Os primeiros não somos a ficar sobre braseiros com boas intenções. (Shakespeare, Rei Lear)
Introdução
O Projeto sos Brasil, emergencial e gratuito, atende de 3 a 8 sessões a bebês, crianças, adolescentes, pais cuidadores, profissionais da saúde, da educação, do Poder Judiciário e instituições. Quando se trata de seres construindo a subjetividade, o atendimento psicanalítico é uma urgência e um dever ético. Todos os analistas pertencem à FEBRAPSI e frequentam um Ateliê, espaço de continência e reflexão, coordenado por um analista experiente. O lugar do analista no divã, na poltrona e na comunidade é revisitado. A cultura institucional precisa oferecer, na formação, as bases epistemológicas e as ferramentas para trabalhar dentro e fora do consultório, assim como a oportunidade de uma prática legitimada ante a dor social com responsabilidade. Um atendimento ilustra a proposta do Projeto.
Apresentação do Projeto
Em janeiro de 2021, autoridades de Manaus cogitavam separar os bebês das utis de suas mães para que recebessem oxigênio em outros estados. Essa medida genocida não foi implementada devido às manifestações da comunidade científica internacional, incluindo a da ALOBB.
Como posso transformar minha indignação e fúria como cidadã, mulher, mãe e psicanalista diante dessas atrocidades em uma ação pensada e eficaz em uma clínica da dor? Como posso levar o conhecimento, a experiência clínica e a paixão pela psicanálise a essa população quase marginalizada da condição humana?
O pensamento psicanalítico destaca a importância do período infantil, que se enraíza na mente dos progenitores, na vida pré-natal e nos primeiros anos de vida. Complexo entrelaçamento de fatores na construção da subjetividade, com destaque para a importância do ambiente, personificado naqueles que exercem funções parentais.
Como oferecer oxigênio psíquico a quem está em risco de vida mental? Como trabalhar para que o novo trauma coletivo da pandemia não marque indelevelmente o trágico destino de seres em formação?
A pandemia iluminou a miséria das populações marginalizadas, com profundos traumas sociais cumulativos transgeracionais. Também revelou com assustadora força a vigência de um sistema legal perverso e paralelo que opera na contramão do pacto social, que preserva a convivência civilizada. Nessa outra ordem da lei antissocial, impera o gozo ante o poder do sofrimento do outro. E a pulsão de morte, em vez de desunir, enlaça e une, numa cumplicidade cruel, os milicianos (Morales, 2022).
A pandemia rasgou o véu de ilusão da “normalidade”. Percebemos que o sofrimento psíquico, ancorado em histórias transgeracionais de privação, motivava os pedidos de ajuda. Por isso hoje o Projeto sos Brasil transcende a pandemia para tratar de qualquer emergência. Histórias de anemia existencial e traumas cumulativos pela violência do Estado (Puget, 1990) sepultam as potencialidades de uma vida criativa, salutar e plena.
O Projeto sos Manaus atende de três a oito sessões online. Cinquenta e quatro analistas da FEBRAPSI, comprometidos com a responsabilidade social, trabalham no Projeto.
No início, mães e famílias com bebês de 0 a 3 anos de idade (Eixo i) eram as atendidas. A tragédia não tinha limites geográficos, por isso, o Projeto se estendeu para todo o Brasil. Também percebemos que Crianças (Eixo ii), Adolescentes (Eixo iii), pais, cuidadores, profissionais da saúde, da educação e do Poder Judiciário (Eixo iv) solicitavam atendimento. A pedido da comunidade, o Eixo v foi instaurado para atender às instituições.
Os Transtornos no Desenvolvimento Emocional de infans, crianças e adolescentes são multifatoriais. O trabalho interdisciplinar é uma exigência.
O Grupo Corpo5 do Projeto nos permite oferecer consultas online e realizar os encaminhamentos em um trabalho em rede.
Os analistas escolhem o Eixo de sua preferência. Todos os colegas frequentam um Ateliê, conforme seu Eixo de atuação, que se reúne quinzenalmente com um coordenador/analista experiente. O Ateliê funciona como espaço criativo e continente para discutir a clínica, lidar com a impotência, as angústias, poder pensar e evitar atuações.
