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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.85 São Paulo jun. 2013

 

SESSÃO DE CINEMA

 

Festa de Família

 

The Celebration

 

La Celebración

 

 

Abigail Betbedé; Ana Balkanyi Hoffman; Ana Maria Vieira Rosenzvaig; Cecília Luiza Montag Hirchzon; Eduardo de São Thiago Martins; Francesca Maria Ricci; Gustavo Gil Alarcão; Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo; Luciana Estefno Saddi; Marina Massi; Milton Della Nina; Oswaldo Ferreira Leite Netto; Spartaco Angelo Vizzotto; Tiago da Silva Porto; Yvette Piha Lehman

Membros filiados, associados ou efetivos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta uma atividade desenvolvida pela equipe editorial do Jornal de Psicanálise na interface entre cinema e psicanálise. Um grupo de analistas se interessou pelo convite da equipe para conversar sobre o filme Festa de Família, do diretor Thomas Vinterberg. A conversa foi gravada e transcrita. Pensamos ser importante explorar as maneiras pelas quais a psicanálise pode ser difundida. Esta atividade demonstrou que um filme pode servir como estímulo para uma agradável e instigante conversa psicanalítica e trouxe à tona toda a riqueza deste tipo de encontro onde a possibilidade de trocar experiências de forma espontânea, tal qual pensamos possa ocorrer no próprio trabalho analítico, pode ter lugar. Foi possível ter a dimensão de um trabalho implicado, no qual a psicanálise esteve presente de forma viva e atuante, encarnada na fala de cada colega.

Palavras-chave: psicanálise e cinema, Festa de Família, Dogma 95, psicanálise implicada


ABSTRACT

The paper presents an activity developed by the editorial staff of the Jornal de Psicanálise, in the interface between cinema and psychoanalysis. A group of analysts interested in the team invitation chose to talk about The Celebration, a film directed by Thomas Vinterberg. The conversation was recorded and then transcribed. This activity demonstrated that a film can work as a stimulus for an enjoyable and thought-provoking psychoanalytic conversation and brought up all the wealth of this kind of meeting, in which the possibility of exchanging experiences spontaneously took place, as it is thought to occur in the analytic work itself. It was possible to realize the magnitude of an involving job in which psychoanalysis was presented in an active and living form, incarnate in the speech of each colleague.

Keywords: psychoanalysis and cinema, The Celebration, Dogma 95, implicated psychoanalysis


RESUMEN

Este trabajo presenta una actividad desarrollada por el equipo editorial del Jornal de Psicanálise en la interface entre cine y psicoanálisis, que consistió en un encuentro de analistas para conversar sobre la película La Celebración [Festen] del director Thomas Vinterberg. La discusión fue grabada y transcripta. Pensamos que es importante ampliar las maneras por las cuales el psicoanálisis puede ser difundido. Esta actividad mostró que una película puede servir de gatillo para una agradable y estimulante charla psicoanalítica, y quedó evidente la enorme riqueza de este tipo de reunión, donde la posibilidad de intercambiar experiencias de manera espontánea, como nos parece que ocurre en el propio trabajo analítico, tiene lugar. Hubo un trabajo implicado, en el cual el psicoanálisis estuvo presente de forma viva y actuante, encarnado en el discurso de cada colega.

Palabras clave: psicoanálisis y cine, Festen, Dogma 95, psicoanálisis implicado


 

 

 

Antes

À guisa de introdução, podemos dizer que o trabalho a seguir é resultado de uma iniciativa inovadora da equipe do Jornal de Psicanálise. Preocupada em tornar as publicações cada vez mais representativas das maneiras de pensar de todos os membros da Sociedade e do Instituto, a equipe elaborou um projeto editorial que, entre outras, lançou a ideia de contemplar novas seções no Jornal. Este movimento de abertura, não de fragmentação, teve o intuito de ser um estímulo à escrita e, portanto, uma forma de ampliar a porta de entrada dos materiais.

Sessão de Cinema, uma dessas novas seções, foi pensada como um espaço de interlocução entre a psicanálise e o cinema, que, desde já, aguarda a colaboração de todos vocês. Conforme a proposta do Jornal, que privilegia artigos relativos ao cerne de nossa práxis, o desafio é resgatar o viés psicanalítico dessa interface, seja o que for que isso represente.

Para dar o pontapé inicial, convidamos o colega Luiz Meyer para publicar seu brilhante artigo sobre o filme Melancolia, que nos pareceu ser um bom expoente do espírito desse novo espaço.

