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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.40 no.123 São Paulo set./dez. 2023  Epub 26-Ago-2024

https://doi.org/10.51207/2179-4057.20230035 

ARTIGO DE REVISÃO

A periodização histórico-cultural do desenvolvimento humano: A adolescência em questão

The historical-cultural periodization of human development: Adolescence in question

Fabrício Santos Dias de Abreu1 

Patrícia Lima Martins Pederiva2 

1. Fabrício Santos Dias de Abreu – Centro Universitário Estácio de Brasília; Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil.

2. Patrícia Lima Martins Pederiva – Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.


Resumo

Este artigo, apoiado na Teoria Histórico-Cultural, problematiza que os ciclos vitais são variáveis e se constituem a partir das situações concretas da vida. Para se captar a dinâmica e o movimento que conduz as especificidades psicológicas de cada período, é necessário compreender a inter-relação dialética entre a situação social do desenvolvimento, atividade guia, neoformação e crise. É a partir desses conceitos que a adolescência é percebida como um constructo histórico em que aspectos sociais, políticos e ideológicos forjam o sujeito adolescente. O foco desloca-se do ser apenas biológico e concentra-se nas oportunidades desenvolvimentais que possibilitam ao adolescente ascender a um novo modo de pensar, que ao complexificar-se passa a operar através dos conceitos.

Palavras-Chave: Teoria Histórico-Cultural; Periodização; Idade; Adolescência; Desenvolvimento Humano

Summary

This article, supported by the Historical-Cultural Theory, problematizes that life cycles are variable and are constituted from concrete situations in life. In order to capture the dynamics and movement that lead to the psychological specificities of each period, it is necessary to understand the dialectical interrelation between the social situation of development, guiding activity, neoformation and crisis. It is from these concepts that adolescence is perceived as a historical construct in which social, political and ideological aspects forge the adolescent subject. The focus shifts from being just biological and concentrates on the developmental opportunities that allow the teenager to ascend to a new way of thinking, to which complexification starts to operate through concepts.

Key words: Historical-Cultural Theory; Periodization; Age; Adolescence; Human Development

Introdução

O conceito de atividade humana e sua relação com a periodização

A periodização da ontogênese humana é uma questão frequente nos estudos da psicologia do desenvolvimento. Nos trabalhos dos principais expoentes dessa área no século XX (Piaget, 1999; Vygotski, 2012; Wallon, 1999) é possível verificar tentativas de, à luz de enfoques teóricos distintos, encontrar marcadores e características de desenvolvimento que se atrelem a determinados períodos da vida. Nessa diligência destacam-se as contribuições da Teoria Histórico-Cultural, na qual nos trabalhos de Vigotski (2012, 2022), Leontiev (2014) e Elkonin (2017) há uma proposta de periodização de abordagem histórica, materialista e dialética em que se evidencia, para além dos componentes naturalizantes, a relação sujeito-sociedade como força motriz e determinante dos processos de desenvolvimento em cada idade. Para essa abordagem, cada período ontogenético é qualificado a partir de organizações específicas do psiquismo e caracterizado por uma atividade principal, que guia o desenvolvimento e estrutura as relações do indivíduo com o meio social.

Para chegar a essas conclusões, era necessário estabelecer rupturas com linhas teóricas que postulassem a naturalização dos processos psicológicos humanos, ou seja, aquelas que os entendem como uma determinação filogenética em que aspectos culturais e históricos pouco incidem. Por essas vias os períodos que compõem o ciclo vital são analisados como dados apriorísticos: universais e análogos para todos os seres humanos.

Para estabelecer uma nova abordagem sobre essa problemática, tornava-se imprescindível trazer para o âmago da Psicologia os princípios marxianos que defendem que “a essência humana não é o abstrato residindo no indivíduo único. Em sua efetividade é o conjunto das relações sociais” (Marx, 1987, p. 168). O que Marx sugere é que o estudo da consciência transfira seu foco do sujeito subjetivo e metafísico para os sistemas materiais que organizam as relações sociais e regem o mundo objetivo. Vigotski (2000) faz uma interpretação psicológica desse postulado e a utiliza para assentar sua defesa de que a gênese da consciência só se efetiva pelo acesso ativo do sujeito às relações sociais, assim sendo, ao mundo mediatizado e historicizado: “Paráfrase de Marx: a natureza psicológica da pessoa é o conjunto das relações sociais, transferidas para dentro e que se tornaram funções da personalidade e formas da sua estrutura” (Vigotski, 2000, p. 27).

Os pesquisadores vinculados à primeira geração da Teoria Histórico-Cultural enfrentaram o desafio de, alinhados à Revolução Socialista de 1917, desenvolverem o gérmen de uma ciência psicológica de base marxista-leninista, cujo objetivo era a “penetração na natureza real da psique, a consciência do homem” (Leontiev, 2004, p. 150). Ao orientar-se por esses pressupostos, o intento era fundar uma Psicologia autenticamente científica e consistentemente materialista liberta de concepções biologizantes, mecanicistas, descritivas e idealistas de ser humano.

Para tanto, tornava-se fundamental trazer à baila o conceito de atividade humana para a Psicologia que se desejava construir no período revolucionário. Karl Marx é o responsável por introduzir essa compreensão na teoria do conhecimento e já nas suas primeiras elaborações é possível verificar a centralidade da atividade como força vital para o desenvolvimento das características tipicamente humanas (Marx, 2004; Marx, 2008; Marx & Engels, 2010). Nessas obras o trabalho é concebido como atividade fundante do ser social, na qual os sujeitos intencionalmente transformam a natureza em bens necessários à sua existência, convertendo os bens naturais em produtos sociais. “A passagem à consciência humana, assente na passagem a formas humanas de vida e na atividade do trabalho que é social por natureza” (Leontiev, 2004, p, p. 73).

Em suas Teses sobre Feuerbach o filósofo alemão, em crítica ao materialismo contemplativo, defende que a realidade circundante deve ser analisada “como atividade humana sensível, práxis” (Marx, 1987, p. 57), ou seja, conceber que “toda vida social é essencialmente prática” (Marx, 1987, p. 58). É em atividade, portanto, que os sujeitos humanizam a natureza e naturalizam sua existência. Em outras palavras, o indivíduo “se torna um homem somente como resultado do processo de execução da atividade humana” (Leontiev, 1984, p. 201). Ao operarem através da atividade, os humanos subvertem os domínios estritamente naturais e forjam o seu psiquismo alicerçado nas condições sociais de vida historicamente fabricadas.

O que Marx inaugura é a defesa de que a atividade humana é a base para o desenvolvimento da consciência. O trabalho social, por exemplo, instância máxima e ontológica da atividade, possibilitou aos indivíduos uma ação no mundo natural em que, ao alterá-lo de forma intencional, modificam a si mesmos. O desenvolvimento da consciência, nesses termos, não é uma mera função adaptativa, mas se amálgama à atividade produtiva/criadoras pelas quais os sujeitos compreendem a realidade e a modificam mediante objetivos previamente traçados na sua mente.

Esses pressupostos marxianos foram incorporados à psicologia soviética, principalmente nos trabalhos de Lev Vigotski, Alexander Luria, Alexei Leontiev, Vasili Davidov, Daniil Elkonin, entre outros. Luria (1991) deslinda que as peculiaridades da atividade psíquica dos indivíduos que possibilitou a transição da história natural dos demais animais à história social dos humanos encontra sua gênese na “forma histórico-social de atividade, que está relacionada com o trabalho social, com o emprego de instrumentos de trabalho e com o surgimento da linguagem” (Luria, 1991, p. 74).

Porém, coube a Leontiev um olhar mais apurado sobre a dinâmica e estrutura da atividade, sintetizado na sua Teoria da Atividade. O autor indica que a atividade é uma unidade molecular que guia os indivíduos à apropriação dos bens produzidos pelo gênero humano: “É a unidade da vida mediada pelo reflexo psicológico, cuja função real consiste em que orienta ao sujeito no mundo objetivo (...) a atividade do indivíduo humano é um sistema incluído no sistema das relações sociais” (Leontiev, 1984, pp. 66-67). Em síntese, é pela atividade que o indivíduo “absorve a experiência da humanidade” (Leontiev, 1984, p. 77).

