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Revista Psicopedagogia
Print version ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.24 no.73 São Paulo 2007
ARTIGO ESPECIAL
Cinema e Psiquiatria: Filmes para o ensino da Psiquiatria
Cinema and Psychiatry: movies for teaching Psychiatry
Herberto Edson MaiaI; Leonardo Leiria de Moura da SilvaII; Nadima Vieira ToscaniII; Rodrigo Grassi de OliveiraIII
IMédico Psiquiatra. Professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA)
IIAcadêmicos de Medicina da FFFCMPA
IIIMédico Psiquiatra. Mestre e Doutorando em Psicologia. Preceptor do Programa de Residência Médica em Psiquiatria da FFFCMPA
RESUMO
O ensino da Psiquiatria para estudantes de Medicina tem sido discutido e aprofundado nos últimos anos. Filmes cinematográficos podem ser úteis em tal atividade, à medida que consideramos a capacidade metafórica que determinada obra pode proporcionar nos indivíduos. Baseado nessa capacidade, foi criado o Cinepsiquiatria, uma nova metodologia de ensino da disciplina de Psiquiatria, empregada desde 1994, na Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre - FFFCMPA. O objetivo deste trabalho é relatar a metodologia didática que vem sendo empregada no ensino da Psiquiatria nesta faculdade. Para o desenvolvimento do projeto, um grupo de estudantes (comissão organizadora) reúne-se para discutir tópicos em psiquiatria previamente selecionados por um docente (coordenador) da disciplina. Esta comissão fica responsável pela escolha de tópicos constituídos em módulos de ensino, ilustrados por meio de filmes cinematográficos, que são posteriormente projetados para os estudantes participantes. Após cada "sessão", um docente ou convidado especializado no tema discute aspectos relevantes do tema e sua inserção no filme, juntamente com os alunos, ilustrando com as imagens recém-assistidas o conteúdo teórico a ser ensinado. O insight potencial de filmes cinematográficos pode ser uma útil e prática ferramenta no ensino e aprendizado da Psiquiatria. Da mesma forma, esta nova metodologia pode ser aplicada na prática clínica como adjuvante no esclarecimento e terapêutica de alguns pacientes.
Unitermos: Ensino. Psiquiatria. Cinema.
SUMMARY
New methodologies of teaching Psychiatry for medical students have been discussed nowadays. Motion pictures could be an interesting activity to achieve better results in this subject, considering the insight that some films can provoke in their audience. Based on this capability of insight we created Cinepsychiatry, a new methodology of teaching Psychiatry, adopted at Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre since 1994. The objective of this paper is to report this new methodology of teaching Psychiatry. To develop this project a group of volunteer students meet once per week to discuss topics on psychiatry, in order to organize the event. This so-called commission chooses a main subject (i. e. violence) which will be illustrated in movies. After the projection of the movie, a teacher, or invited professional specialized on this specific theme discusses and analyzes the movie with all participants. The potential insight induced by movies can be a useful and curious tool in teaching Psychiatry. This new methodology can also be useful on the clinical practice as a support therapy, clarifying situations to many patients.
Key words: Teaching. Psychiatry. Motion pictures.
INTRODUÇÃO
A Psiquiatria e o cinema demonstram uma especial afinidade entre si, dividindo interesses tanto pelo comportamento do homem normal, como pelos desvios desta normalidade. O novo sistema de filmagens, trazido ao público por Lumière, Edison, e outros, em 1895, surgiu na mesma época em que Sigmund Freud escreveu "Projeto para uma Psicologia Científica", o protótipo de suas teorias posteriores. Em 1900, Georges Mélies, considerado o pai da arte no cinema, filmou os primeiros filmes utilizando roteiros, figurinos, atores, cenários e maquiagens, opondo-se ao estilo documentarista do cinema até então. O nascimento quase concomitante de ambos - cinema e psicanálise - contribuiu para seu "fusionamento" através do tempo, e para o estabelecimento de uma ligação entre ambas as artes. Alguns psiquiatras, entre eles Kraepelin, expressaram sua esperança de que filmagens de pacientes psiquiátricos pudessem ajudar na compreensão de seus estados patológicos e, os cineastas, por sua vez, esperavam que o conteúdo psicológico de seus filmes pudesse auxiliar a satisfazer o público e sua insaciável demanda por novas histórias1. Assim, a partir do início do século XX, pode-se observar a representação de uma miríade de pacientes com patologias psiquiátricas no cinema, como é o caso dos filmes: "The Escaped Lunatic and the Maniac Chase" (1904), que mostra um paciente que se veste de Napoleão internado em um hospital; "Maniac Barbe" (1902), que retrata um homicida; "Maniac Cool" (1909), que retrata um infanticida; e "The Kleptomaníac" (1905), obviamente a história de um cleptomaníaco1.
