A violência como uma experiência em ato, um efeito da presença e multidirecional
Passado o período intrauterino de total satisfação das necessidades, ao nascermos deparamo-nos com uma realidade que marca nossa incompletude. Poder-se-ia dizer que o encontro com o mundo assinala uma violência inaugural e estruturante da nossa subjetividade.
Acerca do tema, Aulagnier (1979) propõe que a psique e o mundo externo são indissociáveis e que surgem no encontro um com o outro. Para a autora, a violência primária é enunciada inicialmente pelo discurso materno - que diz sobre a criança e é dirigido para a criança - confrontando essa criança com um efeito de antecipação no qual se espera uma resposta que o infante ainda não está apto a fornecer, pois não apreende sua significação.
A psicanalista vai além, informa-nos que a partir dessa primeira violência passamos o restante das nossas vivências em um funcionamento que balanceia o que ocorre no “estado de encontro”: sempre que há o imbricamento entre dois espaços psíquicos existirá uma diferença entre as estruturas, pois cada um organiza sua representação de mundo à sua maneira.
a experiência de todo encontro confronta a atividade psíquica a um excesso de informação que ela vai ignorar, até o momento em que esse excesso a obriga a reconhecer que o que não é incluído na representação própria ao sistema, volta à psique sob a forma de um desmentido, referente a sua representação de sua relação ao mundo. (Aulagnier, 1979, p. 34)
Encontramos também na teoria winnicottiana a centralidade que o ambiente externo e o contato com outros indivíduos exercem sobre nós quando o autor escreve sua teoria. Segundo Winnicott, temos uma capacidade inata para as experiências. Mas essa capacidade precisa ser fomentada pelo ambiente, tornada real e integrada à personalidade.
Sua teoria do amadurecimento preconiza que os estágios iniciais da vida - quando há dependência absoluta e depois relativa dos cuidados maternos - fundamentam a existência do indivíduo. O bebê cumpre três tarefas: 1) a integração no tempo e espaço, 2) o alojamento gradual da psique no corpo e 3) o início das relações objetais - contato com a realidade. Concomitante a essas tarefas, uma quarta está em curso que é a constituição de “si-mesmo” com base na repetição das experiências, culminando em uma integração unitária (Dias, 2003).
Para Winnicott a agressividade e a destrutividade humanas são fenômenos relacionados à constituição da realidade, que se desenrola em dois momentos: relação de objeto e uso do objeto.
No estágio de relação de objeto, o bebê vive num mundo totalmente subjetivo, mas tem experiências de contatos com objetos que chegam até ele como objetos-subjetivos, seriam como amostras da realidade externa. Dias elucida que “As experiências repetidas com esses objetos, além de passarem a fazer parte do bebê, pela identificação primária, vão, gradualmente, tornando o objeto significativo, apesar de ele ainda não saber da existência separada deste” (2003, p. 244).
Em um momento posterior, o bebê expulsa o objeto-subjetivo para fora do seu mundo subjetivo onipotente para ser examinado e/ou atacado. É essa operação de destruição do objeto que permite à criança criar um novo sentido de realidade, uma qualidade da externalidade. Para que isso ocorra de maneira eficaz duas condições precisam ser atendidas: o objeto precisa sobreviver (não mudar de atitude, por exemplo) e o bebê precisa confiar que não haverá retaliação por parte do objeto.
Se esses requisitos não forem cumpridos o que se tem é a percepção de um mundo exterior que se descortina como hostil e temerário. Uma violência entra em curso tanto quando há excesso quanto quando há falta.
Como exemplo temos o contraste entre a criança ousada e a tímida. Na primeira, a tendência é obter o alívio que faz parte da manifestação aberta de agressão e hostilidade, e na outra há uma tendência a encontrar essa agressividade não no eu mas em outro lugar, e a ter medo dela ou ficar apreensiva, na expectativa de que se volte para a própria criança, a partir do mundo externo. (Winnicott, 1987, p. 98)
Assim como na teoria de Aulagnier, na de Winnicott há uma indicação de que o jogo de realidades interna-externa é uma relação dialética complexa e que pode ser tida como violenta ao psiquismo desde tenra idade.
Passando para uma perspectiva vincular, o vínculo se estabelece na relação entre sujeitos, a presença de um outro é essencial para que se constitua o vínculo.
