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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.49 no.90 São Paulo jun. 2016

 

DEPOIMENTOS DOS EDITORES

 

1981: Azevedo / Lisondo

 

 

Ana Maria Andrade de Azevedo

Membro efetivo da SBPSP. a.m.andrade.azev@gmail.com

 

 

 

Quando Marina Massi me convidou para escrever algumas palavras como coeditora do Jornal de Psicanálise, durante a editoria de Fajga Sterling, pensei.... Nossa! Quanto tempo já passou!!

Na verdade me pareceu que muito pouca coisa restava em minha memória, passados mais de 30 anos! Busquei em meu consultório, dentre muitas publicações, o número do Jornal em questão, 1981/82. Bem no fundo de um armário vejo, de repente, uma pequena pilha de publicações envelhecidas, que nem eu mesma sabia que lá se encontravam!

Imediatamente o "tempo" fez-se outro, as lembranças e os detalhes voltaram e tornaram-se partes do presente, aquelas experiências. Afinal, 35 anos não pareciam tanto!

Voltou-me à mente a figura de Fajga, uma mulher admirável, bonita, inteligente e, principalmente, uma analista séria e comprometida com seu trabalho.

Foi um prazer trabalhar ao seu lado. Questionando a função e o objetivo de um Jornal de Psicanalise dos candidatos, Fajga instituiu a seção "Anotações à margem", que, sem dúvida, enriqueceu muito o Jornal. Nessa seção, um membro da Sociedade seria convidado para comentar o trabalho clínico apresentado. Uma "Reflexão sobre reflexões".

Escolho aqui para a publicação o trabalho de Alicia Dorado de Lisondo, publicado naquele número, intitulado "Era uma vez uma analista grávida".

 

Era uma vez uma analista grávida...

Alicia Beatriz Dorado de Lisondo1

 

A um neném...

Primeiro momento de encontro - Sessão de Segunda-feira

X - Está na sala de espera aguardando. Entra rindo. Deita-se e fica em silêncio.

Parece paralisado. Tenho a sensação de que está dormindo.

Vira-se no divã.

Transpira. Não pode falar.

Após uma eternidade, 25 minutos.

T - Parece que tem muito medo.

X - Você está me abandonando... Eu estou com muita raiva de você.

Tenho algo físico que não deixa as palavras surgirem. Várias vezes me ocorreu algo para dizer, mas não consegui.

Ele está com a musculatura contraída, os punhos fechados, segurando uma explosão.

T - Eu acho que para você não falar é para resguardar-me de sua profunda raiva furiosa.

X - Pode ser. Com os pés bate com força na mesa que está a seus pés, onde há um abajur que ilumina a sala, e uma samambaia. Ficamos às escuras. Enrosca-se na samambaia e corta algumas folhas. Fiquei paralisada. Só o neném se mexia. Depois de recobrar-me ante o impacto.

T - Você quer acabar com a luz dentro de mim.

X - Eu acho que não.

Senta-se no divã, mexe nos fios do abajur, reaparece a luz. Joga as folhas quebradas no cinzeiro.

X - Eu mexi pelos reflexos desenhados no teto.

T - Quer cuidar de mim, consertar os estragos.

X - Eu acho uma grande sacanagem. Uma grande filha da putice da sua parte. Eu aqui amarrado. Eu acho lógico, racional, clara a sua decisão de deixar São Paulo, mas eu não sinto isso. Sinto-me humilhado de vir aqui a falar com você, quando você vai deixar-me. Eu gostaria que você se sentisse culpada. Não irei a Campinas. Pensei em lhe telefonar para não vir. Mas não tem sentido para mim. Você se justifica, mas é como se não perdesse nada me deixando.

T - Parece que não acredita que eu também me preocupo com você. Acho que prefere deixar-me antes de nos despedirmos.

X - Eu tenho muito para lhe falar, estou numa situação antagônica. Tenho medo de escutar muitas verdades que sei de mim e outras tantas que não sei. A morte não é uma saída para mim.

No dia seguinte aparece com um pintinho doce que deixa na sala de espera. Diz que é para a pacientinha de meu colega. Mas se dá conta de que é para mim. Tem pavor que eu o jogue fora com medo que esteja envenenado. Até que me entrega uma bandeja, que aceito.

X - Eu sei que não os vai jogar fora, também não precisa comê-los aqui.