A representação da atuação do psiquiatra e das doenças mentais no cinema apresenta contribuições positivas, tanto para o ensino da Psiquiatria, quanto para seu entendimento como ciência para a comunidade. Tal associação é benéfica, à medida que: a) aumenta a conscientização do público para a questão das doenças mentais e da Psiquiatria; b) informa a população sobre o problema das doenças mentais e a possibilidade de reabilitação; c) alerta para a complexidade e problemas éticos durante tratamento. Esses fatores podem desencadear no público reflexões quanto aos rótulos atribuídos ao doente mental, mas também a possibilidade de superação desses preconceitos2.
O aprendizado e o ensino da Psiquiatria para estudantes de Medicina tem sido objeto de discussão e modificações ao longo do tempo. Durante a graduação em Medicina, a formação rígida e científica é intensamente estimulada, ficando o aspecto humano em segundo plano. No entanto, isso é fundamental para o pleno exercício de sua profissão. Neste contexto, especialmente o psiquiatra deve ser ambos: poeta e cientista3. Chessick4 resumiu muito bem esta questão quando afirmou: "A urgência de treinarmos futuros psicoterapeutas no aspecto humano e submergi-los nas artes tanto quanto na ciência tem fundamento teórico. Para um psicoterapeuta realizar um bom trabalho, este deve estar familiarizado tanto com a linguagem do entendimento científico, quanto com a linguagem da imaginação humanística, e este psicoterapeuta deve ser capaz de alterar, com habilidade e destreza, esta linguagem segundo sua precisão"4.
Durante muito tempo, a biblioliteratura foi utilizada na educação científica de médicos. Desde Freud, psiquiatras têm escrito extensamente sobre a natureza e a função da arte, examinando o processo criativo e o seu produto. Podoll e Ebel5 revisaram metodologias elaboradas por psiquiatras, no início do século XX, sobre como interpretar os filmes mudos da época. Desta forma, o cinema, como uma importante expressão da arte neste século, vem sendo explorado como um novo instrumento no desenvolvimento do aspecto humanístico na formação médica. Um filme traduz um contexto no qual participam os atores, o cenário, o próprio script e o espectador. Durante duas horas, em média, este contexto toma força e domina a situação. Dessa forma, os filmes apresentam diversas vantagens quando comparados à literatura como forma de treinamento. Mais do que qualquer outra forma de arte, o cinema parece ter um acesso mais direto ao inconsciente. Isto se deve, parte pela visualização de imagens dinâmicas e parte à dificuldade de adequação na interpretação da linguagem verbal que a literatura oferece3.
Assim, filmes comerciais em videotape podem ser úteis no ensino da Psiquiatria6, quando consideramos a capacidade metafórica que determinada obra pode estimular. Baseada nessa capacidade, a idéia do Cinepsiquiatria foi criada, uma metodologia de ensino que é realizada desde 1994, no Curso de Medicina da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre.
METODOLOGIA DO CURSO
Recursos Humanos
- Comissão Organizadora: os alunos componentes da comissão organizadora do Cinepsiquiatria reúnem-se com o intuito de organizar o evento periodicamente. É escolhido um grande tema (Módulo), onde serão abordados tópicos relevantes em torno deste módulo. Todo o trabalho é supervisionado e orientado por docentes da disciplina de Psiquiatria da FFFCMPA.
- Público do Cinepsiquiatria: pode-se realizar um evento aberto a qualquer pessoa que esteja interessada em participar deste ou restrito à turma discente. Em média, o número de participantes oscila entre 50 a 60 alunos.
- Palestrantes: o docente ou psiquiatra convidado irá discutir um filme ilustrativo de um tema da psiquiatria, dentro do Módulo estabelecido pela Comissão Organizadora. Esses profissionais deverão assistir ao filme previamente e selecionar os aspectos mais ilustrativos da obra, de maneira a apontar detalhes que possibilitem aos estudantes entenderem de forma empática alguns aspectos do assunto proposto para discussão.
Logística
O docente irá levar ao grande grupo os temas a serem discutidos na disciplina. A turma elegerá o primeiro a ser trabalhado e, assim, definirá o primeiro módulo do Cinepsiquiatria. Assim, a Comissão Organizadora se reunirá para discutir o tema escolhido e alguns tópicos relacionados (futuramente cada tópico constituirá cada sessão). Desta forma, os integrantes se comprometerão a estudar sobre o tema e propor um filme para ilustrá-lo. Os filmes serão assistidos previamente pela Comissão Organizadora, discutidos com o psiquiatra orientador e só então selecionados. A Tabela 1 mostra alguns exemplos de Módulos já realizados.
