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Jornal de Psicanálise

Print version ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.57 no.106 São Paulo  2024  Epub Aug 26, 2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v57n106.25 

Resenhas

Impasses da alma, desafios do corpo Figuras da hipocondria

Abigail Betbedé1 

1Psiquiatra e psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Coordenadora do Núcleo de Assistência do Ambulatório de Transtornos Somáticos (SOMA), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. São Paulo

Volich, Rubens M.. Impasses da alma, desafios do corpo Figuras da hipocondria. Blucher, 2024. p. 400


Na quarta edição ampliada de Impasses da alma, desafios do corpo. Figuras da hipocondria, Rubens M. Volich revisita sua obra-prima aprimorando-a à luz da maturidade. Retorna aos claustros da Salpêtrière e relança a intrigante frase do mestre francês Pierre Fédida que o instigara ao longo de décadas: “A consideração da natureza hipocondríaca do sonho é uma condição essencial para uma compreensão psicanalítica do corpo...”

Nesse livro, acompanhamos seu autor numa viagem pela história que remonta aos primórdios de nossa existência. Trata-se de uma pesquisa hercúlea, em que ele trabalha rigorosamente num registro transdisciplinar, considerando e integrando elementos da biologia, da medicina, da filosofia, da literatura e da psicologia, testemunhando até mesmo nesse percurso o nascimento da teoria psicanalítica seguindo os passos de Freud. São várias histórias narradas em paralelo, mas complexamente interligadas, que vão sendo entrelaçadas desde a Antiguidade, resgatando os primeiros registros da hipocondria, até chegar à atualidade com o desenvolvimento de um conceito muito mais amplo, que perpassa toda a clínica psicanalítica: a ideia de um paradigma hipocondríaco.

Rubens costura uma a uma cada descoberta, cada nova hipótese que advém da anterior, com a erudição didática do professor que sabe tornar os conteúdos acessíveis para os diversos públicos, e até de interesse para os leigos, apesar de ser um livro indicado para iniciados. Sofisticação na prosa, riqueza de detalhes e a revelação de insólitas curiosidades são temperos literários que tornam a escrita fluida e tão bonita, que, além de conduzir o leitor pelos meandros históricos da clínica da hipocondria com leveza, capturam sua atenção para fazê-lo avançar por cada linha das 400 páginas repletas de descrições, contando os substanciosos rodapés que compõem essa obra.

No texto, uma ideia vai amadurecendo até desabrochar em outra no momento oportuno, ampliando nossos conhecimentos quanto às possibilidades terapêuticas; como acontece na clínica, com a interpretação que, oferecida ao analisante, no tempo preciso, lhe faz sentido, corroborando o rumo do nosso trabalho. Estes não são apenas merecidos elogios ao psicanalista escritor, senão uma tentativa de introduzir os potenciais leitores à experiência de leitura desse livro.

Desde o prólogo, passando pelos três primeiros capítulos, situados na época em que histeria e hipocondria ainda nomeavam entidades nosológicas princeps, destacam-se a densidade de informações e a sensorialidade presentes na narrativa. Em “Imagens de uma história” uma sucessão de notáveis personagens entra e sai de cena, ora questionando, ora dando continuidade às investigações em curso, convidando-nos a elucubrar junto com eles e com o autor os diversos caminhos que a alma encontra para manifestar sua dor. Ressalta-se o colorido afetivo presente na descrição dos sintomas dos sujeitos hipocondríacos, em sua grande maioria homens, cujas ansiedades com relação ao corpo e ao adoecimento apresentavam-se embaladas por suas paixões hipocondríacas enraizadas nos tons depressivos ou melancólicos de suas vidas, acompanhadas de um humor sombrio com tendência ao isolamento e à solidão.

Existe uma mensagem. Como ela é transmitida? E como ela é recebida, traduzida e interpretada pelo outro? E o que acontece quando a palavra não é suficiente para dizer, e, então, o corpo precisa falar? Nossos antecessores não esmoreceram diante dos difíceis pacientes cujas queixas comportavam-se “como se a anatomia não existisse” e aprenderam a auscultá-los. Dotados de poucos recursos técnicos e muita curiosidade e imaginação, vislumbraram inter-relações entre o que seria o soma e a psique ainda em teorização. O empobrecimento da escuta dos médicos é uma questão que preocupa em demasia o autor, pois esses últimos são indispensáveis para inteligir as mensagens encriptadas nos sintomas dos pacientes, por serem herdeiros em transferência do paradigma da relação entre dois corpos, o da mãe e o do bebê, que organiza não só o desenvolvimento da criança, mas toda a economia psicossomática do sujeito.

As “Visões freudianas” são substancialmente inseparáveis da biografia de Freud, o qual nos albores do século passado, sonhando, como todos sabemos, descobriu que as histéricas não estavam mentindo. Corroborou que seus sintomas revelavam uma experiência de corpo que não correspondia à sua representação anatômica, inaugurando assim a cartografia do corpo erógeno. Duas décadas depois, Freud iria mais além: explicitaria que a doença orgânica, a estimulação dolorosa, assim como a inflamação de um órgão são processos capazes de desencadear movimentos de retraimento narcísico, e que permitem também compreender a dinâmica hipocondríaca como a capacidade de um órgão saudável atrair a atenção do ego sobre si.

“O corpo, outro em si” é um capítulo cuja densidade metapsicológica demanda mais atenção por parte do leitor. “O inferno são os outros” poderia condensar a inestimável contribuição dos autores pós-freudianos na elucidação das dinâmicas hipocondríacas na estruturação da experiência do corpo, trazendo à tona esse(s) outro(s) que é indispensável nos processos de subjetivação e para a constituição de nossa identidade. Esse “outro”, no caso, leque de autores, do qual constam Sandor Ferenczi, Paul Schilder, Melanie Klein, Herbert Rosenfeld, André Green, Joyce McDougall, Breno Rosemberg e Donald Winnicott, nos conscientiza sobre a dimensão dolorosa de suportar esse estrangeiro, esse outro em nós. Dor muitas vezes sentida no corpo, mas que precisará ser transformada em sofrimento psíquico no caminho de sua elaboração.

Na segunda metade do livro, nos capítulos que põem “O corpo entre o trauma e os ideais” e o confrontam com os “Horizontes médicos” o autor nos convida a mergulhar num caleidoscópio de imagens da contemporaneidade, bonitas em aparência, mas definitivamente carentes daquele lastro afetivo que nos sustentava na leitura até então. Imagens tão ofuscantes, que parecem perder o contorno que circunscreve a essência do humano. O excesso proveniente do contexto social nos atordoa (e até traumatiza) precipitando-nos a buscar soluções prontas em receitas instantâneas que prometem o almejado e inatingível bem-estar. Inusitadas técnicas de educação física, alimentar, mental e moral fracassam, obviamente, em nos domesticar. Paradoxalmente, surge o “mal-estar no corpo”, correlato somatizado do sofrimento por um (corpo) ideal (deformado) impossível de ser conquistado e, muito menos, sustentado através da efemeridade do tempo.

Com o advento da regulação exógena, farmacológica, de funções fisiológicas como a menstruação, ereção, digestão, atenção, saciedade e sono, se subtraiu (ou se terceirizou) uma parte da dimensão subjetiva que, de uma forma ou de outra, sempre tiveram. Esse esvaziamento de sentidos se percebe igualmente na compreensão psicopatológica dos pacientes na prática médica atual. Acompanhamos nosso guia, agora mais pungente e politizado, apresentar-nos as sucessivas classificações e desclassificações do dsm, registrando o instante em que a hipocondria foi banida de tal manual. Perplexos, assistimos ao sumiço do que levou quase dois milênios aprender a nomear, por seu nome ser “pejorativo” em potencial. Talvez, a hipocondria resulte mais lucrativa perambulando sem nome pelos corredores dos ambulatórios e nos halls das farmácias de plantão, consumindo solitariamente medicamentos over the counter (vendidos sem receita).

“Desafios”, o capítulo final, começa com um precioso relato clínico da safra do autor, que aquece nossos corações. O legado freudiano ressurge com toda sua potência criativa da mão de consagrados psicanalistas contemporâneos, como Pierre Fédida, Piera Aulagnier, Pierre Marty, Michael Fain, Marilia Aisenstein e Maria Helena Fernandez, só para mencionar algumas das contribuições que em seu conjunto plasmam a mensagem principal dessa obra: passou-se a época em que os hipocondríacos eram pacientes imaginariamente doentes. Hoje podemos atribuir-lhes um lugar histórico especial, pois nos ensinaram por meio de sua particular forma de sofrer como as dinâmicas hipocondríacas operam, em diversos graus, em todos nós sustentando a regulação do equilíbrio psicossomático, dando voz a tentativas de organização da economia libidinal, no limite psíquico. Constituem um circuito corporal de ligação antitraumático, diante da precariedade de recursos do sujeito para lidar com as ameaças a sua integridade.

Nosso guia, Rubens Volich, escreveu um verdadeiro diário de bordo. Um compêndio de especificações que poderia tornar-se uma coleção de dados, se a história fosse apenas contada, em vez de narrada por ele, implicando ao leitor numa trama absolutamente viva. Esse livro é um lugar em que encontraremos subsídios teóricos e técnicos para nossa práxis, mas, principalmente, a companhia do autor quando quiçá alguma vez, sentindo-nos desamparados nos impasses da clínica, nos perguntemos: estou conseguindo escutar o corpo desse sujeito? Lembraremos então que a consideração da natureza hipocondríaca do sonho é uma condição essencial para uma compreensão psicanalítica do corpo. Vale a pena seguir as pegadas do viajante até cada um chegar a seu próprio destino.

Recebido: 03 de Junho de 2024; Aceito: 05 de Junho de 2024

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