T - É como se você pudesse acreditar que não o estou jogando fora, desprezando-o mesmo, nos separando ou mudando nosso cenário habitual de trabalho; que eu o aceito.

X - Não irei a Campinas, não posso viajar três vezes por semana. Ao menos sinto que você é uma mãe desalmada; mas que me deixa uma família substituta. O que eu não entendo é por que está cismada em continuar até as férias e não parar aqui.

T - Esta despedida pode-nos ser tão dolorosa, que você prefere poupar-nos esse passo. Muito espontaneamente, após falar, me dei conta que estava falando também de mim... nós.

X - Se você me fala que sofre ao me deixar, eu choro aqui mesmo. Chora pela primeira vez intensamente. Desci com a bandeja. Era a última sessão do dia. Da porta da igreja, frente ao consultório iluminado com a luz, talvez da esperança, me aguardava... !

Comentários

Os diferentes autores, desde Freud, parecem coincidir ao tentar elucidar o mistério do mundo psicótico no portal de horizontes especificamente humanos: o símbolo e a angústia. Com acento freudiano "No curso do processo desiderativo, a inibição por parte do ego, leva a uma moderação da catexia desiderativa que leva a reconhecer este objeto como não real" (Freud, 1929).

X foge por meio da alucinação, sem poder sair de um círculo vicioso, fechado. Alucina-se poderoso, potente, para se gratificar, ao se sentir abandonado. Apela para a fantasia para não lidar com a realidade externa e interna. O seu mundo absoluto, onipotente, à sua disposição, o deixa prisioneiro de sua loucura. Mas a realidade cai, qual furiosa guilhotina, arrasando a esperança. A nossa despedida não pode ser evitada.

X sintoniza em alta voltagem com o processo primário em uma total descarga. Esse esboço de ego enfraquecido, partido, não pode conter uma avalanche afetiva. Não tem tempo, estrutura, força para testar o de fora, para emitir um juízo, entender, discriminar uma recordação de uma percepção. Não existem o semelhante e o diferente, o sujeito e o predicado, só se pode falar a partir do que se é. Seu mundo é um caos, como um imperativo categórico de seu ser. Sua palavra é a verdade absoluta, a sentença final, que não se detém. Não pode pensar.

Com sabor kleiniano podemos distinguir a equiparação da simbolização.

À medida que o ego vai evoluindo, se estabelece a partir dessa realidade irreal, uma verdadeira relação com a realidade. Consequentemente o desenvolvimento do ego e a relação com a realidade dependerão do grau de capacidade do ego, em uma etapa muito precoce, para tolerar a depressão das primeiras situações de angústia.

O Simbolismo é o fundamento de toda sublimação e de todo talento, já que é por meio da equação simbólica que coisas, atividades e interesses se convertem em tema de fantasias libidinosas. (Klein, 1930)

O pensamento esquizofrênico é para o dr. Bion "Um modo de atuar que serve à escisão do cliente ou à identificação projetiva..." e mais adiante afirma "A dificuldade no uso de símbolos, por conseguinte no uso de substantivos e verbos" (Bion, 1972).

Em uma olhada à escola francesa, a nota de distinção entre neurose e psicose corresponde à distinção entre repressão primária e forclusion.

A repressão pode considerar-se como a colocação entre parênteses ou a ocultação maliciosa de uma experiência já virtualmente estruturada. É fácil compreender que o que tem velado assim, pode novamente, mediante o auxílio de circunstâncias favoráveis, ser desvelado e reintegrado à corrente dialética da experiência. (Rifflet-Lemaire, 1970)

Coincidiria com a clássica postura freudiana ao pontualizar o conflito entre o ego e o id na neurose; conflito entre o ego e a realidade na psicose.

O termo forclusion - ou repúdio - corresponde em alemão a verwerfung, utilizada pelo próprio Freud no caso "Homem dos Lobos". Essa impossibilidade de recordar a experiência repudiada (forclose) tem a ver com o fato de que o psicótico não tomou consciência realmente da diferenciação do significante e do significado. Não teve nunca acesso à simbolização: um significante se põe no lugar de um significado que não é. (Rifflet-Lemaire, 1970)

A forclusion, ao contrário da repressão primária, não conserva nunca o que re-prime ou repudia, o censura ou o anula pura e simplesmente. (Freud, 1920)

O que teria X forcluído? Em um voo especulativo e arriscado me inclinaria a pensar que se trata de uma experiência primitiva de ser morto em vida, abortado. Ele aborta sua vida, mas não pode relacionar, dialetizar, mediatizar essa tragédia com a vivência original para dar sentido a sua história.

