Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013
FORMAÇÃO: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Tornar-se estrangeiro
Becoming a foreigner
Convertirse extranjero
Mariano Horenstein
Psicanalista. Membro titular com função didática da Associação Psicanalítica de Córdoba. Ministrou conferências e seminários em diversos países da América Latina. Publica regularmente em revistas latino-americanas. Foi diretor da revista Docta, desde sua fundação até 2010. Atualmente, é editor-chefe de Calibán - Revista Latino-americana de Psicanálise. Recebeu os prêmios M. Bergwerk, Lucien Freud e Elise Hayman Award for the Study of the Holocaust and Genocide
RESUMO
A partir de carta-convite, que inclui ideias apresentadas por Márcio Giovannetti, o autor teoriza sobre o lugar do público e do privado na formação analítica. Para tentar essa aproximação, apela para o lugar do "meteco", o estrangeiro das cidades gregas; a práticas observáveis entre os que se formam psicanalistas e a fragmentos de um filme. Desenvolve, assim, a proposta de que a história do movimento psicanalítico possa ser uma história de estrangeiridade; de a práxis psicanalítica ser uma prática estrangeira, e que a formação de um psicanalista trata precisamente de como se tornar estrangeiro; como desenvolver uma escuta particular e colocar-se em um lugar inédito.
Palavras-chave: público, privado, estrangeiridade
ABSTRACT
Attending to the invitation letter, which includes some ideas introduced by Marcio Giovannetti, the author discusses the public and private places in the psychoanalytical training. In order to get close to those places, the author turns to the "meteco", the foreigner in greek cities, in relation to those of becoming psychoanalysts themselves and fragments of a film. He develops the idea of the psychoanalytic movement history being a foreignness history, psychoanalytical praxis being a foreigner practice and that the aim of becoming psychoanalyst is related to learning how to become a foreigner, how to develop a particular listening and to be in a uncommon place.
Keywords: public, private, foreignness
RESUMEN
El autor intenta desarrollar, a partir de la invitación del Jornal que incluía algunas ideas planteadas por Marcio Giovanetti, cuál es el lugar de lo público y lo privado en la formación analítica. Para intentar cercar ese lugar apela al lugar del "meteco", el extranjero en las ciudades griegas, a algunos observables entre quienes se forman como psicoanalistas y a fragmentos de una película. Se desarrolla la idea de que la historia del movimiento psicoanalítico es una historia de la extranjería, de que la praxis psicoanalítica es una práctica extranjera y que en la formación de un analista se trata precisamente de cómo volverse extranjero, de cómo desarrollar una escucha particular y ubicarse en un lugar inédito.
Palabras clave: público, privado, extranjería
O sutil texto "Sobre a natureza e função do currículo na formação analítica", de Márcio Giovanetti1, aponta uma diferença entre os espaços privado e público na formação analítica. Formação esta que vai produzir um analista, que ensinará alguém a ocupar esse topos outopos, esse lugar instável belamente designado "terceira margem do rio". Em sintonia com o mesmo, proponho-me a esticar algumas de suas cordas. O que vem a seguir poderia ser lido quase como notas de rodapé.
Nesse texto, são trabalhados dois espaços da formação, o privado e o público, sendo remetidos ao oikos e a polis: o doméstico e os assuntos da cidade, públicos. O espaço doméstico estaria implicado - no plano da formação analítica - tanto na análise como na supervisão didática e, ante o risco de cristalizações transferenciais, aparece o espaço dos seminários como o lugar público, a ágora grega. Assim, o cidadão/analista em formação, encontraria na ágora o limite para os excessos transferenciais que, como restos melancolizantes e fetichizantes, contribuem na geração de espaços totêmicos2 - e, conforme tais, apolíticos - em volta de algumas figuras idealizadas em nossas instituições.
Paradoxos do público e do privado
O que é o privado em psicanálise e, em particular, na formação analítica? Costuma entender-se assim - e dessa forma também o faz MG - aquilo que se passa nas análises didáticas e, por extensão, nas supervisões.
As análises que conduzimos são necessariamente privadas, e isso fundamenta grande parte de seu atrativo em tempos em que a própria noção de privacidade se vê questionada, seja pela intimidade voluntariamente exposta através das redes sociais ou pela vigilância crescente, da qual somos objetos - os cidadãos, dos estados ou empresas. Pois bem, nas curas didáticas, tal privacidade sempre está em risco.
Conceber o espaço privado como o doméstico ou familiar é arriscado.3 Que assim se apresente ao analisante4 é inerente à atmosfera transferencial dos encontros, porém qualquer solidariedade do didata com essa confusão custa caro. O sobrepreço se percebe nas análises que se interrompem ou se esterilizam, na fabricação de candidatos mimetizados com seus didatas, em uma eterna infantilização ou em um declínio da criatividade e produção institucional.
Existem talvez, esquematizando, duas maneiras em que o público irrompe nos espaços privados da formação. Um, a meu ver, implica um risco; o outro, uma condição de possibilidade.
1. A regulação dos requisitos das curas por parte dos institutos constitui uma ameaça potencial a esse espaço alheio a certas regulações "públicas" do que deve ser uma análise para ser eficaz. Não é menor o esforço que o analista deverá fazer para desmarcar-se intimamente de uma pressão institucional que, ainda que com as melhores intenções (qual seja a de "garantir" a solidez do treinamento de um analista em formação), pode arruinar a experiência e converter uma análise didática em uma análise menos produtiva que uma análise "comum".5 Não é infrequente escutar testemunhos de analistas que relatam como sendo mais férteis seus períodos de análise prévios ou posteriores ao didático que, contra toda expectativa, pode revelar-se a posteriori como mais estéril. Há algo a ser escutado ali. Algo que provavelmente tem vinculação com a irrupção, a inadequada separação entre o público e o privado, que se vê incrementada quando - como em algumas sociedades - o lugar do analista se confunde com o lugar de quem habilita ou informa sobre a cura que está conduzindo.
2. Um espaço privado, no entanto, não implica que deva ser endogâmico e não escape às regulações da lei, instância pública. A lei não é o regulamento e, portanto, não radica no sacrossanto respeito aos standards que tendemos a colocar em um lugar idealizado (e que, em alguns casos, podem funcionar como um mandato superegoico ao gozo), quando não está internalizada na mente do analista. A lei funciona nesse caso, como em qualquer análise, impedindo a coalescência com o analisante, tornando proibido aquilo que é, além do mais, impossível: o acoplamento sem fissuras entre analista e analisante. Acoplamento que não precisa ser fático para ser sexual, que não precisa de vínculos familiares para ser incestuoso, e que está perigosamente à espreita em toda análise. A experiência da análise pessoal deve ser permanentemente resgatada, para não degenerar em uma cumplicidade, por meio da qual analista e analisante que as engendram fazem desaparecer a castração desse lugar.
A experiência da análise didática deve se preservar da tentação de Procusto6 (Mannoni, 1991), que sempre pode assombrar. Um divã que encurta o que sobra ou estica o que falta para adequar-se ao que tal acoplamento sem fissuras demande - seja com a instituição, seja com as expectativas atribuídas ao didata - e que, em nosso caso, à diferença do leito original do lendário bandido, que consistia em uma forma de tortura, é feito de forma voluntária e prazerosa e se converte, mesmo, em uma bandeira a ser hasteada. Acredito que cuidar desse espaço é, fundamentalmente, responsabilidade do analista didata. A ele pode se solicitar que seja precavido, e nele deve funcionar, sobretudo, essa instância outra em sua mente, que ponha limite à completude imaginária. Ele deve poder suspeitar se aqueles que passam por seu divã terminam sendo discípulos submissos ou acérrimos rivais. É ele que deve cuidar de produzir nas curas que conduz essa singularidade pura que haverá de encarnar cada analisante.
A experiência analítica é sempre frágil, está sempre ameaçada de derrapar até converter-se em uma experiência psicoterapêutica ou educativa, quando não em um exercício sutil de poder. Nas análises didáticas, análises intensas tanto por sua frequência ou pelas transferências prévias como pela intensidade, isto se potencializa, e, a princípio, a própria regulação do "público" em esse âmbito tão "privado" deveria servir para preservar o incandescente da experiência.
Nesse sentido, o público que MG assinala, o espaço institucional dos seminários, funciona como limite, como resguardo diante de qualquer tentação unificadora, mas não vejo por que deveria ser o único. Por que não questionar também essas análises e essas supervisões cro/clonificantes, se me é permitido o neologismo? A lei - fundamentalmente como lei de proibição do incesto, presença do público no privado, quando falta ou se debilita, perverte toda a verdadeira intimidade.
Ambos os espaços, privado e público, aparecem então em continuidade, relevando-se e solapando-se, como em uma faixa de Möebius, artefato topológico de apenas uma face e uma borda.
Talvez um ponto central a ser debatido aqui se relacione com essa passagem ao público que se dá no final das supervisões, mas principalmente da análise didática, quando um analista é reconhecido como tal na sociedade. Desse lugar, poderíamos pensar como se concebem os finais das análises didáticas tanto na teoria quanto na prática.
Exoanálise
Pensemos, ora, em um par de situações que em relação às análises e supervisões se observam cada vez com maior frequência.