Para não se cair em um reducionismo teórico, é importante elucidar que nem todas as ações dos sujeitos podem ser qualificadas como atividade: “o conceito de atividade está necessariamente unido ao conceito de motivo” (Leontiev, 1984, p. 82). O motivo, por sua vez, é conceituado como “aquilo que, refletindo-se no cérebro do homem, excita-o a agir e dirige a ação a satisfazer uma necessidade determinada” (Leontiev, 2017, p. 45). Isto posto, o motivo é entendido como aquilo que mobiliza o sujeito a realizar uma atividade para satisfazer certa necessidade. Alimentar-se, por exemplo, é uma necessidade biológica fundamental para que os seres humanos conservem a sua existência. Ao sentir fome, é imprescindível buscar a subsistência através da produção ou aquisição de alimentos (seja pela caça ou pela ida ao supermercado). A comida, nesse caso, atua como o motivo da atividade, pois sacia uma necessidade (alimentação) e impulsiona e mobiliza a ação. Dessa forma, “a atividade do homem está dirigida a satisfazer suas necessidades” (Leontiev, 2017, p. 39).

Na situação descrita acima a necessidade de nutrir-se é uma constante tanto para os seres humanos quanto para os demais animais, porém a maneira de satisfazê-la é radicalmente distinta. Marx explica que “o animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz de sua atividade vital mesma um objeto de sua vontade e da sua consciência. Ele tem atividade consciente” (Marx, 2004, p. 84). Na mesma linha, Luria (1991) esclarece que nos humanos a atividade é regida por complexas necessidades “chamadas de superiores ou intelectuais” (p. 71).

Enquanto a relação dos demais animais com a natureza para a satisfação de suas necessidades é guiada por marcos puramente naturais em que a experiência imediata e direta assume protagonismo em um eterno continuum, nos seres humanos ela ocorre de forma mediada e criadora, na qual estes se tornam capazes de imprimir o selo de sua vontade de forma planejada na realização de suas ações para a materialização do mundo objetivo. Os demais animais produzem apenas o que é imediatamente necessário para si e sua prole; “ele produz de uma maneira unilateral, enquanto o homem produz de um modo universal; ele produz apenas sob o império da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo quando livre de toda necessidade física” (Marx, 2004, p. 78). Os humanos, portanto, superam os limites de sua natureza animal no processo de vida sócio-histórica, fabricando os meios para sua existência.

Por mais que os motivos que engendram a ação de seres humanos e demais animais possam ser análogos, como no caso daqueles que envolvem alimentação, reprodução etc., as necessidades dos primeiros são culturalizadas e se complexificam. Deixam de comportar-se de forma puramente instintiva e passam a atuar visando atingir uma finalidade socialmente instituída. O que se coloca em relevo é o caráter social de satisfazer uma necessidade que, outrora, era biológica e converte-se em culturalizada. Sendo assim, “é fome, mas a fome que se sacia com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome diversa da fome que devora carne crua mão, unha e dente” (Marx, 2011, p. 47). Nesse trecho Marx indica que a satisfação de uma demanda biológica adquire outros contornos quando se materializa em um terreno socialmente forjado: o sujeito torna-se capaz de produzir seu alimento a partir da transformação deliberada da natureza; além disso, segue um roteiro para prepará-lo no qual utiliza ferramentas e procedimentos que são culturalmente instituídos.

Imbuída por esses princípios a Teoria Histórico-Cultural defende que a apropriação da experiência social é uma necessidade estrutural para o tornar-se humano e que, por isso, ao analisar as especificidades de cada cultura e do tempo histórico circunscrito é possível notar certa regularidade de atividades que impulsionam o desenvolvimento e engendram formações psicológicas singulares nos períodos da ontogênese. O que aqui se apresenta como nova é a interpretação de que os ciclos vitais são dinâmicos e se constituem a partir das situações concretas da vida.

Por esses pressupostos, neste artigo, buscamos problematizar a adolescência, que no Ocidente é referenciada como uma fase de conflitos e inadaptações oriundas da modificação corporal. Nossa tentativa, pelas sendas dos autores clássicos da primeira geração da Teoria Histórico-Cultural, é nos afastarmos de uma concepção naturalista na defesa de que o psiquismo reflete e refrata o desenvolvimento histórico da humanidade e que a adolescência, portanto, é uma categoria social com contornos desenvolvimentais específicos.

A questão da idade na Teoria Histórico-Cultural

Em um olhar menos apurado o problema da idade parece simples e pode ser reduzido ao aforismo de nascer, crescer e morrer. Toma-se como pressuposto que a ascensão dos anos é regida por um elemento natural organicamente inerente a todos os seres humanos organizados em estágios sequenciais tipificados em calendários. Durante séculos, a discussão sobre as peculiaridades culturais que incidem sobre a noção de fases e etapas do desenvolvimento ocupou lugar marginal na ciência contemporânea, modificando-se com o advento da Antropologia e da Psicologia quando essas se estabeleceram como ciência.

A tentativa de se periodizar as idades no decurso do desenvolvimento dos indivíduos é tema recorrente nos estudos psicológicos do início do século XX. Seja por vias puramente biológicas, como aquelas centradas na dentição ou na maturação sexual, seja por explicações essencialmente culturalistas, com base nas etapas escolares, o assunto esteve envolto em explicações difusas que pouco concorriam para avanços significativos do entendimento das especificidades psíquicas qualitativas de cada período ontogenético.

Em síntese, essas abordagens partiam de concepções antidialéticas, invariáveis e dualistas. Na tradição pedagógica brasileira, por exemplo, os estudos de Jean Piaget sobre a construção do conhecimento e a estruturação da inteligência assumem destaque. Para o biólogo suíço, a partir de determinados critérios “que nós não inventamos a priori, mas descobrimentos empiricamente pode-se então distinguir quatro grandes estágios” (Piaget, 1999, p. 104) que perpassam do nascimento até a adolescência.

Estabelecer critérios que levassem em conta a essência desses processos compõe o interesse teórico de Vigotski nos últimos anos de sua vida, que buscava estudar a periodização do desenvolvimento humano a partir “da essência interna do processo” (Vygotski, 2012, p. 253). Sua proposta, portanto, era superar a periodização sintomática, focada na aparência e no fenótipo, para estabelecer uma que pudesse desvelar a estrutura do problema. Assim como Marx (2008) fez com a mercadoria no O Capital, Vigotski submete a periodização das idades a uma investigação minuciosa, na busca de apreender suas determinações, estruturas e as categorias que a explicam, em síntese: ir à sua essência. Essa ação demonstra a coerência de Vigotski com o materialismo histórico-dialético enquanto método de pesquisa, pois “toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas” (Marx, 2008, p. 1080), tornando-se necessário confrontar a ciência burguesa “cujo cérebro limitado não sabe distinguir entre a forma aparente e o que nela se oculta” (p. 960).

Essas defesas parecem dissipar o imbróglio entre biogenética e cultura ao indicar a impossibilidade de classificar as etapas do desenvolvimento de acordo com parâmetros maturacionistas e universais. O foco estava em superar a visão idealista e evidenciar a essência interna do processo: “a verdadeira tarefa consiste em investigar o que se oculta por trás dos ditos indícios, aquilo que os condiciona, ou seja, o próprio processo do desenvolvimento infantil com suas leis internas” (Vygotski, 2012, p. 253). Nesses termos a periodização de base histórico-cultural deve ter como fundamento as mudanças internas do desenvolvimento “as viradas e giros de seu curso podem proporcionar uma base sólida para determinar os principais períodos de formação da personalidade da criança que chamamos idade” (Vygotski, 2012, p. 254). O interesse, dessa forma, estava nas mudanças qualitativas da estrutura da personalidade e não apenas no crescimento corporal e nas mudanças orgânicas.

Para Vigotski (2012), o desenvolvimento se caracteriza por um processo contínuo que conduz a “formações qualitativamente novas, com ritmos próprios” (p. 254) ou ainda “a permanente aparição e formação do novo não existente nos estágios anteriores” (p. 254). Por essas premissas estabelece que o critério para se distinguir os períodos do desenvolvimento e determinar o essencial de cada idade deve ser a análise dessas formações novas (neoformações). Afinal, “o critério fundamental, a nosso juízo, para classificar o desenvolvimento infantil em diversas idades é justamente a formação nova” (p. 260).

