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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018
INTERFACE COM A CULTURA
Sobre A história dos ossos: uma história de desenlutamento
On The history of the bones: a tale of unmourning
Sobre La historia de los huesos: una historia de desenlutamiento
Sur L'histoire des os: une histoire de désendeuillement
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Membro efetivo e analista didata de da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas, GEPCampinas. Campinas. vlamannoadamo@gmail.com
RESUMO
Desenlutamento é um conceito apresentado por Jean-Claude Rolland, em conferência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em agosto de 2017. Enlutamento e desenlutamento, segundo Rolland, são neologismos que permitem explorar o processo desde a introjeção do objeto que organizou a melancolia até o trabalho de luto que desligará a libido. O trabalho de enlutamento melancólico "conserva" o objeto e investe a dor como equivalente a uma libido do objeto, a dor tornando-se o substituto do objeto que a gerou, tendo como primeiro efeito uma grande restrição da subjetividade. O desenlutamento dá continuidade ao trabalho de luto e desfaz a condensação melancólica do sujeito com o objeto ao criar entre eles uma interlocução. No presente texto a autora tece articulações entre estas formulações e a novela A história dos ossos, de Alberto Martins, cujo enredo versa sobre o filho lidando com a perda do pai.
Palavras-chave: melancolia, trabalho de luto, palavra viva, trabalho de sonho
ABSTRACT
Unmourning is a concept that was introduced by Jean-Claude Rolland during the Sociedade Brasileira de Psicanálise (Brazilian Psychoanalysis Society) Conference in São Paulo in August, 2017. According to Rolland, mourning and the unmourning are recently coined terms that explore the process from the introduction of the object that organized the melancholy up to the work of mourning that will turn off the libido. The work of melancholic mourning "preserves" the object and employs pain as an equivalent of the object's libido, where the pain becomes a substitute of the object which caused it, having a significant restriction of subjectivity as its first effect. The unmourning allows the work of mourning to be continued and undoes the melancholic condensation of the subject with the object by establishing a dialog between them. In the present paper, the author articulates insights between these formulations and A história dos ossos (The history of the bones), novel written by Alberto Martins, in which a son is dealing with the loss of his father.
Keywords: melancholy, mourning work, living word, dream work
RESUMEN
Desenlutamiento es un concepto presentado por Jean-Claude Rolland en una conferencia impartida en la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo, en agosto de 2017. Los términos enlutamiento y desenlutamiento, según Rolland, son neologismos que permiten explorar el proceso desde la introyección del objeto que organizó la melancolía hasta el trabajo de duelo que desligará la libido. El trabajo de enlutamiento melancólico "conserva" el objeto e inviste el dolor como equivalente a una libido del objeto, convirtiéndose el dolor en el substituto del objeto que lo generó y teniendo como primer efecto una gran restricción de la subjetividad. El desenlutamiento da continuidad al trabajo de duelo y deshace la condensación melancólica del sujeto con el objeto al crear una interlocución entre ellos. En el presente texto, la autora teje articulaciones entre estas formulaciones y la novela de Alberto Martins, A história dos ossos (La historia de los huesos), cuya trama versa sobre un hijo que lidia con la pérdida de su padre.
Palabras clave: melancolía, trabajo de luto, palabra viva, trabajo de sueño
RÉSUMÉ
Le désendeuillement est un concept présenté par Jean-Claude Rolland, à l'occasion d'une Conférence de la Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Société Brésilienne de Psychanalyse de São Paulo), en août 2017. Endeuillement et désendeuillement, selon Rolland, sont des néologismes qui permettent d'apprendre le processus qui s'étend depuis l'introjection de l'objet qui organise la mélancolie jusqu'au travail de deuil qui éteindra la libido. Le travail d'endeuillement mélancolique "conserve" l'objet et investit la douleur comme équivalente à une libido de l'objet, la douleur devenant le substitut de l'objet qui l'a générée, en ayant comme premier effet une grande restriction de la subjectivité. Le désendeuillement continue le travail de deuil et défait la condensation mélancolique du sujet comme objet en créant un dialogue entre eux. Dans ce texte-ci, l'auteur tisse des liaisons entre ces formulations et A história dos ossos (l'histoire des os), nouvelle d'Alberto Martins, dont l'intrigue repose sur le fils qui gère la perte du père.
Mots clés: mélancolie, travail de deuil, mot vivant, travail de rêve
Desenlutamento é um conceito apresentado por Jean-Claude Rolland, do qual tive conhecimento durante sua conferência na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (2017a).
Tomada por essa concepção, me vi às voltas com a novela A história dos ossos, de Alberto Martins (2005), e instigada a alcançar alguma articulação entre o conteúdo da novela e algumas formulações de Rolland.
Em "Luto e melancolia" Freud utiliza a fórmula segundo a qual, durante o doloroso trabalho do luto, o objeto perdido deve ser acessado em todas as suas variadas representações, ocorrendo durante esse tempo uma verdadeira "devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros propósitos ou a outros interesses" (Freud, 1915/2006, p. 276). O sujeito vive um processo que poderia ser considerado adoecimento, caso não fosse tão corriqueiro e natural, pois grande parte da energia psíquica disponível fica ocupada nessa devoção ao objeto perdido.
O modo de se desligar desse objeto e liberar a energia psíquica que está investida nele é o que Freud chamou de "trabalho do luto": o teste da realidade revela que o objeto não mais existe, exigindo que a libido investida nele seja retirada. Essa exigência gera uma forte oposição, pois uma posição libidinal nunca é abandonada de bom grado, sendo tão forte, que provoca um desvio da realidade em direção ao investimento das representações do objeto perdido. Em função disso, o desinvestimento do objeto é feito pouco a pouco e com grande dispêndio de energia psíquica, o que, por sua vez, prolonga a existência do objeto perdido. Durante esse processo cada uma das representações é evocada, hiperinvestida e posteriormente desligada, fazendo-se o domínio da realidade da perda de forma fragmentária e penosa. Ao final desse trabalho, para Freud, o eu fica outra vez livre e desinibido, podendo reinvestir libidinalmente novos objetos.
Diferentemente do sujeito enlutado, o melancólico não sabe "o que perdeu" na perda, não consegue distinguir conscientemente "quem perdeu" de "o que perdeu" nessa perda. Trata-se, portanto, de uma perda objetal retirada da consciência (Freud, 1915/2006).
O sintoma central e definidor da melancolia é a diminuição da autoestima, "encontrando expressão em autorrecriminação e autoenvilecimento" (Freud, 1915/2006, p. 276). Para Freud esse ataque ao Eu, que danifica profundamente a autoestima, está, na verdade, dirigido ao objeto que foi internalizado ambivalentemente após a perda. Assim, a autocensura do melancólico seria uma repreensão, um ataque, ao objeto perdido com o qual se identifica objeto este ao mesmo tempo amado e odiado. Esse ódio destrói o Eu do sujeito, que está identificado com o objeto de amor odiado, ficando com um empobrecimento significativo do Eu. No luto é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia é o próprio ego.
Portanto, é parte essencial do trabalho de luto representar uma experiência de perda por vários ângulos diferentes investir, desinvestir e reinvestir a representação do objeto perdido.
Rolland (2017a, 2017b) esmiúça e aprofunda a essência do trabalho de luto concebido por Freud, trazendo no centro deste processo a palavra com endereçamento discursivo ao objeto perdido e criando uma interlocução entre sujeito e objeto perdido.
Enlutamento e desenlutamento, diz Rolland (2017a), são neologismos que permitem explorar o processo desde a introjeção do objeto que organizou a melancolia até o trabalho de luto que desligará a libido.
O trabalho de enlutamento melancólico "conserva" o objeto e investe a dor como equivalente a uma libido do objeto, a dor tornando-se o substituto do objeto que a gerou, tendo como primeiro efeito uma grande restrição da subjetividade. O desenlutamento dá continuidade ao trabalho de luto e desfaz a condensação melancólica do sujeito com o objeto, ao criar uma interlocução entre eles. Ao ser vascularizada pela palavra e pelo discurso, a confusão melancólica se desfaz, a ligação passional afrouxa e a dor, dissimulada pelo recalque, alivia. O objeto do investimento anterior torna-se objeto do endereçamento do discurso e põe em movimento, através da palavra, uma representação a outra, um significante a outro (Rolland, 2017a).
A instauração da interlocução, afirma Jean-Claude Rolland, evolui para um diálogo e cria condição para a subjetividade:
é estarrecedor pensar que a língua, do modo pelo qual é transmitida à criança e antes mesmo que se aproprie daquela como ferramenta de troca e de comunicação, serve para que a criança construa uma identidade e uma interioridade. Nesse caso, poder-se-ia pensar que o poeta encontra uma função "subjetivante" da língua, encoberta secundariamente por outras, portanto, uma língua arcaica e perdida, e que, para o nosso grande prazer, ele nos coloca em contato com ela. (2017a, p. 7)
Enquanto a melancolia retarda o máximo possível o trabalho de luto, o desenlutamento põe em movimento o trabalho de luto na sua característica essencial, isto é, buscar uma linguagem para falar sobre a perda, encontrar uma palavra viva para vencer a escuridão e o silêncio.
A história dos ossos
A história dos ossos, novela que dá título ao livro de Alberto Martins, e O cão no sótão, que com ela faz par, me auxiliam a pensar o lugar da palavra no processo de desenlutamento, desde a obsessão pela escrita, até o retorno, anos depois, à cidade natal, para dar um destino aos ossos do pai, removidos do cemitério, que, privatizado, está prestes a ser alugado para um terminal de containers.
Em O cão no sótão o narrador introduz sua história através de um prólogo:
Pouco depois de chegarmos a São Paulo meu irmão mudou-se para o quarto dos fundos, separado da casa por um quintal de cimento. Dentro, ficamos eu, a mãe e uma tia que viera ajudar no trabalho doméstico, naqueles dias em que o nome do pai era impronunciável entre nossas paredes. O quarto, que minha mãe havia entulhado de material de limpeza e sobras de mudança, fora usado pelo inquilino anterior como laboratório fotográfico e, antes ainda, como oficina de encadernação. Tinha as paredes pintadas de preto. Nos cantos, amontoavam-se bacias de plástico, pinças, tesouras, escovas, um prelo, panos velhos, baldes e latas de cera. O irmão não se importou com nada daquilo. Deitou um tampo de porta sobre dois cavaletes e passava horas escrevendo. (Martins, 2005, p. 13)
De dia o irmão ainda o deixava entrar e remexer no entulho. Nessas ocasiões descobriam juntos prendedores de papel, faquinhas de osso e penas de metal, que o irmão examinava com o cuidado de um arqueólogo. Então conversavam sobre literatura, um assunto que o apaixonava. O irmão falava de alguns poetas franceses, que conheciam bem.
Escrever, dizia o irmão, não era um projeto para a vida inteira, se conseguisse escrever uma única página viva, era assim que se expressava, a segunda parte de sua vida se cumpriria na mais absoluta "imprevisível e irremediável liberdade" (Martins, 2005, p. 14).
Nessas primeiras narrativas o autor nos faz entrever tentativas de instalação de um trabalho de luto. O irmão, seu duplo especular, naqueles dias em que o nome do pai era impronunciável, naqueles dias quando não há lamento sobre a perda do pai, pois essa ainda se configura não como perda do objeto, mas sim como a perda do próprio ego (Freud, 1915/2006), naqueles dias de profunda dor trancafiada no quarto dos fundos, num quarto com paredes pretas, cheio de entulhos, sobras de mudanças, de coisas-em-si ainda desligadas do afeto, naqueles dias ele procurava a palavra viva, ele procurava uma única página verdadeiramente viva capaz de propiciar um trabalho de luto libertador.
No entanto, na sequência, o que encontramos é um retrocesso a uma identificação melancólica com o objeto: o rapaz cada vez mais fechado em si mesmo, fazendo refeições sozinho no quarto, o seu vulto sendo visto pelo vão da porta. Algumas vezes, de madrugada, na mesa da cozinha "roíam calados pedacinhos de pão borrachento, enquanto o ruído da geladeira conversava por eles" (Martins, 2005, p. 14).
A mãe passou a ver com temor a paixão desmedida dele pela escrita, e então lhe arranjaram, já que ele gostava tanto de escrever, um emprego no escritório, um trabalho burocrático, que o levava a inquirir exaustivamente cada folha de cima a baixo, a tomar notas, repassá-las para memorandos que em seguida remetia aos superiores.
Tempos depois, não era mais o rapaz de gestos contidos, o rapaz que trocava o dia pela noite, buscando ao menos uma única página verdadeiramente viva, tempos depois ele passou a redigir, dia após dia, esboços de contratos, pareceres, petições.
O trabalho de luto é abortado, e a melancolia se instala. Onde a palavra viva era buscada, encontramos um substituto para sua profunda dor: o manuseio compulsivo de palavras mortas.
A palavra morta é a Coisa que sufoca, que deixa sem ar, é o sono sem sonho, o torpor. A palavra viva é uma palavra por dizer, o verbo no infinitivo confere com determinação a ideia de continuidade, de um dizer que está sendo dito e de um dizer que está sempre por ser dito (Lamanno-Adamo, 2015).
Um dia, ao visitar o irmão no escritório, em vez da limpeza que encontrara nas visitas anteriores, encontrou o tampo da escrivaninha coberto por todos os tipos de arquivos, grampos, alfinetes, pinças e uma infinidade de quinquilharias sem nomes: "perseguia uma ideia, perdia-a; engasgava num silêncio prolongado, voltava à superfície, a pele branca brilhava de suor, as mãos giravam nervosas uma barrinha de metal" (Martins, 2005, p. 16).
Nesse momento, evidencia-se uma tentativa de desenlutamento, isto é, de retorno ao trabalho de luto interrompido. Com aspecto febril, o irmão disse que vinha mudando suas ideias acerca da escrita, "agora que tinha que zelar pela transcrição exata dos autos, via que todos os processos haviam se originado na palavra, na palavra falada, por isso estava concebendo uma peça, uma peça de teatro, um monólogo a muitas vozes" (Martins, 2005, p. 16).Um dia se aproximou devagar e se pôs a escutar o irmão. Com nitidez espantosa ouviu cada frase que o irmão proferia e transcreveu sílaba por sílaba. No quarto entupido de livros, o rapaz sentado à mesa falava:
ainda uma voz por aqui? Não querem sentar-se ... mas basta, basta de teatro ... sou escrivão da província, tudo que faço é ler, reler artigos, raramente alterar um título. Vês a pilha de processos sobre a mesa?... E fechem bem a porta! Para passar a limpo esses autos preciso estar só como num poço ... Pense, pensar-se, estar penso quanto exercício nesse exercício ... Mas o que é isso? De todos os meus auditores, quedou-se um. Quedou-se uma cauda ... E posso ouvir-lhe a respiração. Não, não é uma cauda! É um cão e como se abana! Avante animalzinho. Queres escutar o solilóquio de um sozinho? Alguém que vive do ócio como tu será o melhor ouvinte à minha exposição. Afinal não há nada que estimule tanto um homem a falar quanto um discreto e dissimulado espectador. Por isso, acomoda-se num canto enquanto me apresento. (Martins, 2005, pp. 19-20)
Transcreveu a fala solitária do irmão, isto é, do seu duplo em busca de um interlocutor, por vários dias seguidos. Fez isto sem contar a ninguém. Numa certa altura não ouviu mais vozes, juntou as forças e foi para casa, exausto. Passou o resto do dia feito um zumbi e no início da noite teve febre.
Na tarde do dia seguinte foi despertado pela notícia: o fogo tinha consumido todo o imóvel, tudo não passava de um tufo carbonizado, de todo o escritório restava apenas o carvão, "que se tornava cinza, que se tornava pó que o vento soprava espalhando na calçada" (p. 33). O pensamento inconsciente organiza-se aqui "como um jogo em que o diretor de cena permanece inalcançável" (Rolland, 2017b, p. 105). O nome do pai se mantém impronunciável.
A primeira parte da novela, O cão no sótão,põe em evidência o espectro melancólico do luto: o nome do pai é impronunciável (sujeito e objeto da fantasia não se distinguem um do outro). O rapaz está isolado, trancafiado no quarto pintado de paredes pretas. Ele busca, em meio a um amontoado de Coisas, ao menos uma página verdadeiramente viva capaz de propiciar um trabalho de luto libertador. Esta tentativa é abortada, e a busca da página viva se transforma em um manejo burocrático das palavras: uma tarefa inesgotável de conferir papéis, letras e arquivos mortos. Tempos depois ele tenta novamente retomar o trabalho de luto e recomeça o trabalho de perseguir uma ideia, buscá-la e perdê-la, engasgar num silêncio prolongado, voltar à superfície: "viu que todos os processos haviam se originado na palavra, na palavra falada, por isso estava concebendo uma peça, uma peça de teatro, um monólogo a muitas vozes" (Martins, 2005, p. 16). Tentativas desesperadas que redundaram num solilóquio.
Cinza sobre cinza dá abertura à segunda parte da novela, A história dos ossos, toda ela narrada em primeira pessoa. Combinando memória áspera e ironia, a narrativa vai dando forma a uma nova tentativa de desenlutamento, matéria volátil. Momento decisivo de suspensão da recusa a renunciar o objeto edípico. O trabalho de luto é novamente instalado.
Começa assim, "dera infiltração no túmulo do pai, junto com as obras de privatização do porto, a prefeitura ia reformar o antigo cemitério, mais de seiscentos túmulos seriam removidos" (Martins, 2005, p. 39).
Três semanas depois ele foi para a sua terra natal. O cemitério ficava no centro velho da cidade, perto do cais. Entregaram-lhe um embrulho com os ossos do pai, o que restava do pai. Tarefa incômoda, a de dar novo destino aos despojos e enfrentar rancores e culpa de um cemitério em reforma.
Atravessou uma cidade degradada, o passeio insólito reunia a contragosto filho, ossada paterna, memórias da infância, memórias do pai:
o pai sempre fora severo e cinza mas de uma variedade tão grande de cinzas que estes acabavam matizando tanta severidade ... como se ao pai fosse dolorido romper o selo das coisas que um dia não tiveram dono ... por que o pai não subira a serra conosco, mas teimara em ficar ali, na cidadezinha apodrecida? Saíra da casa ampla em que morávamos para se meter num quartinho desenxabido do centro, longe de rodas, amigos, parentes. Naquela época eu não sabia se o pai tinha motivos ... na hora da mudança ajudei a despachar os embrulhos para dentro do caminhão, na casa, lembro, ficamos eu, minha mãe e meu irmão ... mas era mesmo a cidade? Ou era outra, fora de todo o alcance da memória? (pp. 51-53)
A segunda parte da novela, A história dos ossos, revela a retomada do trabalho de luto através de um processo de desenlutamento bem-sucedido. Depois da encenação da identificação melancólica, revelada na primeira parte da novela, agora a narrativa tenta desfazê-la, descondensá-la. O pai entra em cena (separação sujeito e objeto): infiltração no túmulo do pai/exumação dos ossos do pai/o que restou do pai sob a forma literal de embrulho/visita à terra natal/memórias do pai/o não entendimento sobre a separação dos pais/rancor à figura cinzenta do pai.
O trabalho de luto segue o seu curso, o objeto impronunciável do investimento anterior torna-se objeto do endereçamento do discurso e põe em movimento, através da palavra, uma representação a outra, um significante a outro. Há um trabalho sequencial de movimento entre representações e memórias ligadas ao objeto perdido, o que permite um fracionamento gradual do pesar e da saudade.
eu lembrava dos pátios cheirando a café e maresia. De paredes descascadas, com bolhas de umidade e sal e tufos de samambaias brotando das fendas dos azulejos. Volta e meia baforadas de óleo quente subiam da calçada. O sol fermentava. Busquei abrigo numa calçada estreita que lembrou os fundos do escritório do pai. Uma janela-balcão pendia sobre a rua. Eu lembrava da rua e da cal que queimava os dedos do menino, a mão espalmada atritando os muros. Lembrava de calçadas sinuosas com pedras pretas e brancas como ondas. Mas os mosaicos tinham sido trocados por bloquetes de cimento e os paralelepípedos, tapados por uma manta de asfalto. Um cheiro de azedume saia da sarjeta. Na esquina topei com vestígios de trilhos de bonde. O asfalto não recobria inteiramente os sulcos e deixava à mostra duas pequenas ranhuras paralelas, que acumulavam folhas e um pouco d'água. Tomei esses riscos como um rumo e andei à solta, pesando apenas o embrulho que levava debaixo do braço". (Martins, 2005, p. 50)
Em 2013, oito anos depois de ter publicado A história dos ossos, Alberto Martins publicou Lívia e o cemitério africano, uma espécie de continuação de A história dos ossos, publicada em 2005. Em A história dos ossos a mãe quase não aparece, é um filho lidando com a perda do pai. Já em Lívia e o cemitério africano, o narrador de certo modo se torna pai, quando assume um sobrinho, filho de Lívia com o irmão do protagonista. Além disso, entra em cena a figura da mãe, que não tinha sido explorada.
Durante uma entrevista, quando lhe perguntaram o que tem em mente quando se propõe a escrever, Alberto Martins respondeu que é obscuro aquilo que se persegue. E por que os ossos, que aparecem tanto em A história dos ossos como em Lívia e o cemitério africano, o que significam?: "não sei dizer, mas sinto que tem uma coisa forte aí, quase como se eles fossem a última afirmação de algo irredutível da vida, de algo verdadeiro. Não sei de onde vem isso, mas só sei que serve aos meus propósitos. E funciona" (Murano, 2015).
Não seria o irredutível da vida, o algo verdadeiro, uma busca permanente de encontrar uma linguagem para falar da perda do objeto perdido? Um permanente trabalho de desenlutamento no sentido de reordenar e rearranjar os investimentos no objeto perdido numa busca impossível de um luto com um final pleno, no qual o sujeito se vê completamente liberado do objeto perdido?
O próprio Freud, citado por Leader (2011), parece questionar sua proposição de 1915 de um trabalho de luto plenamente exitoso quando escreve a Binswanger, em 1929:
Nunca encontraremos um substituto (para a perda). Não importa o que pode preencher esse vácuo, mesmo se ele for preenchido completamente, apesar disso, ele continuará sendo algo diferente. E, na verdade, isso é o que deveria ser, é a única forma de perpetuar aquele amor que não queremos abandonar. ( p. 103)
De desenlutamento em desenlutamento, pelo sonho, tratamento analítico e pela criação artística, tenta-se vencer "o silêncio e a escuridão instalados pelo recalque do desejo e dor pelo objeto perdido" (Jean-Claude, 2017a, p. 3), e refundar a identidade.
Referências
Freud, S. (2006). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 255-277). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915) [ Links ]
Laeder, D. (2011). Além da depressão. Novas maneiras de entender o luto e a melancolia. Rio de Janeiro: Best Seller. [ Links ]
Lamanno-Adamo, V. L. C. (2015). Morte e vida das palavras em Palavras para dizer. Ide, 37(59),47-54. [ Links ]
Martins, A. (2005). A história dos ossos. São Paulo: Editora 34. [ Links ]
Martins, A. (2013). Lívia e o cemitério africano. São Paulo: Editora 34. [ Links ]
Murano, E. (2015). Entrevista com Alberto Martins. Recuperado em 23 de agosto de 2017, de achadoseperdidosblog.blogspot.com. [ Links ]
Rolland, J.-C. (2017a). O desenlutamento. Conferência apresentada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em 19 de agosto de 2017. [ Links ]
Rolland, J.-C. (2017b). Antes de ser aquele que fala. São Paulo: Blucher. [ Links ]
Recebido em: 4/9/2017
Aceito em: 21/2/2018