SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.57 número106Por que a psicanálise?: Por que a formação na SBPSP?O momento freudiano índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.57 no.106 São Paulo  2024  Epub 26-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v57n106.22 

Editorial

Nota introdutória

Gizela Turkiewicz1 

Luiz Moreno Guimarães Reino2 

1Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro da equipe editorial do Jornal de Psicanálise. São Paulo

2Membro filiado do Instituto “Durval Marcondes” da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro da equipe editorial do Jornal de Psicanálise. São Paulo


Que um fecundo futuro lhe esteja reservado! (Carta de Freud de 1928 para Durval Marcondes)

Em geral, associamos a esperança ao fim: ela é a última que morre. Mas talvez seja também a primeira que nasce.

Para a seção História da psicanálise deste número do Jornal, fizemos um percurso pela correspondência entre analistas pioneiros da psicanálise em São Paulo e os fundadores do movimento psicanalítico, Sigmund Freud e Ernest Jones. Em dois diferentes tempos, essa troca registra o movimento inaugural da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), então chamada Grupo Psicanalítico de São Paulo.

Em 1927, Durval Marcondes escreve a Freud comunicando com entusiasmo a constituição de uma sociedade psicanalítica em nosso meio, ainda sem reconhecimento oficial pela International Psychoanalytical Association (ipa), que reúne médicos e intelectuais interessados pela descoberta freudiana. O grupo se estabelece como um movimento de vanguarda, ligado ao movimento modernista em São Paulo. E traz, desde sua fundação, a marca do diálogo entre diversas áreas de conhecimento, bem como o reconhecimento da análise leiga.

No mesmo ano, Durval envia a Freud um exemplar da Revista Brasileira de Psicanálise, e no ano seguinte, Freud responde: “comprei uma pequena gramática portuguesa e um dicionário alemão-português. Quero ver se com isso eu consigo ler, por mim mesmo, a revista, durante estas férias”. Se o ditado diz que só é possível filosofar em alemão, a resposta de Freud o contradiz: ao menos em psicanálise, não há uma língua oficial, e já era possível psicanalisar também em português.

Desse momento até o reconhecimento do grupo de São Paulo como integrante da ipa, passaram-se quase 20 anos, período em que o grupo cresceu e se expandiu, com a chegada de analistas vindos da Europa durante a 2ª Guerra Mundial, como Adelheid Koch, Theon Spanudis e Frank Philips.

A segunda troca de correspondência aqui apresentada - entre Ernest Jones, Adelheid Koch e Durval Marcondes - formaliza esse reconhecimento, junto aos nomes que compuseram a primeira diretoria do Grupo e as características iniciais que foram sua marca, como a independência em relação à Associação Psicanalítica Americana, sendo desde o princípio, diretamente vinculado à ipa.

As trocas que trazemos, com o apoio e parceria do “Centro de Documentação e Memória Maria Angela Moretzsohn”, atualmente coordenado por Regina Lacorte Gianesi e co-coordenado por Yone Vittorello Castelo, evidenciam o diálogo e a aposta em plantar a semente da psicanálise em solo brasileiro, para que aqui brotasse um novo ramo do tronco psicanalítico que tanto se viu (assim como tantas áreas do pensar) atacado e ameaçado pelo movimento nazifascista.

O encontro entre brasileiros e imigrantes vindos de um continente devastado por duas grandes guerras nos remete à ideia da fundação de uma nova sociedade psicanalítica como um movimento de esperança. Esperança na expansão da psicanálise enquanto pensamento e ofício. Esperança na sobrevivência. Esperança na manutenção da chama de vida acesa.

Carta de Durval Marcondes para Sigmund Freud1

São Paulo, 1927

Respeitosos cumprimentos.

Deve ter chegado a vossas mãos uma carta na qual, em nome de sua Diretoria, vos comunico oficialmente a notícia da fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise, que conta desde já com 24 sócios, na sua quase totalidade médicos ou professores. Com quanto o nosso meio científico seja ainda muito modesto, creio que para vós essa notícia será um motivo de grande satisfação, pois atesta como os vossos ensinamentos se espalham cada vez mais, chegando a repercutir em regiões tão longínquas.

Em São Paulo, os estudos psicanalíticos têm sido, até presentemente, pouco desenvolvidos. Isso se deve em parte ao fato de que não são em geral grandes cultores da vossa doutrina os médicos que aqui ocupam os cargos mais importantes da psiquiatria e dispõem dos serviços clínicos oficiais. Tendo material de observação muito reduzido, e precisando valer-se quase sempre dos doentes alheios para ampliar seus estudos, é natural que a psicanálise médica haja que lutar entre nós com dificuldades e progrida, portanto, muito lentamente. Não obstante, um grupo de jovens estudiosos, que há algum tempo vem se interessando por vossas ideias, resolve unir-se para conversar um pouco sobre psicanálise, tendo tido a felicidade de conquistar o apoio do Prof. Franco da Rocha, que deixou o merecido repouso a que se recolhera após longos anos de trabalho para vir presidir a jovem Sociedade. A adesão do Prof. Franco da Rocha é para nós muito honrosa, pelo seu grande renome na psiquiatria brasileira, tendo sido o organizador não só do Hospital de Juquery como também da cadeira de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo. Foi um dos primeiros que se interessaram pela psicanálise no Brasil, tendo publicado um livro sobre esse assunto em 1920.

Nascida sob tão bons auspícios, é de se esperar que a Sociedade Brasileira de Psicanálise tenha uma vida útil e fecunda, contribuindo modesta mas eficazmente para o desenvolvimento da nova ciência que o vosso descortino intelectual abriu ao conhecimento humano.

Do seu discípulo e admirador,

Carta de Sigmund Freud para Durval Marcondes1

Semmering

Villa Schüler

27-6-1928

Muito estimado colega.

O aspecto da nova Revista Brasileira de Psicanálise muito me alegrou. Que um fecundo futuro lhe esteja reservado!

O efeito que se seguiu a essa remessa foi que eu comprei uma pequena gramática portuguesa e um dicionário alemão-português. Quero ver se com isso eu consigo ler, por mim mesmo, a revista, durante estas férias.

Com os agradecimentos e a saudação cordial do seu

Freud

Carta de Ernest Jones para Adelheid Koch1

9 de dezembro de 1943

Prezada Dra. Koch,

Fiquei de fato muito contente em receber sua carta datada do dia 9 de outubro, e fico satisfeito em pensar que posso tê-la ajudado a incentivar algo que se tornou um trabalho pioneiro. Conhecemos a senhora o suficiente para aceitar sua recomendação e garantia em relação aos analistas de seu grupo, e terei prazer em estendê-la ao total reconhecimento em nome da Associação Internacional de Psicanálise durante a reunião do próximo Congresso. Discutiremos de que modo exatamente tal reconhecimento tomará forma. Até o presente momento, os “grupos de estudo” eram primeiramente formados em um novo país e esses eram afiliados há certo tempo a alguma das Sociedades que já eram componentes da Associação, até que adquirissem o status de Sociedade independente. Os Grupos Australianos e Sul Africanos, por exemplo, eram afiliados à Sociedade Britânica. A diferença de idiomas, porém, torna a afiliação difícil no caso do Brasil. Assim, no presente momento, é melhor que seu status seja o de “Grupo Psicanalítico Brasileiro reconhecido pela Associação Internacional de Psicanálise”. Esperemos que a evolução para uma Sociedade constituinte da Associação não tome muito tempo. Para isso será necessário que nós recebamos a maior quantidade de informações possível sobre o seu Grupo: o nome e endereço de todos os membros e funcionários do grupo, regulamento oficial do Grupo, (especialmente os que tratam da admissão de novos membros), as condições de treinamento, análise de treinamento, etc.

Espero que elas sejam muito rígidas.

Devo mencionar que talvez surja a questão indagando se o seu Grupo se unirá à Associação Internacional diretamente ou via a Associação de Psicanálise Americana, como membro dela. Essa filial da Associação Internacional esteve até agora limitada aos Estados Unidos, apesar de não precisar continuar desse modo. A senhora deve levar em consideração ao fazer essa escolha o fato de que nenhuma das sociedades afiliadas à Associação Americana admite analistas leigos como membros. Com bons votos para o seu sucesso

Atenciosamente,

Ernest Jones

Carta de Durval Marcondes para Ernest Jones1

5 de Julho de 1944

Dr. Ernest Jones,

Presidente, Associação Internacional de Psicanálise, The Plat, Elsted, nr.Midhurst, Sussex, Inglaterra.

Prezado Dr. Jones,

A Dra. Adelheid Koch me mostrou a sua carta datada de 9 de dezembro de 1943, e fiquei muito contente em saber que em nome da Associação Internacional de Psicanálise o senhor concedeu total reconhecimento ao nosso Grupo Analítico de São Paulo.

É com prazer que envio no anexo uma tradução do português das regras que redigimos e oficializamos em uma reunião do nosso grupo dia 5 de junho. Apesar de que essas regras não sejam particularmente extensas, acredito que o senhor as achará adequadas. Imaginamos que elas abrangerão satisfatoriamente as características essenciais das nossas atividades até o momento em que o Grupo possa se tornar uma Sociedade integrante da Associação Internacional. Em relação ao nosso status, a Dra. Koch me disse que ela escreveu para o senhor o informando dos nossos motivos da preferência pelo título “Grupo Psicanalítico de São Paulo”, ao invés de “Grupo Psicanalítico Brasileiro”, e também que queremos ser afiliados a Associação Internacional diretamente, já que a Associação Americana não aceita a associação de analistas leigos.

Listo abaixo os membros do Grupo e seus endereços, mencionando os diretores eleitos. Todos (exceto a Dra. Koch, que obviamente já é membro da Associação Internacional) ficarão contentes em saber o valor que devem enviar para o tesoureiro da Associação Internacional para cobrir suas taxas como membros.

Grupo Psicanalítico de São Paulo reconhecido pela Associação Internacional de Psicanálise.

Endereços (todos de São Paulo, Brasil)

Presidente: Dr. Durval Marcondes: Rua Siqueira Campos,42

Comitê de Treinamento: Dra. Adelheid Koch e

Dr. Durval Marcondes - Caixa Postal 4164

Secretário: Sr. Frank Philips - Caixa Postal 1968

Tesoureiro: Sra. Virginia L.Bicudo - Rua Guarará, 90 - Casa 1

Membro: Dr. Flavio Dias - Rua Sorocaba, 135

Membro: Dr. Darcy M. Uchoa - Rua Lacerda Franco, 581

Em relação às condições de treinamento, acredito que as regras cubram esta questão satisfatoriamente. Posso te assegurar de que fomos, e continuaremos a ser, muito rígidos quando se trata de treinamento.

Todos os membros do nosso Grupo fizeram análise de treinamento com a Dra. Koch, inclusive eu mesmo, e a Dra. Koch instruiu muito meticulosamente os outros membros em análise teórica, encarregando-se de seus domínios adultos. Os candidatos que agora passam por treinamento se tornarão membros quando o treinamento for concluído de acordo com nossas regras. Há muito tempo nosso Grupo (inclusive dois candidatos em treinamento) tem feito reuniões a cada quinze dias para fazer discussões de caso, discussões de problemas analíticos em geral e para conversar sobre pontos de vista em relação a questões de técnica, etc.

Gostaria especialmente te informar que meus colegas e eu ficamos muito contentes que a Dra. Koch decidiu se estabelecer em São Paulo, assim tornado possível, como resultado de seu trabalho de treinamento excelente, que nosso Grupo se formasse oficialmente.

Espero ansiosamente o prazer de poder te informar no futuro do bom progresso adicional do nosso Grupo de Psicanálise de São Paulo, em nome do qual desejo expressar minha imensa gratidão pelo reconhecimento que concedeu para ele.

Atenciosamente.

Durval Marcondes, M.D.

1Transcrição do rascunho original por Elisabete Marin Ribas.

1Tradução pelo Conselho Editorial da Revista Brasileira de Psicanálise, publicada na mesma revista, v. 1, nº 1, 1967.

1Tradução e transcrição por Julia Teperman.

1Tradução e transcrição por Julia Teperman.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.