SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.35 número106Consequências do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) na idade adultaImplementação do modelo de resposta à intervenção em uma classe de 5º ano do ensino fundamental da rede pública de ensino: relato de experiência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.35 no.106 São Paulo abr. 2018

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Aspectos neurocientíficos da aprendizagem matemática: explorando as estruturas cognitivas inatas do cérebro

 

Neuroscientific aspects of mathematics learning: exploring the innate cognitive structures of the brain

 

 

Thiago da Silva Gusmão CardosoI; Mauro MuszkatII

IDoutor em Educação e Saúde pela Unifesp. Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde da Unifesp. Centro Universitário Adventista de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
IIDoutor em Neurologia pela Unifesp. Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Muitos estudos têm sido realizados sobre o modo como o cérebro lida com a informação matemática. Essas pesquisas têm concordado com a tese de que possuímos um módulo cerebral para o processamento de números e quantidades, na literatura referido como senso numérico. A expansão desse módulo, porém, depende de como e quanto conhecimento matemático adquirimos da cultura em que vivemos através da aprendizagem. Desta forma, esse artigo tem por objetivo discutir aspectos relacionados à aprendizagem matemática sob a ótica das neurociências, destacando achados de pesquisas relacionadas a este tema, como os modelos postulados para explicar a relação entre o cérebro e o processamento numérico, nomeadamente, Sistema Numérico Aproximado (SNA) e Modelo do Triplo Código (MTC).

Unitermos: Matemática. Aprendizagem. Neurociências. Senso Numérico. Cognição.


ABSTRACT

Many studies have been conducted about how the brain deals with mathematical information. These researches have agreed with the assertion that we have a brain module for processing of numbers and quantities, in the literature referred to as number sense. The expansion of this module, however, depends to how much mathematical knowledge acquired and the culture we live through learning. Thus, this article aims to discuss aspects related to mathematical learning about the perspective of neuroscience, highlighting research findings related to this issue, as the models postulated to explain the relationship between the brain and the numerical processing, namely Approximate Number System (SNA) and the Triple Code Model (TCM).

Keywords: Mathematics. Learning. Neurosciences. Number Sense. Cognition.


 

 

INTRODUÇÃO

A aprendizagem é um fenômeno multidimensional que envolve fatores ambientais, emocionais e neurobiológicos que vão desde as habilidades inatas, relacionadas à maturação funcional de redes cerebrais, até os processos adquiridos, por meio da exposição à educação e à cultura. Nessa perspectiva, foi proposto um modelo que postula distinções entre habilidades primárias e secundárias1. Habilidades primárias, no sentido biológico, representam o núcleo modular de sistemas que definem a mente humana, enquanto que habilidades secundárias se desenvolvem a partir destes sistemas com base nas necessidades e práticas culturais, tais como a escolarização1.

Segundo o modelo, as habilidades primárias correspondem às intuições primitivas de número e dos princípios aritméticos, também chamado de senso numérico, as quais são adquiridas de forma espontânea pelas crianças na interação com o mundo físico e social. As habilidades secundárias são ilustradas, por outro lado, por invenções culturais tais como as tabuadas de multiplicação, a notação arábica e os algoritmos de cálculo por elas possibilitados.

A origem dos números naturais está ligada às necessidades humanas de contar e de medir, tanto coleções de objetos como quantidades abstratas de tempo (dias, estações, períodos lunares). As civilizações egípcia, babilônica, maia e romana, entre outras, desenvolveram seus próprios sistemas de numeração em decorrência do agrupamento de quantidades em conjuntos. Desta forma, o número é um parâmetro fundamental com o qual construímos sentido ao mundo que nos rodeia, todavia, para entender como o uso do número é intuitivo, basta observamos três argumentos.

Primeiro, não só podemos rapidamente e com precisão perceber a numerosidade de pequenas coleções de coisas, mas boa parte das línguas têm numerais. Segundo, todos nós aprendemos, mais ou menos espontaneamente, a calcular em nossos dedos. Terceiro, a maioria de nós tem fortes intuições aritméticas, o que nos permite decidir rapidamente que 9 é maior do que 5, que 3 está situado no meio de 2 e 4, entre outras ideias intuitivas.

