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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.53 no.98 São Paulo jan./jun. 2020
CHRONOS/KAIRÓS
A espera na "Era da pre(s)sa"
The wait in the "Rush era"
La espera en la "Era de la pri(e)sa"
Attendre à « l'Ère de la hâte (et de la proie) »
Fernanda Fazzio
Membro efetivo do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Psicologia Clínica e especialista em Semiótica Psicanalítica (PUC-SP) / Barueri / fazziofernanda@gmail.com
RESUMO
Na "Era da pre(s)sa", o mundo transborda de imagens e excessos, com a sensação do tempo em aceleração que impele respostas velozes aos sujeitos para que tudo aconteça no "já". Pensando na espera como constituinte do psiquismo, a autora desenvolve as relações entre o paradoxo excesso e ausência, bem como a necessidade de preservação de intervalos temporais que possibilitam a elaboração e o trabalho psíquico. O objetivo deste artigo é propor reflexões sobre a análise virtual na "Era da pre(s)sa", seus desafios e impasses, agravados pelo cenário atual de pandemia (covid-19).
Palavras chaves: pressa, tempo, espera, análise virtual, pandemia (covid-19)
ABSTRACT
At the "Rush era", the world overflows with images and excesses, with the time perception in acceleration demanding quick answers so everything happens immediately. Addressing the wait as the constituent of the psyche, I will develop the relations regarding the excess/absence paradox, as well as the need to preserve time intervals that allow the elaboration and construction of the psychic work. This article's goal is to propose reflections about the virtual analysis at the "Rush era", how humans get trapped within it, its challenges and deadlocks, which are aggravated by the current pandemic scenario.
Keywords: rush, time, wait, virtual analysis and pandemic (covid-19)
RESUMEN
En la "Era de la pri(e)sa", el mundo se desborda con imágenes y excesos, con la percepción del tiempo en aceleración demandando respuestas rápidas, para que todo se pase en el ya (ahora). Pensando en la espera como algo que constituye la psique humana, la autora desarrolla las relaciones de la paradoja del exceso y de la ausencia, así como la necesidad de preservación de intervalos temporales que hacen posible la elaboración y el trabajo psíquico. El objetivo de ese artículo es proponer reflexiones acerca del análisis (terapia) virtual en la Era de la Pri(e)sa, sus desafíos y dificultades, que son agravados por el escenario actual de la pandemia (covid-19).
Palabras clave: prisa, tiempo, espera, análisis virtual y pandemia
RÉSUMÉ
A « l'Ère de la hâte (et de la proie) », le monde déborde d'images et d'excès, avec la sensation d'accélération du temps, ce qui pousse des réponses rapides aux sujets pour que tout se passe dans le « maintenant ». En pensant à l'attente comme constituant du psychisme, l'auteur développe la relation entre le paradoxe de l'excès et de l'absence, ainsi que la nécessité de préserver des intervalles de temps qui rendent possible l'élaboration et le travail psychiques. Le but de cet article est de proposer des réflexions sur l'analyse virtuelle à « l'Ere de la hâte (et de la proie) », ses défis et impasses, aggravés par le scénario pandémique actuel (covid-19).
Mots clés : hâte, temps, attente, analyse virtuelle, pandémie (covid-19)
Introdução
Nesta atualidade apre(s)sada e excessiva, a todo momento temos mensagens nos celulares, vídeos que viralizam e áudios (músicas, mensagens etc.) que parecem deixar pouco espaço para a espera. Além da viralização dos conteúdos digitais fomos tomados, em meados de março de 2020, pela pandemia de covid-19 que mudou o nosso modo de perceber o tempo e nos relacionar com o outro. O isolamento social ou a quarentena como medidas profiláticas impõem que o encontro entre analista e paciente seja virtual. Contudo, o vírus digital não atinge os sujeitos como o vírus real. Esse último chega a nos lembrar de questões duras para nós: perdas, incertezas, finitude. Já a viralização da virtualidade se impõe como reação a essas ameaças de castração: elide à falta, suprime o tempo do tédio, diminui as distâncias e elimina a separação.