Paralelamente, despontou em membros da equipe apaixonados por cinema e desejosos de uma psicanálise sempre pulsante a ideia de promover uma atividade que pudesse ir ao encontro com o que sentimos como essencial em nosso campo. Promovemos uma reunião para conversar sobre um filme, sem um roteiro definido que, no entanto, se mantivesse com os pés no chão, no chão da psicanálise. Com muita liberdade e estimulados por toda a equipe editorial, tivemos vontade de sair um pouco do lugar-comum, isto é, fazer surgir o próprio trabalho a partir da conversa, e não antes da conversa.

Como dar forma a esta ideia? Primero tempo: precisávamos definir questões básicas acerca de como articularíamos essa atividade e, nada simples, como faríamos para trazer a atividade para dentro do Jornal. Logo surgiram várias questões: o que abordar? Seria necessária alguma coordenação? Precisaríamos de algum especialista em cinema? O diretor? A história? Alguma interpretação que já fosse relevante? Iríamos gravar o encontro? Fazer anotações? Pedir para cada um escrever algo? Várias dúvidas, que no fundo foram nos mostrando também nossa ansiedade, que de alguma maneira já estava interferindo em nossa ideia de como ter uma conversa livre. Aos poucos nos demos conta de que, realmente, apensas precisávamos dar o primeiro toque na bola e acompanhar o desenrolar do jogo.

Segundo tempo: a escolha do filme. Pensamos num filme que acabara de ser lançado no cinema e que por trazer um roteiro instigante que toca temas muito presentes na psicanálise nos pareceu muito apropriado: A Caça, do diretor Thomas Vinterberg, seria uma oportunidade de conversar sobre fantasia, desejo, sexualidade infantil, enfim, questões bastante comuns ao nosso dia a dia. O filme ainda não estava disponível para locação, o que inviabilizou nossa opção.

Diante desse impasse, novamente nos encontramos para conversar. Vinterberg faz parte do movimento Dogma 95, e por nossas associações surgiu outro filme de sua autoria, Festa de Família. Era esse. Essa escolha nos fez refletir sobre a complexidade da proposta à qual estávamos tentando chegar. Nos demos conta de que o leque de possíveis desdobramentos de nossa conversa seria vasto, uma vez que o filme traz consigo vários e diversos elementos, dentre eles: a história de um movimento cinematográfico, a exposição de assuntos tocantes como são o suicídio e o incesto, as verdades que não querem calar e o desvelamento do interior de uma família, que não tem como não provocar perturbadoras autorreflexões.

Ao perceber tamanha complexidade, enfim nos demos conta de nossa proposta. Não poderíamos abarcar todos os ângulos, e também não desejávamos isto. A necessidade, e mesmo a imposição de qualquer tipo de coordenação, esvaeceu-se e, analogamente ao que acontece em nosso trabalho, nos dispusemos a estar juntos uns com os outros e "deixar rolar".

O marco estava ali: um cenário neutro ambientado apenas com uma mesa e cadeiras e um horário marcado; o filme em nossas mentes e a expectativa de que o encontro acontecesse. Lembra alguma coisa?

 

Durante

A seguir, cada parágrafo representa a fala de um participante do encontro, portanto coautor deste texto. Elas foram discretamente editadas para evitar repetições e redundâncias, que aparecem na linguagem falada e poderiam deixar enfadonha a leitura.

O que nos encantou do Dogma foi o fato de não haver nenhum artificialismo na filmagem. A luz é a luz, o som é o som espontâneo do ambiente, a música é se tiver alguma coisa a ver com o que está sendo filmado. Não há efeitos especiais. Tudo acontece em tempo real, câmera na mão. A câmera acompanha os atores, em vez deles acompanharem as marcações de câmera. Não é um improviso, de fato as cenas são ensaiadas, mas quando acontecem, acontecem livremente, os atores têm liberdade e a câmera vai acompanhando. Essa perspectiva torna a filmagem muito mais real.

Na cena inicial do filme, aparece aquela estrada que é uma linha reta ondulada, e ao mesmo tempo não é uma linha reta, porque tem milhões de remendos nesse asfalto que vai puxando para a lateralidade, vemos essa figura que anda sozinha, carregando o próprio fardo, mas ao mesmo tempo conectada por esse celular que toca insistentemente. Não se sabe de onde vem esse som, porque a figura está lá e o som está aqui, então tem uma distância, e tem um caminho que é sinuoso, que indica um não saber.

Essa primeira imagem é fascinante, muito bonita e dá uma espécie de preparação para a história que vai se desenrolar. Uma história que certamente nos remete ao artigo "Totem e Tabu" de Freud, a algo muito primitivo, esse pai que tem poder de vida e de morte em cima de todos os filhos e filhas, e que precisa ser devorado para que cada um possa de fato existir. E é chocante, porque fala de uma mente muito primitiva. Fala de uma idade, como foi a idade da pedra, onde não havia discriminação, onde tudo podia, onde não tinha tabu.