Uma vez por mês, nas reuniões cientificas (rc), um paciente e/ou uma instituição atendidos são apresentados a um analista convidado6 para aprofundar o atendimento oferecido e os pilares epistemológicos do Projeto.
É possível conceber um analista alienado ante a realidade social de seu mundo?
O perigo e a violência da desmentida, ao longo da história (Freud, 1927/2014) das instituições e da sociedade civil, foram um obstáculo para que a realidade social seja conhecida e enfrentada. Freud, em “O mal-estar na civilização”, enfatiza o fato de que o sofrimento nos ameaça a partir de três lados: - “Do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência” (Freud, 1930/2010c, p. 31).
O mestre nos alerta para a inevitável passagem do tempo com a morte, nossa última despedida. Mas, nas populações carentes e marginalizadas, as marcas da barbárie estão encravadas no corpo, com sofrimentos previsíveis e evitáveis, como a desnutrição.
Somos nosso corpo. O Eu é corporal (Freud, 1923-1925/1976). Ele pode estampar na carne os maus-tratos sociais. Não por acaso, a pandemia tem sido mais cruel entre negros, indígenas e aqueles que estão abaixo da linha de pobreza extrema.
Freud salienta como o segundo lado: - “Do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inevitáveis, destruidoras” (Freud, 1930/2010c, p. 31).
No Brasil, muitas das tragédias provocadas pela natureza são previsíveis.
A população carente constrói barracas de forma irregular nas ladeiras dos morros. Isso é sabido, e não pensado! As tormentas que provocam desmoronamentos arrasam essas vivendas como se fossem de papel. Ano após ano, a desgraça se repete com inúmeras mortes, desaparecidos e casas destroçadas. A seca também traz consequências sociais e econômicas.
Desastres ambientais como os provocados pela extração do minério de ferro no rompimento da estrutura das barragens e o extravasamento dos rejeitos, acontecidos em Mariana, com o saldo de 19 mortes, e em Brumadinho, com 270 mortes, poderiam ter sido evitados. Repetição diabólica da destrutividade das empresas e dos governos responsáveis.
E o mestre destaca ainda, por fim: - “Das relações com outros seres humanos” (Freud, 1930/2010c, p. 31).
Freud faz referência aos vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade. A alteridade é constitutiva do mundo humano. O homem precisa de uma estrutura social que possa garantir justiça e propiciar o acesso à saúde e à saúde mental (Danto, 2019). A influência do ambiente social no desenvolvimento humano é incontestável.
Para Lacan, a função primordial do outro põe em jogo a dialética do desejo. O sujeito se esforça por atender a esse desejo. O homem aprende a reconhecer seu corpo e seu desejo por intermédio do outro, graças ao estádio do espelho (Lacan, 1998). Que outro foi o Estado brasileiro, durante a pandemia, na constituição do sujeito?
O Brasil registrou quase 700.000 mortes. Com postura fanática e genocida, o governo disseminou dogmas mentirosos e um veneno mental radioativo, gerando forças destrutivas. A ciência, que permite o contato com a realidade, foi vítima de ataques sistemáticos. O Deus - Pai na religião - foi venerado como o único consolo no porvir, na crença de uma ilusão forjada nos desejos humanos (Freud, 1927/2014). A recusa do desamparo catastrófico, aquele que poderia ter sido evitado (Lisondo, 2012), tentou anestesiar a possível consciência ante a atroz realidade.
Nas ditaduras, o líder cativa e condena a massa a sua miséria psicológica. Ao invés de um pai protetor e salvador, como o ditador se apresenta, ele encarna a maldade diabólica. Thanatos é um feroz inimigo para a civilização (Freud, 1940[1938]/2010a e 1940[1938]/2010b).
O analista no divã - na poltrona e fora dos muros do consultório
O analista teve a oportunidade de abordar na sua análise a dimensão política de seu ser, no sentido da polis grega? Ou esses temas, como tantos outros, ficaram inanalisados?
