Introdução
O estudo emerge das práticas psicopedagógicas produzidas no estágio supervisionado em Psicopedagogia Institucional em uma universidade filantrópica/comunitária do interior do RS, tendo como campo de estágio uma escola estadual de Ensino Médio, situada nas dependências do Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE), para menores infratores. Assim, objetiva descrever e analisar uma intervenção em Psicopedagogia Institucional com base na prática reflexiva para a construção da autonomia e da melhoria das relações com a aprendizagem de um grupo de professores da Educação Básica.
O estágio supervisionado em Psicopedagogia Institucional possui carga horária de 60h/a, com os seguintes objetivos: a) conhecer a Instituição e realizar diagnóstico psicopedagógico; b) utilizar instrumentos de avaliação psicopedagógica; c) construir informativo psicopedagógico; e) elaborar plano de intervenção; e f) realizar devolução e intervenção psicopedagógica junto à Instituição. A partir dos objetivos descritos fica evidente que a Psicopedagogia Institucional atua a partir do conhecimento da realidade para, posteriormente, propor intervenções nas instituições escolares e não escolares, na prevenção de problemas de aprendizagem e, consequentemente, do fracasso escolar.
A organização de uma intervenção psicopedagógica institucional, segundo Escott e Leonço (1997), começa com um diagnóstico a partir de um olhar e escuta sensível que o profissional se disponibiliza a fim de conseguir identificar dificuldades, obstáculos, relações e capacidades dos estudantes.
Neste caso do estágio na escola junto ao CASE a proposta de intervenção psicopedagógica apoiou-se numa vertente terapêutica no sentido de uma tentativa não somente de devolver o protagonismo do estudante, mas, também, resgatar a confiança e a valorização dos professores e das professoras que atuam na Instituição, já que uma das queixas do espaço socioeducativo era a baixa autoestima dos professores, insegurança e carência, aspectos esses que fragilizam o ensino e a aprendizagem dos adolescentes.
Neste sentido, ao final da intervenção da proposta psicopedagógica, almejávamos como resultado algo parecido como o que foi reverberado por Cazella e Molina (2010):
Resultados: Os educadores indicaram um repensar de sua atuação e novas propostas de trabalho, com base em processos interdisciplinares, que teriam como diretrizes a realidade sociocultural e a produção de um trabalho voltado ao resgate da história dos educandos, moradores da periferia, e a construção, com eles, da visão de cidadania para uma sociedade mais justa e humana. (Cazella & Molina, 2010, p. 1)
Este processo de representação permite tanto ao estudante quanto ao professor notar que existe um poder de escolha, de modo que se tornem autores de suas histórias. Esta construção da autonomia é possível de ser desenvolvida também pelos professores. Segundo Cazella e Molina (2010), o trabalho do psicopedagogo centra-se na prevenção do insucesso e dos obstáculos escolares, não somente do estudante, mas também dos professores e demais intervenientes. Portanto, é essencial que a intervenção psicopedagógica priorize a aprendizagem, o protagonismo e a autonomia dos estudantes, mas especialmente, dos professores.
Ao refletir sobre a importância da busca pela identidade e autonomia, e, colocando em foco os professores que atuam no cotidiano escolar com os menores infratores, entendemos que intervenções sensíveis se fazem necessárias. Afinal, devemos partir não somente dos professores, mas sim pensar: quem são esses jovens que estão sendo educados? O que querem esses sujeitos que em muitos momentos se veem mais como vítimas do que como opressores? “Omissões e transgressões que violentam a sua integridade e desviam o curso de sua evolução pessoal e social, exprimem-se nas mais diversas formas de conduta divergentes ou mesmo antagônicas à moralidade e à legalidade da sociedade que o marginalizou” (Costa, 1991, p. 21).
Diante de tais considerações, a implementação da proposta de intervenção psicopedagógica na experiência do estágio evidenciou o quão foi importante ressaltar que a Psicopedagogia Institucional passou por uma jornada de luta e conquista para alcançar o que é hoje, um campo do conhecimento que se apoia em outras ciências, como a Psicologia e a Pedagogia, para compreender o processo de aprendizagem humana.