Concluída uma análise didática, na hora da sempre recomendável reanálise, muitos analistas optam por escolher um analista que não seja didata da instituição ou que não seja da mesma escola teórica a qual pertence ou ambas as coisas. Mais: muitos analistas escolhem analistas que não pertencem à ipa. Isso não significa que a transferência com relação às nossas instituições - do analista em questão tenha decaído ou que esteja disposto a abandoná-las. Em alguns casos, o entusiasmo e atividade institucional até se incrementam notavelmente.
Durante o longo período de encontros semanais com um supervisor didata, embora o interesse fundamental resida no seguimento meticuloso de uma cura, com frequência podem se incluir outros casos que tenham despertado no analista em formação alguma inquietação ou o colocado diante de um tropeço. Também não é pouco incomum que, além das "supervisões oficiais", e de forma paralela às mesmas, muitos candidatos, diante de alguma urgência, façam supervisão de casos com outros supervisores, diferentes do supervisor didata escolhido.
Poderia se dizer que esses casos representam situações minoritárias, marginais, que não são compartilhadas pela maioria dos "candidatos" que estão na "carreira" analítica? Talvez, embora isso não devesse ser um obstáculo para pensá-las. De fato, a psicanálise habitualmente trabalha com situações marginais, com restos, que - se analisados - costumam ser os mais iluminadores do conjunto.
Não é raro escutar que esses espaços outros, alheios a qualquer legitimidade "oficial", possuem potência e fertilidade clínicas inusitadas. Paralelamente, nos espaços "oficias", paira uma tendência ao adormecimento do potente dispositivo analítico. Quer dizer que o tripé de formação que sustentamos em nossos institutos não tem valor? De forma alguma acredito nisso, e considero o tripé que em, nossas instituições, se sustenta e se pratica, como em poucas outras, muito valioso.
Contudo, também penso que essas situações, assim como muitas outras, nos dizem sobre a necessidade de pensar o analista em um lugar outro. E do risco existente quando esse lugar se encontra institucionalizado demais - como acontece, por definição, nos institutos de formação. E de como alguns resolvem esse impasse procurando um lugar genuinamente analítico fora. Paradoxalmente, a formação analítica, que pensamos habitualmente sustentada no tripé clássico, se "sustenta", ademais, em outro lugar, exógeno, exogâmico, mais ou menos invisível, que cada candidato precisará inventar.
Esse quarto pé, invisível e singular, que opera descompletando, perfurando os outros três, é imprescindível para que o tripé sustente uma formação verdadeiramente analítica e não um mero mecanismo de indução profissional. Funcionaria como uma espécie de ponto de fuga, traçado imaginariamente fora, porém essencial para compreender o que está dentro. Fundamental, acima de tudo, para evitar que a formação analítica assuma outra perspectiva e não se "aplaine".
Talvez possa ser frutífero pensar esse ponto de fuga em termos de estrangeiridade que, ao mesmo tempo, recupera o sentido genuinamente analítico da formação analítica.
Juliette Binoche, analista
Talvez o leitor se lembre de um filme lançado há alguns anos, intitulado originalmente Un divan à New York, que, em tom de comédia, narra uma troca de casas entre um analista ortodoxo nova-iorquino, protagonizado por William Hurt, e uma jovem parisiense boêmia, personagem encarnado por Juliette Binoche. Trata-se de uma comédia romântica - provavelmente menor em termos cinematográficos -, na qual, contudo, a diretora logrou capturar algo da especificidade da psicanálise difícil de se peneirar em termos teóricos. O interessante é que quem ensina algo sobre esse lugar problemático e frágil de analista não é o personagem que encarna o eminente psicanalista nova-iorquino - erudito, respeitoso das regras do ofício que praticamos -, mas, sim, o outro, o da ignorante intrusa francesa.
O que acontece? Já instalada na casa-consultório de Manhattan, a personagem de Juliette Binoche se vê colocada por um apressado paciente - que provavelmente ignorava que seu analista estivesse de férias - no lugar de analista. Com honestidade, a jovem tenta dizer ao paciente, que já se havia deitado no divã e começado a falar, que ela não era analista e que a pessoa procurada pelo sofredor neurótico se encontrava em Paris - o que não é impedimento suficiente para que o paciente comece a abrir seus tortuosos fantasmas para Binoche, que acaba por sentar-se na poltrona atrás do divã. Após esse paciente, chegam outros e outros mais - aí incluídos pacientes novos, que não estão dispostos a aguardar o retorno do renomado analista que, enquanto isso, ignorando tudo, continua em suas férias.
A analista profana - pois isto ela é a essa altura - soube, entretanto, deixar-se levar pelos pacientes a um lugar de escuta particular: no qual ela não aconselha nem fala dela mesma. Tal como aconteceu com Freud com suas primeiras histéricas, ela permite que os pacientes lhe ensinem, se deixa conduzir ao lugar que convém a um analista e, ajudada pelo discreto silêncio no qual se fecha, e por seu apenas rudimentar manejo do inglês, se surpreende exercendo efeitos terapêuticos.
Seus, a essa altura, analisantes melhoram, se sacodem de certa modorra, se entusiasmam, sem sentir saudades - aparentemente - do abstinente analista em viagem. Alheia a qualquer cânon de comportamento analítico e qualquer formação, apenas com sua escuta estrangeira, quanto à nacionalidade e idioma, obviamente, mas também no tocante a uma modalidade ativa, ingênua e, ao mesmo tempo, diferente de escuta, a personagem de Binoche consegue que uma transferência intensa se instale, a par de efeitos terapêuticos surpreendentes.
O filme é uma fábula, mas como tal ensina algo que diz respeito à eficácia da posição do analista que não passa nem pelos investimentos profissionais, nem pela solidez de suas teorias, nem por seus conhecimentos técnicos, mas, sim, me inclino a pensar, por certa estrangeiridade.
Se o lugar a ser ocupado pelo analista é um lugar estrangeiro, estranho (o que, se nos deixamos guiar pela lógica do dispositivo analítico, é mais uma descrição que uma prescrição), é também porque a psicanálise, na condição de disciplina, é um saber estrangeiro, e por isso sua formação deve ser pensada em termos singulares e distintos de qualquer outra disciplina - seja esta científica, artística ou humanística -, ainda que aparentada com todas elas7.
Freud - bem como, entre outros, Kafka e Walter Benjamin - jamais conseguiu se identificar completamente com a língua alemã. Embora por meio dela pensasse e forjasse sua obra, era consciente da distância em que se mantinha (Wohlfart). E se nenhum dos três se identificou com seu "ser alemão", não foi para identificar-se com seu "ser judeu". Encarnavam - sem deixar de ser judeus ou de falar alemão - a estranheza ante a qualquer pertencimento. "Vinham de lugares estrangeiros, - lembra Gershom Scholem - e sabiam disso" (id.).
Como afirmam Deleuze e Guattari, ao falarem de Kafka, se trata de "estar na própria língua como um estrangeiro" (1978, p. 43). Tratando-se de uma prática linguageira como é a nossa, é inevitável conhecer o idioma no qual um paciente fala. Isto é de Perogrullo. Mas tão inevitável quanto isso, e neste ponto abandonamos o terreno das obviedades, é que tratamos o idioma do paciente - mesmo sendo o nosso - como um idioma estrangeiro. Muitas vezes nos esforçamos sem saber para conseguir essa distância, a única que nos permite escapar das falsas complacências, dos entendimentos falhos, do dar cabimento ao radical mal-entendido inerente a qualquer língua, e procurar essa interpretação ou, melhor dizendo, encontrá-la, de modo a permitir ao paciente se escutar de maneira diferente.
Uma análise, então, seria o processo inverso ao aprendizado de uma língua estrangeira. Quando aprendemos um novo idioma, vamos diminuindo progressivamente nossa perplexidade diante de significantes, inicialmente indecifráveis, até torná-los familiares. Em uma análise, através de nosso particular modo de escuta e da forma que nos fazemos presentes nela mediante a interpretação, tentamos tornar estranhos até os significantes mais familiares, tratamos nosso idioma como se fosse uma língua estrangeira. O idioma do inconsciente, aquele que nos torna estrangeiros mesmo na própria casa (Kristeva), funciona desse modo, e uma fala mais verdadeira nos é possibilitada ao nos distanciarmos do discurso, ao retornar ao lugar do Outro - de onde partiram originalmente -, os significantes que nos marcaram enquanto sujeitos.
Talvez se trate ao menos de oferecer alguma resistência à tentação de compreender de imediato (contra a qual tanto Bion quanto Lacan nos alertaram) a ilusão de uma comunicação sem falhas, que anula a dimensão do mal-entendido, inerente a qualquer língua. Existe uma pergunta de profunda atualidade política nestes tempos: como tornar próximo o mais estranho ou diferente? Em psicanálise, talvez se deva mudar para sua contrapartida: Como tornar estranho o mais próximo?
A legião estrangeira
Freud era um estrangeiro no coração do antigo império austro-húngaro. E foi assim, da splendid isolation a que havia sido condenado pela ciência do seu tempo, que produziu sua formidável invenção. A distância que lhe outorgou o fato de ser estrangeiro não foi um ingrediente menor na fórmula da sua descoberta. Dificilmente, imagino eu, poderia ter descoberto o inconsciente alguém que não vivesse seu cotidiano de forma enviesada, alguém que não guardasse suficiente distância com qualquer tradição. Não acredito - estamos no terreno da conjectura - que a psicanálise pudesse ter sido inventada por um autóctone, fosse ele um alemão de Berlim ou um israelense de Tel Aviv: a partir do olhar e escutas estrangeiros é que se torna possível advertir o impulso oculto, descobrir o novo, expressar o não expressado.