A experiência desse filme é muito forte, muito impactante, dado o embasamento do Dogma, seus princípios, sua técnica; tudo se torna muito envolvente, próximo, difícil de digerir. É muito tenso, os personagens são muito agressivos, tem uma violência, pode ser pela proximidade da câmera ou pela forma de filmar, junto com os personagens, que estão sempre muito nervosos. Parece que vai acontecer alguma coisa a qualquer momento, e está acontecendo o tempo todo. É um clima de tensão constante.

Criamos uma relação com os personagens que é muito parecida com o que nos acontece como analistas. Neste filme cada espectador se torna um convidado da Festa.

Parece tão familiar porque a gente vive isso.

No início do filme, quando o protagonista está andando a pé na estrada, chega o irmão de carro, para e faz descer sua mulher e seus filhos do carro. O protagonista aceita entrar no carro e eles seguem, vão embora. A mulher e as crianças ficam na poeira. Essa cena já nos tira do conforto. Nos avisa que dali para a frente não vai haver uma condição razoável, porque já não foi razoável aquela troca. E nos faz pensar o porquê daquilo estar acontecendo.

É interessante o vínculo que precisou ser construído entre esses irmãos tão diferentes. Cada um foi para um canto, estão espalhados pelo mundo e assombrados por essa irmã morta. Parece que houve a necessidade desse vínculo para uma sobrevivência daquele ambiente familiar árido onde os pais não consideram a existência dos filhos.

Situações polêmicas sempre surgem quando se junta a família. A mudança de lugar é aquilo que cada um constrói a partir de si mesmo, o outro lugar seria o fato de nascer e estar inserido dentro de uma família que tem sua dinâmica, onde o indivíduo tem um papel. A simples convivência da família extensa junto com a história individual dá um confronto, essa dupla inserção que o sujeito tem a partir daquilo que construiu de forma independente e aquilo que vive dentro dessa outra história que já estava rolando. Lembrando de "Totem e Tabu", quando essa história inicial já é programada, as grandes crises ocorrem. No filme um personagem, o filho caçula, deixa a família nova e vai para a família de origem. Como articular essas duas famílias? Como integrar? Parece que existe uma desintegração e que nunca vai poder ser integrado.

Este é um tema muito importante, porque nesse contexto falta o respeito de uma estruturação mental, de se ter a noção do que é diferença, do que é uma criança, o que é ter um filho, o que é endogâmico, o que é exogâmico, quer dizer, essas noções se perdem, e ali, então, há uma violência muito grande que não permite que as pessoas se estruturem. Contamos com a família como suporte para não haver a violência. É muito perturbador quando ocorre o contrário. E isso está desde o começo, quando o filho caçula manda sair do carro os filhos dele e a mulher. Não tem o menor cuidado, assim como ele também não foi cuidado, nem pelo pai, nem pela mãe, e essa violência vai se transmitindo e nessa cena se repete isso. "Se reencena" isso.

São modelos que foram perdidos. Aqui já estamos no território da cultura, de aspectos culturais, que são uma pátina, embaixo disso tem um vulcão, que são os instintos, que é o primitivo. A família, dentro da cultura, deveria poder representar uma certeza, um apoio. Mas nesse filme, a família é um tabu também, então aparece o tabu não só quando eles acabam com o pai, mas quando se quebra o tabu, quando uma das irmãs está namorando um negro e isso é insuportável, porque não faz parte dos mitos da família. Ou quando o protagonista tenta contar a verdade.

O protagonista insiste em trazer a verdade à mesa e a verdade é recusada sistematicamente em todas as frentes, chegando a ser banido por isso. A prerrogativa é de não vermos nossa parte primitiva, se formos pensar nos pacientes, quando apresentamos a eles os aspectos primitivos, o ódio, a inveja, é assustador. Aquilo vem envolto em torno de um tabu, de uma promissão, de uma moralidade. E o filme trabalha exatamente esse encaixe, essa nossa fragilidade humana, essa cultura, esses mitos, essa ideia de moral, ética, e como isso se quebra com a maior facilidade. Por outro lado, o filme traz também a necessidade da verdade, porque se não olharmos para ela, não há sustentação, não há condição de pensar, de integrar as emoções ambivalentes.

O momento mais violento do filme não é a surra que é dada ao pai, é o desmentido pós-anúncio do filho, a recusa, e vemos a tensão do filho, quando ele vai se retraindo.

E é a mãe quem o incita a se retratar. Ela se levanta com toda a pompa, e fala: "você está perturbado", "você é louco, pede desculpas", desvelando nessa fala tanto sua cumplicidade quanto seu próprio gozo.