Neste sentido, a experiência do estágio, sendo uma oportunidade de formação acadêmica, contribui na defesa dos profissionais em instituições de ensino e evidencia sua importância na implementação de ações psicopedagógicas com vistas a prevenir possíveis problemas de aprendizagem, promovendo e valorizando as aprendizagens dos estudantes.
Relato de experiência como possibilidade metodológica
A metodologia de pesquisa utilizada neste estudo foi o Relato de Experiência (RE). O RE é uma visão detalhada da experiência vivida, o assunto é tratado a partir de uma perspectiva do narrador. Do ponto de vista metodológico, é uma forma de contar histórias, portanto, quando o autor narra por escrito, ele expressa um acontecimento vivenciado. Nesse sentido, o relato de experiência é uma informação compartilhada com aportes científicos. Portanto, segundo Grollmus e Tarrès (2015), o texto é produzido na primeira pessoa de forma subjetiva e detalhadamente.
Assim, o texto produzido trata de experiências relacionadas ao ambiente acadêmico, compreendendo fenômenos no campo das oportunidades de intervenção e contribuindo para a formação acadêmica e profissional. Além disso, é importante identificar, separar e relacionar criticamente e reflexivamente experiências próximas e distantes (Geertz, 2004, p. 200).
A primeira está relacionada com a própria experiência, acontece informalmente, sem necessidade de atividade crítico-reflexiva e sua reaplicação em outras situações ou com outras pessoas. A segunda é deliberadamente utilizada para compreender, criticar e refletir sobre os acontecimentos, ou seja, pelo esforço acadêmico-científico na explicação da estrutura analítica do conhecimento, pela aplicação crítico-reflexiva com suporte teórico-metodológico (experiência remota).
Logo, o Relato de Experiência que ora se apresenta trata de compreender de modo qualitativo o papel do psicopedagogo institucional, tendo como campo de estágio uma escola estadual de Ensino Médio, situada nas dependências do Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE), para menores infratores.
A Psicopedagogia e o psicopedagogo no contexto institucional
A Psicopedagogia Institucional nasceu da necessidade de compreender melhor e com uma visão diferente sobre o processo de ensino e de aprendizagem. Seu objetivo é, portanto, examinar os indivíduos e destacar suas singularidades e potencialidades como sujeitos. Segundo Bossa (2000), o psicopedagogo institucional está voltado para o trabalho de prevenção, que pode envolver a identificação de problemas na aprendizagem, implementação de orientações necessárias, bem como o trabalho com toda a equipe envolvida nas questões de ensino e aprendizagem.
Assim, faz-se necessário uma escuta atenta e o olhar sensível que este profissional carrega. Com a Psicopedagogia, podemos significar que aprendemos a comunicar porque nos falam, porque se calam, e, principalmente, porque nos escutam (Fernández, 1991).
Esta escuta de si mesmo e do outro faz-se presente na Psicopedagogia nas instituições, e essa área de estudo é potente no sentido de preparar os professores para um público diversificado, fazendo-os compreender os contextos de cada estudante, seus aspectos cognitivos e o (re)planejamento das ações pedagógicas a partir de espaços de escuta e de diálogos. A escolha pela profissão possibilita refletir sobre a importância de encontrar a melhor maneira de ensinar estabelecendo uma relação de mediação e troca entre professor e aprendiz.
