Introdução
Meu texto vai circular por tempos e lugares que de certa forma não nos dizem respeito, mas que, por outro lado, dizem respeito a cada de um de nós. Pois, enquanto psicanalistas, os graves acontecimentos do século 20 impactaram sobremaneira a nossa então jovem ciência e seus pioneiros, e tudo o que aconteceu naquela época deixou marcas no nosso aqui e agora - nem sempre perceptíveis e reconhecidas. Como abertura do trabalho, apresento algumas linhas de Stefan Zweig, de seu livro de memórias O mundo de ontem. A escolha de Zweig não se dá somente pela força testemunhal de suas palavras, mas também por ter sido um amigo de Freud e da psicanálise, um grande escritor, que em sua rota de exílio terminou seus dias no Brasil - país pelo qual tinha se encantado.
Nasci em 1881, em um grande e poderoso império, a monarquia dos Habsburgo. Não a procurem, porém, no mapa: ela foi extinta, sem deixar vestígio. Cresci em Viena, a metrópole supranacional de dois mil anos, e tive de deixá-la como um criminoso, antes de ser rebaixada a uma cidade provincial alemã. O meu trabalho literário foi incinerado na língua em que o escrevi, no mesmo país onde meus livros ganharam como amigos milhões de leitores. Assim, não pertenço a lugar algum, em toda parte sou estrangeiro ou, na melhor das hipóteses, hóspede; a própria pátria que o meu coração elegeu para si, a Europa, perdeu-se para mim, desde que se autodilacera pela segunda vez numa guerra fratricida. Contra a minha vontade eu me tornei testemunha da mais terrível derrota da razão e do mais selvagem triunfo da brutalidade dentro da crônica dos tempos; nunca - eu não registro isso de maneira alguma com orgulho, mas sim com vergonha - uma geração sofreu tamanho retrocesso moral, vindo de uma tal altura intelectual como a nossa. No pequeno intervalo desde que meus primeiros fios de barba cresceram até começarem a ficar grisalhos, nesse meio século aconteceram mais transformações e mudanças radicais do que normalmente em dez gerações, e cada um de nós o sente: aconteceu demais! Tão diferente é meu hoje de qualquer dos meus ontens, minhas ascensões e minhas quedas, que às vezes me parece que vivi não uma única existência, mas várias, inteiramente diferentes entre si. Pois muitas vezes, quando digo, desatento, “minha vida”, sem querer me questiono: qual vida? A de antes da Guerra Mundial, a de antes da Primeira, a de antes da Segunda ou a vida de hoje? (Zweig, 1942/2014)2
Uma questão sempre me acompanhou: o que restou da psicanálise na Europa Central, seu berço de origem, após a destruição perpetrada pelo nazismo? Muitas vezes enderecei a pergunta para meus colegas, que respondiam não haver nada de novo, criativo e original. Suas respostas eram baseadas em fatos conhecidos: como a maioria dos psicanalistas era de judeus, sob perseguição, precisaram emigrar; o que ocasionou o esvaziamento dos institutos de psicanálise.
A maior parte deles foi para a Inglaterra e os Estados Unidos. A foto de Freud com expressão assustada saindo de Viena, numa rota de fuga bem planejada por Marie Bonaparte, é emblemática desse período. Se Freud pôde ser resgatado e viveu com dignidade seu último ano de vida na Inglaterra, sua obra, o “corpus freudiano”, sobreviveu graças à tradução feita em língua inglesa, que se tornou referência. Pelo trabalho de Ernest Jones, James Strachey e Melanie Klein, os países anglo-saxões tornaram-se lugar de resistência, sobrevivência e depois de expansão da psicanálise.
É preciso, contudo, salientar que, antes dessa grande diáspora, um importante deslocamento de psicanalistas ocorrera após o término da Primeira Grande Guerra em direção a Berlim. Portanto, quando o terror nazista se anunciou, era no Instituto de Psicanálise de Berlim que o movimento psicanalítico mostrava-se mais vivo, pulsante e articulado. Vale nos deter aqui.