Se o trauma do nascimento instaura a repressão primária, então o convite é para abrir as portas às sombras misteriosas do psiquismo fetal. E aí encontrar no citoplasma geracional inconsciente os desejos que nutrem e fazem ao homem o sujeito, o estranho dele mesmo.

Que vivências primeiras ficam como pisadas, e sempre renovadas com o andar?

X chegou a um mundo já configurado. Estava vivo no mundo dos seus pais de um modo peculiar, muito antes de nascer já havia nascido. Inóspito o berço de uma sepultura.

X - Às vezes penso que meus pais me queriam para substituir meu irmão de 11 anos que morreu...

Pausa.

X - Não, eu já tinha nascido quando ele morreu. Tenho um outro morto quando eu tinha seis meses. A minha mãe falava que o meu pai queria tanto filho. Teria a casa cheia. Ela fez vários abortos. Eu acho que era assim, meu pai queria ter relação, e se ela ficasse grávida era para se danar... Meu nome é o masculino de uma irmã morta, costume de minha família colocar o nome de um morto.

Pareceria que X não conhece o amor e essa falta, essa carência original é mais insuportável e dolorosa para o homem que o peso arrasador do ódio. Prefere ser o Deus do mal em vez de ter o vazio como seu modo de ser. Ele goza com essa pseudoidentidade.

Em "Além do princípio do prazer" Freud (1920) confirma categoricamente: "A meta de toda a vida é a morte". Talvez superando o dualismo clássico e com um enfoque dialético se encontre sentido para a vida à sombra da morte.

E, assim sendo, nem o reduto da morte neste mundo sombrio seria uma alternativa viável para X. Nascimento e morte são as duas certezas humanas. X talvez sonhasse com a paz celeste no retorno ao paraíso perdido, ao ventre materno. Mas sua origem foi um buraco filicida. Para onde retornar? A morte nele é a forma de viver, morrendo. Ele insiste preso em uma teia como uma aranha. Parece estar à procura daquele significante forcluído. A busca do sentido e a significação como desejo nem sempre explícito. Ele quer uma mãe, e ante a falta, ele sonha ser Mulher-Homem. Deus-Diabo. Teria assim o poder da vida e da morte.

Klein e Bion enfatizam a importância desse instinto de morte, tendência à destrutividade, como fundamento do fenômeno psicótico. Pareceriam opostos em uma estrutura única, implicando-se mutuamente, atraídos polarmente em uma essência comum, mas contrariados em seu curso.

X não pode amar porque os acompanhantes do amor são terríveis.

Nesta sessão ele está expressando com uma força, uma intensidade, difícil para mim de suportar. Seria mais fácil que ele o fizesse verbalmente. A palavra é mais tranquilizadora do que a atuação.

Eu precisei colocar somente o negativo, a agressividade em palavras para proteger-me. Ele me corrige; também pode sentir algo bom. O abajur, a planta, a luz, não sou eu, são representantes, reflexos de mim. A escuridão pode ser este mundo uterino no qual quer entrar em total simbiose. Em outros momentos, quando lhe interpreto o amor, esqueço o ódio. Sem fazer a síntese que ele não pode fazer, desespera-se mais ainda. A cisão é mais completa, não só amor-ódio, mas também ideia-afeto. Já perdi a ocasião de uma interpretação feliz, a tempo, como outras tantas vezes. Só se abre uma esperança com a minha última intervenção, expressando concretamente o meu interesse, o meu amor por ele.

Por que aceitei os pintinhos? Que fazer? Na sessão anterior senti o desejo dele de conquistar-me como mãe. O pintinho é, nascido do ovo, um dos mitos do nascimento, mas também ele é um pintinho que quer ser pintão. Ser aceito na sua identidade. Quer ser nomeado como X por mim. Reconhecido no amor. Se apresenta em bandeja para me agradar. Se eu estou grávida e com um pintinho ele me oferece uma multidão. Missão difícil para mim e talvez por isso, pelas dúvidas não esclarecidas na sessão. Um conluio. Como deixar a um bebê em desespero? Vive as minhas intervenções como argumentação lógica. Tem razão,o inconsciente é irracional.

