Introdução
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023) registrou um cenário considerado devastador em 2022, no qual ocorreu o maior número de vítimas de estupro e estupro de vulnerável, sendo 56.820 casos, de um total de 73.024 casos de violência sexual. Desse total, 61,4% tinham até 13 anos de idade. Nesse quadro, as meninas são as maiores vítimas de estupro de vulnerável, representando 86% do total. Dos 14% que representam a população masculina 43,4% tinham entre 5 e 9 anos de idade.
De acordo com a Lei n.º 12.015 (Brasil, 2009), o estupro é caracterizado como crime contra a “dignidade sexual”. Desse modo, configura-se como estupro as relações que envolvem algumas atitudes, como constranger a vítima mediante ameaça ou força física, estabelecer com a vítima conjunção carnal, entre outras. No entanto, atitudes que não incluam conjunção carnal, mas que envolvam a vítima em práticas que contenham atos libidinosos, também se configuram como estupro e, quando ocorre contra menores de 14 anos, o crime é considerado estupro de vulnerável, com pena de 8 a 12 anos de prisão.
Ribeiro et al. (2017), ao analisarem 21 prontuários, entre os anos de 2015 e 2016, de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, em uma unidade de saúde referência de Cuiabá (MT), no atendimento a essa população, verificaram que, em 71,4% dos casos, a vítima era do sexo feminino e conhecia o agressor e, em 42,9%, a violência ocorreu na residência da vítima.
Esse quadro evidencia que a Violência Sexual (VS) contra crianças e adolescentes no país é uma questão que deve contar com políticas sociais nacionais de prevenção e controle, embora algumas ações já tenham sido implementadas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990) e o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil (PNEVS) (Brasil, 2000), fruto de uma política intersetorial, implementada na década de 2000.
Como ressaltam Nascimento e Deslandes (2016), há o reconhecimento da importância do PNEVS, mas muito ainda tem que ser feito, considerando as limitações como os aspectos orçamentários e as estruturas institucionais. Esse panorama nacional também foi retratado por Trindade et al. (2014). Em uma análise epidemiológica de 421 vítimas de VS, no ano de 2009, os autores verificaram que 36,7% dos casos envolveram vítimas com idade de 10 a 13 anos, sendo que 81,2% deles estavam relacionados ao sexo feminino e, em 86,3%, existia laço familiar entre o autor e a vítima. Neste último, também foram identificados percentuais significativos em laudos de sexologia forense, com crianças menores de 12 anos, entre os anos de 2008 e 2009.
Resultados semelhantes e mais atuais foram encontrados por Santos et al. (2018), a partir da análise de 2.226 notificações de casos de VS ocorridas em escolas, no período de 2010 a 2014. Outros fatores como ter insônia, sentir-se solitário, não possuir amigos, consumir tabaco/álcool regularmente e ter experimentado drogas foram associados a VS de estudantes do Ensino Fundamental, conforme dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) em 2015 (Santos et al., 2019). Já Oliveira et al. (2014) encontraram esses mesmos resultados, na década anterior, no período de 2001 a 2010.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a VS envolve “ato sexual, tentativa de consumar um ato sexual ou insinuações sexuais indesejadas; ou ações para comercializar ou usar de qualquer outro modo a sexualidade de uma pessoa por meio da coerção” (OMS, 2018, p. 2). Nesse contexto, ainda considera que a VS abrange: estupro dentro de um relacionamento; estupro por pessoas desconhecidas ou até mesmo conhecidas; tentativas sexuais indesejadas ou assédio sexual; violação sistemática e outras formas de violência; abuso de pessoas com incapacidades físicas ou mentais; estupro e abuso sexual de crianças; formas “tradicionais” de VS, como casamento ou coabitação forçada.
As consequências da VS contra crianças têm sido um debate constante na área. Chehab et al. (2017), em uma amostra de 61 crianças vítimas de VS com idade média de 10,4 anos, verificaram alguns tipos de distúrbio mental decorrentes da violência: cognitivo, em 34,3%; emocional, em 83,6%, e comportamental, em 54,1%.
Ao investigar os 477 casos de crianças e adolescentes vítimas de VS, a partir das notificações no período de 2008 a 2014, Platt et al. (2018) observaram a presença de transtorno de comportamento em 22,4% e de transtorno de estresse pós-traumático em 20% dos casos. A relação entre exposição à violência e o comprometimento da saúde mental de crianças foi também verificada em um estudo de revisão de literatura, por Ribeiro et al. (2009), que mostraram maior associação entre violência doméstica e problemas de externalização, bem como entre ideação suicida e VS.
A presença de sintomas e quadros psicopatológicos, como estresse, depressão, ansiedade, comportamento agressivo, rebeldia e isolamento social, em supostas vítimas de violência sexual, com idade entre 7 e 19 anos, foi constatada por Gava et al. (2013), na análise proveniente de perícias psiquiátricas e psicológicas, em que os autores encontraram ainda diferenças significativas entre as faixas etárias, com um aumento da incidência dos casos de acordo com a idade (7-10, 11-14, 15-19 anos).
A repercussão desses sintomas de violência na infância se prospectiva na vida adulta e pode afetar o convívio familiar, com perseguição das lembranças, alterações funcionais e comportamentais (Lira et al., 2017). Nesse sentido, alguns tipos de transtorno mental, como o de estado de ânimo, de ansiedade, de personalidade e psicóticos (Arrom Suhurt et al., 2015), e uma qualidade de vida inferior (Matos et al., 2018), foram encontrados em adultos expostos à violência sexual quando crianças.
Em relação à ansiedade, o abuso sexual deve ser considerado um fator de risco para esse transtorno, sendo sugerida a sua inclusão em um modelo etiológico multifatorial (Maniglio, 2012). Investigações antigas, como a de Felitti et al. (1998), já abordavam as consequências da exposição à violência sexual na infância e a incidência de fatores de risco para causas de morte na vida adulta.
Além desses dados, a maior incidência em meninas e a violência intrafamiliar se fizeram presentes nos estudos de Gava et al. (2013). Hohendorff e Patias (2017), por sua vez, propuseram um agrupamento das consequências da violência sexual em quatro aspectos: físico, emocional, cognitivo e comportamental. O que se observa de modo geral nesses estudos é uma variação nos percentuais de ocorrências de sintomas em termos de saúde mental em relação às vítimas de VS.
A associação entre as manifestações emocionais e comportamentais e as experiências de violência deve ser observada com atenção. Nesse sentido, de acordo com Schaefer et al. (2018), que investigaram diferentes grupos de crianças vítimas de abuso sexual, maus-tratos sem histórico de abuso e sintomas clínicos sem histórico de maus-tratos e a variável preocupações sexuais apresentaram diferenças significativas entre os grupos.
Nessa perspectiva, as diferenças em relação às consequências da violência são extensas e diversas, o que dificulta uma generalização ou delimitação dessa problemática, considerando a particularidade da experiência de cada criança e a singularidade (Florentino, 2015), assim como o momento evolutivo (Cantón-Cortés & Cortés, 2015) da criança ou adolescente que se tornou vítima.
Ao ampliar a análise para fatores de risco e de proteção à VS contra crianças, Assink et al. (2019), a partir de uma revisão sistemática dos fatores de risco, destacaram como mais fortes a vitimização anterior da criança e/ou de seus familiares, vitimização anterior da criança e/ou irmãos e os riscos relacionados a problemas parentais, familiares e infantis. Especialmente em adolescentes, o apoio familiar se mostrou uma variável de proteção, enquanto ser do sexo feminino e consumir álcool se evidenciaram como variáveis de risco (Paludo & Schirò, 2012).
Sobre a presença de revitimização como fator de surgimento do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em adultos, a partir de um estudo de revisão de literatura, Cividanes et al. (2018) encontraram conexão com a ocorrência de abuso sexual na infância em nove artigos, considerando que oito deles apresentaram forte qualidade metodológica.
Diante desse cenário, o objetivo deste estudo foi investigar as variáveis psicológicas e suas relações em crianças vítimas de VS que frequentam um Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (PAVVS) (n.d.), que funciona no Hospital Universitário Júlio Müller (HUJM), em Cuiabá (MT), e faz parte das Redes de Atenção Integral a Mulheres em Situação de Violência e Rede de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual.
Método
Participantes
As crianças participantes do estudo (n=27) estavam em atendimento psicológico, no PAVVS do HUJM, no momento da coleta de dados, e apresentaram média de idade de 7,95 anos (mínima = 6,02; máxima = 11,01 e DP = 1,52), de ambos os gêneros, todavia, o sexo feminino foi o mais frequente (n=19).
Foram estipulados, como critérios de inclusão na pesquisa, as crianças na faixa etária dos 6 aos 10 anos e 11 meses de idade suspeitas de terem sofrido abuso sexual, tanto agudo quanto crônico, em atendimento psicossocial no PAVVS, cujos pais/responsáveis/cuidadores consentiram com a participação do(a) menor por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (para as crianças).
A escolaridade dos pais/responsáveis e a renda média familiar dos participantes podem ser verificadas na Tabela 1. Quanto à escolaridade, observa-se que a maioria declarou ter o Ensino Fundamental e Médio. Quanto à posição econômica, a grande maioria se encontrava entre as classes de E a C1, de acordo com o Critério de Classificação Econômica do Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2018).
Escolaridade dos pais/responsáveis | Classe social* | ||
---|---|---|---|
Não respondeu | 2 (7,4) | Classe A | 2 (7,4) |
Ensino Fundamental incompleto | 7 (25,9) | Classe B1 | 1 (3,7) |
Ensino Fundamental completo | 7 (25,9) | Classe B2 | 4 (14,8) |
Ensino Médio completo | 6 (22,2) | Classe C1 | 8 (29,6) |
Ensino Superior completo | 5 (18,5) | Classe C2 | 7 (25,9) |
Total | 27 (99,9) | Classes D-E | 5 (18,5) |
Total | 27 (99,9) |
*A (R$ 23.345,11); B1 (R$ 10.386,52); B2 (R$ 5.363,19); C1 (R$ 2.965,69); C2 (R$ 1.691,44); D-E (R$ 728,19). No Brasil, a referência do salário mínimo é R$ 1.045,00 (http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/salario_minimo.htm, 2020).
Instrumentos
Foram utilizados os seguintes instrumentos junto aos pais/responsáveis/cuidadores:
– O questionário Critério de Classificação Econômica no Brasil (CCEB) – 2018, que permitiu acessar o estrato socioeconômico da família. A partir da tabela de pontuação disponibilizada pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), teve-se a seguinte classificação: A, B1, B2, C1, C2, D-E, conforme pontuação da mais alta para a mais baixa (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, 2018).
– OInstrumento de Avaliação Psicossocial (Psychosocial Assessment Tool – PAT) é uma ferramenta de rastreio do risco psicossocial da família, que permite identificar as áreas de risco e de resiliência. As evidências foram estabelecidas, pela primeira vez, na área de oncologia pediátrica, por Pai et al. (2008), e adaptadas nacionalmente por Santos (2012).
Esse recurso é composto de seis domínios: (a) Estrutura e Recursos da Família (ERF); (b) Problemas Familiares (PF); (c) Suporte Social (SS); (d) Problemas com o Paciente (PP); (e) Reações ao Stress (RS); e (f) Problemas com os Irmãos. As respostas são, na maioria, do tipo “sim” e “não” e a pontuação geral permite classificar o risco psicossocial em: (a) Universal, caracterizado por risco leve (<1), cuja pontuação total é menor que 1; (b) Alvo, com risco moderado (≥1 e <2), e (c) Clínico, com risco elevado (≥2) (Pai et al., 2008). Nesse estudo, não foram incluídos os domínios Suporte Social e Problemas com os Irmãos.
– O questionário Child Behavior Checklist (CBCL), que é uma lista de verificação de problemas de comportamento e competência social, respondida por pais ou responsáveis, que pode ser utilizada em crianças e adolescentes de 6 aos 18 anos de idade.
Rocha (2017) aponta o CBCL como um dos instrumentos que fazem parte do Sistema Achenbach de Avaliação Empiricamente Baseada (ASEBA), bastante utilizado e pesquisado também em outros países. O instrumento apresenta as escalas de “Competência Social”, de “Problemas Internalizantes”, de “Problemas Externalizantes” e de “Problemas Totais de Comportamento”, que classificam a criança como caso clínico, limítrofe e não clínico.
– O Teste das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (CPM) foi aplicado às crianças, com o objetivo de mensurar a inteligência (Fator g) e de prover informações sobre a capacidade edutiva de crianças entre 5 e 11 anos de idade. O CPM é considerado padrão ouro mundial na avaliação da inteligência geral e, neste estudo, foi usada a adaptação brasileira de Paula et al. (2018) quanto ao modo de aplicação e de uso das tabelas normativas.
Procedimentos éticos e de coleta de dados
Em relação aos cuidados éticos, o protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do HUJM, com Certificação de Apreciação de Análise Ética (CAAE) sob n° 65726017.5.0000.5541. A seguir, respeitando a legislação vigente quanto às pesquisas com seres humanos, conforme Resoluções nº 466/2012 e n.º 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), após a assinatura dos termos, cumprindo, assim, os cuidados éticos.
Quanto à coleta de dados, em relação aos pais/responsáveis/cuidadores, ela foi realizada a partir da aplicação dos instrumentos CCEB, PAT e CBCL. No tocante às crianças, foi feito o teste Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (CPM). Os instrumentos foram aplicados em sala privativa, a fim de resguardar os participantes de qualquer desconforto. A sala foi disponibilizada pelo HUJM, onde funciona o PAVVS, na Unidade Psicossocial.
Procedimentos de análise de dados
Foi utilizada a estatística descritiva para obtenção de dados de média, frequência, porcentagem e desvio padrão. Em razão do pequeno tamanho da amostra, as análises inferenciais adotadas foram do tipo não paramétrico. Desse modo, para correlação entre os instrumentos, foi utilizada a Correlação por Postos de Spearman (rs). Os valores de referência adotados para os seguintes: correlação fraca, valores entre 0,00 e 0,30; correlação moderada, valores entre 0,30 e 0,70; e correlação forte, valores entre 0,70 e 1,00 (Cronk, 2017). Como medida do tamanho do efeito para essa análise, foi utilizado o “r2”, cujos valores de referência foram: 0,01 para pequeno efeito; 0,09 para médio efeito; e 0,25 para grande efeito (Mertler & Reinhart, 2016).
O nível de probabilidade de significância adotado foi de p≤0,05. Para as análises estatísticas, foram utilizados os programas Excel®, do Office 365, e o IBM Statistical Package for Social Sciences (SPSS) 26.0 for Windows®.
RESULTADOS
Os dados provindos dos valores numéricos dos instrumentos que foram administrados junto aos participantes podem ser observados na Tabela 2.
PAT | CBCL | Raven | |||
---|---|---|---|---|---|
Total | 1,76 (0,81) | Internalizing Problems Bruto | 16,2 (7,74) | Bruto | 23,15 (5,81) |
ERF | 0,27 (0,20) | Internalizing Problems TScore | 64,8 (8,39) | Percentil | 48,59 (28,28) |
PP | 0,45 (0,18) | Externalizing Problems Bruto | 18,3 (10,5) | ||
PF | 0,27 (0,17) | Externalizing Problems TScore | 64,3 (10,5) | ||
RS | 0,29 (0,30) | Competence Bruto | 20,7 (3,9) | ||
CF | 0,25 (0,13) | Competence TScore | 39,4(8,0) | ||
Total Problems Bruto | 62,1 (26,8) | ||||
Total Problems T Score | 66,3 (9,1) |
ERF = Estrutura e Recursos da Família; PP = Problemas com o Paciente; PF = Problemas Familiares; RS = Reações ao Stress e CF = Crenças familiares.
A partir dos valores numéricos, foi possível obter as classificações de desempenho nos instrumentos. No PAT, que avaliou o risco psicossocial, mais da metade das famílias (51,9%) apresentou risco “Alto”, sugerindo a presença de indicadores de estresse agudo e fatores de risco, sendo necessários intervenções específicas e suporte direcionado. Houve, em 29,6% das famílias, a classificação “Clínico”, sugerindo estresse persistente ou intermitente, com necessidade de acompanhamento. Por sua vez, um percentual de 18,5% apresentou classificação “Universal”, que indica recursos de apoio intrafamiliar.
Em relação aos instrumentos Raven e CBCL, as classificações podem ser observadas na Tabela 3. Verifica-se que, no primeiro, a maior parte da amostra apresentou desempenho dentro da faixa mediana (que variou das classificações de “abaixo da média” até “acima da média”), sendo que os mesmos resultados se repetiram quando analisados os gêneros independentemente.
CBCL | Total | Feminino | Masculino | Raven | Total | Feminino | Masculino |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Total | Inferior | 1 (3,7) | 1 (5,3) | - | |||
Clínico | 13 (48,1) | 10 (52,6) | 3 (37,5) | Ab. Média* | 8 (29,6) | 5 (26,3) | 3 (37,5) |
Limítrofe | 6 (22,2) | 3 (15,8) | 3 (37,5) | Média | 11 (40,7) | 7 (36,8) | 4 (50,0) |
Normal | 8 (29,6) | 6 (31,6) | 2 (25,0) | Ac. Média** | 6 (22,2) | 5 (26,3) | 1 (12,5) |
Total | 27 (100) | 19 (100) | 8 (100) | Superior | 1 (3,7) | 1 (5,3) | - |
Internalizante | Total | 27 (100) | 19 (100) | 8 (100,0) | |||
Clínico | 7 (25,9) | 4 (21,2) | 3 (37,5) | ||||
Limítrofe | 8 (29,6) | 6 (31,6) | 2 (25,0) | ||||
Normal | 12 (44,4) | 9 (47,4) | 3 (37,5) | ||||
Total | 27 (100) | 19 (100) | 8 (100) | ||||
Externalizante | |||||||
Clínico | 12 (44,4) | 10 (52,6) | 2 (25,0) | ||||
Limítrofe | 3 (11,1) | 2 (10,5) | 1 (12,5) | ||||
Normal | 12 (44,4) | 7 (36,8) | 5 (62,5) | ||||
Total | 27 (100) | 19 (100) | 8 (100) |
*Ab. Média = Abaixo da Média e **Ac. Média = Acima da Média.
No total da CBCL, verificou-se que a maioria da amostra total foi classificada no nível clínico e limítrofe e esses dados também se repetem em ambos os gêneros. Do mesmo modo, quando analisados os fatores Internalizante e Externalizante, observa-se maior frequência de presença nesses níveis na amostra geral. Quando analisados cada um dos gêneros, constatou-se, no feminino, esse mesmo padrão, entretanto, no masculino, no fator Externalizante, apresentou maior frequência da classificação “normal”.
Na Tabela 4, são apresentados os valores significativos obtidos na matriz de correlação entre os dados brutos dos instrumentos. Correlações com valores significativos (obtidos tanto por meio de valores de probabilidade de significância (p) como por tamanho de efeito (r2)) da matriz gerada a partir dos dados numéricos dos instrumentos administrados à amostra. Verifica-se a relação significativa direta e inversa entre os domínios do PAT com o raciocínio cognitivo (CPM) e problemas de comportamento (CBCL).
Discussão e Considerações
A VS contra crianças é um problema de saúde pública que incide sobre o desenvolvimento da criança e repercute tanto na família quanto na sociedade. Os resultados evidenciaram, de modo geral, o comprometimento emocional, cognitivo e comportamental de crianças vítimas de violência sexual, assim como as fragilidades na dinâmica psicossocial das famílias.
No que se refere ao ambiente familiar, a maioria (classificação alvo e clínico) das famílias demonstraram a vulnerabilidade na dinâmica familiar, com presença de estresse agudo ou intermitente, e a necessidade de intervenção e acompanhamento. Se considerarmos que as famílias devem funcionar como fator de proteção para cuidados contínuos com a criança, principalmente diante de situações estressoras, nesse caso, o episódio de violência demonstra dificuldade por parte da família nessa função protetora.
Essa dinâmica familiar corrobora as informações encontradas na literatura da área para aspectos dos problemas familiares (Lira et al., 2017; Assink et al., 2019) e seu agravamento na VS infantil, principalmente quando os dados estatísticos revelam a incidência da violência cometida no interior da família, na maioria das vezes, por pessoas conhecidas pelas vítimas (Bueno et al., 2019; Ribeiro et al., 2017).
A urgência de políticas públicas efetivas para a prevenção da VS contra crianças e suporte às famílias fica evidente diante dessas configurações, em especial, no retrato das condições socioeconômicas das famílias que participaram do estudo, em que, na metade delas, os pais/responsáveis apresentaram uma média de nove anos de escolaridade e rendimento familiar nas classes inferiores (C1, C2, D-E), retratando, assim, a fragilidade que inclui desde condições materiais, como conduzir os filhos aos atendimentos oferecidos pela rede de assistência, até emocionais, para lidar com a situação estressora.
Neste estudo, evidenciaram-se os aspectos psicossociais da família e sua relação com outras variáveis investigadas e, mais especificamente, observou-se a relação direta entre Estrutura e Recursos da Família (PAT) e as competências (CBCL) das crianças vítimas de violência.
O resultado demonstrou que a relação entre a estrutura e os recursos da família e as consequências na saúde mental da criança assemelha-se às evidências encontradas por Maniglio (2012). Na revisão de literatura, o autor identificou fatores psicossociais, como disfunção familiar relacionada com o abuso sexual infantil, entre outros, e, de forma independente, esses problemas podem provocar transtornos de ansiedade nas vítimas sobreviventes.
Outros problemas familiares, como baixa qualidade da relação pai-filho, estrutura familiar não nuclear e isolamento social na família, também foram considerados fatores de risco no abuso sexual (Assink et al., 2019). Kelly et al. (2002) verificaram que mães deprimidas relataram mais problemas de comportamento e comportamento psicótico de filhos expostos à violência sexual que mães não deprimidas (Kelly et al., 2002).
A relação verificada entre os Problemas Familiares (PAT) e o desempenho cognitivo das crianças (CPM) demonstrou que problemas internos da família (por exemplo, problemas emocionais dos pais/responsáveis/cuidadores) podem impactar no desempenho cognitivo de crianças vítimas de violência.
Esse resultado aproximou de alguns estudos, como o de Gava et al. (2013), que observaram, dentre outros sintomas, a prevalência de prejuízo no desempenho escolar e dificuldades de concentração nos laudos analisados de crianças vítimas de violência sexual.
Por outro lado, nessa amostra, o desempenho cognitivo de mais da metade das crianças foi normal e acima da média, demonstrando efeito inverso dos problemas referentes à estrutura e aos recursos da família (PAT) sobre os aspectos cognitivos das vítimas. González-García e Carrasco (2016) verificaram, em uma amostra de 99 menores vítimas de abuso sexual, que mais da metade das famílias era de nível socioeconômico baixo, porém as crianças majoritariamente possuíam desenvolvimento cognitivo normal.
Aqui os resultados evidenciaram que quase metade (48,1%) dos participantes indicaram classificação clínica para a presença de problemas de comportamentos e 22,2% como limítrofes. Especificamente, os problemas de comportamento externalizantes apresentaram maior percentual (44,4%) do que os problemas internalizantes (25,9%) na classificação clínica.
Esses achados corroboram o estudo de Hébert et al. (2017), realizado com 309 crianças vítimas de abuso sexual, ao verificarem maior média para comportamentos externalizantes (58,70%) do que internalizantes (56,28%). Segundo os autores, também foram observadas correlações significativas entre problemas de comportamento com regulação emocional e dissociação.
Os sintomas externalizantes e internalizantes, nas classificações clínica e limítrofe, na maioria das crianças vítimas de violência, foram observados por Schaefer et al. (2018), bem como delinquência e comportamentos violentos, em uma amostra de adultos que relataram experiências de abuso sexual na infância (Kozak et al., 2018).
Os problemas de comportamento (CBCL) observados nas crianças mantiveram relação inversa com os problemas do paciente (PAT), o que explica a natureza do PAT como um instrumento de rastreio de risco psicossocial da família voltado para o contexto da saúde pediátrica, com estudos na área de oncologia, cardiologia, dor, desordens crânio facial e outros.
Neste estudo, do total de 29,6% de meninos, 37,5% apresentou indicação de problemas de comportamento na faixa clínica e limítrofe, sendo maior o percentual de meninos com problemas internalizantes na faixa clínica (37,5%) e limítrofe (25%). Já as meninas apresentaram maior percentual para problemas externalizantes, sendo 52,6% na faixa clínica e 10,5% na faixa limítrofe.
Comparativamente, Coohey (2010), ao investigar uma amostra nacional a partir de serviços de proteção às crianças para maus-tratos, na idade entre 11 e 14 anos, sendo 127 meninas e 31 meninos vítimas de maus-tratos, constatou que meninos vítimas de abuso sexual têm maior probabilidade de problemas internalizantes na faixa clínica que as meninas. Em relação à exposição dos meninos à violência sexual, Said e Costa Júnior (2018), em um estudo de documentos oficiais, verificaram que os meninos representaram 24,5% como polivítimas do tipo vitimização sexual.
A relação entre exposição à violência e problemas de comportamento em crianças pode estar associada a outras variáveis cognitivas e emocionais já investigadas, conforme Hohendorff e Patias (2017) e Schaefer et al. (2018), sendo observados ainda, nesse estudo, o desempenho cognitivo e o risco psicossocial familiar.
Essa perspectiva de associação também foi investigada por Hickman et al. (2012), considerando se a exposição à violência no decorrer da vida se relaciona a um conjunto de sintomas negativos. De acordo com os autores, as experiências de abuso sexual e de trauma são aquelas que mantêm relação com os sintomas negativos e com a polivitimização.
Por se tratar de um problema de saúde pública, a VS contra crianças requer o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento. De acordo com Sanches et al. (2019), faz-se necessário um reconhecimento da sociedade para essa questão, sem contar que os avanços na legislação e a aceleração na criação de estruturas de atendimento para essa população são salutares. A Associação Americana de Psiquiatria (APA) salienta que o monitoramento e a avaliação são requisitos necessários em termos de políticas públicas de prevenção para esse problema (Basile et al., 2016).
A complexidade na abordagem da VS contra crianças demonstrou, neste estudo, o impacto em aspectos cognitivos e comportamentais e nas relações entre condições psicossociais da família e tais aspectos, contudo, outras variáveis não foram abordadas, como as características psicopatológicas e emocionais.
A cautela nos resultados apresentados também se faz presente em função do tamanho reduzido da amostra investigada. Esse fato reforça a importância de estudos com amostras maiores a serem realizados com crianças expostas à violência sexual.