É o choque entre duas alteridades que produz subjetivações. O vínculo é bidirecional e compreende uma ligação entre seres desejantes que objetiva preencher o desamparo originário mediante a pactuação de acordos inconscientes. (Levisky, Dias & Levisky, 2021).
Puget (1999) explica que o vínculo é da ordem do Dois, à medida que o efeito de presença “apresenta” ao sujeito algo de inédito que não foi antes encontrado no mundo infantil. Para ela, isso contrapõe as teorias objetais que são da ordem do Um e tem caráter “representacional”. Ainda sob esse aspecto, Weissmann (2019) elabora que
O espaço intrassubjetivo, descrito na psicanálise clássica como o espaço intrapsíquico, contém os objetos internos e as fantasias de cada sujeito. Estrutura-se a partir das identificações com aqueles outros significativos externos que deixam suas marcas internas no espaço intrassubjetivo. Desenhase de modo intraterritorial, descrevendo o mundo interno próprio de cada sujeito, trazendo consigo a história a partir das pegadas infantis até as mais atualizadas. Inclui um mundo interno conformado pelos objetos internos, parciais e totais, que foram se imprimindo em cada sujeito, estruturando as relações de objeto com esses objetos. Esse espaço parte da ausência de objeto, porque se arma a partir daquelas pegadas internas introjetadas intrapsiquicamente e orientadas pelo desejo e pela defesa. (Weissmann, 2019, p. 90)
O vínculo tem em seu cerne a alteridade com a qual nos defrontamos no encontro com o outro, o vínculo traz a notícia de algo que é inapreensível impondo uma limitação à nossa compreensão.
A palavra ajeno descreve essa diferença impossível de não ser percebida e anulada, temos com o ajeno a instauração de um processo que faz a passagem do Um para o Dois.
A violência no vínculo surge quando não há a transposição do desamparo gerado pela perda do ideal narcísico no encontro com a alteridade.
A violência ultrapassa a linha de uma condição psíquica que não suporta o outro/realidade que se apresenta rejeitando-o radicalmente e dizimando-o psiquicamente, em uma organização psicótica. A violência passa a ser uma manifestação direcionada ao outro, ocorre uma ação cuja meta é a morte real do diferente.
Birman (2023) pontua que na sociedade contemporânea - do espetáculo e do narcisismo - o sujeito instrumentaliza o outro para seu gozo próprio, um registro especular regredido no qual o diferente não encontra lugar se não estiver servindo ao interesse de enaltecimento do sujeito. A alteridade atinge um nível do insuportável que leva o sujeito à violência.
A intolerância se funda então na impossibilidade de convívio do sujeito e do grupo social com a diferença do outro. A violência predatória do sujeito e do grupo social é seu desenlace inevitável, pois é a única forma que resta ao sujeito de gozar freneticamente, diante da impossibilidade de desejar e face à sua pobreza simbólica. (Birman, 2023, p. 318)
…
Saquear o outro, naquilo que este tem de essencial e inalienável, se transforma quase no credo nosso de cada dia. A eliminação do outro, se este resiste e faz obstáculo ao gozo do sujeito, nos dias atuais se impõe como uma banalidade. (Birman, 2023, p. 26)
Ao sermos expostos à variada gama de vínculos no decorrer da nossa vida, o impasse que se impõe é qual caminho seguiremos na inevitável presença do díspar: o ajeno está ali posto, incontornável. Birman (2023) pondera algo sobre isso ao contrapor o processo narcísico e o alteritário:
Pela primeira possibilidade (narcísico), o outro é sempre encarado como uma ameaça mortal para a existência autocentrada do sujeito, pois é permanentemente reconhecido como um inimigo e um rival, na medida em que balança o sujeito em suas certezas e o faz vacilar face a seu eixo e sistema de referência. Pela segunda possibilidade (alteritário), o outro é encarado como uma abertura para o possível, pois colocar o sujeito diante de sua diferença radical face a qualquer outro, impondo-lhe assim o reconhecimento da experiência da alteridade e da intersubjetividade. (Birman, 2023, p. 315)
Nessa toada, a violência é corolário da civilização, ela ocorre sempre em um contexto sociocultural. É a existência de mais de um diferente que a funda e a inscreve no nosso meio.