Como eu posso me fazer diferente de sua mãe, para seu mundo trágico quando eu o deixo? Como mudar esse panorama senão por meio da incorporação, identificação, assimilação de um objeto, de uma relação, uma mãe que lhe permita uma vivência diferente? Uma semente fértil, não deserto. Precisava a expressão de uma comunhão sacramental, estar dentro de mim concretamente.

Não sei se a única e melhor aproximação em relação ao paciente seria a interpretação clássica. A aceitação da bandeja pode também ser entendida como uma atuação ou contraidentificação introjetiva com o paciente. Questiono se essas categorias de pensamento científico dizem respeito a uma realidade humana que transcende ao campo psicanalítico. Lógico que de minha parte não havia espaço para a não aceitação do presente. Ele ficou dentro de mim como espero estar viva nele.

Creio ter entendido sua resposta. Se não estou denegrida, quebrada, ele pode conter-se, reconhecer-se, espelhar- se em mim para ser ele. Então torna-se mais difícil despedir-se. Ao final, para ele, eu sei ser mãe. O neném revolucionou a minha vida.

X me aprecia e por isto sofre a separação, porém este amor traiçoeiro assusta simultaneamente com suas garras sempre alertas. O pintinho é a metáfora da ambivalência: doce mas envenenado. Me crava as unhas para me assegurar.

E mais uma vez, essa vez inconscientemente, eu me incluo num lapso, "pode-nos". Eu me surpreendi ao me escutar. Nesse deixar-me penetrar por ele mais livremente, senti em seu eco algo de verdade. Alguém sofreu por ele alguma vez? De mensagem inconsciente para o inconsciente. Aí nos encontramos. Porque em esse momento falei também desde minha verdade, a minha preocupação e dor.

Também me foi preciso uma linguagem concreta, singular. Se seu universo não é simbólico, não é temporal, não se configura em coordenadas especiais universais, como pretender "chegar lá" desde "aqui".

Se o psicótico, como afirma Leclaire (1968), "És em suma un agujero original que no podria encontrar nunca su propia sustancia, ya que esta no habría sido nunca otra cosa que sustancia de agujero, y aquel no podría ser anulado, siempre de un modo imperfecto". Como atingir ao buraco a partir do próprio buraco e não de outra realidade, a substância, a existência, o ser preenchido. Só com amor.

Temo aumentar com essa despedida um buraco original quando foi tão difícil iniciar a costura, se é que alguma vez se iniciou. Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas, pareces com o mundo na tua atitude de entrega. Meu corpo de lavrador selvagem te escava, e faz saltar o filho do fundo da terra.

Ah os copos do peito! Ah os olhos da ausência!
Ah as rosas de púbis! Ah tua voz lenta e triste!

(Neruda, 1978)

Eu estou em uma corrida. O que é que posso fazer se de fato, por algum motivo eu entrei com alguns quilômetros de desvantagem?
Vou chegar atrasado mesmo.
Não sei se posso engalinhar.
Invejo aqueles que na infância aprenderam o que é o amor, e não precisam se debater a vida inteira como eu com isto.

(O canto desesperado de X)

E por isto a "Um neném", meu filho, a este "neném", meu paciente, ambos em gestação que expressam o reconhecimento aos outros implícitos; meu esposo, esta Terra quente, a outra Terra original, para nomear a tantos que amorosamente me acompanham, permanente fonte de inspiração, nesta luta pela vida.

Nota: Um ano mais tarde. Ele tinha razão; eu ganhei um mínimo. Me cumprimentou telefonicamente ao saber do nascimento do neném e tentou retomar o tratamento em Campinas.

 

Referências

Bion, W. (1972). Volviendo a pensar. Buenos Aires: Horme.

Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago.

Klein, M. (1930). La importancia de la formación de símbolos en el desarrollo del yo. Obras Completas. Buenos Aires: Paidós.

Leclaire, S. (1968). Psychanaliser. Paris: Seuil.

Neruda. P. (1978). Antologia poética (6ª ed.). Rio de Janeiro: José Olympio.

Rifflet-Lemaire, A. (1970). Lacan. Buenos Aires: Editorial Sudamericana.

 

 

1 Do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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