Pretendo destacar que questões referentes à convivência social, ao poder e questões políticas podem ser censuradas, pela peculiar relação intersubjetiva, sendo o analista protagonista dessa relação.
Os antídotos para esses perigos da profissão impossível são a reanálise e a procura de uma outra visão com um colega experiente.
A disciplina analítica e o rigor ético nos exigem analisar tão profundamente quanto nos seja possível e não evitar e nos cegar ante questões presentes na relação, mesmo que elas sejam bombásticas. É preciso não confundir análise com discussões políticas, partidárias ou com proselitismo ideológico.
Importa que temas políticos e sociais sejam abordados e analisados com a devida abstinência como objeto analítico, e não soterrados ou evitados. Silenciar certos temas é tomar uma posição.
Cabe lembrar que a neutralidade, preconizada como regra de ouro, que marcou a techné psicanalítica durante anos, é um erro de tradução de Strachey. Freud (1915/2010d, p. 218), nas “Observações sobre o amor de transferência”, escreve indifferenz. Um dos destinos, embalado pela pulsão de morte, pode levar ao desligamento, ao distanciamento e à frialdade com o paciente. Ela nunca pode ser afetiva.
No intrapsíquico, o outro e o grande Outro palpitam. Funções mentais no infans nascem graças à alfabetização emocional da mãe, e a estrutura dos ideais, a constituição do Super-Eu e a identidade surgem desse encontro primordial. A cultura nos atravessa (Figueiredo, 2014).
A mente do analista e seu ser, tão analisados quanto seja possível estando no divã, são o berço da sua postura na poltrona e de seu compromisso social com a comunidade.
O trabalho social deveria ser adubado com a cultura das sociedades psicanalíticas.
Formação psicanalítica
Nem sempre há, nas sociedades de psicanálise, uma cultura que incentive o estudo, a pesquisa, a clínica e os trabalhos científicos na comunidade. A prática da análise privada aparece reluzente como ouro ante a desvalorização dos trabalhos fora do divã.
As instituições psicanalíticas conservadoras, em vez de alcançar a integração, ao propiciar o estudo tanto da experiência analítica “tradicional”, quanto na comunidade, empobrecem a formação num splitting perigoso.
O isolamento e/ou a convivência ambivalente com pacientes de outras realidades socioeconômicas e de outras raças (Paim Filho, 2021; Paim Filho & Migueli, 2022; Belo, 2021; Bento, 2022) são um obstáculo para a tomada de consciência, para promover o crescimento e a transformação reparadora.
Para que o futuro analista possa dar o devido valor ao trabalho na comunidade, precisaria receber formação específica na grade curricular. Também a clínica fora dos muros do consultório deveria ser uma exigência, com supervisão específica e apresentação de trabalho escrito. Ela ajuda a esculpir a sempre inacabada identidade analítica.
A cultura nas sociedades psicanalíticas precisaria ser revisitada e estar permeável à crítica nos seus pressupostos matriciais, muitas vezes retrógrados e elitistas.
No sos Brasil, aprendemos com os pacientes sobre a força de Eros (Freud, 1920/1979; 1940[1938]/2010a e 1940[1938]/2010b), com sua incansável tendência expansiva, a pujança dos tropismos criativos (Bion, 1992), a preconcepção psicanalítica da personalidade, as dimensões sadias da mente, e sobre as limitações e o alcance de nossa ciência-arte.
Além de penetrar nos alhures recônditos do Brasil, lá onde o paciente não teria condições de aceder a uma entrevista por ignorar a existência da psicanálise, por não se sentir digno de um atendimento psíquico, pela falta de serviços com atendimento à saúde mental, temos entrado em contato com outras realidades de sobrevivência humana. Essa diversidade, que está fora do consultório particular, nutre nossa existência como seres humanos, nos compromete ante a dor social e amplia nosso repertório. Esse é o legado de Freud, o qual cavou fundo na investigação do social, após o encontro com a pulsão de morte.
