Introdução
A psicanálise nasceu dentro do pensamento científico tradicional, atrelada ao conhecimento das ciências da natureza do final do século 19, e trouxe algo novo, possivelmente disruptivo, para o pensamento científico (Assoun, 1983). A tensão desse encontro já produzira diversos capítulos na história de ambas. Em alguns momentos, a psicanálise foi rechaçada por uma certa ideologia médico-científica (Salkovskis & Wolpert, 2012), em outros, a própria psicanálise se extirpou voluntariamente do discurso da ciência (Dor, 1988).
Ainda hoje, há, por parte de psicanalistas, o temor da colonização por certa lógica “cientificista”, pautada em eficiência e capaz de pasteurizar a clínica, prejudicando a consideração pela subjetividade e singularidade (Galgut, 2021). Esse receio parece advir da observação de movimentos no âmbito da própria psicologia, que muitas vezes se viu obrigada a trabalhar apoiada em diagnósticos psiquiátricos, escalas de gravidade e manuais que supostamente garantiriam a homogeneidade em relação às intervenções terapêuticas, desconsiderando o caráter inventivo e criativo de qualquer interação humana singular (Shedler, 2010). A resistência também acontece graças às críticas que a psicanálise recebe de certa parte da comunidade científica que a considera incapaz de comprovar, em bases científicas aceitáveis, até mesmo suas teorias elementares, como, por exemplo, o inconsciente psicanalítico ou, ainda, a eficácia terapêutica de seu método de tratamento.
No entanto, uma posição de autoexclusão traz consigo o risco de privar a psicanálise dos benefícios da interação com o campo das ciências, além de favorecer a perda de espaço dos psicanalistas na crítica e mediação ao próprio discurso científico. As ameaças de exclusão da psicanálise das mesas de negociação de políticas públicas em saúde mental (Beer, 2017), e mesmo a possível perda da legitimidade para atuação profissional em determinados contextos (Pimenta, 2019; Sardenberg, 2012), são exemplos dos riscos do isolamento epistemológico. Por isso, é preciso falar sobre ciência, cientificismo e sobre o uso político do discurso científico, além de tornar públicas e compreensíveis ao público leigo as posições dos psicanalistas em relação a esses temas, para que continuemos relevantes em um mundo em transformação, no qual o discurso científico ocupa espaço privilegiado.
Foi nesse sentido que os movimentos de distanciamento e reaproximação entre psicanálise e ciência foram abordados por Beer (2017). Num esforço de diálogo propositivo, o autor defende a manutenção da articulação produtiva com as ciências empíricas, sem que a psicanálise seja assimilada ou colonizada pelo discurso das neurociências ou das evidências científicas.
Dando continuidade a esse movimento, a pergunta que apresentamos neste artigo é: há esperança de um futuro no qual a clínica em saúde mental não se restrinja à visão materialista do homem, de sua mente e de seu sofrimento psíquico? Apostando que sim, partiremos da discussão proposta por Beer (2017) e tentaremos avançar em dois pontos que nos parecem fundamentais: (1) a natureza do objeto de observação e (2) os limites da medicina baseada em evidências.
