origem: somos na verdade animais. Assim temos que, como seres humanos, animais racionais, suportar uma dose de frustração – que supõe uma limitação ao prazer e à satisfação. Isto irá exigir uma atenção e uma vigilância constante. É o tempo da postergação, da renúncia e da sublimação, que se tornam fundamentais.
Pois o homem, não sendo apenas dependente de sua animalidade original, mas também da condição racional e afetiva que adquiriu ao se tornar um ser humano, precisa do outro e da cultura.
Falta ainda tratarmos aqui de algo que nos parece muito importante: a morte. Afinal é a morte que termina com o tempo de vida, instaurando um limite intransponível. Provavelmente todas as outras noções de tempo tenham origem nessa constatação; do início, caminhamos para um fim. Daí a ideia de duração, de tempo cronológico, de desenvolvimento.
Um paciente, bastante perturbado com problemas de identidade, frequentemente fazendo uso de drogas e com uma vida sexual um tanto promíscua, me diz:
– Sinto uma aversão pelos amigos, pois ao lado deles percebo o quanto estou morto. Olho para eles e os vejo construindo, sendo pessoas normais, e isso dói muito. Acho que tem um lado em mim que está morto. Talvez eu nunca consiga ser, existir. Fiquei tanto tempo nesse mundo de horrores, que não sei se consigo sair.
Enquanto ele diz isso ele está presente, frequentando uma análise, de livre e espontânea vontade, existindo. No entanto, no tempo subjetivo, ele se vê incapaz de existir. Será que ele é capaz de distinguir e/ou diferenciar o que é um estado vivo daquilo que caracteriza a morte? Mais tarde ele diz:
– Sinto um vazio, um tédio, principalmente à noite. É o medo de aparecer no mundo, vou me dando conta que os encontros nos motéis, a busca de vários parceiros, são para sentir-me fora do mundo. Uma farsa…
A vida é sentida como tédio e vazio, mas será então que não é a morte que ele deseja como um fim para seus temores e angústias, um não existir? Na verdade, o tempo da vida é o tempo do movimento do acontecer e do ser. Será que é isso que ele teme? Estar vivo no mundo? Qual será na verdade a farsa?
Rolland indaga:
Porque atribuir ao homem uma pulsão de morte se ele não fosse virtualmente imortal? Porque atribuir-lhe uma pulsão de morte, uma tendência interna a morrer? … Porque Freud relança aqui pela última vez e de uma maneira tão estranha o conflito psíquico (1920)? Por que inscrevê-lo in extremis e de maneira tão manifesta não mais apenas no campo do pulsional mas também no registro da temporalidade da vida e da morte? (1999, p. 156-157)
Freud instaura um tempo externo e um tempo subjetivo, um desejo de viver e um desejo de morrer, ferindo assim o narcisismo de todo ser humano.
Viver sabendo que se é portador de uma força de morte, dirigida fundamentalmente para si mesmo, não é algo fácil de ser admitido. (Green, 2007b, p. 12)
A temporalidade é uma aquisição que só vem com o reconhecimento da morte, em contraste com o viver que cria a percepção da sucessão dos instantes, da continuidade e da descontinuidade, enquanto que a morte nos leva a ter que reconhecer o limite, a perda e o desconhecido.
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Ana Maria Azevedo
Av. Brig. Faria Lima, 1903, cj. 92
01452-001 São Paulo, SP
Fone: 11 3034-1365
E-mail: amaaz@osite.com.br
Recebido em: 21/10/2011
Aceito em: 1/12/2011
1Analista didata e analista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.