Na caixa de ferramentas para ir ao encontro do paciente do sos Brasil, estão presentes:
A paixão e a fé pela nossa ciência.
A interpretação do paciente como ser humano digno de respeito e consideração, que pode vir a receber uma intervenção analítica.
A ética do inconsciente. Somos testemunhas de sua presença. Os pacientes também podem vir a ser tocados e descobrir sua existência.
A escuta psíquica.
A instauração do setting metapsicológico.
A comunicação inconsciente, conectiva (Moreno, 2016), por entrelaçamento.
A continência (Bion, 1962).
A atenção qualificada (Meltzer, 1975).
A aposta pulsional (Marucco, 2019; 2020).
A capacidade de conclamar o paciente (Alvarez, 1992).
A sabedoria para calibrar o nível de nossa intervenção (Alvarez, 1992). A função narrativa para dar palavras ao que era indizível (Silva, 2013).
Nossa mente, tão analisada quanto possível, fonte de imperfeições e pontos cegos.
A esperança para incentivar mudanças catastróficas.
Nossa apresentação como modelos inspiradores.
O poder da palavra poética em psicanálise. Outras a investigar…
A menina em carne viva
Thalita Salomão, candidata da sppel,7 sensível e eficiente, é responsável pelo primeiro atendimento dos pacientes e por realizar os encaminhamentos aos diferentes Eixos. Thalita escreve: “Esta menina não pode esperar. Está em carne viva. Os pais a enfaixam para ela não se coçar e abrir mais feridas. Tem meses de espera para a consulta com a dermatologista. Alguém pode atender?”
Rosa8 foi atendida no sos Brasil e encaminhada ao Grupo Corpo. Ela segue em tratamento individual com Edilene de Lima,9 psicóloga com formação psicanalítica.
Rosa é uma criança de 8 anos, filha mais velha de uma mulher, S., de 30 anos, pedagoga. O pai, G., de 32 anos, é biólogo e professor.
Ela tem 3 irmãos, meninos de 5 anos, 4 anos e 1 ano e 4 meses. O caçula nasceu em 2020, em plena pandemia. Rosa foi levada para ficar na casa dos avós em uma outra cidade, distante.
Primeira entrevista com a família e com Rosa
Me disponho a receber a R com sua família. A mãe rapidamente responde a minhas mensagens, agradece e desculpa-se.
Quando ligo na hora combinada, o pai se surpreende. “Já a senhora? Desculpa. A gente não está acostumado a ser atendido na hora. Aguarda só um minutinho. Estou arrumando o material que a senhora pediu.”
R, uma linda menina de longos cabelos bem penteados, está sentada no canto apertado de um sofá rasgado, ao lado dos pais.
Após me apresentar como psicanalista que cuida das dores da alma e mostrar o projeto, a mãe pede para R desenhar. A mãe fala torrencialmente.
[Observo que R faz o que a mãe impõe sem pestanejar. Ela não tem espaço físico e talvez não tenha espaço psíquico.]
Os irmãos gritam, brigam entre eles, todos solicitam atenção dos pais. Um deles quer o material gráfico que R está usando, e a mãe intervém autoritariamente para dividi-lo.
Mostro como é difícil para R ter seus desejos, seu espaço e poder se colocar com esses irmãos todos.
A mãe me conta sobre o peso do transgeracional na sua história. Ela teve que cuidar do irmão menor no cortiço onde viviam. Seus pais e o irmão maior vendiam cds de música latino-americana e cantavam nas praças de diferentes cidades. Sua família de origem é de imigrantes. Ela precisava ser boa, cuidar do irmão e não dar trabalho.
Interpreto que a vida de R pode ser diferente dessa vida tão sofrida que a mãe teve. R não precisa ser gente grande antes da hora.
[R me olha quando eu intervenho. Ela parece concordar comigo.]
O pai sai de cena para entreter os meninos, que gritam e brigam, oferecendo argila. Quando retorna, conta que em 2020 nasceu o menor. Ela ficou meses na casa da avó. Reflete que deve ter sentido a falta dos pais.