A natureza do objeto
Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui formado na prática dos diagnósticos locais e eletrodiagnóstico, e a mim mesmo ainda impressiona singularmente que as histórias clínicas que escrevo possam ser lidas como novelas e, por assim dizer, careçam do cunho austero da cientificidade. Devo me consolar com o fato de que evidentemente a responsabilidade por tal feito deve ser atribuída à natureza da matéria, e não à minha predileção. (Freud, 1893-1895/2016, p. 231)
A disposição de Sigmund Freud, ao se aproximar de seu objeto de estudo, acolhendo diferentes vértices, sem reduzi-los, determinou as inúmeras mudanças e torções no corpo teórico da psicanálise, ao longo de sua história, bem como aproximou o autor de diferentes campos do saber, como a literatura, a antropologia, as ciências naturais etc. Iannini (2017) relembra que
ali onde o conceito não pode mais expressar o objeto, ali onde os procedimentos argumentativos correntes se esgotam, ali onde a vocação científica da psicanálise se defronta com o ‘umbigo dos sonhos’ ou com das Ding ou com os fueros, Freud não recua. Ele não se furta a tomar seus poetas, seus dramaturgos, ou alguma obra de arte em particular como suplemento às rasuras do discurso argumentativo. (Iannini, 2017, p. 125)
Noutra perspectiva, a busca por compreender o psiquismo e o sofrimento psíquico humano, com base em seu substrato neurobiológico, em termos de “causalidade” biológica, tem ocupado inúmeros pensadores e pesquisadores, desde meados do século 19. O psiquiatra Wilhelm Griesinger assinalava, em 1867, que “pacientes com as assim chamadas doenças mentais são, na verdade, indivíduos com doenças dos nervos e do cérebro” (Lieberman, 2019, p. 31). Seguindo esses passos, Emil Kraeplin apostou que o estudo do funcionamento cerebral (na época ainda muito rudimentar) traria no futuro as respostas que confirmariam as bases orgânicas dos transtornos mentais graves. Nas décadas que antecederam a publicação do dsm-iii (1980), tal empreendimento foi expandido para qualquer manifestação emocional e comportamental humana, pelos psiquiatras chamados neo-kraeplinianos (Hoff, 2015). Novos instrumentos de pesquisa renovaram esperanças de que ainda seria possível compreender o funcionamento do cérebro e encontrar registros biológicos que justificassem as manifestações dos transtornos mentais. Essa abordagem centrada na hipótese de origem biológica de transtornos psiquiátricos foi decisiva para a guinada epistemológica que nortearia as propostas nosográficas adotadas pela psiquiatria mundial a partir de então.
O aprofundamento crescente da aposta na visão materialista da mente pode ser percebido na política do National Institute of Mental Health (nimh), órgão do governo americano voltado para a saúde mental. A alocação de verbas do nimh para a pesquisa em neurociência vem sendo sistematicamente dirigida à elucidação dos marcadores neurobiológicos dos transtornos psiquiátricos. Em seu livro Healing: our path from mental illness to mental health (2022), Thomas Insel, ex-diretor do nimh (2002-2015), apesar de reconhecer a falha das neurociências em fornecer as respostas desejadas, e de assumir que é preciso expandir o posicionamento do nimh para incluir intervenções sociais, sugere dobrar o investimento no que já fracassou: criar ferramentas tecnológicas mais poderosas para esmiuçar o funcionamento do cérebro.
É assim que nos voltamos para a psicanálise e as vertentes de pensamento segundo as quais não foram limitações tecnológicas que impediram a identificação da origem biológica dos transtornos mentais, mas sim a natureza do objeto investigado. Neste sentido, o neurocientista Eric Kandel enfatizou a importância do diálogo entre biologia e psicanálise com vistas à criação de uma “estrutura intelectual” para a psiquiatria (Kandel, 1999). Plakun (2012) acrescentou que, “se a compreensão do impacto dos fatores psicossociais na mente e no comportamento das pessoas constitui o cerne da riqueza conceitual da psicanálise, isto torna ainda mais importante que a psiquiatria e os psiquiatras se voltem mais uma vez para os conceitos psicanalíticos” (Plakun, 2012, p. 185).
Considerando, dessa maneira, a expertise da psicanálise na compreensão de tais fatores, pode-se vislumbrar o potencial interativo dela, por exemplo, com os estudos em epigenética, relacionados à regulação da expressão gênica com base no ambiente (Kernberg, 2002; Plakun 2012). Essa abordagem, em vez de partir do conceito de “causalidade biológica”, prioriza a ideia de “correlatos biológicos”, indicativos da complexa interação entre eventos de vida (eventos precoces da relação mãe-bebê; eventos traumáticos ao longo da vida do sujeito; estressores psicossociais, como vulnerabilidade econômica, violência, abusos etc.) e o aparato neurobiológico. Nesse caminho, Kernberg (2002) afirma que “os estudos psicanalíticos sobre o apego normal e patológico, bem como sua relação com a psicopatologia, poderiam complementar, de maneira significativa, a perspectiva neurobiológica dos sistemas afetivos” (Kernberg, 2002, p. 497). Diversos outros estudos de interface entre neurociência e psicanálise têm investigado as correlações entre psicanálise e aspectos biológicos, com perspectivas inovadoras (Solms, 2017; Pearse et al, 2020; Dimiatridis, 2019).
Avançaremos agora para um segundo ponto fundamental, quando se reflete sobre a “natureza do objeto” da psicanálise: a capacidade humana de simbolizar e, por meio da linguagem, significar e ressignificar cada uma das experiências da vida, até mesmo os eventos com inequívoco atravessamento da biologia.
Ao recuperar a dimensão humana como que cada sujeito vivencia uma experiência psíquica, independentemente dos fatores biológicos envolvidos, Pereira (2019; 2021) propõe o que chama de uma psicopatologia sob a perspectiva do sujeito singular, apoiada na discriminação entre nosologia/ nosografia e patologia.
A própria nosologia deverá ser abordada, no contexto clínico, a partir de sua incidência específica no campo subjetivo singular. Trata-se de um salto do nível da disfunção orgânica para o registro propriamente humano, estabelecido pela dimensão simbólica e social da linguagem, a qual confere ao fenômeno mórbido de natureza biológica sua densidade especificamente (psico) patológica. (Pereira, 2019, p. 830)
A patologia, nessa perspectiva, deve ser compreendida no contexto da singularidade de cada sujeito e de sua inserção no laço social, e, como enfatiza Pereira (2019), “não pode ser confundida com a incompletude estrutural e constituinte da condição humana”, nem com o “correlativo desamparo que esta evidencia quanto à falta de garantias últimas no que se refere aos fundamentos do mundo e ao próprio sentido da existência” (Pereira, 2019, p. 833).
Com base nos eixos abordados até aqui, podemos concluir que as iniciativas de aproximação entre os diversos saberes em saúde mental, para que se compreenda melhor a natureza de seu objeto em comum, ganham força em função da necessidade. O sociólogo inglês Nikolas Rose, em seu livro Our psychiatric future (2014), traduz a falha da tentativa de reduzir a compreensão do psiquismo humano e do sofrimento psíquico à sua perspectiva materialista:
Por mais de 25 anos, as categorias do dsm foram obrigatórias para pesquisas sobre as bases neurobiológicas dos transtornos mentais. … Certamente, esse esforço de pesquisa massivo … deveria ter produzido pelo menos algumas descobertas confirmatórias. … Mas, apesar das esperanças dos comitês de especialistas, … a resposta foi não. Mostrou-se impossível identificar bases neurobiológicas claras para qualquer um dos aglomerados de sintomas de qualquer categoria do dsm: a nova edição não seria capaz de incluir um único biomarcador clinicamente validado para qualquer um de seus diagnósticos. (Rose, 2014, p. 83)
A guinada epistemológica, proposta na década de 1980, que reduziu a importância da psicanálise e da fenomenologia dentro da psiquiatria está, portanto, em crise; o que abre o campo para a reinserção de outras formas de pensamento no discurso psiquiátrico. É nesse espaço de crise que encontramos a esperança de construir um futuro no qual a psicanálise e qualquer clínica em saúde mental não sucumbam à visão reducionista do determinismo biológico. Temos aqui uma oportunidade de contribuição que não deve ser desperdiçada. Nesse sentido, os aportes da clínica nos parecem fundamentais para uma apreensão mais sofisticada da natureza do objeto com que lidam os saberes “psi”. Não se pretende exigir do interlocutor advindo de outros campos do saber (neurocientistas, biólogos, filósofos etc.) a “experiência clínica”, mas apontamos a fragilidade que a exclusão desses aportes produz no debate, ajudando na crise que se instalou sobre ele.
Clemens (2014) lembra que “a cura começa na relação com o médico e na sintonia com a sutileza dos processos mentais e emocionais de qualquer paciente, contribuindo tanto para o diagnóstico quanto para o manejo do tratamento” (Clemens, 2014, p. 293). O reconhecimento dessas “sutilezas”, identificadas por inúmeros clínicos, “praticantes” da medicina e da psicanálise, foi determinante para que eles se propusessem a enfrentar as tentativas de redução dos fenômenos subjetivos e singulares, inerentes ao sofrimento psíquico humano, às propostas de generalização e classificação.