O filme é projetado em um "telão" para que o público presente o assista, como se estivesse em um pequeno cinema. Posteriormente, faz-se um intervalo de 10 minutos para que os participantes troquem algumas idéias, sendo posteriormente iniciado o debate com o público. A partir de imagens e de uma história (enredo), o palestrante pode discorrer sobre determinado tópico, utilizando tais recursos para exemplificar o que quer passar ao público. Cada pessoa do público tem o filme como metáfora sobre este tópico. Desta forma, a compreensão torna-se mais fácil e acessível.
DISCUSSÃO
O uso do cinema no ensino médico é uma forma prática e viável de se levar ao entendimento do aluno situações interpessoais vinculadas à psicologia médica, à psiquiatria e à ética no relacionamento médico-paciente. Nada se parece mais com o funcionamento da mente do que o cinema, que articula a imagem com o movimento, conferindo-Ihes um sentido dinâmico e imediata apreensão. O cinema amplia a capacidade de sonhar do ser humano. O cinema instala o recurso pictográfico, incorpora o diálogo tido ou falado e dá um salto gigantesco na medida que permite objetivar a mais subjetiva das experiências humanas - o sonho. O cinema tem vínculos maiores com o day-dream do que com o sonho propriamente dito. O day-dream é uma espécie de sonho que montamos, embasados num desejo que dá ordenação às imagens que usamos para compor uma história, em nossa mente, durante a vigília.
Um dos mais poderosos processos de aprendizado é ativado no estudante durante a projeção de um filme, conhecido como identificação. Por meio deste mecanismo, podemos introjetar e vivenciar, de forma empática, as mais diferentes experiências emocionais com os mais variados intuitos de aprendizado. As condições especiais da projeção e o ambiente escuro propiciam um espaço virtual regressivo, altamente propício às vivências emocionais fortes por meio das imagens que se desenrolam na tela7,8. Após a projeção do filme, as memórias visual e auditiva ficam fortemente impregnadas tanto de lembranças recentes como de lembranças de experiências altamente pessoais que, pela discussão posterior, se modelarão de forma mais articulada dentro de cada um, de acordo com o intuito do debatedor.
O cinema é hoje um comunicador de mitos. Dificilmente um filme não veicula mitos, sejam coletivos ou individuais9. Por definição, os mitos estão para a coletividade como os sonhos para o indivíduo. Mas há mitos mais pessoais, ou mais referidos a pequenos grupos que outros. Uma observação mais atenta permitirá também estabelecer certas conexões entre os mitos que instrumentam a cultura de uma época e o êxito de certas películas, nas quais algumas tragédias modernas ganham maior transparência.
O insight em potencial de filmes comerciais pode ser uma útil e curiosa ferramenta no ensino e aprendizado psiquiátrico. Da mesma forma, esta metodologia pode ser aplicada na prática clínica como adjuvante no esclarecimento e terapêutica de alguns pacientes. Nesta visão, o Cinepsiquiatria constitui-se numa inovadora e acessível forma de ensino da Psiquiatria.
REFERÊNCIAS
1. Schneider I. The theory and practice of movie psychiatry. Am J Psychiatry 1987;144(8):996-1002. [ Links ]
2. Rosen A, Walter G, Politis T, Shortland M. From shunned to shining: doctors, madness and psychiatry in Australian and New Zealand cinema. Med J Aust 1997;167(11-12):640-4. [ Links ]
3. Fritz GK, Poe RO. The role of a cinema seminar in psychiatric education. Am J Psychiatry 1979;136(2):207-10. [ Links ]
4. Chessick RD. Psychoanalysis on the move: the work of Joseph Sandler. Am J Psychother 2002;56(1):136-8. [ Links ]
5. Podoll K, Ebel H. Psychiatric contribution to the debate on films of the silent movie eras in Germany. Fortschr Neurol Psychiatr 1998;66(9):402-6. [ Links ]
6. Hyler SE, Schanzer B. Using commercially available films to teach about borderline personality disorder. Bull Menninger Clin 1997;61(4):458-68. [ Links ]
7. Schill T, Harsch J, Ritter K. Countertransference in the movies: effects on beliefs about psychiatric treatment. Psychol Rep 1990;67(2):399-402. [ Links ]
8. Herschkopf IS. Dr. know-it-all in the movie psychiatry. Am J Psychiatry 1988;145(3):391. [ Links ]
9. Wilt DL, Evans GW, Muenchen R, Guegold G. Teaching with entertainment films: an empathetic focus. J Psychosoc Nurs Ment Health Serv 1995;33(6):5-14. [ Links ]
Correspondência:
Herberto Edson Maia
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da FFFCMPA
Rua Sarmento Leite, 245 - Porto Alegre
RS - 90050-170
Fone: (51) 3224-8822
E-mail: hemaia@terra.com.br
Artigo recebido: 23/10/2006
Aprovado: 13/02/2007
Trabalho realizado na Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS.