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Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.25 no.78 São Paulo 2008
ARTIGO ORIGINAL
Desempenho neuropsicológico e fonoaudiológico de crianças com dislexia do desenvolvimento
Neuropsychological and phonoaudiological performance in children with developmental dyslexia
Ricardo Franco de LimaI; Cíntia Alves SalgadoII; Sylvia Maria CiascaIII
IPsicólogo com aprimoramento em Neurologia Infantil - Faculdade de Ciências Médicas - UNICAMP
IIFonoaudióloga, doutoranda em Ciências Médicas - Faculdade de Ciências Médicas - UNICAMP
IIINeuropsicóloga, Livre Docente em Neurologia Infantil - Faculdade de Ciências Médicas - UNICAMP
RESUMO
O objetivo deste estudo foi descrever o desempenho de crianças com dislexia do desenvolvimento por meio de uma bateria de avaliação neuropsicológica e fonoaudiológica. Participaram deste estudo 6 crianças de ambos os gêneros, com idade entre 9 e 11 anos. O protocolo de avaliação foi composto pelos seguintes instrumentos: a) para a avaliação neuropsicológica: Escala de Inteligência Wechsler, Teste Gestáltico Visomotor de Bender, Bateria Luria Nebraska, Testes de Cancelamento, Teste das Trilhas, Teste de Stroop, Torre de Londres, Teste Wisconsin, Inventário de Depressão Infantil e Inventário de Comportamentos na Infância e Adolescência; b) para a avaliação fonoaudiológica: prova de Nomeação Automática Rápida, Prova de Consciência Fonológica, leitura oral e escrita sob ditado, nível de leitura e redação temática. Os resultados evidenciaram que as crianças com dislexia apresentam alterações no tempo de nomeação para material verbal, dificuldades em provas de rima, segmentação, manipulação e transposição fonêmicas, nível de leitura aquém do esperado para escolaridade, escrita com trocas fonológicas e ortográficas. Apresentaram nível intelectual dentro da média esperada para a idade cronológica e prejuízos principalmente nas atividades que envolveram funções perceptuais, de memória, atenção e funções executivas. É fundamental que crianças com queixas escolares façam avaliação interdisciplinar, pois os achados auxiliam um diagnóstico preciso.
Unitermos: Dislexia. Transtornos da linguagem. Avaliação. Educação.
SUMMARY
The objective of the present study was describing the findings of the neuropsychologic and phonologic evaluation battery in a sample of developmental dyslexic children. It was used at this study six participants with both genders, and age between 9 to 11 years old. The protocol of evaluating was composed by followed instruments: a) neuropsychological evaluation - Wechsler Intelligence Scales, Gestaltic Visomotor Bender Test, Luria Nebraska Test, Canceling Tests, Trail Making Test, Stroop Color Word Test, Tower of London, Wisconsin Card Sorting Test, Children's Depressive Inventory, Child Behavior Checklist; b) phonologic evaluation - Rapid Automatized Naming Test, Phonological Awareness Test, test of reading and writing, level of reading. The results evidencing that the dyslexic children have shown alterations in the time of nomination for verbal material, difficulties in the him/her proves, segmentation and transposition phonemics, lecture levels less of the scholar age and writing with phonologic and orthographic changes. The children shown intellectual level compatible for chronologic age and damage mainly in the activities that involve perceptual functions, of memory, attention and executives functions. It is fundamental the multidisciplinary evaluation because the findings support a precise diagnostic and the planning of the intervention.
Key Words: Dyslexia. Language disorders. Evaluation. Education.
INTRODUÇÃO
De acordo com o DSM-IV-TR1; a Dislexia do Desenvolvimento é definida como um transtorno específico de aprendizagem, caracterizada por um desempenho escolar na leitura/escrita inferior ao esperado para a idade cronológica, escolaridade e ao nível cognitivo/intelectual do indivíduo.
Do ponto de vista neuropsicológico, a dislexia é considerada uma disfunção do Sistema Nervoso Central, que compromete a aquisição e o desenvolvimento das habilidades escolares, tendo como critérios de exclusão o rebaixamento intelectual, déficits sensoriais (visual, auditivo), déficits motores significativos, com condições supostamente adequadas de aprendizagem e ausência de problemas psicossociais2.