De alguma maneira, os grandes teóricos da psicanálise, aqueles que reconhecemos como nossos mestres, estavam nesse lugar, quase por estrutura, soubessem ou não do fato, sem importar quanto lhes interessou sua conceitualização. Toda a história do movimento psicanalítico pode conceber-se como uma história da estrangeiridade. A partir daí, pode se fazer uma leitura do sintoma de Freud quando ele coloca em um lugar fundante nada menos do que quem introduz a Lei, um estrangeiro. Freud não faz outra coisa quando, baseado em uma débil e refutável especulação histórica, faz de Moisés um egípcio.
Inicialmente, aqueles que se agruparam em torno de Freud eram, fundamentalmente, judeus na Viena herdeira do império austro-húngaro, sempre estrangeiros no território de fala alemã (Traverso, 2005, p. 55), que imperava em numerosos países recentemente constituídos. Caberia conjecturar que apenas aqueles familiarizados com a experiência da estrangeiridade podiam sentir-se atraídos por essa estranha disciplina, que acarretava, no começo, a proscrição da ciência oficial. Quando surge um antípoda nesse lugar estrangeiro e Freud, por conseguinte, vê-se tentado a nele confiar, de modo a talvez garantir para sua jovem ciência um destino de maior aceitação (refiro-me ao caso de Jung), bem sabemos do negativo desfecho (Roudinesco e Plon, 1998).
Com a chegada do nazismo, a diáspora psicanalítica não fez mais que redobrar uma situação que estava inscrita desde a origem: a estranheza diante da língua, diante aos outros, aos saberes autorizados, formavam parte iniludível do lugar a partir do qual Klein ou a própria Anna Freud forjavam suas conceitualizações e se vinculavam com o mundo de fala inglesa. Talvez por ocuparem elas mesmas esse lugar estrangeiro, eximiram-se da necessidade de conceitualizar o assunto. Bion, no rumo de certa casta de poetas chineses - que, quando alcançavam algum renome em seu território, mudavam de comarca, como se um pouco de anonimato e marginalidade fosse essencial à sua função -, escolhe novamente a estrangeiridade, ao radicar-se nos Estados Unidos no auge de seu reconhecimento.
Lacan, na forma de "exceção francesa", não emigrou para lugar nenhum. Com ele, a estrangeiridade acabou por se dar em termos institucionais diante da ipa, que excluiu de sua função didática, favorecendo sua identificação com Spinoza, ele próprio estrangeiro em sua comunidade após a excomunhão. A percepção de que algo decisivo estava em jogo no concernente à estrangeiridade, no entanto, não parece ter passado despercebida a Lacan.
Existe uma anedota a respeito, segundo a qual a comunidade judia de Estrasburgo teria solicitado a Lacan a indicação de um analista. Conforme a lógica homeopática, que parece imperar na psicanálise, embora não apenas ali, poderia se pensar que Lacan indicaria um analista judeu, ou pelo menos de sobrenome judeu, ou vinculado de alguma forma aos judeus: enfim, alguém apto a compreendê-los. Nada disso. Ele indicou, obviamente, um analista de sua confiança - porém árabe: Moustaphá Safouan (Miller, 2002). Além das intenções de Lacan, que permanecem fora do nosso alcance, advertimos novamente um ponto interessante, aquele que situa o analista em um lugar radicalmente estrangeiro frente ao analisante.
Como um eco, que talvez tenha algum caráter estrutural, boa parte dos grandes pensadores da psicanálise foram sujeitos que emigraram, estrangeiros: além de Melanie Klein e Anna Freud na Inglaterra, Hartmann, Kris e Löewenstein; os fundadores da Psicologia do Ego nos Estados Unidos, Heinz Kohut ou Otto Kernberg, nascido em Viena e formado no Chile; na Argentina, Marie Langer, Ángel Garma, Heinrich Racker e Pichon-Rivière, que adquiriu sua estrangeiridade ao se criar entre o guarani e o francês de seus pais. Conforme nossa práxis, a transferência precisa encarnar-se em alguém, e conforme também, o lugar que ocupa a análise pessoal em sua transmissão é relativamente comum que os pioneiros nos diversos países tenham sido aqueles que passaram uma temporada no exterior ou literalmente estrangeiros, emigrados dos países centrais. Muitos núcleos iniciais de sociedades analíticas se criaram ao redor de analistas "estrangeiros". Acredito termos ali uma nota estrutural, que vai além das circunstâncias geopolíticas ou econômicas conjunturais.
Não deveria ser imprescindível escapar de alguma guerra ou genocídio ou, mesmo, da glória ou do êxito para poder produzir conhecimento analítico, porém, efetivamente, parece ser necessário procurar algum grau de estranhamento. Nesse sentido, um analista haveria de repetir no processo de sua formação, fundamentalmente - ainda que não somente - em sua análise, esse estranhamento que permitiu a Freud escutar outra coisa na mesmice que escutavam todos na sua época.
O lugar do analista na cidade
Tentemos ampliar um pouco a metáfora utilizada por mg: oikos e polis são espaços concernentes ao cidadão grego. É o cidadão de Atenas, ou de qualquer outra cidade-estado grega, que divide sua vida entre esses dois lugares. Nesse ponto, no entanto, o paralelismo traçado com o analista em formação esbarra em um limite, pois cabe duvidar se o lugar do analista assemelha-se ao do cidadão. Inclino-me a pensar que o lugar do analista, mais além da pessoa do analista, que vive com maior ou menor fortuna na cidade, mais ou menos reconhecimento, não é o de cidadão.
O lugar do analista, sua função, reside em outro lado. Se continuarmos com a metáfora grega, esse lugar estaria mais bem representado pelo lugar do meteco8, ou seja, o estrangeiro que mora na cidade. Lembremos que meteco não é o estrangeiro que atravessa ocasionalmente a cidade, e tampouco é o cidadão. É o estrangeiro que mora entre os cidadãos9. Esse lugar de estrangeiridade é o topos outopos, lugar impossível e nunca completamente conquistado, lugar incômodo assimilável ao do resto, ao que fica da operação analítica10. A esse lugar um analista deverá advir em sua formação.
Esse lugar estrangeiro do analista é responsável, em grande parte, pela dificuldade que enfrentamos quando necessitamos nos fazer compreender no diálogo fora do nosso mundo de pares, quando devemos explicar nossas ideias ou mostrar nossos logros terapêuticos, quando precisamos convencer os planos de saúde ou conquistar o reconhecimento da academia. Ao mesmo tempo, é o lugar que nos preserva das complacências das maiorias, do conforto intelectual dos autóctones, que habitam desde sempre um país acreditando conhecê-lo. Existe uma autoctonia impossível no território do inconsciente. Ninguém poderia tê-lo descoberto a partir desse lugar e, teríamos ficado, mesmo hoje, chapinhando nas águas calmas e seguras da consciência ilusória ou do comportamento observável.
Esse lugar estrangeiro, que é mister suportar, é a garantia, entendo assim, de que a psicanálise não se despenhe pelas vias de mais uma psicoterapia e não seja reabsorvida, quanto pensamento, pelo cânon de nenhuma época. Esse lugar estrangeiro mais nos aparenta com os artistas do que com os que exercem uma profissão liberal ou com os cientistas - ainda que o lugar de analista compartilhe um tanto de cada uma dessas tradições. Os verdadeiros artistas sempre se mantiveram estrangeiros ao seu tempo ou à sua geografia, sempre mostraram ou enunciaram aquilo que os outros não podiam ver ou ouvir, ou apenas o fizeram antes. A figura do psicanalista surge há cem anos, herdeira da figura do hipnotizador ou do xamã (Roudinesco e Plon, 1998), não da figura do acadêmico respeitado nem do psiquiatra irmanado ao poder do estado.
Mas não é fácil a posição11 do estrangeiro, como não era fácil ser meteco em Atenas. A possibilidade de dizer alguma coisa nova, inerente à figura do psicanalista, a possibilidade de avançar por terrenos inexplorados não é gratuita, e, não é qualquer um que tolera ocupar esse lugar. Exige situar-se em um sítio marginal, exterior ainda que fronteiriço, do consenso comum, inconformista e passível de suspeita, que costuma gerar tanta fascinação quanto repúdio.
Assim como acontece com o paciente em análise, o efeito em quem pratica a psicanálise como ofício também é o estranhamento: obrigado a desempenhar o papel de estrangeiro, o analista separa de si, enquanto sujeito, sua função, se converte na encarnação da estrangeiridade mais absoluta para si próprio, fato que não seria raro motivar alguma inexplorada doença ocupacional. Mas para isso existe a análise do analista e as periódicas reanálises, para separá-lo de si, para assumir sua estrangeiridade e, ao mesmo tempo, mitigá-la; tanto para permitir-lhe encarnar o estrangeiro para seus pacientes e suportar um lugar que poderia ser inabitável para alguém não treinado, quanto para funcionar, fora da consulta, como mais um cidadão. Para esse fim, também existem as instituições, tanto para compartilhar a solidão da nossa prática, quanto para mitigar seus efeitos tóxicos. Poucas profissões fazem tanto culto das relações entre colegas como a nossa. Como em qualquer cidade cosmopolita, complexa e hostil, os estrangeiros tendem a se agrupar.