Recentemente, Leite (2023) mostrou que a busca da psicanálise no âmbito da psiquiatria contemporânea, muitas vezes, responde ao enfrentamento da frustração de profissionais de saúde mental com escutas reducionistas, que excluem a subjetividade da complexa equação do sofrimento psíquico humano, dando preferência às classificações das pessoas segundo leis gerais e universais do sofrimento psíquico. Os profissionais de saúde mental percebem os riscos de alienação do sujeito com relação ao próprio desejo, e do favorecimento ao furor curandis, que pretende abordar o sofrimento exclusivamente pela via psicofarmacológica, num perigoso movimento de “medicalização do psíquico” (Calazans & Lustoza, 2008).
Esses exemplos esclarecem que a psicanálise lida com um método, um conjunto de técnicas e conceitos que, se, por um lado, guardam componentes abstratos e complexos, por outro, foram desenvolvidos para responder a demandas práticas oriundas da clínica, no que se refere às especificidades da natureza do objeto de que se ocupa. Dessa forma, consideramos equivocado desconsiderar os inúmeros desenvolvimentos teóricos da psicanálise contemporânea, tanto no âmbito interno do saber psicanalítico (para uma revisão, ver Mezan, 2014), quanto em sua interface com as neurociências.
Tendo esmiuçado a questão da natureza do objeto e apontado a perda que adviria da exclusão da psicanálise do saber médico e psiquiátrico, falaremos agora do segundo aspecto levantado por muitos detratores do pensamento psicanalítico: a ausência de comprovação científica dos efeitos do tratamento dos transtornos mentais por meio da psicanálise.
Os ensaios clínicos e suas limitações
Com o ganho de eficiência, sem precedentes, conquistado pelo modelo médico nas últimas décadas, a questão de quão eficientes e baseados em evidências são as atividades terapêuticas se tornou central no estabelecimento de condutas terapêuticas e políticas públicas. Essa tendência foi associada à nomenclatura Medicina Baseada em Evidência (mbe). A mbe é a decisão médica com base nas melhores evidências científicas disponíveis em um determinado momento. As evidências científicas nesse caso são pelo menos de dois tipos: as evidências da chamada ciência de base, que descrevem os fenômenos de saúde e doença do ponto de vista químico, físico e biológico (molecular, celular, estrutural ou fisiológico), e as evidências da chamada ciência aplicada, que se referem ao conjunto de técnicas usadas na produção de estimativas do efeito de uma intervenção em saúde. Os estudos em ciências aplicadas considerados mais adequados para avaliar os efeitos dos tratamentos médicos são chamados ensaios clínicos de intervenção - estudos que aplicam métodos epidemiológicos e estatísticos visando estimar o efeito de um tratamento em uma população com base em uma intervenção terapêutica controlada, idealmente o mais semelhante possível para todos os participantes (Faria; Oliveira-Lima & Almeida-Filho, 2021).
Ser capaz de diferenciar entre os efeitos específicos de uma intervenção (remédio, terapia, política pública etc.) e os chamados efeitos placebo, que correspondem aos efeitos inespecíficos de qualquer intervenção terapêutica - em decorrência de sugestão, flutuação ao longo do tempo, melhora espontânea etc. -, é uma questão central na metodologia dos ensaios clínicos de intervenção, e para fazer essa diferenciação o controle dos efeitos placebo é fundamental. Os ensaios clínicos que possuem esse tipo de controle são chamados de ensaios clínicos de intervenção randomizados e controlados com placebo (ecrp).
A partir da década de 1990, a nomenclatura mbe foi associada a uma hierarquização das evidências científicas que dava aos ecrp uma posição privilegiada. Acima deles restavam somente as metanálises, que correspondem às análises estatísticas capazes de combinar o resultado de diversos ecrp (Desmond & Desmond, 2016). Por isso, é comum a nomenclatura mbe remeter à valorização dos ecrp e metanálises como a melhor evidência científica possível de ser alcançada. Os ecrp, por sua vez, miram um ideal. No caso do controle com placebo, o ideal é aquele que é o mais próximo possível da intervenção sendo testada, exceto pelo seu componente ativo.
No caso das psicoterapias, o placebo ideal seria uma conversa no mesmo setting e com as mesmas frequência e duração, sem a aplicação do método terapêutico. No entanto, mesmo sem a aplicação de um método, uma conversa implica ouvir o paciente, o que traz benefícios à revelia da técnica aplicada. Além disso, como os potenciais benefícios da psicoterapia aparecem em médio e longo prazos, a manutenção de uma relação de conversa por períodos longos acabaria por ocupar o espaço transferencial e tornaria insustentável manter uma relação neutra entre ouvinte e paciente. E, mesmo que a psicanálise tenha efeitos específicos relacionados às suas técnicas que não sejam compartilhados por uma relação de conversa ou por outras abordagens psicoterápicas, esses efeitos estruturam-se na singularidade e possivelmente podem não ser acessíveis por meio de escalas de gravidade padronizadas e centradas em conjuntos de sintomas preestabelecidos que prevalecem hoje como medida de melhora na maior parte dos ecrp.
Além disso, para que as análises estatísticas ocorram nas condições ideais é necessário que muitos pacientes sejam submetidos à intervenção terapêutica controlada e que diferentes terapeutas tenham condutas semelhantes direcionadas pelos manuais terapêuticos. Esse cenário ideal, no entanto, pode ser incompatível com o método sendo estudado, como no caso da “manualização” do método psicanalítico para que não haja discrepância nas condutas de diferentes terapeutas.
Mesmo na medicina como um todo, apesar de seu enorme sucesso, a mbe embasada nos ecrp não está imune às suas contradições internas. São limitações da mbe o fato de que os ecrp não respondem a demanda de tratamento individual, não estão imunes a interesses políticos e econômicos, e são impossíveis de serem realizados para todos os tratamentos existentes. Muitas pessoas não se enquadram nas populações incluídas nos ecrp, apresentam combinações de doenças que nunca foram estudadas com nenhum protocolo, ou mesmo sintomas que não ocorrem com frequência suficiente para justificar um ecrp. Por limitações técnicas ou por questões de custo, os ecrp são muitas vezes impraticáveis, gerando desertos de informação para doenças e tratamentos que não se adaptam às suas premissas ou que não despertam interesse econômico:
A mbe parece promissora, mas aqui é onde reside a dificuldade: Como a maioria dos ensaios clínicos randomizados publicados é projetada por empresas farmacêuticas para a aprovação de medicamentos pelas agências reguladoras e não é planejada para informar o cuidado clínico, grande parte das evidências disponíveis falha em informar as decisões clínicas do dia a dia. (Nierenberg, 2009)
Cabe a ressalva de que, por ora, o modelo dos ecrp não pode ser abandonado, por falta de substitutos que respondam à demanda de previsão de eficácia da mbe. Também não é possível ausentar-se totalmente da mbe, dado seu impacto nas decisões médicas e intervenções na saúde pública. Para que seja possível justificar a presença de tratamentos psicoterápicos como possivelmente eficientes, é preciso incorporar, pelo menos parcialmente, as premissas dos ecrp ao estudo dos efeitos das psicoterapias. Apesar das muitas limitações e desafios, a interação entre as diversas formas de psicoterapia e a mbe ocorreu. Como demonstra Lerner (2023), existem ensaios clínicos de intervenção que encontraram efeitos positivos dos tratamentos baseados em intervenções de base psicodinâmica e em psicanálise para diversas condições clínicas e psiquiátricas. Muitos desses estudos aplicaram controles experimentais, comuns às diversas formas de psicoterapias, que, apesar de não serem placebos ideais, são aceitos pela comunidade científica - como a comparação com os efeitos do tratamento farmacológico, acompanhamento médico regular, psicoeducação ou técnicas de relaxamento (Abbass; Hancock; Henderson & Kisely, 2006; Abbass; Kisely & Kroenke, 2009). E, mesmo sem placebos ideais, muitos estudos foram incluídos em metanálises organizadas pela Cochrane Library - uma iniciativa internacional que revisa as melhores evidências científicas disponíveis e é aceita como fonte para a mbe (Abbass; Hancock; Henderson & Kisely, 2006; Shedler, 2010).
Alguns estudos também fizeram a comparação entre diferentes linhas de psicoterapia, como intervenções psicodinâmicas e terapia cognitivo-comportamental, e encontraram melhora semelhante com as diferentes abordagens (Leuzinger-Bohleber et al., 2019; Kivlighan et al., 2015; Shedler, 2010). Além das limitações já mencionadas do modelo aplicado nos ecrp, Shedler (2010) aponta para a diferença entre os objetivos terapêuticos das psicoterapias psicodinâmicas e o que é medido nos ecrp tradicionais. Mesmo que as escalas de gravidade fizessem um bom trabalho de discriminação de melhora sintomática, essa melhora continuaria sendo centrada em conjuntos preestabelecidos de sintomas, que não necessariamente são entendidos como o que precisa ser reduzido com o trabalho terapêutico. Por isso, é improvável que com o modelo de ecrp seja possível diferenciar a eficácia de diversas abordagens de psicoterapia. Daí a alta frequência com que os estudos que comparam diferentes abordagens de psicoterapia encontram efeitos muitos semelhantes, independentemente do método aplicado, e não comprovam a superioridade de nenhuma técnica específica (Shedler, 2010).
No tratamento dos transtornos mentais as limitações e contradições da mbe adquirem camadas adicionais de complexidade que vão além da investigação dos efeitos das psicoterapias e atingem também as abordagens farmacológicas. A falta de delimitações diagnósticas que consigam diferenciar processos patológicos e a ausência de medidas laboratoriais capazes de mensurar o efeito do tratamento sobre a doença são um desafio para a separação entre os efeitos específicos de uma intervenção terapêutica e os efeitos placebo, como almejam os ecrp.
Essas crescentes dificuldades em discriminar o efeito dos antidepressivos têm múltiplas causas. Algumas delas são relacionadas aos efeitos da incorporação na cultura do tratamento farmacológico para sintomas depressivos e ansiosos. As pessoas com queixas emocionais identificam-se facilmente com listas de sintomas e recebem tratamento farmacológico mais cedo. Logo, hoje é impraticável conduzir estudos com pessoas que já não tenham sido expostas a tratamentos farmacológicos e que não nutram grandes expectativas de melhora. Além disso, baseando-se em listas de sintomas, fica difícil discriminar quem tem sintomas reativos, provavelmente transitórios, que inflam o efeito placebo por melhora espontânea, ao mesmo tempo que muitos dos participantes dos estudos já se mostraram resistentes a diversos tratamentos anteriores, tendo pouca chance de responder especificamente à próxima tentativa, apesar de manterem uma resposta placebo a qualquer intervenção nova (Kramer, 2016).
A dificuldade de diferenciar os efeitos específicos do tratamento dos efeitos placebo levou alguns pesquisadores a denunciar enfaticamente o que eles acreditam ser a falta de efeito dos antidepressivos (quando subtraídos os efeitos placebo) (Jakobsen; Gluud & Kirsch, 2020). A interpretação segundo a qual os tropeços dos ensaios clínicos indicam falta de efeito dos antidepressivos, como defendido por Jakobsen (Jakobsen; Gluud & Kirsch, 2020), nos parece equivocada. Entendemos que a falha dos estudos com antidepressivos é decorrente das limitações de critérios diagnósticos, escalas de gravidade, e dos efeitos da entrada do tratamento farmacológico na cultura e na sociedade. Mesmo com todas essas limitações, os antidepressivos são efetivamente superiores aos efeitos placebo. Essa diferença pode indicar melhora pouco significativa em relação ao que resulta dos efeitos placebo, mas não é inexistente, e, considerando o quanto é desafiador avaliar essa diferença, que ela não seja grande não surpreende.