A atuação do psicopedagogo institucional vai além de um simples diagnóstico, mas sim, da investigação. O que foi vivenciar na experiência do estágio, em que somos incentivados a “nadar contra a maré” do ensino tradicional, muitas vezes ocorrendo por falta de conhecimento de intervenções mais potentes, segundo Escott e Argenti (2001):
Na relação entre organismo, inteligência, corpo e desejo é que se constrói a possibilidade do aprender. Redimensionar o espaço de aprendizagem significa viabilizar ao sujeito a apropriação da sua própria possibilidade e autoria de pensamento, rompendo com a objetividade instituída nas escolas, abrindo novos espaços de circulação da subjetividade individual e coletiva como forma de dar sentido ao ato de aprender. (Escott & Argenti, 2001, p. 206)
Esta subjetividade não ocorre somente nas intervenções sobre métodos e estratégias de aprendizagem, mas atinge dimensões filosóficas, sociológicas, políticas, culturais, éticas e pedagógicas. Para que isso ocorra, é imprescindível, por parte do psicopedagogo, uma escuta qualificada para as angústias e dificuldades dessa instituição que iremos intervir. Como psicopedagogos institucionais, atuamos na edificação da participação do sujeito, que nesse instante é a sociedade com sua filosofia, religião e ideologia (Bossa, 2000).
A experiência do estágio apontou para a importância da formação continuada tanto para os psicopedagogos quanto para os professores, como uma constante mudança, um “reinventar-se de si mesmo”, afinal, o fazer psicopedagógico, presente na formação continuada, também é um caminho para que o grupo de trabalho resgate sua própria identidade enquanto profissionais da educação. Nessas reinvenções faz-se necessário educar além do medo, além de tratar problemas de aprendizagem, mas, propor espaços de interlocuções sobre diferentes maneiras de aprender, como remetem Escott e Argenti (2001), ao se referirem acerca da atuação da Psicopedagogia Institucional,
[...] busca, fundamentalmente, auxiliar no resgate da identidade da instituição com o saber, e, portanto, com a possibilidade de aprender. A reflexão sobre o individual e o coletivo traz a possibilidade da tomada de consciência e da inovação através da criação de novos espaços de relação com a aprendizagem. (Escott & Argenti, 2001, p. 200)
Para isso, faz-se necessário acreditar no estudante, enxergar sentido naquilo que possa provocar nele o desejo de conhecer. Respeitando ritmo, tempo, contexto, sintonia com uma escuta qualificada e sensível. Ouvindo as expectativas da instituição, conhecendo as representações didáticas, a profissão docente, garantindo experiências que valorizem as diversas aprendizagens, auxiliando na garantia de experiências que valorizem os estudantes enquanto atores sociais que produzem cultura, reconhecendo os preconceitos de todos os envolvidos e do contexto familiar.
O que evidencia que a Psicopedagogia vai além da junção das palavras Pedagogia e Psicologia, é algo maior, a qual vai mais adiante de uma intervenção ou de um diagnóstico, algo que tem a ver com a generosidade do ensino e da aprendizagem, colocando-nos como mediadores e cúmplices deste interminável aprender.
Campo de estágio - Escola Estadual de Ensino Médio Humberto de Campos - Centro de Atendimento Socioeducativo – CASE
A Escola Estadual de Ensino Médio Humberto Campos está sediada nas instalações do Centro de Atendimento Socioeducativo – CASE. O Centro configura-se numa comunidade em que os adolescentes, aos quais se atribui composição de ação infracional, cumprem a providência socioeducativa de internamento e aguardam a decisão judicial em internamento provisória.
No CASE, Santa Maria/RS, situa-se a Escola Estadual de Ensino Médio Humberto de Campos. Os documentos estaduais do Rio Grande do Sul: Decreto Nº 38685 (1998) e do Parecer Nº 454 (1999) autorizaram o funcionamento da Escola Estadual de Ensino Fundamental. Posteriormente, foi transformada e designada como Escola Estadual de Ensino Fundamental Humberto de Campos em Escola Estadual de Ensino Médio Humberto de Campos.
A instituição escolar, em relação à infraestrutura, conta com alimentação, água filtrada, energia elétrica, esgoto, lixo destinado à coleta periódica, acesso à Internet, banda larga, seis salas de aula, sala de diretoria, sala de professores, sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE), cozinha, biblioteca, banheiro acessível para inclusão, secretaria, despensa, almoxarifado, área verde, televisão, copiadora, impressora, aparelho de som e projetor multimídia.
Segundo o Projeto Pedagógico da Escola (2004), o público escolar é composto por estudantes que estão segregados de liberdade, permanecendo em seus alojamentos e cumprindo uma medida socioeducativa. A equipe técnica do CASE é composta por: assistente social, psicólogo e pedagoga, além de 26 funcionários, uma diretora, uma supervisora, 22 professores concursados ao total, 2 secretárias, 3 merendeiras, 1 funcionária da limpeza, 20 estudantes no Ensino Fundamental e 13 no Ensino Médio.
De acordo com o Projeto Pedagógico da Escola (2004), a Instituição busca um espaço de aprendizagem e formação integral, visando a ressocialização dos adolescentes, com profissionais empenhados em garantir a adequação de atividades educativas com esta realidade. Esclarece que a importância do trabalho integrado com o CASE/FASE1 objetiva à orientação sociofamiliar, partindo das necessidades de informações da escola sobre o aluno, contribuindo com o vínculo professor-aluno no processo de ensino e de aprendizagem. A partir da investigação da realidade e orientação sociofamiliar, a equipe gestora, juntamente com os professores, buscará temáticas de estudo a fim de nortear as atividades.
O documento elucida que em relação aos estudantes com deficiências, Transtornos Globais do Desenvolvimento e/ou Altas Habilidades/Superdotação, o professor deverá buscar alternativas pedagógicas juntamente com a educadora especial e com a parte administrativa/pedagógica da escola e do CASE, através dos serviços especializados: técnico em educação, assistente social, psicólogo, enfermeiro, psiquiatra; que possibilitem aos alunos tornarem-se sujeitos participativos e atuantes do processo de conhecimento.
A experiência do estágio possibilitou conhecer a realidade de diferentes histórias de vida dos meninos. Atrás daquela porta os sonhos prosseguiram e, junto com eles, diversos projetos e oficinas eram realizados como: pintura de carro, culinária, corte de cabelo (todos com direito a certificado). Os estudantes têm um programa de rádio na instituição, com direito a edições de música, entrevistas e programas. Durante a inserção na escola, foi possível entender o conceito de “escuta sensível”.
Ensinar não é apenas transmitir informações a um ouvinte. É ajudá-lo a transformar suas ideias. Para isso, é preciso conhecê-lo, escutá-lo atentamente, compreender seu ponto de vista e escolher a ajuda certa de que necessita para avançar: nem mais nem menos. (Curto, 2000, p. 68, citado em Miranda, 2008, p. 155)
Nesta escuta com comunhão de sonhos, constatamos a preocupação da equipe gestora com a melhoria do trabalho comunitário. Na tentativa de mostrar o mundo aos meninos, os professores buscam sempre realizar excursões com eles pela cidade, visitando a Universidade Federal de Santa Maria, que é um espaço de produção e disseminação de conhecimentos e sonhos.
Estar no CASE é experienciar que o estudante aprende quando o professor aprende, como um processo de cumplicidade por meio do conhecimento mútuo. Dessa porta transformadora há também uma sala sombria: a da revolta. Foi-nos relatado que, muitas vezes, os estudantes ao receberem visita da família retornavam abalados para dentro das celas e “pedalavam”, ou seja, chutavam as portas dos quartos. Este manifesto era acatado por outros presos, que acabavam chutando junto com o colega, indo parar na solitária. E, mesmo enclausurados, os professores tinham o cuidado de levar as atividades da escola para serem realizadas. Esta atitude vem ao encontro das palavras de Freire:
[...] não pode haver caminho mais ético, mais verdadeiramente democrático do que testemunhar aos educandos como pensamos, as razões por que pensamos desta ou daquela forma, os nossos sonhos, os sonhos por que brigamos, mas, ao mesmo tempo, dando-lhes provas concretas, irrefutáveis, de que respeitamos suas opções em oposição às nossas. (Freire, 1993, p. 38)
Os professores estavam, conforme foi possível observar, e estão a todo momento procurando resgatar os sonhos dos estudantes, para além da porta da escola. Relataram, durante conversas informais, que o CASE foi premiado em um concurso da 8a Coordenadoria Regional de Educação (CRE)2 com o projeto de oficinas de podcast e criação. Foi elogiado pelo empreendedorismo, inovação, criatividade e protagonismo dos jovens a partir da apresentação de trabalhos e projetos fundamentados na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017). O projeto buscou estimular diferentes formas de expressão, produções livres e criativas, enriquecimento curricular, proporcionar autonomia e ampliar a percepção de mundo, de vida e sociedade, na busca de mostrar aos meninos que ainda é possível sonhar.
Esta utopia foi esclarecida na entrevista com os professores, em especial com o professor de Arte, em que pudemos perceber que as atividades e a Arte não podem ser muito corporais, pois em um lugar privado de liberdade até o riso se torna perigoso, e mesmo assim os professores tentam arrancar sorrisos e gargalhadas. No que se refere à aprendizagem, notamos uma preocupação com a contextualização, relações, problemas com memórias, leitura e escrita por parte dos estudantes. Mas em todos os momentos os professores estavam ali, como heróis, com suas capas invisíveis, tentando mostrar a todo momento que aqueles meninos ainda podiam sonhar e que aprender, segundo Freire (1997), era um dever revolucionário de cada um.
A narrativa da supervisora escolar resume a experiência do estágio no CASE: “Vocês têm que olhar para a realidade de vocês e tentar melhorar, evoluir, não retroceder. Nunca é tarde para sonhar e acreditar de novo! Tem um mundo lindo, cheio de oportunidades esperando vocês!”
Proposta de intervenção psicopedagógica: Escola Estadual de Ensino Médio Humberto de Campos
A partir do que foi vivenciado e observado, as queixas em sua totalidade apresentavam um questionamento: Como eu, professor, ensino e estimulo este estudante enclausurado a sair do CASE, retomar sua vida e não sentir o desejo de voltar? Como (re) integrá-lo socialmente de modo que não corra o risco de retornar àquele espaço privativo de liberdade?
Após a investigação dessas demandas, surgiram hipóteses que estabelecem um elo entre os professores e estudantes. Por exemplo, reunir histórias dos professores de como chegaram ao CASE, de modo que os alunos se sensibilizassem e valorizassem os professores e as professoras que atuam na escola.
A fundamentação teórica da proposta de intervenção em Psicopedagogia Institucional apoiou-se na Pedagogia do Oprimido, conceito produzido por Freire (1997) que apresenta uma abrangência educativa no campo social, cultural e histórico. O autor entende o ser humano como um sujeito capaz de aprender, ensinar, e a partir disso, transformar o mundo. Desse modo, segundo Freire (1977), o homem:
[...] não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade se não for ajudado a tomar consciência da realidade e da sua própria capacidade para transformar [...]. (Freire, 1977, p. 48)
A partir desta luta pela transformação tão almejada por parte dos professores com os estudantes, nos inquietamos com alguns questionamentos: Os professores cuidam dos meninos, mas quem cuida desses professores? Como cuidar desses profissionais? Como fazê-los perceber sua essencialidade no cotidiano desses jovens? Como fazê-los também voltar a sonhar e acreditar em sua profissão? E, por fim, como elaborar a proposta de intervenção psicopedagógica a partir de tais indagações?
Freire (1997) em sua obra Pedagogia da Autonomia nos provoca a pensar na “boniteza de ser gente” (p. 67). Aqui, para a proposta de intervenção psicopedagógica, nos apropriamos dessa definição, a “[...] boniteza de ser professor: ‘ensinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria’”, na tentativa de devolver a alegria de modo poético e profissional aos professores e professoras que atuam na escola junto ao CASE.
A proposta de intervenção psicopedagógica que se apresenta intitulada: “Muros, correntes e afetos: práticas psicopedagógicas institucionais” objetivou realizar uma intervenção em Psicopedagogia Institucional com base na prática reflexiva para a construção da autonomia e da melhoria das relações com a aprendizagem de um grupo de professores da Educação Básica e foi dividida em quatro momentos. No primeiro momento, os professores foram levados à sala dos professores. Enquanto isso, dentro das salas de aulas estavam dispostos objetos confeccionados pelos estudantes, e em cada quadro das salas uma citação das obras de Paulo Freire sobre Educação. Em seguida, com uma música de fundo tocando gravações dos estudantes, os professores e professoras vivenciaram este momento como forma de presenteá-los. Para encerrar, num último momento, foi realizada a leitura de um texto de Rubem Alves (1994):
Muito se tem falado sobre o sofrimento dos professores. Eu, que ando sempre na direção oposta e acredito que a verdade se encontra no avesso das coisas, quero falar sobre o contrário: a alegria de ser professor, pois o sofrimento de se ser um professor é semelhante ao sofrimento das dores de parto: a mãe o aceita e logo dele se esquece, pela alegria de dar à luz um filho [...]. Nossos dias são preciosos, mas com alegria os vemos passando se no seu lugar encontramos uma coisa mais preciosa crescendo: uma planta rara e exótica, deleite de um coração jardineiro, um estudante que estamos ensinando, um livro que estamos escrevendo. O CASE fala de uma estranha alegria, a alegria que se tem diante da coisa triste que é ver os preciosos dias passando... A alegria está no jardim que se planta, no estudante que se ensina, no livro que se escreve. Senti que eu mesmo poderia ter escrito essas palavras, pois sou jardineiro, sou professor e escrevo livros. Imagino que o poeta jamais pensaria em se aposentar. Pois quem deseja se aposentar daquilo que lhe traz alegria? Da alegria não se aposenta...[...] Ser mestre é isso: ensinar a felicidade. “Ah!”, retrucarão os professores, “a felicidade não é a disciplina que ensino. Ensino ciências, ensino literatura, ensino história, ensino matemática...”. Mas será que vocês não percebem que essas coisas que se chamam “disciplinam”, e que vocês devem ensinar, nada mais são que taças multiformes coloridas, que devem estar cheias de alegria? Pois o que vocês ensinam não é um deleite para a alma? Se não fosse, vocês não deveriam ensinar. E se é, então é preciso que aqueles que recebem, os seus alunos, sintam prazer igual ao que vocês sentem. Se isso não acontecer, vocês terão fracassado na sua missão, como a cozinheira que queria oferecer prazer, mas a comida saiu salgada e queimada... O mestre nasce da exuberância da felicidade. E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua profissão, os professores deveriam ter coragem para dar a absurda resposta: “Sou um pastor da alegria...” eu Jade, estagiária, pelo que pude observar, digo mais! “Vocês são vendedores de sonhos!” Obrigada por compartilhá-los comigo! (adaptado de Alves 1994, pp. 6-11)
Entre correntes, afetos e despedidas
“Há 10 anos que trabalho aqui e nunca recebi uma carta de nenhum dos estudantes!” (Professora de Inglês)
Foram falas como essa que permearam a realização da proposta de intervenção na escola junto ao CASE, que ocorreu do seguinte modo: inicialmente, foi disposto na biblioteca da escola um varal de correntes feito de papel. Nessas, foram coladas cartas escritas pelos estudantes, agentes penitenciários e equipe gestora, com mensagens aos professores e professoras da instituição. Na mesa da sala, foi exposta ao centro uma moldura de coração feita também por correntes, e à frente de cada cadeira, um texto inspirado nas palavras de Rubem Alves (1994), descrita na seção anterior.
Após a preparação do espaço, foi colocada a música do cantor Tiago Iorc (2019) – “Um dia especial”. Em seguida, a porta foi aberta e os professores entraram na biblioteca. Ao se depararem com a surpresa, alguns se emocionaram, outros riram ao ler as cartas, era perceptível a emoção e alegria que reverberou nos olhos daqueles educadores tão preocupados com a (re)integração dos estudantes.
Professores esses que, mesmo em meio ao estresse diário, dificuldades e desafios no meio do percurso, mostraram-se dispostos, felizes e sonhadores, esses sentimentos foram notórios no momento da intervenção. Este fato nos remete às palavras de Valle et al.:
É preciso desenvolver espaço para o relacionamento interpessoal que prioriza o respeito, a compreensão das dificuldades, a cooperação de cada um e o esforço conjunto de solidariedade. Portanto, o psicopedagogo precisa orientar o melhor dos esforços, sempre por meio de ações integradas, para conscientizar a ação social, inclusive os organismos públicos de ação social e instituições educacionais, sobre a importância de lidar com o estresse e com os distúrbios do sono. (Valle et al., 2011, p. 243)
Neste sentido, é importante ressaltar a importância do psicopedagogo como (re)integrador e como elo de ações sociais, possíveis de (re)conectar professores e estudantes. E por meio da intervenção psicopedagógica é possível valorizar e motivar os professores e professores que atuam na escola a seguir na profissão, a refletir sobre a docência e a prosseguir sonhando e vendendo sonhos.
Percebemos que o trabalho do psicopedagogo institucional é de natureza preventiva, pois compreende a instituição escolar como um todo. Nesse sentido, Bossa (2000) destaca que o psicopedagogo institucional auxilia professores e demais profissionais nas atividades pedagógicas e problemas psicológicos; orienta os pais dos alunos; coopera com as autoridades para ter um bom relacionamento entre todos os membros da unidade e, principalmente, ajudando os alunos que estão sofrendo, seja qual for a causa.
A partir desta partilha entre Psicopedagogia e os profissionais da educação, após a intervenção, os professores se mostraram gratos e encorajados a seguir adiante em uma semana tão difícil, com direito a perdas, luto, e o retorno de alguns estudantes ao CASE. Diante disso, finalizamos esta intervenção com a fala da diretora:
Nós professores vendemos sonhos sim! Mas precisamos dos estudantes para sonhar junto com eles! E que bom seria se a sociedade deixasse o preconceito, o ego, o medo de lado e viesse visitar este espaço em que correntes se tornam corações de papel como mostrado nesta intervenção! Nós agradecemos ao curso de Psicopedagogia por nos mostrar que ainda podemos sonhar e acreditar que esses podem se realizar!
Após a realização da intervenção psicopedagógica, consideramos importante esclarecer e refletir sobre o título da proposta: “Muros, correntes e afetos: práticas psicopedagógicas institucionais”.
Muro: a metáfora sobre muros partiu da autora Viscaino (2016), a qual defendia a quebra de muros da escola, mostrando assim uma instituição livre e pacífica, em que “[...] o processo de inovação da escola sem muros, criando a cultura da paz a partir da integração escola e comunidade também foi a introdução de diversos dispositivos pedagógicos como caminhos para a comunidade educadora” (Viscaino, 2016, p. 2).
Refletimos sobre esta palavra no início do estágio quando nos deparamos no primeiro dia com a guarita, com um muro de concreto gigante. Notamos que há sim uma separação entre o CASE e a sociedade, no que se refere à desigualdade social, à privação de liberdade, dentre outras divisões sociais. Porém, a “muralha” que mais nos chamou atenção foram as demandas que os professores e professoras narraram durante o período de estágio.
Apesar das angústias, de dias difíceis, em nenhum dos momentos ouvimos alguma reclamação ou lamentação. Como era possível que aqueles professores estivessem sempre felizes? Era nítido em seus semblantes que estavam cansados, e alguns até tristes e frustrados, principalmente quando ocorria algum incidente com os estudantes fora do CASE, mas até o semblante era escondido através de um sorriso, um abraço, um acolhimento. Pudemos notar que os professores nesta instituição buscam, dia a dia, desconstruir estes muros e construir pontes que liguem a sociedade aos estudantes. Lutam bravamente para que estes alunos sejam vistos, se tornem protagonistas e corram atrás de seus sonhos, que se libertem das correntes.
Correntes: a palavra corrente surgiu como inspiração a partir do filme “Correntes do Bem” a qual descreve a história de um professor e seus alunos no início do ano letivo. Eugène Simonet é professor de Estudos Sociais e em suas aulas desafia seus alunos: eles devem desenvolver um trabalho com o objetivo de mudar o mundo. Trata-se de uma proposta que estimula uma participação mais ativa no mundo em que se vive para torná-lo melhor. Um dos estudantes se destacou, criando um jogo em que a pessoa, para cada favor recebido, tinha que devolver outros três, e assim por diante. Seu trabalho é baseado na mudança da vida humana, ou seja, na mudança do mundo real. Trouxemos também esta palavra, pois o CASE nos apresentou um novo significado para essa, uma corrente que vai além dos pulsos, uma corrente do bem, uma corrente que traz em si o sinônimo de coletivo, que apesar das dificuldades se recusam a soltar as mãos:
Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não. (Andrade, 2022, p. 55)
Afeto: Segundo Cunha (2008), trabalhar dentro da instituição como psicopedagogo não só facilita a aprendizagem do aluno, como faz com que o professor melhore a sua autoestima e sua relação afetuosa com os estudantes. A relação professor-aluno com afeto é extremamente necessária para que haja uma mudança no rumo da educação em nosso país. Inserimos a palavra afeto na proposta como um dos temas norteadores para a concretização das práticas psicopedagógicas. Parafraseando Freire (1996), o que seria de um educador se dentro dele não houvesse afeto? Onde estaria então a boniteza de educar? Sem o afeto, talvez, iríamos repetir nossas metodologias de modo mecânico, sem nos deixar afetar.
Entendemos que, no ensino tradicional, a sabedoria dos estudantes é subestimada e acaba por instaurar insegurança e falta de confiança nas resoluções de problemas. O corpo vai se apagando e se robotizando pelas normas escolares estabelecidas. Seria preciso “desmecanizar” esses corpos! Seria preciso garimpar o desconforto:
Compartilhamos a possibilidade de pensar uma educação que se produza pela/com a atenção aos encontros, aos afetos de diversos contextos que componha um estar docente, a olhar para os desconfortos, para o que não dá certo ou o inesperado na docência. (Neuscharank et al., 2019, p. 4).
Afinal, para criar afetos precisamos também nos permitir, nos afetar, e é neste momento que entra o papel fundamental do psicopedagogo institucional.
Considerações
Ao finalizar o estudo, acreditamos no potencial formativo do psicopedagogo institucional tanto em espaços formais quanto não formais de educação, como profissional que desconstrói muros de dificuldades para construir pontes de aprendizagens.
A experiência realizada no campo de estágio da Psicopedagogia Institucional possibilitou construir e implementar uma proposta de intervenção em que pudemos concretizar o objetivo; em que foi possível descrever e analisar uma intervenção em Psicopedagogia Institucional com base na prática reflexiva para a construção da autonomia e da melhoria das relações com a aprendizagem de um grupo de professores da Educação Básica.
A Psicopedagogia Institucional permite percebemos a importância de olharmos principalmente para as potencialidades e não somente para as dificuldades de aprendizagem dos estudantes, pois é a partir do diagnóstico, avaliação, intervenção e acompanhamento psicopedagógico que emergem diferentes possibilidades para qualificar o ensino e a aprendizagem no contexto da escola.
Este estágio nos fez refletir sobre o papel do psicopedagogo, que age como corrente, a partir de um trabalho interdisciplinar e coletivo em prol da necessidade do aprendiz e que traz consigo o afeto para que o ensino e a aprendizagem ocorram de modo diferenciado, a partir do olhar e da escuta sensível. Desse modo, torna-se cada vez mais relevante a atuação e a formação do psicopedagogo institucional em diferentes espaços institucionais sejam eles entre muros, correntes e afetos, já que o psicopedagogo é o profissional que considera os conhecimentos e as experiências do sujeito já adquiridos em sua história de vida e em seu contexto familiar, social e cultural como possibilidades de novos aprendizados, de novas vivências.