Em Viena está tudo bem calmo, uma vez que Berlim nos roubou o vento que soprava nossas velas (Carta de Freud a Abraham em 4/3/1923)
Ao final de 1918, Karl Abraham, após ter sido dispensado do serviço militar, retornou para Berlim e deu continuidade às atividades psicanalíticas interrompidas pela Primeira Guerra - a psicanálise recompunha o seu front. Mas havia uma enorme instabilidade político-econômica nos países derrotados, o que demandava bastante esforço e resiliência por parte dos psicanalistas para lidar com as adversidades. Com o esfacelamento do Império Austro-Húngaro, abriu-se espaço na Hungria para que um partido de extrema direita subisse ao poder em 1919. Muitos intelectuais perseguidos precisaram emigrar. Ferenczi perdeu sua cátedra na Faculdade de Medicina, a primeira obtida por um psicanalista no meio universitário. E o país onde o solo fora fértil para a psicanálise tornou-se, em pouco tempo, árido.
Embora a Alemanha atravessasse dificuldades semelhantes, a proclamação da República de Weimar em 1919 trouxe perspectivas otimistas. Com o regime social-democrata, que perdurou até 1932, as novas prerrogativas políticas e sociais que surgiram na Europa do pós-guerra encontraram na capital alemã um lugar favorável para experimentação e expansão; a vida cultural tornou-se particularmente criativa e vibrante. A psicanalista Rotraut De Clerk afirmou:
No continente, Berlim era o centro desse clima de renovação e, mesmo que esses movimentos tivessem se iniciado em outros lugares, a partir de 1920 quase todos os nomes significativos se dirigiram para Berlim, que era não somente a capital de um novo Estado republicano, como também da nova cultura social-democrata em língua alemã dos anos 1920. (1994, p. 42)3
Ao longo das cartas que Freud e Abraham trocaram nesse período, é perceptível o crescente entusiasmo de Freud com os bons ventos que sopravam sobre Berlim. Embora não fizesse menção direta em suas cartas, demonstrava perceber as circunstâncias favoráveis para a psicanálise nessa cidade, para além dos méritos de seu fiel e dedicado discípulo que presidia o Instituto local. Abraham, grande teórico clínico e analista, era o grande ímã atrativo. Vários jovens psicanalistas, contagiados pelo mesmo entusiasmo de Freud, mudaram-se para a capital alemã. Da Hungria vieram Franz Alexander, Melanie Klein, Michael e Alice Balint, Jenö Harnik, René A. Spitz e Sándor Rado. E, de Viena, Heinz Hartmann, Robert Waelder, Ernst Kris e Wilhelm Reich.
O Instituto de Psicanálise de Berlim tornou-se conhecido, não só por sua produção teórica rica e original, como também por seu currículo formativo e sua policlínica, que se tornou modelo para outras instituições. De vários lugares chegavam aspirantes a analistas para fazer sua formação. Anna Freud fez várias visitas à cidade.
No final de 1925, contudo, a morte prematura de Abraham foi um duro golpe para o movimento psicanalítico e para o Instituto. Melanie Klein perdeu com seu ex-analista um importante aliado no desenvolvimento de suas ideias e foi para Londres. Na Sociedade Britânica de Psicanálise, com o apoio de Jones, encontrou um ambiente favorável de trabalho, longe dos colegas de Berlim, muitos dos quais, fiéis ao pensamento de Anna Freud, punham obstáculos em seu caminho.
Em 1930, ano seguinte à crise econômica mundial, o partido nacional-socialista ganhou expressiva representatividade política e aumentou a perseguição a seus inimigos; os psicanalistas judeus começaram a emigrar. Numa primeira leva, foram embora cerca de 50 psicanalistas com atividades políticas ligadas ao socialismo ou comunismo. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, todos os psicanalistas judeus precisaram deixar a
Alemanha. Em 1936 o Instituto de Psicanálise de Berlim foi subordinado ao recém-criado Instituto Göring, que estava sob a chefia do médico psiquiatra Matthias Heinrich Göring, primo do poderoso ministro de Hitler. Os psicanalistas que restaram, em função de acordos e concessões, descaracterizaram o trabalho psicanalítico e deixaram um legado nefasto para o pós-guerra.