A mãe diz que R quer fazer melhor que a professora, se cobra muito. Isto gera mais coceira, pinica muito toda a roupa. Com a pandemia, não conseguiram sair de casa, nem ir à escola. R diz que ardem o pescoço, os joelhos, os braços e nas dobras. A pedido da mãe, R me mostra a pele em carne viva.
[Fico espantada com as feridas supurando pus.]
Quando não aguenta a dor, pede para a mãe colocar bandagens. O pai me mostra uma foto. Parece uma múmia.
[Penso em Esther Bick (1968/1991), na pele psíquica, na falta de um continente interno, e nas tentativas de R de supri-lo com um exoesqueleto de eficiência, uma segunda pele.]
Assinalo que R fica toda enroladinha, aquecida, protegida com as bandagens. Mas o mais importante é o amor, a dedicação dos pais, só com R nessa hora, cuidando dela.
Entram os irmãos na cena, berram, o caçula balbucia, puxam a saia da mãe. Mostro como todos querem atenção, e R também precisa disso, porque ela é uma menina de 8 anos.
Revelo minha curiosidade, e ela me mostra o desenho.
R - É você.
[Um corpo robusto, torto, com muitos detalhes. Uma imitação e/ou uma criação? Ela quer ficar com meu retrato, como testemunha de nosso encontro? Ela busca identificar-se com uma figura feminina forte? Óculos, lábios vermelhos, colar, enfeite, cabelos bem penteados de um lado, desordenados do outro; roupa azul como a que eu estava usando, pintada com traços em todas as direções. Seriam as múltiplas direções do azul e a diferente aparência do cabelo de cada lado do rosto a presença de emoções “bem-comportadas: cabelos penteados - ter que ser boa, disciplinada, dócil” - de um lado; a desordem, a revolta, o indócil, do outro?].
Alicia - Nossa, você me desenhou com óculos para te enxergar por dentro, com muitos detalhes, bem grande, assim eu fico com você no desenho e dentro de você, te fazendo companhia e tentando te compreender.
Após minha intervenção, ela pede ajuda ao pai para amassar a argila, o qual abre espaço para ela.
Ela modela uma xícara e diz que não colocará água para que não desmanche.
Alicia - Você quer ter dentro de você um lugar que não desmanche, que não seja invadido, um canto bem seguro nesta família. E você precisa muito da ajuda da mamãe, do papai, dos irmãos e de mim para viver sem esse sofrimento todo. Eu vou passar o contato de uma pediatra, Cláudia, que vai cuidar de você junto comigo.
Informe da pediatra do Grupo Corpo sos Brasil, Cláudia Carvalho
R tinha uma qualidade de vida muito comprometida devido a alergias importantes. A mãe fala sobre as alergias múltiplas da filha, o fato de ela se coçar sem parar e respirar mal, mas diz que não gosta de dar remédio para os filhos - “Corticoide faz mal, não melhora muito os sintomas, e, quando melhora, eles voltam rapidamente. Homeopatia e antialérgico não resolvem, não resolvem!” No entanto, as coceiras do corpo de R pioraram muito nesse último um ano e meio, que coincidiu com a pandemia e o nascimento do irmão mais novo, de 1 ano e 4 meses. As feridas infeccionaram e a mãe a medicava com chás caseiros e a enfaixava.
Antecedentes pessoais: R nasceu de parto normal. Ela teve uma dermatite importante com 7 meses, após o desmame. Com 10 meses, R teve o primeiro quadro de chiado no peito, um broncoespasmo, que coincidiu com a morte da avó materna. Com 1 ano, R teve o diagnóstico de alergias importantes a proteína do leite de vaca, a ovo e a glúten.
Antecedentes familiares: a mãe, quando criança na Bolívia, teve uma alergia importante ao leite de vaca. Ela diz ter quase morrido, e a avó de R, por intuição, tirou esse alimento da dieta. Essa mãe veio para o Brasil com 10 anos, clandestinamente, foi alfabetizada aos 14 anos.
O pai de R é brasileiro. A mãe conta que ele é um homem muito tímido, fez faculdade de Biologia. Eles se conheceram aos 15 anos, numa igreja mórmon do Rio Grande do Norte.
Vejo R Sua pele está muito comprometida, áspera, escurecida e apresenta feridas abertas. Sua fala é cansada e notoriamente há uma obstrução de vias aéreas superiores. Ela apresenta uma deformidade de face, a arcada dentária é para a frente, ela falava de forma muito anasalada. Peço uma avaliação com um otorrino do Grupo Corpo.
Nessa primeira consulta, minha hipótese diagnóstica é: múltiplas alergias, dermatite crônica agudizada, uma rinite importante e uma má formação de vias aéreas superiores. Proponho, então, para a mãe de R um tratamento tradicional, pois sou alopata, mas digo que eu a respeitaria e começaria com um tratamento leve e, com o acompanhamento que nós teríamos, uma vez por semana, íamos ver como ficaria esse tratamento. Em um primeiro retorno, a mãe diz que ela ficou muito bem, ficou ótima. Percebo que no pescoço ainda tem lesões muito avermelhadas, mas, no geral, a situação tinha melhorado muito. Eu mantenho a medicação prescrita de anti-histamínico, algumas vitaminas, retiro o corticoide oral e proponho que a mãe passe na pele da menina o leite materno, já que ela estava ainda amamentando o bebê pequeno.
A mãe se surpreende positivamente, porque ela já havia usado leite materno em outras situações para curar a pele dos filhos e conjuntivites nos olhos. R olha para a mãe e diz assim: “Você vai passar seu leite em mim?” Elas ficam muito felizes com essa proposta.
O otorrino nessa época constata que R tem um desvio de septo importante, que é cirúrgico, mas que no momento não pode operar, devido à idade. Mesmo assim, mantém a medicação de rinite que eu já havia prescrito e indica aparelho para colocar, porque senão ela vai ter uma deformidade importante. A mãe rejeita o aparelho, alega que vai doer e judiar muito da menina. A odontopediatra do sos Brasil, quando observa o raio X da arcada dentária, é categórica: “É necessário que se coloque aparelho; caso contrário, ficará com uma sequela de deformidade de face mais tarde”.
Na mesma semana, a fonoaudióloga atende R passando exercícios de respiração, e, com essa orientação, a mãe diz que a filha melhorou muito. A osteopata é convocada também. Ela orienta que a mãe toque a face da menina nos pontos necessários, como se fosse num Spa. A mãe relata que é muito boa essa sensação, as duas em um Spa fazendo os exercícios: “R gosta muito dessa ideia”.
A menina reclama, e a mãe se sente muito sobrecarregada, está entristecida. Ela chora muito nessa sessão, e eu a encaminho para um atendimento psicanalítico individual.
Eu observo que a menina piora muito nos finais de semana. Chegam sábado e domingo, e a pele dela fica em carne viva. Normalmente a mãe me liga na segunda-feira para dizer que piorou muito, e eu digo a ela “por favor, melhore a hidratação da pele, passe várias vezes você mesma o hidratante na pele dela, que a amanhã, como todas as terças-feiras às 11 horas, nós nos encontraremos por vídeo”.
Na evolução desse caso, eu a atendi uma vez por semana durante dois meses e meio, depois a cada 15 dias, e, por fim, uma vez por mês. Quantas vezes fossem necessárias, ela podia me acionar.
Na última consulta, a pele de R estava ótima, totalmente regenerada com o tratamento. A mãe se sentia feliz e aliviada com a conquista. A respiração melhorou muito com o tratamento e os exercícios que ela tem feito.
R precisará da correção cirúrgica do desvio do septo no futuro e o uso do aparelho odontológico que não foi possível até o momento.
O trabalho interdisciplinar
O Grupo Corpo do sos Brasil permite o trabalho no necessário diálogo interdisciplinar. Com ele ampliamos, expandimos e aprofundamos as possibilidades de um atendimento emergencial em rede, tão eficiente quanto possível. Uma tentativa de construir com o Projeto a experiência verdadeira de cuidado e amparo.
Muito além de diagnosticar, prescrever, encaminhar, orientar essa mãe, a pediatra lhe oferece continência. Ela é uma companhia viva no percurso do tratamento da filha. Ao solicitar a essa mãe a hidratação com o leite materno, a pediatra convoca essa mulher a entrar em contato com a dimensão infantil de R Ela é a maior da prole, mas é uma criança e precisa da mirada amorosa e interessada dos progenitores. Os “gritos” polissêmicos das feridas no corpo dessa filha podem ser escutados e atendidos. Na terapia, esses berros do corpo ganharam palavras e sentidos. O sofrimento psíquico, inscrito no corpo, com cremes e hidratantes aplicados pela mãe, recebe concretamente carícias e o necessário investimento libidinal. A feliz metáfora do Spa introduz a dimensão do prazer compartilhado no terceiro tempo do circuito pulsional (Laznik, 2013a; 2013b).
A exortação da clínica
Tanto a mãe quanto o pai se desculpam no primeiro contato.
Qual é o pecado cometido? Por que precisariam se desculpar? De onde surge esse sentimento? Culpados por precisarem de ajuda? Por estarem nessa penosa situação? Por serem de uma determinada classe social e terem como referência valores e condições de outra classe? Pela doença da filha? Pela agressividade reprimida?
O setting analítico revela seu poder. A pontualidade surpreende o pai, que não está acostumado a ser atendido na hora combinada. Minha atitude revela interesse, respeito, cuidado, e compromisso com o sofrimento dessa família. Eles merecem um bom atendimento, e assim nasce o embrião da dignidade.
O trabalho interdisciplinar oferece a aposta pulsional da equipe. Os pais contidos, escutados e compreendidos podem revitalizar e recriar as funções parentais.
Destaco o quanto R precisa ocupar um lugar legitimado como criança nessa família. Ela não pode cumprir a missão de cuidar dos irmãos menores por ser a primogênita na prole.
A mãe decide que ela desenhe. Ela cumpre a ordem. A mãe a obriga a dividir o material gráfico com o irmão caçula. Ela acata sem pestanejar.
Tento iluminar a repetição da perigosa transmissão transgeracional. R atende aos ideais parentais em uma obediência que sufoca seus desejos e suas emoções. Para garantir ser digna de amor, ela se sobreadapta.
R precisa ser melhor que a professora, ideal impossível que a tiraniza com a exigência e a condena como inculpada pelo dever não cumprido.
Minha intervenção provocou efeitos no campo. Ela permite que o pai, ao tomar um sUSPiro de consciência de uma dinâmica inconsciente, retire os irmãos da cena, os entretenha com argila e crie o espaço para R estar com sua analista.
Esse homem aporta como associação o afastamento da filha durante a pandemia, na casa dos avós paternos, quando nasceu o filho caçula. Ele percebe que essa enorme distância geográfica/afetiva, a separação entre R e a família, foi fonte de sofrimentos. Que fatores inconscientes levaram os progenitores a essa decisão? Não seria a repetição compulsiva de outras separações traumáticas, como a imigração da família materna? Será que a viagem de R carrega o infantil do pai, à baila ante a quarta gravidez da esposa, que busca um refúgio como filho junto a seus pais, ante a quase perda de sua mulher-mãe?
No campo transferencial, a analista talvez seja a querida avó falecida. Eu convido R a se acompanhar com ela e comigo.
R se permite pedir também ajuda ao pai para amassar a argila, como os irmãos teriam feito. Ela não precisa ser autossuficiente, sabida e poderosa. Se anima a depender do outro e o encontra!
R esculpe a xícara tridimensional. Alegoria de reminiscências orais, na criação de um continente que ela quer preservar. Não pode desmanchar, por isso, na sua paradoxal mensagem, será um continente vazio.
Sua queixa é a falta de espaço para poder ser criança nessa família. Seu projeto terapêutico é a súplica por ajuda, na transferência, para fortalecer o continente-xícara, capaz de albergar sua subjetividade com desejos, um amplo leque de emoções, sonhos e projetos sem desmanchar!