Indivíduos com dislexia apresentam déficits específicos nas funções neuropsicológicas, como no processamento visual e auditivo, sistema fonológico da linguagem3-6; atenção7 e funções executivas8.
Estudos compararam o desempenho de um grupo de 21 crianças disléxicas e controle, sendo onze com dislexia e dez do grupo controle, em tarefas de atenção espacial com medidas de tempo de reação9. A conclusão foi que crianças com dislexia exibiram déficit na atenção espacial, possivelmente relacionada a uma disfunção no córtex parietal direito. De acordo com os autores, há uma relação entre a distribuição espacial anômala dos recursos de atenção visual e o quadro da dislexia. Outro estudo indicou que o distúrbio de leitura pode ser caracterizado por uma distribuição difusa dos recursos de processamento visual, corroborando com os achados sobre o déficit no sistema magnocelular na dislexia10. Estudo realizado com 25 crianças com dislexia com idade entre 10 a 12 e comparadas a um grupo controle demonstrou que os disléxicos exibiam um padrão de respostas mais lento em tarefas de atenção e leitura, também exibiram déficit atencional para estímulos visuais11. Os autores sugerem que os indivíduos com dislexia apresentam problemas no recrutamento de recursos cognitivos necessários para o desempenho de tarefas complexas de tempo de reação e fluência de leitura.
Com relação às funções executivas, apesar de sua importância para o desenvolvimento da habilidade de leitura, sua avaliação tem sido negligenciada nos estudos da dislexia.
Pesquisadores avaliaram as funções executivas de inibição, planejamento, sequenciamento e organização em adultos disléxicos e encontraram déficits nas funções de inibição de distratores, "span" de dígitos, fluência verbal e no sequenciamento temporal de eventos que estão associadas ao funcionamento do córtex pré-frontal12.
Um grupo de estudiosos comparou crianças e adolescentes em dois grupos clínicos com distúrbio de leitura, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) a um grupo controle em tarefas que exigiam habilidades de velocidade de processamento, sendo: subteste Código do WISC-R, Trail Making Test (A/B), RAN, Stroop Test, Stop Signal Test, Gordon Diagnostic Test, Colorado Perceptual Speed Test e ETS Identical Pictures Test. Os resultados indicaram que em ambos os grupos clínicos houve déficit geral de velocidade de processamento de informações, sendo este considerado um fator cognitivo de risco13.
Recentemente, tem-se demonstrado que a Dislexia do Desenvolvimento é acompanhada por alterações nas funções neuropsicológicas e fonológicas, principalmente de organização percepto-motora, processamento visual e auditivo e no sistema fonológico da informação, indicando disfunções na região associativa têmporo-parieto-occipital3,6.
Estudos de caso com crianças com dislexia do tipo mista, evidenciaram déficits em provas específicas de leitura/escrita, consciência fonológica, maior freqüência de erros na escrita sob ditado de palavras irregulares de baixa freqüência, palavras inventadas irregulares e com regra, trocas surdas-sonoras na escrita, memória de curto prazo e de trabalho, organização percepto-motora, falta de concentração, sinais neurológicos menores (soft signs), além de indicarem a importância da realização de avaliação interdisciplinar para o diagnóstico2,6.
A hipótese de que o déficit fonológico é a principal etiologia da dislexia do desenvolvimento vem sendo largamente estudada, o que se confirma quando estas crianças são comparadas ao grupo controles, em que apresentam desempenho abaixo em provas de leitura, principalmente em habilidades relacionadas à leitura de não palavras14.
A importante relação entre as neurociências e a educação pode favorecer uma melhor compreensão do processo ensino-aprendizagem, principalmente quando relacionado às dificuldades de leitura, em crianças disléxicas, favorecendo a discussão para futuras investigações na área15.
OBJETIVO
O objetivo deste estudo foi descrever o desempenho cognitivo-lingüístico de uma amostra de crianças com dislexia do desenvolvimento em uma bateria de avaliação neuropsicológica e fonoaudiológica.
MÉTODO
Participantes
Os participantes foram selecionados dentre as crianças encaminhadas ao Laboratório de Pesquisa em Dificuldades, Distúrbios de Aprendizagem e Transtornos da Atenção (DISAPRE) da UNICAMP com queixas de dificuldades de leitura e escrita e/ou hipótese diagnóstica de dislexia.
Após a avaliação de 34 crianças que vieram com a queixa principal de dislexia, no período de abril de 2007 a julho de 2008, apenas 6 crianças foram incluídas no estudo com o diagnóstico, sendo 3 meninos e 3 meninas, com faixa etária de 9 a 11 anos de idade, estudantes da 4º ao 6º ano (antiga 3ª a 5ª série) do Ensino Fundamental da região metropolitana da cidade de Campinas/SP, de Jundiaí/SP e do Estado de Minas Gerais.
Materiais e Procedimentos
Inicialmente, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas-UNICAMP, sob os protocolos nº 215/2007 e 648/2007. Em seguida, as crianças foram selecionadas de acordo com critérios de inclusão e exclusão e após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pais, foram avaliadas pelos profissionais da equipe interdisciplinar, em sessões individuais, de acordo com o protocolo composto pelos instrumentos citados a seguir.
Avaliação Neuropsicológica
a) Avaliação Breve de Leitura, Escrita e Cálculo: que avalia as habilidades escolares básicas16;
b) Escala de Inteligência Wechsler para Crianças - WISC-III: nível intelectual e diferentes funções neuropsicológicas17;
c) Teste Gestáltico Visomotor de Bender - B-SPG: maturidade visomotora18;
d) Teste Luria Nebraska para crianças - TLN-C: instrumento de screening de funções neuropsicológicas e escolares19;
e) Testes de Cancelamento: Figuras Geométricas e Letras em Fileiras - TC: atenção sustentada visual20;
f) Teste das Trilhas - TMT - A/B: atenção sustentada visual, alternada e flexibilidade cognitiva21;
g) Teste Cor-Palavra de Stroop - SCWT: atenção seletiva visual e capacidade de inibição cognitiva21;
h) Torre de Londres - TOL: capacidade de planejamento22;
i) Teste Wisconsin de Classificação de Cartas - WCST: capacidade de mudança de estratégias cognitivas23;
j) Inventário de Depressão Infantil - CDI: sintomatologia depressiva com escore de corte de 17 pontos24,25;
k) Inventário de Comportamentos da Infância e Adolescência - CBCL: questionário aplicado com os pais para verificação de queixas agrupadas em escala de comportamentos internalizantes, externalizantes e outros26.
A análise dos resultados da avaliação neuropsicológica foi realizada de maneira quantitativa, de acordo com os escores obtidos, e de maneira qualitativa, seguindo as características do desempenho27. Os dados foram agrupados de acordo com os objetivos de cada teste e função cortical avaliada: atenção, memória, percepção, função motora, funções executivas, funções intelectuais e habilidades escolares, aspectos emocionais e comportamentais.
Avaliação Fonoaudiológica
a) Prova de Nomeação Automática Rápida - RAN: que avalia o acesso ao léxico mental, um dos componentes do processamento fonológico28,29;
b) Prova de Consciência Fonológica: PCF: metalinguagem30;
c) Leitura oral: uso das rotas de leitura31;
d) Escrita sob ditado: análise qualitativa de trocas fonológicas e ortográficas31;
e) Nível de leitura: fase do desenvolvimento da leitura-logográfico, alfabético e ortográfico32;
f) Redação Temática: análise qualitativa de aspectos formais da escrita e elaboração de texto.
Após as avaliações, os dados foram tabulados e analisados estatisticamente com o Programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences).
RESULTADOS
Com relação às queixas escolares, todas as crianças foram encaminhadas com queixas específicas de leitura e escrita e hipótese diagnóstica de dislexia. Além dessas, duas crianças também tinham queixas de retraimento, tristeza e timidez. Da amostra, três crianças freqüentavam escolas particulares e três, escolas públicas.
Quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor, todas as crianças apresentavam histórico de atraso na aquisição e desenvolvimento da linguagem e antecedente familial positivo para dificuldades de aprendizagem envolvendo pais, irmãos e avós.
Os resultados do WISC-III mostraram que todas as crianças apresentavam nível intelectual adequado para a faixa etária, com médias do Quociente de Inteligência (QI) Total de 105,33 ± 15,32, QI Verbal de 104,33 ± 17,66 e QI de Execução de 105,83 ± 12,80. Não houve discrepância entre os escores das funções verbais e visuo-espaciais (QI Verbal e de Execução).
Os dados agrupados da avaliação neuropsicológica, de acordo com a função cortical avaliada, podem ser vistos na Tabela 1.
Nas tarefas de atenção sustentada visual, foram observadas dificuldades na capacidade de controle atencional, principalmente diante de grande demanda de estímulos visuais com componentes lingüísticos (letras), comprometendo o rastreamento visual, evidenciado pelo aumento no tempo de reação/resolução das tarefas, número de erros e uso desorganizado de estratégias de resolução. Com relação às tarefas de atenção sustentada auditiva, o desempenho foi mais satisfatório quando comparada à visual.
Não foram observadas dificuldades nas capacidades básicas de recepção das informações visuais, de modo que as crianças foram capazes de discriminar cores, formas geométricas e objetos. Também tiveram bom desempenho nas tarefas de organização visual, nas quais deveriam dar sentido a estímulos incompletos, fragmentados, organizando a atividade de reconhecimento visual. No entanto, apresentaram dificuldades em tarefas de organização viso-espacial. Tiveram bom desempenho em compreensão de informações verbais e em percepção tátil (estereognosia, reconhecimento de objetos e texturas pelo tato), mas rebaixamento no desempenho na reprodução de estruturas rítmicas e adaptação ao ritmo.
A metade das crianças apresentou dificuldades no desempenho nos testes de memória imediata nas modalidades visual (para seqüência de figuras) e auditivo (para frases, seqüência de palavras e dígitos).
Algumas crianças tiveram dificuldades em atividades motoras que envolviam as funções de coordenação motora global e fina (com discretas sincinesias contralaterais e de imitação), equilíbrio, dissociação de movimentos e reconhecimento de esquerda e direita em si e no outro. Todas as crianças avaliadas tinham lateralidade homogênea à direita (de olho, mão e pé).
Com relação às funções executivas, os resultados da avaliação qualitativa e quantitativa mostraram que as crianças tiveram dificuldades em alguns aspectos, como: flexibilidade cognitiva (atenção alternada), inibição cognitiva (atenção seletiva visual), na capacidade de mudança de estratégias cognitivas diante de contingências do ambiente, avaliação do próprio desempenho e memória de trabalho para estímulo verbal.
Na avaliação dos aspectos emocionais e comportamentais por meio do relato dos pais, houve, de modo geral, maior freqüência de queixas referentes à categoria "outras" (25,6%), principalmente sociais e de atenção. Quando comparadas as queixas das categorias de comportamentos internalizantes e externalizantes, houve maior freqüência de queixas do primeiro tipo (22,4%), principalmente de ansiedade/depressão.
Com relação à sintomatologia depressiva, nenhuma das crianças ultrapassou o ponto de corte para sintomatologia significativa, os escores variaram de 1 a 9 e a média geral dos escores foi de 4,67 ± 2,66. Os principais sintomas relatados foram de comparação de seu desempenho com o de seus pares, pessimismo em relação ao futuro, temor de que coisas ruins vão acontecer e preocupação. Devido às queixas familiares e escolares e observações clínicas, duas crianças foram encaminhadas para a avaliação psiquiátrica e confirmado o diagnóstico de depressão infantil como comorbidade.
Os resultados da avaliação fonoaudiológica, na Prova de Nomeação Automática rápida (RAN), indicam que as crianças apresentaram tempo aumentado para as nomeações de cores, letras, dígitos e objetos (Figura 1).
Na Prova de Consciência Fonológica, as crianças apresentaram escores abaixo da média esperada para escolaridade no escore total, com dificuldades em provas de rima, segmentação e manipulação fonêmicas e transposição silábica e fonêmica (Figura 2).
Quanto aos aspectos da leitura oral e escrita sob ditado, ocorreram maiores erros em palavras de baixa freqüência irregulares e regra, tanto ortográficas como fonológicas, e pseudopalavras regulares, irregulares e regra, principalmente quando se refere a trocas de origem fonológicas. Os erros ocorreram tanto na leitura oral das crianças que estão em nível de leitura alfabético como na escrita sob ditado.
Ao avaliar o nível de leitura observamos que apenas uma delas, do gênero masculino, está em nível de leitura logográfico, sendo que as demais (cinco crianças) encontram-se no nível de leitura alfabético. Estes resultados demonstram que todas as crianças deste estudo apresentam nível de leitura aquém do esperado para sua idade e escolaridade.
Quanto à produção de escrita pela redação temática: a) aspectos formais do texto, em situação de produção de textual - verificamos que quatro crianças utilizaram uso diferenciado de letra de fôrma/cursiva, as demais (duas crianças) utilizaram ainda a letra de fôrma, não mais esperada para sua escolaridade, porém todos apresentaram alteração no traçado da cursiva, caracterizando uma disgrafia funcional presente no quadro; não utilização de pontuação, erros de ortografia e trocas fonológicas, assim como na escrita sob ditado; b) aspectos referentes à elaboração do texto - as seis crianças apresentaram dificuldades na coerência textual, sendo que todas utilizaram a forma de texto descritiva, porém uma criança escreveu apenas palavras isoladas, a qual apresentou nível de leitura logográfico.
DISCUSSÃO
O objetivo do estudo foi descrever o desempenho cognitivo-lingüístico de crianças com dislexia do desenvolvimento em instrumentos que avaliam funções corticais e de linguagem.
Os resultados indicaram a presença de alguns sinais indicativos na história pregressa da criança com dislexia do desenvolvimento, tais como o atraso no desenvolvimento da fala/linguagem e antecedente familial positivo para dificuldades de aprendizagem, conforme indicam os estudos nacionais33 e internacionais34; de modo que o distúrbio de aprendizagem parece ter um componente genético, além das condições de desenvolvimento e ambientais.
As avaliações realizadas permitiram evidenciar os diferentes comprometimentos na criança com dislexia do desenvolvimento e que subjazem às dificuldades nas habilidades específicas de leitura e escrita.
Na avaliação intelectual, não houve discrepância entre os escores da Escala Verbal e de Execução do WISC-III, conforme descreve algumas pesquisas35; de modo que tal discrepância pode não ser um critério diagnóstico, uma vez que podemos ter diferentes tipos de dislexia e níveis de dificuldades exibindo padrões neuropsicológicos diferenciados.
Em nosso trabalho, pudemos observar que as crianças com dislexia apresentam dificuldade no desempenho de tarefas de atenção sustentada visual. Alguns modelos teóricos têm discutido que déficits na atenção visual podem acompanhar os déficits no processamento fonológico da linguagem e na consciência fonológica e explicar as dificuldades nas habilidades de leitura/escrita da dislexia7.
A leitura pressupõe como mecanismo intrínseco tanto a capacidade para selecionar uma área específica do campo visual, quanto processar informações relevantes e filtrar as informações irrelevantes e distratoras36. Este mecanismo, conhecido como atenção espacial, atua como um filtro que acentua as informações do alvo (facilitação) ou suprime informações dos objetos distratores (inibição) ou ambos37. A leitura envolve também a identificação rápida e correta dos estímulos visuais, como as letras e palavras e o processamento dos estímulos visuais depende não somente da integridade dos sistemas visuais, periférico e central, mas também dos sistemas atencionais11. No processo de leitura é necessária a integração das informações do processamento visual (discriminação, organização visual e visuo-espacial) dos símbolos gráficos (grafemas/letras), auditivo/lingüístico (decodificação fonológica, conversão grafema-fonema)38 e requerem capacidade e controle atencional e a mediação das funções executivas.
Outros estudos também mostraram a presença do déficit de atenção visual9,10 e indicam distribuição anômala e difusa dos recursos de processamento da atenção visual, que pode estar possivelmente relacionada a uma disfunção no córtex parietal direito. De acordo com pesquisadores11; os indivíduos com dislexia apresentam problemas no recrutamento de recursos cognitivos necessários para o desempenho de tarefas complexas de tempo de reação e fluência de leitura.
Em nosso estudo, o desempenho foi melhor na atenção sustentada auditiva, no entanto, um dos testes que avaliou tal função também envolvia habilidade lógico-matemática e, uma vez que as crianças não apresentam dificuldades nessa habilidade, a média do escore em atenção pode ter sido aumentada.
Os resultados também mostraram que a dislexia pode ser acompanhada por distúrbios em alguns aspectos das funções executivas, principalmente em flexibilidade, capacidade de inibição cognitiva, uso e mudanças de estratégias cognitivas e memória de trabalho para material auditivo. Resultados similares foram observados por pesquisadores importantes na área8 com instrumentos semelhantes de avaliação aos utilizados em nosso estudo. De acordo com os autores, além das disfunções no córtex parietal e temporal, o indivíduo com dislexia também pode apresentar envolvimento de regiões frontais, de modo que o efeito do tratamento do que nomeiam de disfunção executiva do distúrbio de leitura e escrita pode ser interessante e importante para outras pesquisas.
Além dos aspectos neuropsicológicos, observamos que a dislexia pode ser acompanhada por determinadas características emocionais e comportamentais, com maior freqüência de queixas familiares de comportamentos internalizantes (principalmente de ansiedade/depressão) e auto-relato das crianças de sintomas depressivos e duas crianças da amostra com comorbidade do quadro depressivo. Apesar da escassez de estudos que abordam esse tema na dislexia, nota-se que o distúrbio de aprendizagem pode ser um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos emocionais e comportamentais, uma vez que as crianças tendem a se comparar com seus colegas, se preocupam mais com seu desempenho e podem apresentar uma distorção de seu autoconceito. Este aspecto também foi abordado por estudiosos que indicaram que crianças com distúrbios de leitura são mais propensas a desenvolver transtornos internalizantes, principalmente depressão e ansiedade39.
No que se relaciona ao desempenho em leitura de crianças com dislexia, observamos o quanto é importante avaliar o nível de leitura, já que nestas crianças ele está aquém do esperado para a escolaridade, e o quanto é importante identificar que nível esta criança se encontra para um melhor direcionamento interventivo, como relatam autores brasileiros40.
Outra característica que aparece na criança com dislexia é a dificuldade cognitivo-lingüística, principalmente quando lidamos com material verbal, ou seja, as alterações que apresentam no acesso ao léxico mental, consciência fonológica, atenção, alguns aspectos das funções executivas que corroboram com dados da literatura8,9,38.
CONCLUSÃO
Os resultados demonstram a relação entre os sintomas primários e complementares neste grupo de crianças estudadas com o quadro da dislexia do desenvolvimento, sendo de fundamental importância a avaliação interdisciplinar, pois os achados auxiliam um diagnóstico preciso e o planejamento da intervenção. Os resultados também sugerem que, além de disfunções em áreas do córtex temporal, possíveis alterações no córtex frontal podem acompanhar os sintomas da dislexia, evidenciados, em nosso estudo, por dificuldades na atenção e nas funções executivas.
Essas dificuldades apresentadas pelas crianças com dislexia do desenvolvimento ficam evidentes no contexto da sala de aula e em seu processo de aprendizagem, de modo que seu estudo deve ser melhor explorado, buscando as contribuições das neurociências para o esclarecimento das estratégias de manejo na escola.
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Correspondência:
Ricardo Franco de Lima
Rua Jorge Miranda, 104, ap. 43 - Botafogo
Campinas, SP. - CEP: 13020-180.
E-mail: rilima@fcm.unicamp.br
Artigo recebido: 04/06/2008
Aprovado: 13/10/2008
Trabalho realizado no Laboratório de Pesquisa em Dificuldades, Distúrbios de Aprendizagem e Transtornos da Atenção - DISAPRE, Campinas, SP. Trabalho apresentado no Meeting of the International Neuropsychological Society, Buenos Aires, 2008.