Tornar-se estrangeiro
Como consegue alguém relativamente comum, frequentemente mais neurótico - pelo menos no ponto de partida - que a média da população, pelo único fato de sua formação, advir ao ponto de operador eficaz dessa matéria tão inflamável quanto evanescente que é o inconsciente? Somente porque alguém assim - um analista - desenvolveu uma destreza de escuta que surpreende aqueles que se entregam a ela. Uma escuta que renuncia à memória tanto como à ambição; que abandona tanto o preconceito quanto a experiência; uma escuta singular, na medida do dispositivo inventado por Freud - e, por outro lado, absolutamente inútil, já que inoperante fora de suas coordenadas específicas.
Boa parte da formação analítica, principalmente a análise "didática12", consiste em lograr advir e em poder preservar esse lugar estrangeiro, esse olhar outro, que sempre corre o risco de converter-se em um, essa estranheza frente à língua e ao inconsciente, sempre em perigo de tornar-se enganosa familiaridade. Isso poderia ser compreendido como o reverso de um processo de nacionalização, um ideal que demanda o ajuste do estranho ao consenso, como é exigido aos imigrantes que querem naturalizar-se: provar que conhecem o idioma, a história e símbolos pátrios do país de adoção. Em nosso percurso, trata-se do contrário - dando continuidade à metáfora sobre a desaprendizagem da própria língua. Trata-se de esquecer o que se sabe, de desnaturá-lo, de entregar nossa carta de cidadania para assumir esse lugar estranho de eterno estrangeiro no coração da cidade, espécie de limbo, onde uma palavra pode ser sempre outra, onde nada está determinado e onde tudo pode ser dito, sabendo que esse tudo é impossível, ilusão tanto de entendimento quanto de completude. O lugar do estrangeiro não é um lugar inerte ou melancólico - pois ali pode aninhar o desejo e fecundar-se o entusiasmo -, mas sem ilusões diante de qualquer ideal de pertença, mesmo de qualquer pertença analítica.
Sabemos que a formação psicanalítica não se enquadra nos parâmetros da formação científica clássica. Quando queremos precisar em que consiste essa diferença, tendemos a pensá-la em termos de adestramento artesanal, da passagem de uma geração a outra de um saber que encontra na análise pessoal o ponto em jogo mais crítico e singular. Há alguma coisa da experiência do inconsciente que se transmite e não se ensina13. O ensinável (aquilo assimilável ao público, o lugar dos seminários no texto de mg) não é o fundamental, e cabe pensar em um analista que exerça eficientemente sua função sem ter passado - como Juliette Binoche - por uma formação teórica estrita, ainda que longe se esteja de negar sua importância. Porém, é inimaginável um analista que não tenha passado ele próprio por uma experiência analítica.
Talvez possamos pensar a formação analítica como um processo de estrangeirização. Fundamentalmente, na análise didática, por meio da experiência da divisão subjetiva. Porém, também nos outros espaços, nos outros pés do tripé, que a meu ver, devem estar marcados também pela experiência do inconsciente, pela singularidade do fazer analítico. Os seminários não são cursos, mas espaços nos quais nos deparamos com o saber provisional, não um lugar de recepção de um saber constituído. As supervisões estão mais aparentadas à análise que com o ensino da doutrina aplicada caso a caso. Os trabalhos escritos não deveriam ser jamais monografias quase universitárias, mas textos pessoais, marcados por esse estilo único que o profissional vai acumulando, à medida que se forma, pratica e imprime na psicanálise seu singular modo de exercê-la. Deveriam ser, antes de mais nada, trabalhos que pudessem dar conta de um buraco no saber, de uma falta, mais do que o resgate de conceitos para os quais já dispomos de formidáveis bibliotecas. Mesmo o mais público deveria estar refratado pela lógica estrangeira da psicanálise.
Essa promessa de diferença, que fazemos implicitamente aos nossos analisantes, com o oferecimento apenas de uma escuta particular, também é um compromisso para o analista - o que é lógico, pois um analista é fundamentalmente um ex-analisante -, que deveria resistir às tendências - institucionais ou não - que o levam à homogeneidade, aos jargões ou às modas teóricas para encontrar sua própria singularidade como marca de estilo. E essa vara com a qual medimos as análises não deveria se esconder, mas, sim, afiar-se mais na hora de pensar as análises de formação.
Hoje, quando a psicanálise tem encontrado aceitação social, um lugar público nas universidades, na cultura, no discurso cotidiano, que antes carecia, poderia se estender aos analistas, aquilo que o escritor chileno Roberto Bolaño assinalou para literatura: em uma época, os analistas, como os escritores, provinham de uma aristocracia econômica, médica ou intelectual, que arriscava tudo o que tinha ou poderia ter - prestígio, dinheiro, reconhecimento - para abraçar uma disciplina perigosa. Essa é a história de muitos dos pioneiros. Depois, alguma coisa se inverteu e a análise - a literatura para Bolaño - se converteu em uma prática que prometia algum brilho ou bem-estar financeiro aos jovens de classe média com aspirações de ascensão social. No meio disso tudo, algo do espírito de aventura, da avidez por descobrir e da disposição a correr riscos, se perdeu - o que pode estar relacionado com a tão comentada crise da psicanálise.