Esses achados são compatíveis com um enfoque biológico da aprendizagem matemática e pretendemos, neste artigo, apresentar os aspectos neurocientíficos que sustentam tal abordagem. Para isso, inicialmente, iremos analisar cada uma desses argumentos a fim de demonstrar que a aprendizagem da matemática possui um alicerce ontogenético e intuitivo do número, depois iremos expor os modelos cognitivos e neurais que embasam as pesquisas atuais sobre a cognição numérica no cérebro humano, a saber: o sistema numérico aproximado e o modelo do triplo código.

A discriminação visual de numerosidade foi demonstrada pela primeira vez aos 6-7 meses de idade em crianças usando o método clássico de habituação-recuperação por tempo de fixação ocular2. Nesses experimentos, crianças observavam slides com um número fixo de pontos, digamos, 2, sendo repetidamente apresentados a elas até que seu tempo de rastreio ocular diminuía, indicando habituação. Nesse ponto, eram apresentadas outras lâminas com um novo número de pontos, por exemplo 3, o que tinha como resultado um aumento do rastreio ocular, indicando desabituação e, por conseguinte, a discriminação de 2 versus 3. Habilidades dos bebês de discriminarem numerosidades não estão limitadas a conjuntos visuais de pontos ou objetos. Os recém-nascidos têm demostrado capacidade para discriminar palavras de duas e três sílabas com controle do conteúdo fonêmico, da duração e da velocidade de fala3.

A maioria das línguas possuem construções linguísticas para termos numéricos e para a relação entre os mesmos (ex., acréscimo, diminuição). Nas culturas em que as habilidades de contagem são explícitas, a linguagem é utilizada para fazer referência a numerosidades e operações com números. De que forma as diversas línguas possibilitam a codificação de informações relativas à numerosidade e ao número é uma questão que pode ser pesquisada tanto de um ponto de vista linguístico quanto cognitivo. Do ponto de vista linguístico, no Brasil pesquisadores identificaram, entre os povos indígenas, sistemas numéricos de base um, dois, três, cinco, dez e vinte, demonstrando processos diversos de raciocínio, uns mais holísticos e outros mais analíticos4.

No estudo desenvolvido por este autor, analisando 40 línguas indígenas, os termos numéricos de sistemas de base 1 ou 2 indicam um raciocínio relacional e global porque está relacionado ao contexto total ou à noção de totalidade. Em sistemas de base 1, o cálculo é feito através da correspondência um a um; em sistemas de base 2, o enfoque é dado a uma relação binária de números pares e ímpares.

É comum definir a palavra 'par' como 'um conjunto de dois', entendido como um todo, uma unidade inteira e completa, enquanto o termo 'ímpar' indica uma unidade incompleta e parcial. Por outro lado, os termos dos sistemas de base 10 e 20 demonstram um raciocínio analítico e sintético, pois os numerais são relacionados à junção progressiva de unidades de valores específicos. Cabe salientar que, mesmo nas culturas que parecem não fazer uso da contagem e cujas línguas aparentemente não possuem termos para representar a numerosidade, a capacidade para desenvolver uma cognição numérica sofisticada estaria presente, ainda que latente nesses casos.

O segundo argumento trata de uma relação bastante interessante entre o fenômeno da contagem e do uso dos dedos. Sem dúvida, o elemento mais visível da concretização no domínio da cognição numérica são os hábitos de contagem nos dedos, isto é tão certo que, em todo o mundo, a maioria das crianças inicialmente adquirem conceitos numéricos através da contagem com os dedos, a despeito de qualquer instrução direta.

A prática do uso de dedos para a contagem apareceu em diversas culturas e civilizações ao longo da história da humanidade; por exemplo, os romanos desenvolveram sistemas de contagem com a mão esquerda para grandes numerosidades, assim como os gregos, porém estes utilizavam a mão direita5. Sistemas de contagem unimanual e bimanual estão presentes até hoje em várias culturas do Oriente ao Ocidente.

Alguns estudos têm demonstrado que associar números a dedos pode influenciar o processamento numérico6. A direção da contagem com os dedos influencia o processamento numérico, assim como molda a representação numérica mental6. No estudo de Sato et al.6, utilizando a Estimulação Magnética Transcraniana, foi demonstrado um aumento da excitabilidade corticoespinhal, especificamente para os músculos da mão, durante tarefas de julgamentos numéricos6.

Essa prática parece ser tão importante no desenvolvimento numérico que até mesmo crianças cegas a utilizam7. Outros achados para apoiar essa relação vêm das pesquisas neurocientíficas. No estudo de Kaufmann et al.8 foi encontrada uma sobreposição das áreas comumente atribuídas à representação numérica e as áreas sabidamente relacionadas aos dedos, durante tarefas de desempenho matemático. Além disso, recentemente, tem sido defendida a ideia de que uma cognição corporificada é importante para o aprendizado, ou seja, as contribuições dos aspectos sensoriais e motores para a cognição numérica.

Em relação a este último aspecto, cabe salientar que o encéfalo foi desenvolvido em conjunto com o resto do organismo como forma de regular a percepção e as ações físicas de uma tal maneira que o organismo estivesse adaptado a situações e tarefas com valor adaptativo. Assim, a cognição numérica pode sim guardar uma ligação estreita com a representação de dedos.

Diferentes posturas e gestos corporais influenciam funções cognitivas variadas. As pessoas são particularmente propensas a lembrar de uma ação que eles usaram seus corpos para realizar. Por exemplo, quando compreender uma palavra de ação que é semanticamente relacionada com uma parte do corpo (lamber, pegar, chutar), a área motora do cérebro que está associada com a parte do corpo (o rosto, mão, ou área da perna, respectivamente) é rotineiramente ativada9.

O terceiro argumento é sobre o caráter intuitivo da aritmética, ou seja, aprender sobre números e suas relações parece uma tarefa relativamente fácil para nossas crianças. Desde tenra idade, elas estão envolvidas com quantidades numéricas - um objeto, muitos, poucos, alguns objetos, nenhum objeto - e com situações cotidianas de classificar, ordenar, acrescentar, diminuir, dividir e tantas outras. Mas a compreensão desse fato característico do desenvolvimento de nossas crianças depende de entendermos a relação entre mecanismos biológicos do desenvolvimento e fatores contextuais.

Os achados anteriormente expostos reforçam, por exemplo, o modelo de Geary1, demostrando que em recém-nascidos ainda não expostos ao aprendizado do sistema numérico existe uma habilidade inata para discriminar pequenas quantidades; nas crianças maiores um aprendizado quase intuitivo do número e da sua contagem por vias biológicas que as alicerçam, como a representação sensório-motora dos dedos; e mais tarde culturalmente reforçadas através da simbologia dos números expressa na linguagem. Todavia, do ponto de vista biológico tais habilidades dependem de um aparato programado para realizar tal operação, esse aparato para a cognição numérica é considerado o cérebro humano.

Cognição numérica

A cognição numérica é a base neurocognitiva das representações semânticas dos números e suas quantidades. Inicialmente, ela se expressa como uma capacidade pré-simbólica referente à percepção de grandeza (volume, área, comprimento, intensidade luminosa) e de quantidades (coleções de objetos)10. Essa capacidade cognitiva de discriminar grandezas e quantidades é limitada em extensão e em precisão.

Em relação à extensão, sabe-se que bebês de 6 meses podem discriminar grandes quantidades ou tamanhos desde que a relação seja da ordem de duas (18 e 9) ou três (18 e 6) vezes; com o passar dos anos, há um ganho de discriminação para diferentes ordens10. A precisão é um outro limite, para pequenas coleções com até quatro elementos há uma exatidão (subitizing), para outras coleções de elementos ou grandezas, as avaliações são sempre aproximadas.

A cognição numérica é uma capacidade cognitiva em desenvolvimento durante a infância; nesse sentido, von Aster e Shalev11 propuseram o Modelo de Desenvolvimento da Cognição Numérica (Figura 1). Segundo esse modelo, os sistemas que compõem a cognição numérica se desenvolveriam em quatro passos.

 

 

O primeiro, que poderíamos chamar de Cardinal, consiste em um sistema central de representação numérica inata e funções adjacentes (subitizing e aproximação), que permite um entendimento básico dos números e ocorre na infância. O segundo passo, denominado Verbal, é marcado pela associação de um número de objetos ou eventos a palavras ouvidas e escritas (representação verbal). O terceiro, ou Arábico, ocorre no ensino fundamental, quando as crianças aprendem a associar algarismos arábicos às palavras que representam quantidades. Os passos dois e três são de aquisição da simbolização linguística dos números e quantidades (verbal e arábico). O quarto passo, denominado de Ordinal, é marcado pela aquisição de um sistema métrico mental capaz de organizar as quantidades em um continuum (linha numérica mental), ocorre ao longo de toda a escolarização e na vida adulta. No modelo existe ainda um fator condicionante, o passo 1 é pré-condição para os passos 2 e 3, e estes são, por sua vez, para o passo 411. Desses passos derivam os sistemas específicos da cognição numérica, a saber: senso numérico, compreensão numérica, produção numérica e cálculo.

O "senso numérico", ou representação intuitiva de numerosidade discreta, é o sistema mais estudado no meio acadêmico nos últimos 20 anos, sendo definido como a nossa capacidade de entender, calcular e manipular quantidades numéricas12. Tem como características ser um sistema de representação abstrata (independente da natureza do estímulo visual, auditivo, etc.), intuitiva (se manifesta precocemente, podendo ser considerada inata), analógica (não simbólica), aproximada (representações imprecisas entre o estímulo e sua representação mental) e espacialmente orientada (distância entre os números logaritmicamente disposta numa linha mental numérica). O senso numérico, compreensão numérica, produção numérica e cálculo podem ser estudados a partir de dois modelos cognitivos e neurais influentes que detalharemos a seguir: o sistema numérico aproximado e o modelo do triplo código.

O Sistema numérico aproximado

Sabemos que uma fonte potencial de diferenças individuais na competência matemática é a arquitetura neural, que pode apoiar o desempenho na solução de problemas simples de aritmética. A fluência aritmética, ou seja, a velocidade e eficiência com que chega-se às soluções corretas para cálculos numéricos, representa um andaime sobre o qual habilidades matemáticas de alto nível são construídas.

Inicialmente, os alunos dependem de estratégias processuais, tais como a contagem em voz alta, contagem com os dedos, ou decomposição para resolver cálculos. Estes procedimentos são gradualmente substituídos por estratégias mais eficazes, tais como a obtenção de soluções de memória (também chamados de fatos numéricos). Esta mudança na direção do cálculo baseado em memória é um marco do desenvolvimento aritmético bem-sucedido13. De fato, crianças com dificuldades de aprendizagem matemática apresentam estratégias processuais imaturas e mau desempenho na recordação de fatos aritméticos (por exemplo, recordar que 5x5 = 25)13. Assim, parece que as habilidades aritméticas iniciais apoiam a aquisição de competências matemáticas superiores.

Habilidades cognitivas complexas como a capacidade de cálculo parecem depender de um conjunto de sistemas de representação mental que emergem muito cedo na ontogenia humana. Esses sistemas são caracterizados como mecanismos que permitem representar e raciocinar acerca de tipos particulares de entidades e eventos. No caso da matemática, o sistema numérico aproximado (SNA) seria responsável por realçar as semelhanças e diferenças entre grandezas discretas e contínuas (por exemplo, números, numerosidade, tempo, tamanho físico, brilho, entre outras)14.

Walsh15 sugeriu que todas as magnitudes, em todas as modalidades, estão representadas na mesma região do cérebro, o lobo parietal. Os números são considerados magnitudes especiais: são discretos, contáveis e representações simbólicas dotadas de rótulos verbais. Enquanto que tamanhos físicos são incontáveis, se constituindo em magnitudes contínuas que só podem ser estimadas. Um estudo de revisão mostrou que os artigos que analisaram as semelhanças e diferenças entre os números e outras grandezas, tais como tamanho físico, tempo e brilho, apontam para uma representação compartilhada entre essas diferentes modalidades de magnitudes, ou seja, um mesmo mecanismo de magnitude16.

Já para Leibovich et al.17, os números são representados em uma linha numérica mental, enquanto que tamanhos físicos pela sua natureza contínua podem assumir duas possibilidades teóricas. Primeiro, serem representados em uma linha de magnitude mental mais geral com diferentes níveis de ruído para diferentes representações. Segundo, serem encarados como parte de dois sistemas distintos: um que representa números, e outro que representa as propriedades contínuas.

É importante salientar que o SNA é pensado como o alicerce biológico sobre o qual se desenvolverá na criança a matemática formal. O SNA não é estanque, ao contrário, acredita-se que ele se desenvolve ao longo da vida. Os estudos sobre o SNA partem de três categorias de tarefas cognitivas: estimativa, comparação e cálculo aproximado18. Nas tarefas de estimativa, as crianças são convidadas a dizerem livremente qual a quantidade de pontos que possui um determinado conjunto. Na tarefa de comparação de magnitudes, a criança é orientada a comparar dois conjuntos de pontos apresentados na tela do computador e indicar qual dos dois conjuntos de pontos apresenta maior quantidade de pontos. Na tarefa de cálculo aproximado, a criança é convidada a adicionar ou subtrair dois grandes conjuntos de pontos e comparar a soma resultante com um terceiro conjunto de pontos. Essas tarefas podem variar o tipo de código se de magnitudes não simbólicas ou simbólicas.