Ferenczi tem um artigo onde descreve tudo o que acontece em Festa de Família, todos os tempos do trauma. Ele diz que o trauma não é só o abuso, o trauma também se relaciona ao fato de se afirmar que o abuso não aconteceu. É enlouquecedor, o abusado geralmente cria uma cisão. Ferenczi diz que abuso não é só abuso sexual, castigos, humilhações, todos os tipos de maus tratos são abusos, e a criança tende a se identificar com a culpa do adulto, porque o adulto ainda diz, em geral, que ela é culpada pelo abuso que está sofrendo, que não é abuso, que é amor. Então a criança confunde sujeito com objeto, amor com ódio, e ela enlouquece. Segundo ele, o melhor jeito de desfazer essa confusão é a denúncia, a reparação é a denúncia, mas alguém precisa acreditar em você.

Se não fosse a carta da irmã morta, que é de fato quem dá o desfecho, quem dá a voz para ele!

Mas tem outro personagem que dá vida a esse nascimento da verdade, que é o cozinheiro. E o namorado da irmã, que é negro, também.

Que pai é esse que não pode estar no lugar de pai, quando ele não protege os filhos e os usa para ter o gozo? Para ter o próprio prazer nesse nível, ele não tem a noção de que o outro é outro, não há um sujeito, você não o institui, não o respeita, de alguma forma você nega que ele existe. E isso é enlouquecedor, isso é traumático.

No filme os filhos não têm lugar para existir, eles vão sendo o objeto do gozo sexual dos pais. No texto de Ferenczi, "Confusão de língua entre os adultos e a criança", ele diz que o crescer sempre é traumático, porque a linguagem da criança não se encontra com a linguagem do adulto jamais. O filme pode ser visto como uma estrutura mítica familiar.

A vida e a morte estão ali. Cada um tem de encontrar seu caminho, e é muito sofrido quando o grau de violência foi maior, porque em torno da violência de fato nós nos construímos. Com essa violência e com afeto, mas o filme mostra algo desmedido. A intensidade da violência ultrapassa o limite. Como ultrapassar o tabu do incesto?

Há muitas formas de invadir um filho não amorosamente, o amor, o ódio. A violência é inerente à existência, tudo isso nos é familiar. Nós transitamos nisso. Estamos nos referindo à família, mas podemos transferir esse modelo para o intrapsíquico. No Livro Anual de Psicanálise foi publicado um artigo de Ogden sobre o nascimento da fantasia inconsciente, que pressupõe o narcisismo, e já pressupõe um intermediador. De uma maneira que vê o outro, que está imbuído nessa primeira constituição da subjetividade, com uma relação objetal muito tênue no narcisismo, mas ela está ali, de nascimento, e tem a violência como constituinte da passagem de sair dessa situação narcísica, porque é na família onde você vai pertencer a um grupo igualitário, portanto psiquicamente confortável. Psiquicamente idealizado, para essa noção de quem tem o outro, tem as diferenças, tem a realidade, tem as subjetividades que constituem cada um e não é uma coisa só.

Quando falamos em "Totem e tabu", de alguma forma nós saímos da angústia que o filme propõe, de mostrar o que é uma família. Ou seja, se a gente quer retornar, e quer dizer que aquilo é uma pré-família, ou que é uma condição primitiva, é como se ficássemos no lugar de poder observar aquilo de um ponto de vista um pouco mais confortável. O que angustia é vivenciar aquilo como um dado de realidade, é uma família onde aquelas coisas são reais e é a partir dessa realidade que tudo se constrói. Porém, se formos achar muito primitivo, fica uma análise mais facilitada. Ficamos um pouco distantes do drama que está sendo vivido lá. Como podemos nos inserir nessa realidade? O filme está falando o tempo todo que a realidade precisa aparecer.

Mas se formos pensar psicanaliticamente no nível do sujeito, em nível de realidade psíquica, como um modelo de realidade psíquica, podemos então extrapolar para a família, para o grupo, para a sociedade, então, a gente sai da angústia. A conversa fica mais fácil, porque temos o saber que pode ser aplicado sobre o filme, sobre a realidade que estamos vendo.

O angustiante é esse convite, é até do Dogma, como pensar essa realidade, a partir daquelas pessoas. O filme tem o desenvolvimento dentro do próprio filme, tem a própria realidade do filme. O abuso expresso no filme é metafórico também. Há o abuso de poder e as coisas chegaram ao ponto que chegaram, porque há algo que atua o tempo todo, uma posição de desligamento. Os irmãos eram unidos, mas ali havia algo que desligava, que permitiu que não soubessem da verdade. Então a irmã pega a carta, se inteira de alguma coisa que aconteceu o tempo todo, quando ela estava lá, mas da qual ela, aparentemente, não tinha conhecimento.

Aí vem aquela coisa que a gente sabe e não sabe. E o filme fica muito tenso porque essas duas faces que estão acontecendo em paralelo vão se encontrar.

Subjetivamente, ficamos nos colocando no calçado do outro, e imaginando o que sentiríamos se estivéssemos naquela situação. É todo um trabalho de identificação projetiva. Estou trazendo para o intrapsíquico, porque não tem como olhar para o externo, a não ser a partir da experiência pessoal, única para cada um de nós. No filme há olhares sobre uma realidade, tem um olhar que está tentando se manifestar e tem vários olhares que estão tentando calar aquele olhar. É nesse dilema que vai se construindo a tensão, para que o protagonista fique quieto, mas ele não podia ficar quieto, ele trazia sua verdade.

Eu só posso existir quando eu me dou conta que eu sou separada e só. E aí eu tenho que ter responsabilidade pelo meu estado de mente. E o outro passa a ser, a ter uma existência dentro da ética, dentro da ordem, dentro do respeito, mas sempre separados. Quando é um amálgama, uma fusão, é uma tentativa de não se ter sujeito. Então para o sujeito existir, ele tem que cortar esses vínculos. Quando o pai fala: "eu sei que vocês nunca vão voltar a me ver", indica que eles estão constituídos a partir daí, como sujeitos, eles têm vida própria. Para se constituir como sujeito, tem de matar o pai. Para qualquer sujeito e não só para o sujeito abusado.

Depois da saída do pai da festa, quando ninguém mais serve a bebida e a carta da irmã morta é lida, e o abuso se configura como um fato real, todos os convidados dançam. Eles não vão embora. O protocolo é seguir e nada quebra o protocolo. Ele faz a denúncia. E o outro anuncia que vai ter dança e café. E eles dançam. Saem todos dançando como se nada tivesse acontecido.

Tem a dança da família toda e depois tem a dança em petit comité que é mais dos irmãos, de madrugada, depois da leitura da carta. Essa é uma dança mais livre. De sobrevivência, talvez, essa última dança.

As famílias se mantêm, apesar de todos os abusos, de todas as loucuras. O protocolo é a garantia de que tudo continua. Para essa família, ou é o protocolo que sustenta o próximo encontro, ou é a conquista da verdade.

Nós enquanto analistas tentamos ajudar a construir uma mente mais continente, que propicia o desenvolvimento de si e dos seres mais frágeis, como das crianças.

Tezone no texto "Incesto, o corpo roubado" conta sobre dois casos clínicos de vivências incestuosas: uma menina da Argentina, exilada na França, é estuprada dentro da cadeia. Ela é confrontada com o chefe do funcionário que a estuprou e ela nega o estupro para não ser exposta a mais violência. E ele vai contando como ela revive na análise, já ter a vivência incestuosa com o avô. Ele utiliza este caso clínico para mostrar como se pode usar o outro como uma extensão do próprio corpo. É também uma violência, assim como a tortura. Quando você desconsidera que o outro é um sujeito que sente dor, que tem voz.

São formas do uso do outro numa violência tão grande como é o incesto. Eu acho que isso está vinculado a uma questão transgeracional, de violência transgeracional, onde a lei, o tabu do incesto que constitui a cultura, é, de alguma forma, essencial para nos estruturar e sustentar. Quando uma sociedade perde esse limite, a situação é muito grave.

No filme, a frase e a justificativa do pai são justamente nesse sentido: "vocês só serviam para isso". É o uso do outro nessa fala violenta, o abuso do outro. O que esse pai está retratando no filme é que está um pouco na posição de Deus. Se eu sou onipotente, não pode haver ninguém melhor do que eu. Essa é a posição colocada no filme.

É interessante a família, numa visão mais ampla do tempo, como dinastia também. Não apenas com essa família específica, mas incluindo mais gerações e a ideia do grande sucesso econômico representado pelo personagem milionário, enfim, não pode haver ninguém melhor do que esse pai. Ele chega a um ponto de arrogância que se coloca como o único personagem efetivamente desamparado da história. O único desamparado é o estuprador. Só tem amparo na própria violência. Podemos observar isso nos outros filmes, como Melancolia, onde há o desenvolvimento desse mesmo núcleo de discussão, através do casamento da personagem principal. Esse casamento é quase uma transposição desse filme. Não é a hora de pensarmos sobre o que é a família nos dias de hoje?

As crianças nesse filme não têm valor nenhum. No filme A caça, a criança é hipervalorizada, explora o valor do que a criança pensa e sente, mas há uma violência na escuta. Pensando esse aspecto, essa ideia tem uma patologia ali que nós estamos fora desse lugar. E ele fala dessa confusão de línguas, que a criança fala da linguagem da ternura e o adulto fala da paixão.

Como uma criança pode trazer sua sexualidade e como um pai pode acolher isso como ternura. Essa função da erotização está incluída na família, mas é um ponto que se ressalta na função paterna de não inibi-la, não negá-la, nem exacerbá-la. Mas há uma desconstrução da figura do pai na família de hoje, chegando a um modelo inverso. Ao invés do extremo poder, vemos que os pais se ausentam de sua função. Quer dizer, uma violência branca.

É importante também contextualizar o filme, porque tanto esse filme quanto Melancolia se passam em países escandinavos onde encontramos famílias muito ricas, com esses rituais todos. São pessoas que representam realmente a riqueza e a ideia do que é a civilização. O filme é uma denúncia dessa civilização, é o mal-estar dessa civilização, do que representa essa civilização. Não se trata da família com a qual costumamos trabalhar aqui. O Dogma faz essa crítica. Tenho a vivência de estar nesses países e posso dizer que estando lá é possível ver o que é escondido, o que está por trás desses rituais. O casamento em Melancolia mostra isso, novamente o ritual, quem fala primeiro é quem vai encantar o mundo de uma classe média alta. Em todos os jantares, o convidado principal, em geral um homem, senta-se ao lado da dona da casa e ele tem que fazer um agradecimento. Ele vai fazer um comentário de cada uma das pessoas. Nós não temos essa realidade aqui no Brasil, nós não temos esses rituais. Há uma ideia de que se deve ter essa convivência, o civilizado da convivência, os rituais. No filme eles são quebrados e o mestre do cerimonial fala "nossa, que difícil" porque ele tinha que continuar, a continuidade é a questão civilizatória porque ao romper se apresenta uma contradição. Não se rompe. Mantêm-se as aparências.

Há a questão das ausências, ausência do pai. O não limite é a criança sem limite. É o inverso, o uso das violências brancas. "Se dá" uma contraposição entre o exemplo, a civilização representada por um país riquíssimo, que seria o ideal, e por outro lado é nesses mesmos países escandinavos onde se tem uma altíssima taxa de suicídio, de alcoolismo.

Tudo aparece lá, suicídio, incesto, bebida, para se ter um pouco de intimidade, tem que ser na festa onde todos ficam bêbados. Tem até o ritual em determinadas épocas onde as pessoas vão ao local sem carro, de táxi, o dia da bebedeira está institucionalizado. Há o bufê, determinada comida, todo mundo bebe, come, canta e dorme na casa, porque ninguém pode sair do jeito que está. Homens e mulheres curtem a bebedeira, que está dentro de um ritual, porque é essa a ideia do civilizado, de uma sociedade altamente burguesa.

Talvez essa seja uma edição um pouco mais asséptica e rígida desses rituais, porque os rituais sempre existem. O filme italiano Parente é Serpente está repleto de rituais, não se trata de rituais tão nórdicos, nem nobres. Mas essa dinâmica, essa mesma estrutura, parece que é uma lupa numa condensação do que falta. O abuso acontece, não através de um incesto, mas há uma série de abusos entre pais e filhos num nível mais cotidiano, que são as nossas famílias. O ritual é uma tentativa civilizatória. Se você se insere no ritual é como se você garantisse uma mente civilizada, onde o ódio está devidamente contido.

No filme, ninguém está satisfeito com esse ritual. Temos a posição depressiva e a posição esquizoparanoide, alternadamente e aparecendo o tempo todo. Entretanto, esta alternância depende da forma como se lida, porque se trata de um filme sobre manipulação, no sentido de uma exo-manipulação: o pai se automanipula, a mãe também. A verdade quer aparecer na carta, através da força dos outros. Mas ainda assim, o pai não muda sua posição, ele a sustenta. Os filhos organizam-se para denunciá-lo. Há um ritual de subtração da autoridade, que no fundo denuncia um paradoxo. E justamente este paradoxo é explicitado pela forma através da qual os rituais do filme nada garantem. Há uma insatisfação generalizada e mantida através das aparências, e o casal parental é aquele que busca manter as aparências a todo custo. Inclusive ao final do filme, na cena na qual o pai entra para tomar seu café da manhã, como se nada tivesse acontecido.

Naquele momento há uma transformação, porque se instaurou uma nova realidade naquele contexto, com a quebra daquele ritual estéril. Podemos dizer que surge um outro, um movimento; surge uma relação entre as pessoas. O ritual tem essa dupla face, ele segura e ao mesmo tempo entrega. Porque foi possível reatualizar a situação. Os filhos puderam devorar novamente o pai.

Também percebemos através dos empregados uma crítica à sociedade patriarcal. Os empregados adquirem poder e confiança ao longo da trama, recusam-se a seguir as ordens do pai-patrão, resistem. O backstage começa a ficar visível, aparece a engrenagem. E, nesse momento, há um movimento da celebração privada para uma celebração pública, e com isto o lugar do pai fica questionado. Há espaço para aparecer também o namorado negro, a amante, o filho abusado.

A cena final, como no mito de Cronos, sugere a libertação da família, quando o filho fala: "você tem que sair para a gente poder tomar o café da manhã, porque senão a gente não vai, como família, poder tomar o café". A condição de cultura, Zeus não mata Cronos, não replica o modelo do pai. Ele o emigra para a terra dos bem-aventurados, onde vai formar a cultura. Zeus é a memória, é a cultura, então o pai como história. Essa não repetição do modelo implica uma condição do próprio tabu, o fato dos irmãos excluírem o pai e ter outro tipo de relação.

O filho caçula, no final do filme, se apresenta completamente diferente, muito mais sofisticado e humanizado. No início ele era um ogro que só urrava. Mas quando ele pede para o pai sair, ele fala baixinho, é sutil. É o processo de humanização que permitiu essa delicadeza, ter podido migrar da violência.

O papel da mãe é muito interessante, porque ela é a grande traumatizadora, porque não é o pai quem diz que não é verdade a acusação. É ela quem deveria proteger a criança, não a protegeu, e ainda a enlouquece dizendo que o abuso não aconteceu. Ela é uma Malvina Cruela. É muito bonita, alta, longilínea. Personagem maravilhoso, fala pouco. Tem muita classe. E, neste final, curiosamente, ela é perdoada. O pai é expulso, mas ela não vai com ele. Ela fica na cabeceira da grande nova mesa. É uma mensagem de que a mentira, o falseamento continua.

A proposta dos diretores e também a proposta da atividade é de diminuir ao máximo a situação de hipocrisia e, num certo sentido, trazer algo de verdadeiro. Os rituais podem, por um lado, ter o caráter organizador na sociedade, mas, por outro, instituir uma situação de perda da verdade de cada um, de certa forma, tornar-se algo hipócrita. Ao longo do filme com a retirada desses véus há a possibilidade de que a verdade possa ser resgatada, inclusive a própria função daquele pai pode ser resgatada. Então, a sustentabilidade da família, que foi dada em cima do deslocamento, da falsidade, da hipocrisia, sustentada por rituais ou preconceitos (como a canção preconceituosa entoada para o namorado da filha), pode ser resgatada. A possibilidade de que dentro das condições de cada um possa emergir algo mais verdadeiro, e inclusive podemos observar como as possibilidades simbólicas passam a surgir dentro de nós, há certo entusiasmo, quase uma festa.

Todas as cenas do filme são importantes e geram desdobramentos. Se aprofundarmos a questão do real, também é possível pensar na questão, por exemplo, que coloca entre a fala que denuncia e a carta que testemunha. De alguma maneira a fala sempre foi colocada em questão, anulada e após o surgimento da "prova" passou a ser inconteste, não havia como negar.

A carta escrita pela irmã morta que propõe uma espécie de brincadeira entre irmãos que revelará o que está escondido. E nesta brincadeira a irmã é acompanhada por um dos empregados, um terceiro que a ajuda nessa busca.

E é interessante pensarmos também que os empregados estão situados na cozinha. O chefe da cozinha ganha papel de destaque. Ele prepara os alimentos, algo básico da sobrevivência, mas que também vem sendo elaborado ao longo dos anos. Nesse sentido podemos traçar outro paralelo, de um lado algo sensorial e básico, o alimento, de outro, a necessidade psíquica, a verdade. O filme se desenrola mostrando uma espécie de paralelo, no qual o cozinheiro funciona como condutor tanto da verdade quanto da comida, dando suporte para que ambas emerjam. Pode-se pensar também em uma composição de vários elementos, desde estes representados pelos alimentos aos que foram surgindo para que a verdade viesse à tona.

O filme também aborda a questão da passagem do tempo. De alguma forma há um aprisionamento dos personagens nos lugares que ocupam e a saída de algum membro da família é muito complexa. Por exemplo, com a entrada do irmão mais velho na adolescência ele é expulso de casa para um colégio interno. E talvez possa ser pensada uma crítica às gerações, porque os mais velhos são os principais representantes dos rituais hipócritas, como os pais, os avós. São eles que ratificam a hipocrisia, atuando com força para que a verdade não apareça.

Associativamente nos remetemos à história de Cronos, que come as crianças para satisfazer seu próprio prazer. Não há nenhuma relação com a família, com o respeito, somente com o próprio gozo narcísico. Assim as histórias das crianças são sempre fantasia e, no fundo, este contexto também faz parte da manutenção do poder.