Apesar de os fatos relatados apontarem para o massacre da psicanálise em seu solo de origem, insisti na busca por sobrevivência. Em 2014 Renato Mezan lançou o O tronco e os ramos - estudos de história da psicanálise, e, nesse livro, encontrei notícias que correspondiam às minhas expectativas. Mezan escreveu a respeito dos países de língua alemã: “a partir dos anos 1960 volta a se configurar uma reflexão psicanalítica original que, por razões de tradução, ainda é largamente desconhecida no Brasil”.
Precisei, entretanto, de um longo tempo antes de começar a empreender essa pesquisa a respeito do que havia de novo na psicanálise de língua alemã. Antes foi necessário visitar lugares um tanto obscuros dentro de mim, atravessados pelo mesmo período histórico em que viveram Stefan Zweig e os pioneiros da psicanálise. Sou neta de uma berlinense!
Não conheci Helene, tampouco Hanns. Meus avós saíram de Berlim com os filhos pequenos para se estabelecer definitivamente no Brasil em 1933. Alguns parentes e amigos os acompanharam na busca de uma vida segura. Outros escolheram diferentes destinos. E há aqueles que não conseguiram sair da Alemanha e foram duramente atingidos pelo Holocausto.
Helene morreu de forma trágica muito antes de eu nascer. Mas deixou um legado valioso: um diário, escrito entre 1938 e 1945, em São Luís do Maranhão e depois no Rio de Janeiro, do qual só pude me apropriar após a morte de meu pai, pois antes temia a dor que a leitura dessas páginas poderia lhe causar e o silêncio que poderia romper. Acho que fiz bem.
É admirável como Helene interpretava corretamente as notícias vindas da Europa. Ao mesmo tempo, é tocante como ela, por meio da escrita, tentava elaborar seus sentimentos: o sofrimento pela perda de sua cultura, de sua pátria, as saudades e preocupações com os familiares e amigos que ficaram na Alemanha. Para além do encantamento da neta que através da leitura se aproximava da avó, ficou evidente que o diário possuía valor documental, tanto por seu conteúdo quanto por sua qualidade literária. Escrevi um artigo para uma revista alemã bilíngue, em que através da apresentação de trechos selecionados, dei voz a Helene.
Todos os caminhos levam a Berlim!
Em outubro do ano passado fui a Berlim. O ensejo da viagem foi a homenagem ao meu tio-avô, irmão de Helene, assassinado em Auschwitz. “Stolpersteine” é um projeto do artista Gunter Demnig, que, a partir de 1992, começou a colocar pequenas placas memoriais nas calçadas na frente das casas de pessoas que foram deportadas e mortas ou que cometeram suicídio por causa da perseguição. A ideia do projeto é dar nome, visibilidade para aqueles que foram reduzidos a números pela máquina de extermínio nazista. Após a cerimônia comovente, ouvi o primo dizer: finalmente meu pai tem uma lápide.
Segundo antropólogos, enterros, cerimoniais fúnebres são marcos que distinguem hordas de grupos humanos unidos por laços civilizatórios, sob a égide da lei. Nessa viagem entro em contato com o que os alemães chamam de Wiedergutmachungspolitik, um conjunto de políticas de Estado que visam à reparação pelos crimes praticados no período do nacional-socialismo. A filósofa americana Susan Neiman (2019), relatou na primeira parte do seu livro Learning from the Germans: race and the memory of evil o longo percurso da sociedade alemã, até que o sentido de culpa pudesse transitar de uma compensação econômica para o campo de uma culpa moral. Isto só foi possível a partir da década de 1960, quando os filhos daqueles que se silenciaram diante das vivências traumáticas procederam o Vergangenheitsaufarbeitung - o que pode ser traduzido como o trabalho de confrontar o passado.
Após a aproximação com minha avó através da força de suas palavras, agora impressas numa revista berlinense, o enterro do tio-avô insepulto e o encontro com familiares que em razão da diáspora não conhecia, iniciei minha pesquisa sobre a psicanálise na Alemanha com uma visita à psicanalista Ulrike May. Após esse encontro, descortinou-se todo um campo de trabalho em que nossos colegas alemães têm uma valiosa contribuição a dar, a pesquisa histórica - e May é uma expoente dessa área. Reproduzo aqui suas palavras:
Por que história? Para mim a resposta é óbvia: ocupar-se com a história nos abre os olhos para aquilo que se nos apresenta como natural e evidente, e nos capacita a refletir sobre se aquilo que queremos aceitar o resultante - o presente - como ele é. Pesquisa histórica é, no fundo, pesquisa crítica. Teorias e conceitos ganham fluxo e movimento. Normas e ordens dos and don’ts são relativizadas, as condições específicas de suas definições tornam-se perceptíveis, e, assim também a possibilidade de alterá-las. Além disso, ocorre algo tocante e prazeroso, ou seja, uma espécie de avivamento do imutável. Por trás de conceitos, autores tornam-se visíveis, com suas ideias e convicções específicas, assim como as relações que mantêm com elas. A origem dos conceitos e seu papel na história do conhecimento ficam evidentes, isso lhes conferindo um significado renovador. Textos psicanalíticos aparecem integrados num processo de investigação contínua e no diálogo entre pesquisadores - isso é valido tanto para Freud, como também para seus discípulos e colegas. (2015, p. 9)4
O interesse pela pesquisa histórica é compreensível entre psicanalistas alemães, é quase uma decorrência natural para uma geração que se identifica, em grande parte, com as gerações que a precederam, marcadas por situações traumáticas. Esse interesse também é motivado pelo fato de que muitas fontes são em alemão, o que deixa esses pesquisadores em condição de vantagem: além de ler o original, podem acessar documentos que não foram traduzidos.
Esses estudiosos e pesquisadores de língua alemã reúnem-se anualmente no Simpósio sobre a História da Psicanálise.5 Dele participam psicanalistas de diferentes instituições, historiadores, sociólogos, arquivistas e até mesmo um antiquário. Outra realização do grupo é a revista Luzifer-Amor, especializada em História da Psicanálise. O psicanalista Ludger Herrmanns (2019) afirmou em artigo que Berlim se tornou um dos hotspots da pesquisa em História da Psicanálise em todo o mundo. Em março deste ano voltei para lá, dessa vez para participar do Simpósio, e pude comprovar a força produtiva desse grupo.
Se o próprio Freud, por meio de seu texto “A história do movimento psicanalítico” de 1914, deu início a esse gênero de pesquisa, é preciso dizer que alguns autores desenvolvem abordagem historiográfica inspirados por conceitos da psicanálise, o que evoca semelhanças com o próprio tratamento psicanalítico de orientação freudiana. Apresento uma modalidade de pesquisa que considero paradigmática, a qual denomino “arqueológica”. Nessa modalidade, o pesquisador movido por algum interesse se ocupa do texto original depositado em arquivos. Durante a investigação, pode encontrar, eventualmente, material inédito. Outro desdobramento possível é que o reexame do material já conhecido revele aspectos não percebidos antes. A título de exemplo, posso citar o trabalho extraordinário de Ilse Grubrich-Simitis, que encontrou na Biblioteca de Washington dois manuscritos desconhecidos de “Para além do princípio do prazer”. Na última edição crítica, comemorativa do centenário do texto, Ulrike May e Michael Schröter compararam essas versões descobertas recentemente com a versão final amplamente conhecida. Felizmente esse trabalho já se encontra numa edição bilíngue alemão-português.6
Tendo proposto a “pesquisa arqueológica” como paradigma, vale ressaltar que não se trata de tomar o manuscrito como fetiche, ainda que o original (Urtext) desperte fascínio. Pelo contrário, nesse trabalho o maior valor reside no ato elucidativo. No exemplo apresentado, May e Schröter mostram como o pensamento de Freud se modificou de uma versão para outra, o que acrescentou, o que deixou para trás - confere transparência ao processo criativo do pensador, desfavorecendo a idealização. A esse modelo contraponho o correlato psicanalítico, com a citação de um parágrafo do psicanalista Marcelo Marques:
Como sabemos, do início até 1914, Freud baseava seu modelo de tratamento na ideia da possibilidade de uma (quase) completa rememoração do material recalcado. A este paradigma da anamnese, que nunca foi abandonado, embora estivesse em crise devido à impossibilidade de se sUSPender completamente o processo de recalque, junta-se um modelo construtivo que poderíamos chamar de histórico e que, supondo-se que haja uma perda, visa a preencher as lacunas de memória. (1988, p. 36)
O leitor certamente terá percebido os paralelos entre o paradigma “arqueológico” com o modelo construtivo freudiano. O trabalho em arquivos remete à Carta 52, do “Projeto para uma psicologia científica”, texto em que é apresentado como os traços de memória são inscritos e sujeitos a retranscrições, e o conceito de temporalidade a posteriori (Nachträglichkeit). É dentro da dinâmica de passagem entre diferentes níveis de registro que se articula uma primeira teoria do trauma, ancorada nessa temporalidade retroativa.
Ao longo do trabalho, procurei evidenciar o quanto minha pesquisa pessoal, a “visita por lugares obscuros”, implicou preencher lugares de falta inomináveis. Dois caminhos diferentes, que em algum ponto se entrecruzaram, possibilitaram acessar meus arquivos memoriais e realizar inscrições no vazio.
O primeiro se deu numa esfera íntima, dentro de uma análise, em que de diferentes formas relancei a busca por uma família, por uma cultura, por um país - por uma dupla cidadania que me constitui independentemente de qualquer passaporte. Tive a sorte de ser escutada por um analista para quem o mundo externo não se reduz à projeção de objetos internos e que pode estar também no lugar de testemunho, posição analítica, em que perante o evento traumático, irrepresentável por definição, não se busca por sentidos, mas cria-se espaço para que, através da imaginação, possa ocorrer algum nível de simbolização. Ou, nas palavras de Seligmann-Silva, “a imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma” (2008, p. 70). Nesse sentido, o encontro com o diário de Helene é exemplo de uma construção imaginária de uma intimidade entre neta e avó.
O segundo caminho atravessa o campo do social. As políticas reparatórias do governo alemão, que se fazem presentes em diversas esferas da vida coletiva, foram apropriadas por grande parte da população. Isso se reflete num engajamento: é por meio da articulação entre o poder público e a população civil que muitas dessas ações acontecem. Senti o efeito subjetivo dessas ações reparatórias, para além do desejo de justiça e reconhecimento. No plano teórico, o pensamento de Ferenczi sobre o trauma é esclarecedor. Para esse autor o desmentido, compreendido por Gondar (2012, citada em Rosa & Weinmann, 2022) como “o não reconhecimento e a não validação perceptiva e afetiva da violência sofrida”, é o que deixa o sujeito em condição de vulnerabilidade em face de um evento, que então adquire caráter traumático. No sentido inverso, o reconhecimento permite aos atingidos pela violência dar um contorno ao trauma. A filha do tio-avô assassinado disse aos organizadores da cerimônia de colocação da placa memorial: “vocês nos devolveram a dignidade”. Compreendo quando Freud diz que não se pode separar psicologia individual da psicologia social, e o quanto a história é uma importante interface.
Passado o Simpósio antes de embarcar para Frankfurt, onde visitei o Instituto Sigmund Freud, fui à conhecida Igreja da Memória Kaiser Wilhelm, no centro de Berlim. Ao lado da igreja, conservada tal como ficou após os bombardeios em 1943, foi erguida uma igreja moderna. Lá vi a exposição do fotógrafo ucraniano Mytyslav Chernov chamada “Rostos de guerra”, sobre a invasão de seu país. Senti a dor do confronto que ocorre não muito distante dali, em que as superpotências ameaçam colidir num novo arranjo de forças, com desfecho e consequências imprevisíveis. Thanatos reaparece, e nos perguntamos por Eros.
De volta em casa, sou chamada pelo jardineiro que mostra a beleza das taiobas. Ele me diz que que as mudas pareciam ter morrido, mas que restaram raízes na terra, e elas renasceram. Ao lado desse homem simples e de alma grande, ouço as palavras de Freud em “Transitoriedade” (1916/2015).