Quando há uma inundação de estímulos perceptivos - que a todo momento nos arrastam para as telas dos celulares ou tablets -, o tempo de processamento psíquico de tantas excitações fica insuficiente, acarretando mudanças significativas no modo do sujeito fazer laço com o outro (Jerusalinsky, 2017). O excesso de informação pode ser o contrário da experiência: já que nada tocou os sujeitos, nada lhes aconteceu e nenhuma rede simbólica mais complexa deixou marcas em seu corpo ou pôde contar sua história.
Em tempos de covid-19, nossa relação com o tempo sofreu rupturas. Perdemos nossa liberdade, nossos projetos, nossas rotinas, deixando o tempo, ainda preso nas exigências da pres(s)a, com marcas de (des)continui-dades. E, nessa reviravolta atual, somos presas da covid-19 e temos pressa em superá-la. Se, já estávamos mergulhados nos excessos da temporalidade digital sem espaços vazios, atualmente, nos vemos mergulhados em um tempo tipicamente cíclico/repetitivo, em que há ruptura com as modulações temporais antes conhecidas e familiares.
A "Era da pre(s)sa", marcada pela aceleração e pelo achatamento dos intervalos temporais, ainda mostra seus imperativos mesmo em tempos em que fomos forçados a desacelerar. Os ideais de produtividade e eficiência parecem querer avançar na contramão das impossibilidades reais que o contexto de pandemia forçosamente coloca.
O poder, o dinheiro e o espetáculo (não raro, excessivos) chegam a comprimir e sufocar a existência dos sujeitos, especialmente em tempos de isolamento social. Aprisionados em um tempo por vezes insuficiente diante da imensidade de exigências e tarefas a serem cumpridas, a temporalidade psíquica dos sujeitos pode tornar-se empobrecida para elaborar as experiências, como consequência do exagero de imagens e informações oferecidas constantemente. Se não é possível ir aos shoppings, por vezes, consumimos notícias e informações de modo voraz, desenfreado, o tempo todo e a toda hora. Não por acaso, escutamos a intensificação das angústias, das ansiedades e das fantasias em relação ao futuro.
As considerações sobre o tempo lógico de Lacan (1998) nos ajudam a entender como abreviamos o tempo da espera da "Era da Pre(s)sa". Tempo esse que é do encontro do sujeito com a dúvida, com o vazio, com as possibilidades de aguçar sua sensibilidade e criatividade, transformando, assim, sensações em experiências. A temporalidade, para o psicanalista Jacques Lacan, atravessa três momentos fundamentais: o instante de olhar (constatação do que se pode ver), o tempo de compreender (tempo de elaboração de uma hipótese, de raciocínio, de mediação que considera o outro) e o momento de concluir (tempo de agir, que pede certa urgência). Diante da velocidade imposta na "Era da pre(s)sa", os sujeitos podem passar, aceleradamente, do instante de olhar para o momento de concluir. Como efeito, o tempo de compreender ficaria então como um hiato, em suspensão, atropelado por esse tempo exigente de respostas.
Na "Era da pre(s)sa", velocidade e experiência parecem não se encontrar: automatismo, pressa, frieza e solidão somente nos distanciam dos laços com o outro. Daí a escolha da nomenclatura "Era da pre(s)sa", considerando o aprisionamento dos sujeitos diante da urgência de um tempo voraz e ininterrupto, característico da contemporaneidade. Presos em amarras que escapam à vista, os mecanismos de controle do tempo são ainda mais eficientes, influenciando as relações e os corpos (afetos). Corremos apressados para alcançar os ideais de sucesso e felicidade prometidos e, inesperadamente, nos vimos presos na pressa, variando entre os excessos de presença e o tédio.
Alguns relatam uma sensação de cansaço na pandemia, o que parece destacar um sintoma da "pressa" que já se percebia. Não por acaso, Han nomeia a sociedade atual de sociedade do cansaço (2017). O esgotamento excessivo seria o contraponto do imperativo da motivação hiperativa (excesso de positividade) dos sujeitos do superdesempenho. O cansaço sempre alcança o sujeito, constantemente forçado a produzir mais e a superar-se a todo instante, sendo o Burnout,1 por exemplo, a consequência patológica de uma autoexploração (Han, 2017). E essa lógica de relação não atinge somente os adultos.
Incapaz de digerir tantos estímulos, o aparelho perceptivo das crianças, não raro, fica sobrecarregado. Não por acaso, em tempos de pandemia, as aulas online das crianças tem sido mais curtas do que habitual, assim como, muitas vezes, as escutamos comentar que estão cansadas das telas. Tecnologia não é boa nem ruim em si mesma. Mas precisamos compreender seus efeitos na "Era da pre(s)sa" e a que servem, até mesmo os desafios da análise online.
Através das câmeras dos celulares, vamos até a casa de nossos pacientes, e eles na nossa. Enquanto alguns pacientes relatam maior intimidade no atendimento online e ampliações perceptivas ao falarmos "em seu ouvido", outros mostram uma sensação de distanciamento, como se o olhar do analista precisasse encontrar com o seu.
A horizontalidade ganha grifos nas análises online. Basta vermos como quão rapidamente as crianças nos levam para"passear"nas casas, expandindo o setting analítico. Outras vezes, já aprendem a sair do enquadre de visão, colocar imagens nas telas e inverter a câmera, por exemplo, para que não as vejamos. Essas mudanças no enquadre podem ser incluídas na escuta do analista e interpretadas. Será que as crianças querem controlar o setting ou expressar a raiva? Em outros momento, essa presença e ausência podem também virar uma brincadeira de esconde-esconde. Rapidamente, as regras do setting se alteram adquirem outros limites e possibilidades.
O tempo do espetáculo e o tempo da experiência
Guy Debord (1997) desenvolve a noção de tempo espetacular, em que o tempo é pseudocíclico, ou seja, um tempo não vivido, mas um tempo de consumo de imagens ilusórias. Para o autor, a sociedade do espetáculo se pauta em imagens que, desligadas da vida dos sujeitos, levam a uma inversão concreta da vida em um "movimento autônomo do não-vivo" (Debord, 1997). Assim, propicia condições para a alienação dos sujeitos, já que estão cada vez mais separados de sua vida e daquilo que produzem: "O espetáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo" (Debord, 1997, p. 127). Se o espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo, as selfies bem representam a sociedade do espetáculo na "Era da pre(s)sa". Enquanto se está posando para a câmera ou se filmando, a relação com os outros encarnados fica em plano de fundo. Apressa-se para tudo capturar, registrar, sem se dar conta de que para se transmitir uma história precisa-se de um corpo. Um corpo cujas bordas enlaçam pulsões, manifestam desejos e criam experiências. As relações de corpo presente e psique ausente, com o olhar dissipado em alguma tela, trazem à tona muitos jogos de espelhos:
As redes sociais parecem, assim, ocupar o lugar análogo ao espelho da rainha má do conto da Branca de Neve, produzindo a emergência de amor-ódio, ciúmes, inveja e rivalidade consigo mesmo e com os outros, ao pôr em relevo, nas relações, a chave de montagens espetaculares diante das quais se exalta a instantaneidade do brilho narcísico e se empalidece de inveja, exercendo o encantamento e o ódio da rivalidade. (Jerusalinsky, 2017, p. 23)
Nos consultorios virtuais, são muitos os pacientes que falam de suas relações pessoais mediadas pelas redes sociais. Essa grande espetaculari-zação, cujas bordas do pessoal e do social se tornam pouco delimitadas, acentua também sentimentos polarizados de sucesso e fracasso em uma lógica binária de "tudo" ou "nada". Os sujeitos exaltam seu lado mais espetacular, feliz, perfeito e invejável nas redes sociais, o que leva seu Eu-ideal a encontrar a máxima representação na vida das janelas virtuais. Se essa vida espetacular não se equipara à vida por trás das câmeras sem seus tantos filtros, os sujeitos, através dos espelhos (virtuais), acreditam poder viver uma vida bidimensional. E, em tempos de pandemia, com terapia virtuais, como escapar da espetacularização também da relação analista e paciente que acontece por intermédio das telas? E, assim, esse truque também pode recair para os analistas: atrás das telas mágicas que se iluminam para algo acontecer, os pacientes podem se ver tentados a entrar na lógica espetacular, perdendo a dimensão da experiência e do encontro. Não por acaso, em alguns atendimentos, foi comum que os pacientes se comportassem como youtubers. Em vez de estarem na relação analítica de fato, queriam mostrar como fazer coisas, imitando os modos de falar e os gestos dos youtubers.