Talvez possamos voltar a pensar nossa práxis em termos de estrangeiridade, assim como a formação que nos habilita permita nos arrimar menos no lado profissional da psicanálise - afinal de contas, uma ocupação burguesa a mais - e recuperar algo do espírito dos pioneiros, aqueles estrangeiros.
Referências
Deleuze, G. & Guattari, F. (1978). Kafka: por una literatura menor. México: Era. [ Links ]
Giovannetti, M. de F. (2010). Sobre a natureza e função do currículo na formação analítica. Jornal de Psicanálise, 43(79),181-185. [ Links ]
Kristeva, J. (2001). La revuelta íntima: literatura y psicoanálisis. Buenos Aires: Eudeba. [ Links ]
Mannoni, O. (1991). El diván de Procusto. Buenos Aires: Nueva Visión. [ Links ]
Miller, J.-A. (2002). Cartas a la opinión ilustrada. Buenos Aires: Paidós. [ Links ]
Traverso, E. (2005). Los judíos y Alemania: ensayos sobre la "simbiosis judío-alemana". Valencia, ES: Pre-Textos. [ Links ]
Roudinesco, E. & Plon, M. (1998). Diccionario de psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós. [ Links ]
Wolhfarth, I. (1999). Hombres del extranjero: Walter Benjamin y el Parnaso judeoalemán. México: Taurus. [ Links ]
Recebido em: 7/6/2013
Aceito em: 11/6/2013
Traduzido por Abigail Betbede
Revisado por Lilian Contreira
Mariano Horenstein. Nazaret 3176, oficina 10. CP: 5000 Córdoba, Argentina. Tels: (54) 3543 430610 e (54) 351 153 536070. mmhorenstein@gmail.com
1 A partir de agora: MG.
2 Um costume ainda presente em muitas instituições analíticas nos traz notícias desses espaços totêmicos: muitos candidatos, sem se ruborizar, chamam seus pares em análise com o mesmo didata de "irmãos", por terem o mesmo "pai". Também se fala de "avôs" (aquele com quem, por sua vez, o didata fez sua própria análise didática). Esse aspecto, às vezes oculto por trás de sofisticadas posturas teóricas, não difere em muito daquela modalidade praticada na educação infantil, conforme ainda me lembro, que agrupava e separava as crianças sob diferentes totens animais (os "ursinhos", os "coelhinhos" etc.).
3 O familiar, sabemos, pode de repente tornar-se estranho.
(N. T. - Estranho, sinistro, Unheimliche.)
4 N. T. - A palavra "analisante" é utilizada por Lacan e difere de "analisando", pois confere uma ideia de maior atividade por parte do paciente.
5 Para esta e outras referências vinculadas à transmissão, remeter-se à seção Vórtice, em Calibán - Revista Latino-americana de Psicanálise, 10 (1), 107-133. Fepal, Montevidéu, 2012.
6 Procusto era um bandido grego que tinha em sua pousada um particularíssimo leito em que deitava seus hóspedes: se seus corpos fossem maiores do que a cama, ele serrava o que sobrava; caso fossem menores, ele os desconjuntava e esticava até que se ajustassem.
7 Apesar de que caberia desejar que se posicionasse mais entre uma universidade e uma academia de artes, do que entre o mosteiro e o colégio técnico, tal como apontava Kernberg, em 1984 (Calibán-RLP, cit., p. 131).
8 Meteco é "aquele que mudou de residência"; do grego: µετοíκος, metoikos, de meta, "câmbio", e oἶκía, "casa".
9 O neologismo lacaniano "éxtimo", aquilo que é íntimo e ao mesmo tempo exterior, não seria impróprio para definir tal lugar.
10 Quando esse lugar, de resto, não opera, terminada a análise didática, o didata se converte na figura totêmica denunciada por mg.
11 Com relação ao lugar do estrangeiro - como ao do analista - se trata mais de uma posição que de um investimento ou essência. Estrangeiro se é sempre em termos relativos.
12 As aspas estão valendo aqui, ainda que seja para questionar o oximoro. Talvez "Análise de formação" resultasse uma maneira preferível de nomeá-lo.
13 Alberto Cabral desenvolve de forma documentada e meticulosa a tensão entre ambos os modos de conceber a formação analítica na mencionada seção Vórtice (Calibán, op. cit.), dedicada ao tema.