Trazemos que a violência é multidirecional porque pode se configurar de variadas maneiras.
Expliquemos: superada a proposição de que a violência está intrinsecamente amalgamada com a cultura ela deixa de ser unidirecional. Isso implica reconhecer que a violência advém do encontro com o outro, ocorre na presença de mais de um.
Teríamos então a princípio a existência de dois pólos, um sentido direcional de origem-destino da violência. Que já nesse momento pode se apresentar de várias maneiras: indivíduo(s)-indivíduo(s), indivíduo(s)-grupo(s), grupo(s)-grupo(s), grupo(s)-indivíduo(s).
A indicação da seta que retorna via destino-origem indica que o destinatário após o recebimento da ação violenta não fica incólume. Produz algo, psíquica ou fisicamente, como resposta ao ato.
Por seu turno, supor uma multidirecionalidade é tratar a direcionalidade como uma rede em malha. Acerca disso faz-se um parênteses de que essa ideia poderá ser melhor explorada futuramente, mas de antemão, indica-se que essa configuração é um produto direto da contemporaneidade, do neoliberalismo e das redes sociais.
As múltiplas direções denotam que não há uma origem e destino únicos, podendo cada elo da malha estar em ambas as posições, até mesmo, ao mesmo tempo.
Ademais, não se descarta a própria capacidade que o sujeito possui de uma dita autoviolência. Seja pela ação de um Supereu severo que subjuga o sujeito seja por um acting out. A questão que ora se levanta é que, a priori, a violência é um fenômeno externo que ocorre no encontro entre sujeitos e cultura.
A esperança como uma construção a posteriori, um efeito da ausência e unidirecional
Quando nos aventuramos a atribuir propriedades a algo, precisamos antes dar um contorno conceitual. Seguindo a linha de que a psicanálise não trabalha em função de uma moralidade, não há que se cogitar valorar a esperança, dando-lhe um sentido dual e generalista no estilo “uma boa, melhor ou correta esperança é isso ou aquilo”.
Cada sujeito construirá seu modelo de esperança. A esperança é. É o que cada um subjetivamente moldar e nomear como tal.
Figueiredo (2008) trata a esperança como um princípio que estrutura nosso funcionamento psíquico, “uma condição imprescindível ao bom funcionamento do aparelho mental e que opera em planos muito profundos e inconscientes do psiquismo” (p. 160).
Arriscamos dizer que esperança é uma aptidão que se apreende, apropria e repete no interlúdio entre encontros cotidianos. É uma potencialidade construída que permite ao sujeito transitar por caminhos que preservem ele e o outro, franqueando o acesso a novas vias com menos sofrimento.
Delineia-se a construção de esperança como um contraponto às características que traçamos para a violência: é um recurso interno que se desenvolve após a ocorrência de um evento externo, é um efeito de ausência e tem direção única.
Dizemos que a esperança é a posteriori no sentido freudiano da temporalidade, isto é, momento no qual o sujeito constitui seu passado num processo de reconstrução - que reorganiza ou reinscreve um acontecimento traumático - em função de um futuro, um projeto que confere um novo significado ao acontecimento somente em um momento posterior (Roudinesco, 1944/1998).
Aqui, então, propõe-se que a esperança é uma trilha encontrada pelo sujeito para contornar um acontecimento - depois que o mesmo ocorreu - rearranjando-o de maneira que se torne mais tolerável e que o municie de ferramentas para que se mantenha vivo (não seja tão desestruturante) em situações futuras similares.
A esperança prescinde de um outro. Portanto, ela opera na ausência do outro. Após o rearranjo contínuo de acontecimentos, guarda-se um registro daquelas experiências. Cria-se intrassubjetivamente uma representação que toma uma forma nomeada de esperança.
É lógico que o ambiente influencia sobremaneira o indivíduo também no que diz respeito a essa elaboração posterior. Winnicott traz que um ambiente não-facilitador pode fomentar precocemente a falta de esperança, levando depois a estados depressivos causados pela desesperança “em alcançar uma realidade pessoal que lhe permita estabelecer relações reais com o mundo e os objetos externos” (Dias, 2003, p. 253). Essa desesperança se torna congênita quando há
uma brutal ausência da condição ou do princípio esperança associada ao medo da catástrofe em que o indivíduo, marcado pelo trauma precoce, não pode antecipar nada além de um novo colapso, e se deixa paralisar pelas expectativas traumáticas projetadas sobre o futuro de forma indiscriminada. (Figueiredo, 2008, p. 165)
Entretanto, em termos gerais, a esperança diz respeito somente àquele que a construiu em seu aparelho psíquico. Ela pode ser destinada a um outrem, mas não há garantia de que haverá uma resposta. Se houver alguma reação talvez seja somente um retorno de comunicação do tipo “- alô?” “- alô!”.
Essa é a propriedade de ser unidirecional. Isso acontece porque a esperança é apreendida e não aprendida. Podemos tentar incutir no outro palavras e sentimentos de esperança, ensinar-lhe isso ou aquilo, dar-lhe exemplos, proporcionar o ambiente mais salutar e suficientemente bom possível, indicar leituras, filmes ou séries, nada disso garantirá que o outro terá esperança. Talvez uma conjuntura que englobe tudo isso e mais situações que coloquem à prova o sujeito e mais algum fator da ordem do imponderável e inconsciente do seu aparelho psíquico tornem o terreno fértil para que a esperança finque raízes.
Breves comentários a respeito da violência e da esperança no romance Sobre a terra somos belos por um instante
Na tecitura da teoria psicanalítica Freud utiliza a literatura como aporte em diversos momentos da sua construção teórico/clínica.
Mezan (2005) alude que Freud como um pensador da cultura utiliza essa ferramenta como um mecanismo para realizar a passagem do singular ao universal e que há um horizonte cultural - composto pelo social-histórico e pela fantasia presente na literatura, nos mitos e na arte - que Freud integra continuamente na sua teoria. Complementando, Cavalcante também ressalta esse pilar quando expõe que “a literatura torna-se imenso reservatório de material clínico, oferecendo sua matéria-prima - simbolizações, palavras, formas imaginárias, figuras de linguagem, escansões - às intuições clínicas ainda errantes em Freud” (2005, p. 121).
Seguindo esse percurso, far-se-á uma tentativa modesta de nos valermos do recurso literário para exemplificar a elaboração teórica das seções anteriores. Elegeu-se para tanto a obra “Sobre a terra somos belos por um instante”, primeiro romance do poeta vietnamita-americano Ocean Vuong (2020).
Para Freud, o poeta nos cativa de uma maneira muito própria, deveras enigmática e alcança esse lugar à medida que “gosta de reduzir a distância entre o que lhe é singular e a essência humana em geral” (Freud, 1908/2015, p. 53). Vuong escreve exatamente nesses termos, comove-nos em um nível que nos identificamos e apreendemos tanto seu sofrimento quanto seus caminhos de esperançar.
A partir de fragmentos iremos perscrutar como o escritor entrelaça violência e esperança em sua narrativa baseando-nos nas características conceituais apresentadas ao longo do artigo.
O contato com o diferente como constituinte da nossa subjetividade
A vincularidade está presente no romance na medida em que Vuong sabe que falar de si é também falar das pessoas e do ambiente que o circunda. Ele diz “A verdade é que nenhum de nós se basta o bastante. Mas isso você já sabe. A verdade é que eu vim aqui esperando encontrar um motivo para ficar” (p. 162).
Entramos em contato com sua trama por intermédio das suas próprias memórias e também das que ele ouviu de sua mãe e avó. Uma família vietnamita marcada pela aspereza e precariedade da guerra chega aos Estados Unidos em busca de uma nova vida e encontra os entraves com a cultura, língua, passando ainda pelos desafios do emprego, da educação e dos relacionamentos.
Ocean compreende que seu enredo se iniciou antes do nascimento, conforme aduz no trecho “Às vezes, tarde da noite, teu filho acorda pensando que tem uma bala alojada dentro dele. Ele sente o projétil flutuando no lado direito do peito, bem entre as costelas. A bala sempre esteve aqui, o menino pensa, mais velha até do que ele próprio…” (p. 76). Mas ele enfatiza que sua linhagem representa justamente o que a guerra não destruiu. O contexto forjou sua existência, houve decisões que tomaram por ele, houve outras que ele tomou, houve outras mais que ninguém tomou.
A violência
O tema da violência e sua múltipla direcionalidade permeia todo o livro. Somos expostos à brutalidade bélica que atravessa e traumatiza gerações, ao pai violento, ao pai violento de seu amigo, ao mesmo amigo que se violenta no uso abusivo de substâncias ilegais, ao bullying praticado por colegas da escola.
Somos capturados principalmente a conhecer uma mãe marcada pelas atrocidades da guerra e por outras hostilidades que encontrou através da violência o meio para dar vazão ao terror experenciado. Ela é ao mesmo tempo remetente e destinatária de atos violentos.
Leio que pais que sofrem de Síndrome do Estresse Pós-Traumático têm maior probabilidade de bater nos filhos. Talvez isso tenha uma origem monstruosa, no fim das contas. Talvez bater no seu filho seja prepará-lo para a guerra. Dizer que temos batimento cardíaco nunca é tão simples quanto a tarefa do coração de dizer sim sim sim para o corpo. (p. 20)
O encontro com o ajeno e a negação dele através da aniquilação do distinto é na presença desse outro. Sempre entre. Entre cores. Entre línguas. Entre nacionalidades. Entre países. Entre pais e filhos. Entre a mesma idade. Entre classes sociais. Entre desconhecidos. Entre amigos. Entre amantes.
O ato de violência marca o corpo e o psiquismo.
Dizem que o trauma afeta não só o cérebro, mas também o corpo, as articulações e a postura. As costas da Lan ficavam perpetuamente encurvadas - a tal ponto que eu mal conseguia ver sua cabeça quando ela ficava de pé na pia. Só se via o cabelo preso atrás, sacudindo enquanto ela esfregava (p. 25).
A esperança
Logo na definição do título de seu romance, Vuong deixa clara a relativização que pauta sua trajetória: ser um monstro, tal como ser belo, precisa ser colocado em perspectiva. “Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou - e é por isso que eu não posso me afastar de você. E é por isso que eu peguei a mais solitária criação de deus e te coloquei dentro dela. Veja.” (p. 21).
Se tomarmos a história da humanidade como parâmetro, o que somos hoje representa apenas um hiato. E isso traz um alívio. Uma vírgula pontuando uma esperança de pausa e de continuidade num longo texto em construção.
O livro de Vuong se configura como uma carta que o autor escolhe endereçar à sua mãe. Carta essa que só se torna possível ser escrita na medida em que o autor aventa que nunca chegará nas mãos dela. Afinal, a matriarca não sabe ler.
Mas qual seria o objetivo de mandar uma missiva que nunca será lida pelo destinatário?
Paim Filho (2018) indica que como seres de fala uma de nossas principais ocupações é “presentificar o outro em sua ausência”; a troca de correspondências tem essa função e o intervalo entre envio e recebimento propicia ao sujeito um espaço que amplia a capacidade de pensar e sentir.
A suposição de Ocean Vuong de que sua mãe nunca lerá seu relato é a condição para que o teor seja indigesto, e por isso, extremamente sensível. Sua escrita vem do anseio de preencher lacunas e a resposta que nunca virá demarca um espaço ilimitado para o nosso emissor transitar com seus pensamentos/sentimentos incontornáveis e quase inconfessáveis.
Nesse ponto temos o caráter unidirecional e do efeito da ausência da esperança. Uma carta escrita no recôndito do Um, endereçada a um outrem que não sabe ler ou que é desconhecido, sem a pretensão de que haverá uma resposta. E essa resposta, se vier, não terá outra função que confirmar o recebimento da missiva. O que foi escrito e lançado (esperança) diz sobre o íntimo do seu remetente, um material obtido e edificado após acontecimentos que causaram abalos e que persiste independente das circunstâncias e das pessoas.
Para nosso remetente as memórias são como uma segunda chance, ao remontar o passado ele sabe que pode fazê-lo de uma maneira menos desestruturante para o seu psiquismo. “A memória é uma escolha. Você me disse isso uma vez, de costas para mim, do jeito que um deus falaria” (p.75). O que vai ao encontro do preconizado por Freud (1899/1969) quando esse conceitua que
Nossas lembranças infantis nos mostram nossos primeiros anos não como eles foram, mas tal como apareceram nos períodos posteriores em que as lembranças foram despertadas. Nesses períodos de despertar, as lembranças infantis não emergiram, como as pessoas costumam dizer; elas foram formadas nessa época. E inúmeros motivos, sem qualquer preocupação com a precisão histórica, participaram de sua formação, assim como da seleção das próprias lembranças. (Freud, 1899/1969, p. 354)
Tal como recompor o passado, a esperança é uma ação que está no depois. Seria semelhante a uma re-escrita da própria história. No caso do nosso autor vietnamita-americano isso ocorre literalmente por meio da escrita.
A esperança é o porvir, ela é acalentada após a devastação, ela é o que sobra. Ela é “kipuka”.
Tem uma palavra sobre a qual o Trevor me contou uma vez, uma palavra que ele aprendeu com o Buford, que serviu na Marinha, no Havaí, durante a Guerra da Coreia: kipuka. O trecho de terra que é poupado depois que o rio de lava desce uma colina - uma ilha formada por aquilo que sobrevive ao menor dos apocalipses. Antes de a lava descer, queimando o musgo na colina, aquele pedaço de terra era insignificante, apenas mais um trecho em meio a uma massa de verde. É só por resistir que ele ganha seu nome. Deitado no tapete com você, não consigo evitar o desejo de que nós sejamos nosso próprio kipuka, nossa própria posteridade, visível. Mas eu sei que não é assim. (pp. 158-159)
Roudinesco (1944/1998) pontua que com a psicanálise Freud devolveu ao sujeito a liberdade da fala e reavivou a esperança de cura. Sobre a terra somos belos por um instante talvez tenha sido a tentativa do jovem escritor de se libertar e encontrar uma saída para suas dores que não passasse (ou parasse!) pelas drogas, esquizofrenia ou violência.
O livro guardeia a esperança do autor em preservar a si mesmo, sua história familiar e todos os corpos estrangeiros.
Nós tentamos preservar a vida - mesmo quando sabemos que ela não tem chance de suportar o corpo. Nós o alimentamos, banhamos, medicamos, acariciamos, até cantamos para ele. Cuidamos dessas funções básicas não porque somos corajosos ou altruístas, mas porque, assim como a respiração, esse é o ato mais fundamental da nossa espécie: amparar o corpo até que o tempo o deixe para trás (p. 182) […] Eu nunca quis dar corpo a uma obra, mas preservar esses corpos, os nossos corpos, vivos e esquecidos, dentro da obra. (p. 161)
Há aqui uma esperança de continuidade de existência, o que nos remete à definição winnicottiana de “continuidade do ser”. A percepção de continuidade do ser é um delicado balanço entre mundo externo e interno e é nutrida por um ambiente facilitador.
Tendo atingido o estado de ser, o que o bebê necessita é continuar a ser. Todas as suas outras necessidades advêm do fato de o bebê ser e ter de continuar a ser. Ao longo da vida até a morte, a continuidade de ser permanecerá como o problema fundamental; sua preservação equivale à saúde. (Dias, 2003, p. 158)
Sendo a esperança um engendramento que ocorre de maneira singular para cada indivíduo, a esperança para Vuong se reveste como uma recusa em morrer. Em corpo e palavra.
A esperança é humana. Humanamente falível. Tão humana que não se basta em si. A esperança é vírgula, mas também reticências ou ponto. A esperança é um trabalho que se realiza na desconfiança.
Tem tanta coisa que eu quero te contar, Mãe. Eu cheguei a ser tolo o bastante para achar que o conhecimento seria esclarecedor, mas tem coisas que são tão nebulosas por trás de camadas de sintaxe e semântica, por trás de dias e horas, nomes esquecidos, recuperados e perdidos, que simplesmente saber que a ferida existe não faz nada para revelá-la. (p. 64)
O término do livro-carta é um renovar os votos na capacidade do ser humano de firmar um compromisso que abarque ser forte sem perder a ternura (parafraseando o famoso mote de autoria real desconhecida Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás).
E a sua esperança, caro leitor, reveste-se de que forma?
Por fim, encerro esse trabalho reproduzindo o poema “Consolo na praia” de Carlos Drummond de Andrade que é uma ode e um chamamento à esperança.
Vamos, não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu
O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou Mas o coração continua
Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão
Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam Mas e o humor?
A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros
Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas Estás nu na areia, no vento Dorme, meu filho. (1902-1987/2012)