Nesse contexto de falência do modelo dos ecrp para a avaliação do efeito de antidepressivos, quando outras intervenções terapêuticas - como as diversas formas de psicoterapia - são acusadas de não se terem comprovado superiores aos efeitos placebo em ecrp ideais, cabe perguntar se a limitação é das psicoterapias ou da aplicação do modelo de ecrp para a avaliação da eficácia do tratamento dos transtornos mentais. Assim como a natureza do psiquismo nos impele a expandir a compreensão sobre os transtornos mentais além das fronteiras preestabelecidas nas ciências da natureza, a complexidade do tratamento dos transtornos mentais nos convida a considerar que os ecrp não são capazes de enxergar todas as facetas dos efeitos dos tratamentos.
Portanto, em resposta à afirmação de que a psicanálise nunca teve seus efeitos comprovados pelas evidências científicas, cabe dizer que:
A ausência de ecrp ideais não é uma questão que atravesse exclusivamente as psicoterapias. É possível dizer que, para a maior parte das decisões médicas terapêuticas que precisam ser tomadas todos os dias, não há evidências científicas produzidas por ecrp ideais (Mielke & Rohde, 2021).
No caso dos estudos que avaliaram os efeitos da psicanálise, se o controle com placebo não foi ideal, isso não se deu por uma limitação desta, mas sim do modelo de ecrp, principalmente quando aplicado ao contexto dos transtornos mentais (Calazans & Lustoza, 2012).
Segundo os resultados de ecrp não ideais, há evidências comprovando que as abordagens de base psicodinâmica, incluindo a psicanálise, podem ser efetivas na redução dos sintomas, apesar de esse não ser o principal objetivo dessas formas de tratamento (Abbass; Hancock; Henderson & Kisely, 2006; Abbass; Kisely & Kroenke, 2009).
Não há evidências que comprovem a superioridade de uma abordagem psicoterápica sobre as demais, e isso dificilmente seria possível com os modelos de ecrp usados atualmente (Shedler, 2010).
Dizer que a psicanálise e outras abordagens de base psicodinâmica não tiveram seus efeitos comprovados por evidências, ou que o efeito dessas abordagens é inferior ao de outras formas de psicoterapia, não é uma afirmação científica. E, como nos alerta a filósofa da ciência Isabelle Stengers, se, em um primeiro momento, a sugestão de que os fatos científicos eram, de alguma forma, construídos socialmente assustou os cientistas, hoje o cenário é mais preocupante. O que observamos é um uso da relativização da definição de fatos científicos sem compromisso com a ciência:
Há vinte anos, a ideia de uma “construção social dos fatos”, tal como adotado por pensadores críticos, foi associada ao “relativismo” pelos cientistas que se sentiam enfurecidos por ela. No entanto, conforme veremos, a maneira como a dita “economia do conhecimento” vem mobilizando a pesquisa hoje pode significar a possibilidade de uma vitória do relativismo. Essa mobilização vem se dando por meio da destruição das dinâmicas coletivas e cooperativas relacionadas ao progresso científico, dinâmicas que Ludwik Fleck descreveu pela primeira vez em seu Gênese e desenvolvimento de um fato científico, uma descrição que inspirou o famoso As estruturas das revoluções científicas, de Thomas Kuhn. Submetendo Fleck e Kuhn ao teste dessa nova configuração, proponho que coletivos de pensamento científico, diante da possibilidade de destruição, deveriam aceitar ativamente que a sua preocupação com “fatos” deve incluir a maneira como esses fatos se tornam importantes para outros coletivos. (Stengers, 2023, p. 124)
Para encerrar, enfatizamos os riscos dos discursos que, por trás de uma pretensão purificadora sobre a verdade, ignoram a natureza complexa do objeto observado e descartam edifícios teóricos e conceituais construídos em resposta às demandas complexas do sofrimento humano, estimulando, assim, discursos baseados numa cientificidade positivista questionada há tempos, que tem repercussões muitas vezes iatrogênicas nas formas de intervenção sobre o sofrer. Sustentar esse espaço na clínica em saúde mental, problematizando as perspectivas reducionistas, generalizantes e classificatórias, previne-nos da proliferação de cuidadores em saúde mental nos moldes de Simão Bacamarte, personagem de “O alienista”, conto antológico de Machado de Assis (1882/1994).