A função analítica convoca na paciente o tropismo criativo, Eros, a criação, no desenho e na escultura.
A pele é o papiro, seu envoltório, no qual ela marca e berra com as feridas, a sofrida história que nem sempre R podia expressar em linguagem pré-verbal, desenhos, esculturas, como o faz nesta sessão, na experiência emocional com sua analista. Abertura promissora!
A conquista da palavra simbólica é a pro-cura na terapia analítica.
O trabalho analítico continua fora do Projeto sos10
Sessão número 3 com Edilene de Lima
Inicia a sessão com um cristal na mão, vai expondo-o aos raios de sol que entram pela janela e o aproxima da câmera, explorando os efeitos das cores e as distorções de imagens; é o efeito de um prisma. Sou afetada aqui pelo impacto estético da brincadeira, quase sem palavras. Com risos largos, ela se diverte, e eu também. Vou descrevendo a beleza do colorido, de como podemos nos ver através de mais essa lente, “estou vendo você”… Mantém essa brincadeira por um bom tempo. Depois, fala algo sobre meu desenho da borboleta, realizado na sessão anterior.
Eu pego o desenho, e ela vai me sugerindo complementos, vou fazendo e mostrando, um vaso, uma flor, e outras borboletas menores.
Ela não aceita a sugestão de desenhar comigo, mas participa ativamente, ri quando acha meu desenho estranho, diz o que acha que precisa melhorar.
Depois de uns trinta minutos, ela se distrai com um livro, e há um afastamento do contato comigo, parece ficar ensimesmada.
Procuro buscá-la para o contato, pergunto sobre o que há ali, ela me mostra a capa, e é um almanaque. O pai vem buscar um dos irmãos que entrou na sala, mas não aparece na câmera. Ela continua com o livro e lê títulos das páginas: judô faixa preta, soporífero e a máquina de neve.
O pai diz algo, e ela me diz que está chamando para almoçar. Digo que estamos finalizando e que faltam poucos minutos. Ela levanta e volta em seguida, dizendo: eu avisei a ele. Pergunto se ela quer terminar a sessão. Ela diz que não, que quer continuar.
Comentários
R sente-se alimentada. Não quer interromper a sessão.
Nessa experiência, um raio de luz pode entrar na sua alma, na sua casa, para iluminar e transformar seu sofrimento em variadas formas estéticas.
Yolanda Gampel (2021), na Reunião Científica para aprofundar esse atendimento, nos lembra que Spinoza falava de uma cristalização imaginativa e da lógica do pensamento. Às vezes se cristaliza a imaginação.
Essa menina, agora com um cristal, vê cores; é como se ela estivesse dizendo, inconscientemente, sobre essa cristalização imaginativa da dor de outrora e sobre a transformação em cores nesse encontro analítico.
R ainda não pode desenhar sozinha, mas ela pode estar em frente aos espelhos e aos cristais, onde pode se encontrar refletida no olhar da terapeuta. Para Lacan, a mirada e o encontro da imagem corporal refletida no espelho são fundantes na construção da subjetividade. Quando a terapeuta desenha 4 borboletas e são 4 os irmãos, oferece-lhe um modelo para ela ser ajudada a voar e crescer; um passo no caminho rumo à formação de sua identidade.
Palavras a dizer
O que foi possível conquistar em três sessões?
Mostrar a força da transmissão transgeracional.
Salientar a importância e o direito de R ser uma criança, sem precisar se sobreadaptar para ser amada.
Ressaltar que R não precisa ser gente grande. Ela pode depender dos pais em vez de pretender ser autossuficiente.
Os possíveis efeitos das separações e distâncias psíquicas podem ser pensados.
Legitimar a procura de continência na equipe multidisciplinar.
Quais os efeitos après-coup desse atendimento?
As conquistas, misteriosas e inefáveis, legitimam o valor, a importância e limitações do Projeto.
O que seria dessa família sem o acesso a uma intervenção analítica?