A análise se baseia no encontro entre analista e paciente numa construção gradativa e minuciosa em que olhar e voz se enlaçam nas pulsões. Nesse sentido, a análise tem o seu próprio tempo e há um desafio em estabelecer esse compasso no dinamismo com o qual, inevitavelmente, nos deparamos nos atendimentos online. O próprio tempo digital tem lá as suas interferências: conexão fraca, queda do wi-fi, voz metálica e com atraso, congelamento da tela, e por aí vai. Impossível manter contato olho-no-olho, dado o natural desencaixe do dispositivo de câmera do computador/celular com os olhos do seu interlocutor. Portanto, os olhares não se cruzam, sendo impossível olhar, simultaneamente, para a câmera e para a expressão do outro. Além disso, a voz digital não é a mesma voz encarnada, sofrendo pequenas alterações, limitando as intervenções do analista, bem como as interpretações, que podem chegar atrasadas ou em um tempo outro, perdendo o momento do encontro.
Em tempos de covid-19, privacidade se torna, por vezes, impossível, esgarçando as relações daqueles que passam juntos o confinamento. Acompanhamos adultos e crianças marcados pelos excesso de presença, sufocando os vínculos familiares. Não podemos nos esquecer das aulas online e vídeo-aulas que também implicam na presença dos pais para ajudar as crianças nas aulas e tarefas, dificultando ainda mais a privacidade das crianças. Nesse contexto, se diluíram um pouco as fronteiras entre o tempo "fora" e "dentro", trazendo a presença do outro, principalmente pais, de modo excessiva.
Os tempos do tornar-se sujeito
Os efeitos do brilho da tela ficam ainda mais contundentes quando as crianças atingem a primeira infância. Escutar os sofrimentos das crianças dão notícias sobre o mal-estar da cultura em sua forma mais espontânea. A psicanalista Jerusalinsky (2017) nos ajuda a entender que, no contexto de excessos de informações e estímulos, os conteúdos tóxicos chegam de forma violenta, sobretudo para as crianças pequenas, que têm menos recursos para digerir o que foi percebido. A violência simbólica pode ter várias faces, e uma delas pode ser vista com os excessos que chegam pela tecnologia.
O tempo necessário de produção de um saber entre mãe e bebê não é o mesmo que o tempo das respostas imediatas, da urgência que entranha o mundo da "Era da pre(s)sa". O choro de um bebê e a irritação das crianças muito pequeninas podem ter muitas causas, e os milhares de blogs, tutoriais e fóruns escritos por e para mães parecem ter todas as respostas. Como bem lembra Kehl (2009), a temporalidade é a primeira forma discursiva que a mãe apresenta para o bebê. Os intervalos entre a presença e a ausência da mãe, bem como o tempo entre uma mamada e outra, dão a dimensão de espera pelo objeto de satisfação e, consequentemente, vão costurando as bordas da falta. A psicanalista comenta que as mães que se inserem nos ideais de eficiência e rapidez se tornam excessivamente preocupadas, tendendo a abreviar o tempo vazio - o tempo da espera entre um cuidado e outro. Uma presença ativa e demandante da dupla mãe-bebê, sem intervalos e com pobreza da experiência, expropria a criança do espaço vazio temporal, que inaugura o trabalho psíquico e, consequentemente, traz ferramentas preciosas para o brincar, bem como seus desdobramentos como imaginação, fantasia e criatividade (Kehl, 2009).
Os períodos da primeira infância são marcados pelo processo de apropriação do próprio corpo e pelo estabelecimento da relação com o outro. É o Outro, que faz a função materna, que ajudará a criança a regular seu circuito pulsional prazer-desprazer, nomeando e colocando palavras nas sensações corpóreas que a criança experimenta. O Outro precisa dizer, interpretar e emprestar elementos representativos para as experiências. Assim, os ritmos e as alternancias entre estados de repouso e agitação (sono-vigília, fome--saciedade, frio-calor, sujo-limpo) costuram as bordas desse corpo que ainda está em processo para se tornar um. O olhar, a voz, o cheiro e a respiração são objetos do jogo pulsional dessa dupla mamãe-bebê.
Quando o sistema representacional está ainda em desenvolvimento primitivo, o adulto, ao falar com a criança, modula a voz e brinca com os sons, produzindo um saber particular em que o outro é afetado pelo que se passa no corpo da criança. Essa brincadeira de sons e palavras ajuda a criança a ligar as sensações e percepções ao objeto, apreendendo a representar. A mãe, ao cuidar da criança, diz sobre a fome, a dor e o desconforto, dedicando-se a esse "fino bordado que é tecer, articular corpo-linguagem" (Jerusalinsky, 2017). A subjetividade só se constitui quando há um outro que fale, cante e singularize aquele bebê, construindo uma narrativa sobre sua experiência. É importante que o sujeito, com ajuda do outro, possa simbolizar as experiências vividas do corpo, podendo representar psiquicamene o que lhe acontece.
Se o outro é um outro sem corpo apressado, os efeitos podem não ser favoráveis para a subjetivação. Além disso, com a falta da falta, ou seja, o excesso de presença, tendemos demasiado ao concreto. É na ausência que aprendemos a simbolizar para representar o que não está presente e que, assim, dá lugar ao processo de constituição e trabalho psíquico. E, em tempos difíceis e excessivos, é mais do que necessária essa distância para podermos nos aproximar dos estímulos que pedem contornos, através de imagens, palavras ou mesmo um nome.
Percebo como o efeito de narrativa e o compartilhar das experiências trazem a possibilidade de dividir um saber que cria sentidos para sensações e sentimentos, trazendo efeitos significativos para sua subjetivação. O campo pulsional se amplia e se enriquece quando as crianças podem encontrar, com o outro, um campo das cantigas, do brincar e da conversa. O tempo do imprevisto, do improvável e das não garantias, trocando a imitação pelo façamos juntos, leva o extrapolar do mundo sensorial para o brincar de faz-de-conta.
Dito isso, o desafio da análise psicanalítica é enlaçar o impossível de ser dito, possibilitando a inscrição de um real demasiadamente excessivo, que insiste em não se deixar inscrever. Diante da dificuldade das crianças em representar a invisibilidade do vírus, vemos como os pesadelos e as regressões (enureses) tem se intensificado, bem como os temas de monstros, zumbis e super-heróis tem feito maior presença, talvez, como tentativa das crianças de encontrar formas para esse mortífero que se encontra à espreita.
O excesso e o tédio na "Era da pre(s)sa"
Na "Era da pre(s)sa" e da fragilidade dos laços, o imediatismo tecnológico também trouxe ansiedade, inquietações e menos tolerância à frus-tação, já que tudo precisa ser previsível, eficiente, prazeroso e rápido, como acontece nas telas. Adela Gueller mostra como os jogos eletrônicos, as redes sociais e/ou os vídeos têm a função de afastar os sentimentos incômodos, as tensões psíquicas que geram desprazer, como solidão, raiva, culpa, medo ou angústia. Se, por um lado, os jogos oferecem um mundo de excitação para as crianças, suprimindo temporariamente os sentimentos incômodos, por outro, não somente inibem formas mais ricas e elaboradas de processamento psíquico, como também não permitem tempo-espaço para digestão dos tantos estímulos. No "tudo cheio" e sem tempo vazio, o tédio pode aparecer:
O tédio, aliás, é uma das manifestações da angústia ante um tempo vazio. E o brincar e, mais tarde, o fantasiar possibilitam recobri-lo com engenhocas e invenções criadas pela imaginação, essas construções requerem um tempo e um espaço que não sejam imediatamente preenchidos. Essas atividades psíquicas dependem exclusivamente da subjetividade da criança: ela precisa dar forma a seus sonhos e anseios singulares. É no encontro com o vazio que criamos mundos de ficção, levantamos castelos no ar e reinos que não existem nem existirão. ... Brincando de "eu era" a criança preserva o "eu sou".
(Gueller, 2017, p.67)
No momento atual, nós analistas e também os familiares, buscamos dar suporte para a continuidade de ser, visando recuperar a dimensão da continuidade do tempo, tecer memórias e construir uma história que possa ser contada. Acompanho algumas famílias que tem escrito "diários da quarentena" na tentativa de manter a memória desse momento. Escutei relatos de um pai que estava montando um álbum de fotos das coisas que ele e os filhos estão fazendo juntos na quarentena: bolos e pães com receitas dos avós, cuidar do aquário, montar quebra-cabeças e a jogar novos jogos de tabuleiro. Esse mesmo pai também comenta sobre as dificuldades em separar as fronteiras dos espaços de "trabalho" e de "brincadeira", como se estar em casa fosse entendido pelos filhos como sinônimo de disponibilidade.
O encontro analítico, em meios digitais, se depara com desafios para trazer o caráter pulsional do encontro bidimensional, chapado e passivo que as telas propõem. Não podemos falar que não há um corpo no virtual. Mesmo que seja de outra ordem, existe uma materialidade do corpo, que, nesse caso, fica em outro registro perceptivo, em outro lugar. Ademais, sobretudo em atendimentos a crianças muito pequenas, são inegáveis os efeitos presenciais da voz e do olhar para que o encontro aconteça, implicando em ainda mais desafios para os atendimentos online. Nesses momentos, vemos como o papel dos pais é importante para preservar a intimidade do espaço analítico e também, quando necessário, sua presença para ajudar e permitir que o encontro ocorra.
A tela convida à espetacularização, como os youtubers que encantam as crianças, enquanto se instaura uma relação passiva entre aquele que mostra e o outro que assiste. Em sentido contrário, uma análise caminha em direção ao inesperado que possa surgir do encontro, sempre imprevisível, com o outro. Não por acaso, as parlendas, a polifonia da linguagem, as modulações da voz, os mal-entendidos, os equívocos, o humor e toda a espontaneidade do brincar implicam na abertura de inúmeras possibilidades de criação. E, ainda que tenham entraves e empecilhos nos atendimentos online, é preciso buscarmos alcançar o outro do outro lado da tela, sejam crianças, adolescentes ou adultos.
Chegando ao fim
Os impactos do tempo acelerado na "Era da pre(s)sa" trazem consequências para as experiências humanas primitivas. Se na "Era da pre(s) sa" não há tempo a perder diante das urgências, o tempo da espera não acontece, o que acarreta consequências nas subjetividades humanas em seus tecidos mais arcaicos. Retomando a questão do tempo na «Era da pre(s)sa», fica difícil criar laços, ancorar memórias nos corpos e transmitir narrativas ao outro, quando achatamos e comprimimos o tempo de espera (tempo de compreender). Na suspensão das diferenças temporais, as angústias e as faltas ficam fora do tempo, na ilusão de prazer a todo instante. E, considerando os tempos de confinamento, essa presença excessiva do outro coloca ainda mais empecilhos para que os tempos da espera e da falta ganharem espaços. E, como efeito, pode afetar o próprio brincar das crianças, já que as brechas para a simbolização se comprimem.
Analisando a "Era da pre(s)sa", caracterizada pelos hiperestímulos tecnológicos e de informações, a atenção acaba sendo ser cada vez mais dispersa, fragmentada e com mudanças rápidas de foco para acompanhar a velocidade com que as urgências chegam aos olhos e ouvidos. A atenção profunda, contemplativa, e o tempo da demora que propicia a experiência necessitam de doses de tolerância ao tédio. Essas questões ganham cores e intensidades em épocas de covid-19, atravessando os atendimentos psicana-líticos por meios digitais.
Em tempos atuais, as demandas por análise não cessam. Para além do consultório, buscamos alcançar o outro que sofre. Tentamos, assim, transpor o corpo erógeno, simbólico e pulsional para além dos limites da bidimensionalidade, validando que é possível que o olhar e a voz toquem efetivamente o outro.
Nós, analistas, estamos nos adaptando às formas e aos ritmos das imagens propostas em uma sessão virtual. Nesse contexto, não se trata de uma simples passagem das sessões presenciais para as sessões online, mas, diferentemente, me parece muito relevante procurarmos refletir sobre as novas configurações e as formas de presença, e escutar o que os pacientes nos dizem através dos usos da tecnologia. Daí a necessidade de nos flexibilizarmos às circunstâncias, assim como às necessidades e às demandas dos pacientes.
Referências
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Recebido em: 31/5/2020
Aceito em: 21/6/2020
1 A chamada Sindrome de Bournout (Síndrome do Esgotamento Profissional) pode ser definida como um distúrbio psíquico decorrente do esgotamento físico e mental intenso relacionado à profissão.