De toda forma, a precisão de resposta das crianças parece evoluir com a idade, indicando que a educação matemática formal aguça as representações numéricas aproximadas19. O SNA parece servir para representar os valores aproximados cardinais de grandes conjuntos de estímulos e pode ser avaliado por meio de tarefas de estimativa, de comparação e cálculo aproximado.

Estudos paralelos com a hipótese do SNA encontraram resultados para adultos, crianças, bebês e outras espécies de animais20. Eles fornecem evidência para a existência do referido sistema de estimativa baseada em magnitudes para a representação de magnitudes numérica simbólica e não simbólica, os quais também suportam os procedimentos para o cálculo numérico, mesmo fora da educação formal.

O modelo do triplo código

Estudos de neuroimagem têm sugerido que o lobo parietal é o principal candidato para a localização funcional do SNA, e o modelo cognitivo-neurológico do triplo código (MTC) parece explicar a interrelação entre esse sistema e outras operações envolvendo a representação dos números21. O MTC é atualmente o modelo mais influente de cognição numérica devido à sua integração única de aspectos comportamentais e neurofuncionais. O modelo sugere que os diferentes aspectos da informação numérica (por exemplo, de magnitude, fatos, paridade) são processados em diferentes códigos dentro de regiões distintas do cérebro humano.

Como consequência, o MTC propõe três códigos de representação diferentes e de tarefas específicas para o processamento de informação numérica: em primeiro lugar, uma representação de magnitudes numéricas bi-hemisférica é suposta. Este código de magnitude é considerado analógico e é muitas vezes compreendido metaforicamente como uma linha numérica mental, sendo recrutado de forma sistemática para a manipulação mental de quantidades numéricas (por exemplo, em tarefas de comparação de magnitude). Este código tem o seu processamento ancorado por áreas do cérebro como o sulco intraparietal bilateral (SIPb)21. Além disso, a parte posterior superior do lóbulo parietal bilateralmente parece suportar o processamento de magnitude via orientação espacial sobre a linha numérica mental.

Em segundo lugar, uma representação verbal dos números é proposta para ser ativada em operações linguisticamente mediadas, como a nomeação de números (algarismo verbal arábico) e em tarefas de contagem. Adicionalmente, os fatos de aritmética (por exemplo, as tabelas de multiplicação) estão representados na memória verbal de longo prazo, permitindo a tais problemas serem resolvidos pela recuperação de fatos aritméticos21. Representações numéricas verbais estão associadas a áreas de linguagem perisilvianas no hemisfério esquerdo e no giro angular esquerdo.

Em terceiro lugar, o MTC propõe uma representação visual do número (algarismo visual arábico) em tarefas de reconhecimento de dígitos arábicos. Essa representação visual arábica é suposta ser localizada em regiões do giro fusiforme e lingual bilateralmente21.

Além disso, é importante salientar que as representações não simbólicas são relacionadas à atividade de áreas do SIPb, as quais são ativadas toda vez que o conteúdo semântico de magnitude precisa ser acessado.

Observações neuropsicológicos de duplas dissociações sugerem que os fatos aritméticos são armazenados separadamente de qualquer outra informação numérica, tais como conceitos ou procedimentos aritméticos22. Para tarefas mais complexas, como a aritmética mental envolvendo multidígitos, esta especificidade da tarefa com diferentes códigos de representação pode não ser totalmente explicada dentro do MTC.

Pelo contrário, é muito provável que diferentes representações numéricas tenham que trabalhar de forma mais integrada, quanto mais complexo for o problema de aritmética. Sempre que a recuperação direta de um fato num problema de aritmética falhar (por exemplo, 59 + 37=?), áreas intraparietais bilaterais podem estar envolvidas no processo semântico de re-codificação do problema. Por outro lado, os sujeitos podem também dividir tais problemas complexos em unidade mais simples. Eles podem quebrar o problema complexo de 59 + 37 em pedaços mais maleáveis, tais como 50 + 30 e 9 + 7, permitindo que a assistência de componentes relacionados com a recuperação de fatos aritméticos seja facilitada.

Por conseguinte, o processamento de tarefas complexas exigirá uma interação estreita das diferentes representações numéricas descritas acima. Por sua vez, a distinção entre as diferentes operações pode não ser determinada pela pergunta do problema, mas sim em função do grau e envolvimento de transições mais flexíveis entre as representações numéricas23.

Além disso, tarefas envolvendo problemas aritméticos mentais complexos demonstram diferentes variáveis e etapas de processamento cognitivo, para que a solução seja encontrada, requisitando a complementação de outras funções neuropsicológicas, tais como a atenção, memória operacional e linguagem24. Em particular, Dehaene et al.25 sugeriram que as representações específicas do MTC podem ser complementadas por áreas (pré)frontais não necessariamente específicas para o processamento de número.

Dentro do córtex frontal, o córtex pré-frontal dorsolateral (CPFDL), o giro frontal inferior e a área pré-motora têm sido apontados por desempenhar um papel de apoio para funções cognitivas multicomponentes, como as da cognição numérica. Em particular, o CPFDL tem sido associado com a ordenação sequencial de operações, o controle executivo da memória operacional, a organização estratégica, o processamento de operações adicionais no cálculo, e a capacidade de atualização das informações nas operações matemáticas, ao passo que a área pré-motora tem sido associada a processos complementares no uso de procedimentos aritméticos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aquisição pela criança de habilidades aritméticas em sociedades do tipo numérica como a nossa depende de uma variedade de ferramentais culturais específicas para lidar com números. As mais óbvias são as expressões numéricas como as palavras que representam números (um, trinta e dois, três milhões), os numerais arábicos (1, 22, 314), objetos como dados, dominós e réguas, e entidades abstratas como os fatos aritméticos (5x6 = 30), procedimentos aritméticos (empréstimo, vai-um) e leis aritméticas (a+b = b+a). Entretanto, o processo implícito à aquisição dessas ferramentas culturais envolve o desenvolvimento de capacidades cognitivas numéricas básicas e inatas, tais como o sistema numérico aproximado.

O produto desse desenvolvimento será o uso desde mecanismos para contagem ancorados nessa região como a contagem com os dedos até a evolução de múltiplos sistemas de representação suportados pela linguagem em fases posteriores do desenvolvimento com o amadurecimento das regiões cerebrais correspondentes como o giro angular esquerdo e, mais tarde, das capacidades da memória de longo prazo, através da recordação de fatos aritméticos24.

Num passo adiante, o salto ontogenético possibilitado pelo amadurecimento das vias neurais no córtex pré-frontal possibilitará o recrutamento de funções cognitivas superiores como as envolvidas na organização, atualização e manipulação das informações. Isto permitirá à criança lidar com problemas aritméticos cada vez mais complexos, envolvendo desde cálculos multidígitos até problemas de cálculo mental, sob controle do CPFDL.

Diante dos aspectos neurocientíficos abordados, enfatizamos que a estimulação precoce do senso numérico aliada à formação de professores especializados na identificação das competências quantitativas (matemáticas) básicas e específicas para cada fase do desenvolvimento deverá ser apreciado pelos gestores de políticas educacionais. Para tanto, as pesquisas pedagógicas, psicológicas e neurocientíficas necessitam se afinar com o objetivo comum de garantir a constituição de uma verdadeira ciência da aprendizagem da matemática.

 

REFERÊNCIAS

1. Geary DC. An evolutionary perspective on learning disability in mathematics. Dev Neuropsychol. 2007;32(1):471-519.         [ Links ]

2. Starkey P, Cooper RG Jr. Perception of numbers by human infants. Science. 1980; 210(4473): 1033-5.         [ Links ]

3. Bijeljac-Babic R, Bertoncini J, Mehler J. How do 4-day-old infants categorize multisyllabic utterances? Dev Psychol. 1993;29(4):711-21.         [ Links ]

4. Green D. Os diferentes termos numéricos das línguas indígenas do Brasil. In: Ferreira MKL, org. Ideias matemáticas de povos culturalmente distintos. São Paulo: Global; 2002.         [ Links ]

5. Previtali P, Rinaldi L, Girelli L. Nature or nurture in finger counting: a review on the determinants of the direction of number-finger mapping. Front Psychol. 2011;2:363.         [ Links ]

6. Sato M, Cattaneo L, Rizzolatti G, Gallese V. Numbers within our hands: modulation of corticospinal excitability of hand muscles during numerical judgment. J Cogn Neurosci. 2007;19(4):684-93.         [ Links ]

7. Crollen V, Mahe R, Colligon O, Seron X. The role of vision in the development of finger-number interactions: finger-counting and finger-montring in blind children. J Exp Child Psychol. 2011;109(4):525-39.         [ Links ]

8. Kaufmann L, Vogel SE, Wood G, Kremser C, Schocke M, Zimmerhackl LB, et al. A developmental fMRI study of nonsymbolic numerical and spatial processing. Cortex. 2008; 44(4):376-85.         [ Links ]

9. Pulvermüller F. Brain mechanisms linking language and action. Nature Rev Neurosci. 2005;6(7):576-82.         [ Links ]

10. Odic D, Libertus ME, Feigenson L, Halberda J. Developmental change in the acuity of approximate number and area representations. Dev Psychol. 2013;49(6):1103-12.         [ Links ]

11. von Aster MG, Shalev RS. Number development and developmental dyscalculia. Dev Med Child Neurol. 2007;49(11):868-73.         [ Links ]

12. Dehaene S. The Number Sense: How the Mind Creates Mathematics. New York: Oxford University Press; 1999.         [ Links ]

13. Mazzocco MM, Devlin KT, McKenney SJ. Is it a fact? Timed arithmetic performance of children with mathematical learning disabilities (MLD) varies as a function of how MLD is defined. Dev Neuropsychol. 2008; 33(3):318-44.         [ Links ]

14. Cantlon JF, Platt ML, Brannon EM. Beyond the number domain. Trends Cogn Sci. 2009; 13(2):83-91.         [ Links ]

15. Walsh V. A theory of magnitude: common cortical metrics of time, space and quantity. Trends Cogn Sci. 2003;7(11):483-8.         [ Links ]

16. Cohen-Kadosh R, Henik A, Rubinsten O, Mohr H, Dori H, van der Ven V, et al. Are numbers special? The comparison systems of the human brain investigated by fMRI. Neuropsychologia. 2005;43(9):1238-48.         [ Links ]

17. Leibovich T, Diesendruck L, Rubinsten O, Henik A. The importance of being relevant: modulation of magnitude representations. Front Psychol. 2013;4:369.         [ Links ]

18. Piazza M. Neurocognitive start-up tools for symbolic number representations. Trends Cogn Sci. 2010;14(12):542-51.         [ Links ]

19. Nys J, Ventura P, Fernandes T, Querido L, Leybaert J, Content A. Does math education modify the approximate number system? A comparison of schooled and unschooled adults. Trends Neurosci Educ. 2013;2(1):13-22.         [ Links ]

20. Cantlon JF. Math, monkeys, and the developing brain. Proc Natl Acad Sci U S A. 2012;109 Suppl 1:10725-32.         [ Links ]

21. Dehaene S, Piazza M, Pinel P, Cohen L. Three parietal circuits for number processing. Cogn Neuropsychol. 2003;20(3):487-506.         [ Links ]

22. McCloskey M. Cognitive mechanisms in numerical processing: evidence from acquired dyscalculia. Cognition. 1992;44(1-2):107-57.         [ Links ]

23. Thevenot C, Castel C, Danjon J, Fanget M, Fayol M. The use of the operand-recognition paradigm for the study of mental addition in older adults. J Gerontol B Psychol Sci Soc Sci. 2013;68(1):64-7.         [ Links ]

24. Klein E, Moeller K, Glauche V, Weiller C, Willmes K. Processing pathways in mental arithmetic-evidence from probabilistic fiber tracking. PLoS One. 2013;8(1):e55455.         [ Links ]

25. Dehaene S, Cohen L, Sigman M, Vinckier F. The neural code for written words: a proposal. Trends Cogn Sci. 2005;9(7):335-41.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Thiago da Silva Gusmão Cardoso
Universidade Federal de São Paulo
Rua Embaú 54 - Vila Clementino
São Paulo, SP, Brasil - CEP 04039-060
E-mail: thiago_gusmao1@hotmail.com

Artigo recebido: 18/10/2017
Aprovado: 20/1/2018

 

 

Trabalho realizado na Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons