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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.24 no.73 São Paulo 2007
ARTIGO ORIGINAL
Avaliação do processamento auditivo em crianças com dificuldades de aprendizagem
Evaluation of auditory processing in children with learning difficulties
Angela RibasI; Marine Raquel Diniz da RosaII; Karlin KlagenbergIII
IFonoaudióloga; Docente do Curso de Fonoaudiologia da UTP; Mestre em Distúrbios da Comunicação
IIFonoaudióloga;Aluna do Programa de Mestrado em Distúrbios da Comunicação da UTP
IIIFonoaudióloga; Mestre em Distúrbios da Comunicação
RESUMO
A presente pesquisa teve por objetivo estudar a relação entre o processamento auditivo e a dificuldade de aprendizagem. Foram selecionadas 50 crianças, em faixa etária de 8 a 15 anos, portadoras de dificuldade de aprendizagem e que, na avaliação audiológica periférica, apresentaram limiares auditivos dentro da normalidade. Estas crianças foram submetidas a anamnese específica e à avaliação central da audição. Observou-se que 88% da amostra apresentaram alteração do processamento auditivo, e a classificação dos resultados revelou: quanto ao grau, 40% da amostra tiveram alteração leve, 32%, alteração moderada e 16%, alteração severa do processamento; quanto ao tipo, 16% tiveram dificuldade em organização, 12%, em codificação, 20%, em decodificação e 40%, dificuldades em uma ou mais categorias. Estes dados sugerem grande relação entre audição e aprendizagem.
Unitermos: Aprendizagem. Percepção auditiva. Audição. Transtornos da audição.
SUMMARY
This paper has as its objective to study the relationship between auditory processing and learning difficulties. Fifty children were selected in the age group from 8 to 15, all suffering from learning difficulties and in the peripheral audiologic evaluation presented auditory thresholds within conventionality. The children were submitted to the specific anamneses and central auditory evaluations. It was observed that 88% of the sample presented alterations in auditory processing and the classification of the results revealed that as regards the degree of processing, 40% of the sample had light alterations, 32% had moderate alterations and 16% had severe alterations. As regards the type, 16% had difficulty in organization, 12% in codification, 20% in de-codification and 40% had difficulties in one or more categories. This data suggests a significant relationship between hearing and learning.
Key words: Learning. Auditory perception. Hearing. Hearing disorders.
INTRODUÇÃO
É comum muitas crianças e jovens com dificuldades de aprendizagem fazerem inúmeras incursões a pediatras, neurologistas, psicólogos, pedagogos, fonoaudiólogos, buscando definições sobre o seu quadro, e procurando definir também a terapêutica mais adequada. Alguns saem sem respostas, outros são qualificados erroneamente, ou ainda, quando o diagnóstico é acertado, o trabalho não se mostra adequado.
Mas afinal, o que é uma criança ou jovem com dificuldade de aprendizagem? Teria a audição, ou melhor, o processamento auditivo um papel importante neste contexto?
A criança com dificuldade de aprendizagem revela-se inteligente, porém não vai bem na escola. Inverte ou espelha letras e números. Esquece das coisas com freqüência. Tem dificuldades para memorizar seqüências. Está em permanente atividade. É distraída e, por vezes, teimosa. Esta criança, apesar de ter acuidade auditiva e visual normal, lida mal com as informações sensitivas que recebe. Ela pode ter problemas de atenção, discriminação, análise e síntese, figura-fundo e memória, tanto visual quanto auditiva, fatos que podem interferir sobremaneira no processo de aquisição da leitura, onde há a associação de um duplo processo simbólico que integra a percepção visual e a auditiva1.
Pesquisas demonstram que, freqüentemente, distúrbios do processamento auditivo são encontrados em indivíduos com dificuldade de aprendizagem2-4. Se esta desordem interfere em algum aspecto importante do processo de aprendizagem, então ela deve ser considerada como um problema significativo e o diagnóstico de alterações no processamento auditivo é elementar, pois somente tendo em mãos um quadro claro e definido é que se pode traçar um plano terapêutico que complemente as reais necessidades da criança.
O papel da audição e do processamento auditivo na aprendizagem
A audição é a modalidade essencial para essa comunicação verbal interpessoal e para a aquisição da linguagem, daí sua relevância para a aprendizagem. Além de ser um sistema de alerta e de atenção pluridirecional, é contínua, ininterrupta e sua dimensão perceptiva é, ao mesmo tempo, primitiva e superior. O homem capta informações de fundo, distingue um entre vários ruídos, localiza e, ao mesmo tempo, integra, processa e compreende mensagens auditivas. A isto chamamos processamento auditivo, que também pode ser definido como:
- "É aquilo que fazemos com o que escutamos"5;
- "É como nosso cérebro conversa com nossa orelha"6;
- "É a capacidade de introspecção de eventos sonoros"7;
- "São mecanismos e processos responsáveis por localização e lateralização sonora, discriminação auditiva, reconhecimento de padrões sonoros, desempenho auditivo com sinais degradados ou competitivos"8.
O processamento auditivo envolve a detecção, a atenção, a localização, a discriminação e o reconhecimento da mensagem acústica, e tudo acontece em nível de sistema auditivo periférico e central9. Se existe uma disfunção neste processo de escuta, se há um impedimento na habilidade de analisar e/ou interpretar padrões sonoros, tem-se o que a literatura denomina de distúrbio do processamento auditivo10.
Indivíduos portadores de distúrbio do processamento auditivo podem apresentar uma ou mais das seguintes manifestações: problemas psicolingüísticos; problemas de leitura e escrita; mau desempenho escolar; desordens do comportamento social; problemas clínicos específicos da audição, no que se refere à localização da fonte sonora, discriminação de sons, identificação e memória. Muitos indivíduos com alteração do processamento auditivo têm problemas de aprendizagem, e podem ser beneficiados quando estratégias de intervenção e estratégias compensatórias são combinadas em prol de seu desenvolvimento3.
É possível melhorar a percepção auditiva de uma criança com os problemas supracitados, alterando-se o ambiente de escuta e melhorando as condições de recebimento de mensagens sonoras, porém o correto diagnóstico é fundamental para o bom encaminhamento terapêutico dos casos5.
Sabendo da importante relação existente entre o processamento auditivo e a dificuldade de aprendizagem, o presente artigo teve como objetivo descrever os achados audiológicos de um grupo de crianças com a dificuldade de aprendizagem, atendidas na Clínica de Fonoaudiologia da Universidade Tuiuti do Paraná.
MÉTODO
Amostra
Foram escolhidos como sujeitos desta pesquisa 50 crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem, atendidas na Clínica de Fonoaudiologia da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Utilizou-se como critério de inclusão crianças com idade entre oito e quinze anos, que possuíam queixa de "irem mal na escola".
Material
As crianças foram avaliadas audiologicamente por meio do audiômetro clínico AC 40, em cabine acústica. Para aplicação dos testes de processamento auditivo, utilizou-se o CD elaborado por Pereira e Schochat10 e um CD player devidamente acoplado ao audiômetro. Os equipamentos audiológicos e a cabine foram avaliados de acordo com as resoluções do Conselho Federal de Fonoaudiologia.
O protocolo de avaliação constou de:
a) Anamnese: para levantamento de dados referentes à saúde auditiva e escolaridade;
b) Otoscopia: para verificação de condições favoráveis ou não à realização dos exames audiológicos;
c) Audiometria tonal liminar: para determinação da acuidade auditiva;
d) Exame de processamento auditivo: localização da fonte sonora; memória seqüencial para sílabas; fala com ruído; palavras espondaicas sobrepostas (mais conhecido por SSW), para avaliação da percepção auditiva.
Critérios para análise dos dados
A audiometria tonal liminar foi analisada
de acordo com o critério descrito por Russo e Santos11, em função do tipo, grau e configuração da curva audiométrica.
Os resultados do exame de processamento auditivo foram analisados sob dois aspectos, ambos propostos por Pereira e Schochat10:
a) Grau da alteração: normal, leve, moderada e severa;
b) Tipo da alteração: codificação, decodificação e organização.
RESULTADOS
A caracterização da amostra está relatada na Tabela 1.
A anamnese permitiu verificar que 100% da amostra apresentam queixa de dificuldades de aprendizagem, referindo problemas no processo de alfabetização (100%), problemas ortográficos (90%), dificuldades com cálculo (50%), dificuldades de interpretação e/ou produção de textos (94%), dificuldades de memória (90%), dificuldades de concentração e/ou atenção (100%) e repetência escolar (66%).
Tanto na otoscopia quanto na audiometria, encontraram-se resultados compatíveis com a normalidade, apesar de, na anamnese, 42% terem referido histórico de otites de repetição.
Quanto ao resultado do exame de processamento auditivo, observou-se que somente 12% da amostra não apresentaram alteração da percepção auditiva, e a classificação quanto ao grau e ao tipo de desordem encontra-se nas Tabelas 2 e 3.
A Tabela 4 revela as habilidades auditivas mais prejudicadas, onde o número de respostas é maior, pois as questões permitiram múltipla escolha.
DISCUSSÃO
Esta pesquisa revelou grande relação entre o fator audição e a dificuldade de aprendizagem, visto que 88% da amostra estudada apresentaram algum tipo de alteração do processamento auditivo no exame realizado. Tal fato concorda com a literatura consultada2-4,12, onde há evidências de que problemas de leitura e escrita podem ocorrer em função dos processos psicológicos serem diferentes em pessoas com diferentes capacidades de integração auditiva.
Em relação à caracterização da amostra, a maioria (80%) dos sujeitos com queixa de dificuldades de aprendizagem é do gênero masculino. Estudos referem que a desordem do processamento auditivo é mais comum em meninos4. Quanto à faixa etária, observou-se que a maioria (86%) da amostra concentra-se entre os oito e 11 anos, época em que a criança dedica-se ao ensino fundamental e ao processo de alfabetização.
Na audiometria tonal liminar e otoscopia, não foram observadas alterações. Tal achado concorda com a literatura, pois não existe nexo causal entre alteração do processamento auditivo e perdas auditivas. Tanto a dificuldade de aprendizagem quanto a alteração do processamento auditivo podem ser caracterizadas por uma acuidade auditiva normal1,3,4,13. Isto justifica-se pelo fato da alteração do processamento auditivo caracte-rizar-se por uma deficiência em lidar com as informações sonoras recebidas, podendo ou não haver comprometimento do sistema auditivo periférico5,6,10.
Os resultados do exame de processamento auditivo foram classificados quanto ao grau e ao tipo de alteração. Este tipo de categorização é importante, pois permite o direcionamento terapêutico para a dificuldade auditiva estudada, e possibilita que um trabalho de estimulação mais adequado seja realizado em relação às queixas do indivíduo avaliado.
De acordo com o relatado na Tabela 2, 40% dos sujeitos desta pesquisa apresentaram uma desordem leve do processamento, 32%, moderada e 16%, severa. Quanto mais significativo for o grau da desordem, maior será a dificuldade para lidar com informações auditivas. Segundo Pereira e Schochat10, alterações leves conduzem a ligeira dificuldade para acompanhar conversações, principalmente em ambientes ruidosos. Já as alterações severas podem determinar até uma inabilidade para acompanhar a conversação em ambientes favoráveis. Se a audição é base para o aprendizado escolar e cada sinal acústico é essencial neste processo, crianças com dificuldades de figura-fundo e atenção seletiva tendem a organizar mal a informação auditiva, o que prejudicaria o processo de ensino-aprendizagem. Pesquisas na área ambiental14,15 têm indicado que a sala de aula normalmente é ruidosa. Se crianças com dificuldades em atenção seletiva estão inseridas num ambiente escolar onde os sons competem entre si, certamente, ela terá mais dificuldades para concentrar-se na professora.
A Tabela 3 indica que 12% da amostra tiveram problemas de codificação, 20%, de decodificação, 16%, de organização e 40%, enquadraram-se em mais de uma das categorias citadas.
A literatura consultada4,10,16 refere que:
a) Problemas de codificação indicam que o indivíduo possui, basicamente, dificuldades de localização da fonte sonora e atenção seletiva, e a disfunção acometeria o tronco encefálico;
b) Problemas de decodificação permitem inferir inabilidade para reconhecer as características fonêmicas dos sons, o que pode caracterizar dificuldades de discriminação, e a disfunção acometeria o córtex auditivo primário;
c) Problemas de organização remetem às dificuldades de organizar eventos sonoros no tempo, ou melhor, memorizar seqüências, e acometeria o córtex auditivo secundário.
Observou-se que a maioria da amostra, ou seja, 40% dos sujeitos avaliados enquadram-se em duas ou mais categorias. Este fato concorda com outros autores4 e permite inferir que as desordens do processamento auditivo são, muitas vezes, difusas, não permitindo localização exata da disfunção em nível do sistema nervoso central.
Os dados referentes à categorização dos resultados e às habilidades auditivas alteradas foram comparados, e estão descritos na Tabela 4. Os dados revelam que, dos 22 sujeitos que apresentaram dificuldades de atenção seletiva nos testes aplicados, 16 enquadram-se na categoria "codificação". Na anamnese, estes indivíduos referiram problemas com a escuta em ambientes degradados acusticamente.
Dos 16 sujeitos que apresentaram problemas de memorização nos testes aplicados, 10 enquadraram-se na categoria "organização", e, na anamnese, levantou-se história de desorganização na escola e no lar e inversões na escrita.
Dos 27 sujeitos que apresentaram problemas de discriminação auditiva, 19 enquadraram-se na categoria "decodificação", e, na anamnese, revelaram dificuldades para entender o que as pessoas falam e apresentam trocas na escrita.
CONCLUSÃO
Esta pesquisa revelou que existe relação importante entre o processamento auditivo e as dificuldades de aprendizagem, visto que 88% da amostra estudada apresentaram algum tipo de alteração do processamento auditivo no exame realizado.
Sobre o grupo estudado pode-se concluir ainda que:
a) A desordem do processamento auditivo acometeu um número maior de meninos, 80% da amostra;
b) A faixa etária mais afetada é a que compreende dos oito aos 11 anos;
c) O grau de alteração leve foi o mais relevante, com 40% de ocorrência;
d) O tipo de alteração mais relevante foi o misto, tendo em vista que 40% da amostra não puderam ser classificados em apenas uma categoria.
Há necessidade de implementação de programas dirigidos à criança e aos jovens com dificuldades de aprendizagem, que contemplem o trabalho de estimulação auditiva, já que o distúrbio do processamento auditivo é recorrente nesta população.
A neurociência nos apresenta um sistema nervoso central que é plástico, e pesquisas16,17 têm demonstrado que tanto a plasticidade quanto a maturação são dependentes da estimulação. Desta forma, é importante que assim que o diagnóstico do distúrbio do processamento auditivo seja confirmado, se inicie o trabalho de estimulação auditiva, trabalho este que tem por objetivo ensinar a criança a ouvir e desenvolver as habilidades auditivas envolvidas no processamento da aprendizagem escolar.
REFERÊNCIAS
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Correspondência:
Angela Ribas
Rua Martin Afonso, 2942, ap 601
Curitiba - PR
80730-030
E-mail: angela.ribas@utp.br
Artigo recebido: 06/11/2006
Aprovado: 10/02/2007
Trabalho realizado na Clínica de Fonoaudiologia da Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, PR.