No filme Melancolia há também este clima de denúncia das forças que estão em jogo e, naquela situação, as empresas e corporações estavam em jogo, não o casamento da personagem. Estes tópicos podem nos levantar a questão de por que participar dessa reunião, pensar na curiosidade de como iríamos trabalhar. Foi possível associar, elencar ideias e conceitos. O filme possibilitou uma série de representações e também algumas questões que nos escapam, sem poderem ser digeridas. Pode-se fazer um paralelo também com o trabalho do diretor, o que foi projetado ou identificado, de que maneira trabalhou seus personagens, como foi construído o roteiro, como foi vivenciado pela equipe. Lars Von Trier, que também faz parte desse movimento, deu um depoimento em Cannes explicitando o papel das mulheres em seus filmes, sobretudo em Melancolia e no Anticristo, as mulheres são as denunciantes e os homens estão lá para serem detonados. Aqui o pai é um agressor, um estuprador, mas não há defesa para ele. Como no Anticristo, com o marido que deixou de ser psicanalista e virou terapeuta comportamental.

De alguma maneira esse exercício de construção nos leva a pensar as ideias de psicanálise aplicada e de psicanálise implicada. Não se trata necessariamente de decodificar a arte através das ideias psicanalíticas, mas de como é possível se servir da arte para desenvolver-se enquanto analista. A ampliação da capacidade crítica, reflexiva, simbólica e também nossa capacidade de transformação são interessantes formas de intersecção de campos artísticos com a psicanálise. E a criação pode ser uma saída para a vida.

Todo esse trabalho de articulação veicula muitas questões sobre a maneira pela qual estamos implicados com o processo, e usando nosso próprio processo investigativo para conhecer a realidade, uma investigação do campo, como foi salientado pelo Milton, não aplicar conhecimentos sobre o filme. Parafraseando o próprio Dogma, podemos pensar que como psicanalistas temos que assinar também um dogma, o dogma do reconhecimento.

Entretanto surge também a questão de como se pensar a psicanálise aplicada, como pensa João Frayze, qual o modo, como é o eixo de investigação e de gestão da realidade, qual a composição de cada um. Assim temos que não se trata de amor e nem de ódio, mas de conhecimento. E quem sabe pensar que o conhecimento se dá pela ficção, que conhecer a verdade é fazer uma boa ficção, como em um filme, um livro. Ter um poder de verdade numa boa ficção, muito mais do que encontrar a verdade naquilo que aconteceu. Retomamos aqui Eduardo Coutinho em um documentário, Jogo de Cena, ele rompe com a relação entre documentário e ficção. Freud, cem anos antes, ao dizer que não acreditava mais em sua neurótica também rompeu com essa relação, porque o que passou a importar foi o sentido e as ficções que vão sendo criadas.

Este tema já foi tratado aqui em grupo em conjunto com a Leda Herrmann, exatamente propondo discutir que se se usa a ficção como eixo interpretativo, se tem um eixo interpretativo comum a todos. Este eixo constrói uma linguagem comum, pelo menos um ponto de encontro, a partir do qual a ficção produzida atinge muito mais condições de elaboração e de se tornar inteligível, e, portanto, mais implicada, do que se se trabalha individualmente.

Colocado dessa forma podemos pensar também nos aspectos sociais do filme, o que há daquela sociedade, daquele tempo, daquele contexto, do eixo que foi dado para se investigar, para que se possa investigar a partir daí. E, nesse processo, há certo contorno do caminho a seguir, mas um contorno que não iniba o desenvolvimento das associações livres que possam surgir com a liberdade da discussão e que possam também ser elaboradas na medida em que surjam. O debate trouxe ideias muito mais difusas do que necessariamente convergentes e isso é interessante, porque é rico. Por outro lado, sustentar essa divergência é uma tarefa difícil, já que uma conclusão harmoniosa pode ser muito mais tranquilizadora.

 

Depois

"Foi bom para vocês? Para mim foi!", frase que surgiu imediatamente ao final do encontro. Entre divergências e convergências, foi forte a sensação de que valeu a pena, de que todos aproveitaram aquela ocasião. Aceitamos o convite da psicanálise e do cinema e vivenciamos algo que pôde ser desfrutado como um bom momento entre analistas implicados e não aplicados.

Embora seja impossível traduzir a experiência vivida, encontramos nesse modo um tanto quanto solto de apresentar o material uma maneira de oferecer ao leitor testemunho verossímil do que foi vivido por nós. Dessa forma, encerramos o jogo deixando-o em aberto, para quaisquer interpretações.

Talvez seja relevante acrescentar que foi possível realizar aquilo que havia sido imaginado por nós, embora não soubéssemos o que era esse "aquilo". Estávamos com os pés no chão da psicanálise prontos para alçar voo.

 

Referências

Vinterberg, T. (1998). Filme: Festen (Festa de Família). Produzido por Scanbox Danmark. Dinamarca.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 12/12/2013
Aceito em: 18/12/2013