Entendemos por formações novas o novo tipo de estrutura da personalidade e de sua atividade, as mudanças psíquicas e sociais que se produzem pela primeira vez em cada idade e determinam, no aspecto mais importante e fundamental, a consciência da criança, sua relação com o meio, sua vida interna e externa, todo o curso de seu desenvolvimento em um período dado. (Vygotski, 2012, pp. 254-255)

Vigotski, apoiado em Pavel Blonski (1884-1941), rompe com a tradição psicológica que definia o desenvolvimento humano como algo progressivo e harmonioso ao estabelecer que os períodos da vida são caracterizados por momentos de estabilidade e crise. Tal afirmação se materializa pela identificação de que em algumas idades o desenvolvimento segue um curso lento e as mudanças são quase imperceptíveis, “em idades relativamente estáveis, o desenvolvimento se deve, principalmente a mudanças microscópicas” (Vygotski, 2012, p. 255). Em outros há bruscas e viscerais mudanças em que “em um breve espaço de tempo a criança muda por inteiro, se modifica as características básicas da sua personalidade” (Vygotski, 2012, p. 256). Nesses períodos estáveis, portanto, não há reestruturação da personalidade, o que se percebe é que pequenas variações no desenvolvimento “se vão acumulando até certo limite e se manifesta mais tarde como uma repentina formação qualitativamente nova da idade” (p. 255) ocasionando momentos críticos. Os períodos críticos, nesses termos, se caracterizam por momentos de viragem, se assemelhando a uma revolução: “recorda um curso de acontecimentos revolucionários, tanto pelo ritmo das mudanças, como pelo significado dos mesmos” (Vygotski, 2012, p. 256).

O uso do termo revolução como uma alegoria atrelada à dinâmica do desenvolvimento humano, marcada por períodos de estabilidade e crise, não é utilizado por Vigotski de forma aleatória. Na tradição marxista essa acepção diz respeito ao movimento sucessório de épocas históricas marcadas por modificações significativas no modo de produção, ocasionando cataclismas, isto é, modificações significativas na estrutura social, econômica e política.

Bottomore (2010) estabelece que a revolução ocasiona na sociedade saltos provocados por uma convergência de conflitos: entre as velhas instituições e as novas forças produtivas que lutam pela liberdade. Parece-nos que é justamente isso que acontece no desenvolvimento humano: as crises, em essência revolucionárias, engendram superações que ocasionam reestruturações psíquicas, pois “a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária” (Marx & Engels, 2010, p. 544). Assim, concordamos com Marx e Engels (2010) que “não é a crítica, mas a revolução a força motriz da história e também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria” (p. 43).

Se a velha Psicologia analisava as idades críticas por um viés negativo, considerando-as como enfermidade, desvio e perturbação do curso do desenvolvimento, Vigotski reposiciona a análise ao defender que nelas há um significado positivo e criador. O autor não desconsidera a dificuldade do processo, pois nas crises é possível verificar “uma alteração do equilíbrio psíquico, instabilidade da vontade e do estado de ânimo” (Vygotski, 2012, p. 257). Nesses períodos críticos as formas como o sujeito se relaciona consigo e com o mundo são reconfiguradas, pois alteram os interesses que orientam sua atividade e as estruturas psíquicas. “O desenvolvimento não interrompe jamais sua obra criadora e até nos momentos críticos se produz processos construtivos” (Vygotski, 2012, p. 259).

A partir do exposto até então é possível afirmar que cada idade tem uma dinâmica própria, em que é possível verificar uma estrutura psicológica específica e irrepetível, caracterizada pela assunção de uma nova formação central que guia o processo de desenvolvimento e que a partir dela a personalidade ser organizará por outras bases e contornos. Vigotski (2012) explica que nesse processo existem linhas centrais, que se relacionam de forma mais imediata com a formação principal, e linhas acessórias. Ao passar de uma idade a outra, junto com a reestruturação geral do sistema da consciência, modifica-se também a posição dessas linhas.

O que Vigotski tenta instaurar é um olhar dialético para a questão da idade ao assumir que não se trata de um processo universal, estático e invariável, mas se caracteriza por uma constante modificação da “estrutura geral da consciência que em cada idade se distingue por um sistema determinado de relações e dependências entre aspectos isolados, entre as distintas formas de sua atividade” (Vygotski, 2012, p. 263). O que se coloca em tela aqui é que, para se entender a estrutura da idade, é necessário compreender que as relações do sujeito com seu meio social vão se modificando ao longo do desenvolvimento.

Qual a influência do meio nas discussões sobre a idade? Vigotski (2012) ao responder essa indagação foge do essencialismo biológico e reducionismo metafísico de sua época e, ao analisar as crises, por exemplo, coloca que: “os períodos críticos são distintos em distintas crianças” (p. 256) e “as condições exteriores determinam o caráter concreto em que se manifestam e transcorrem os períodos críticos” (p. 256). Dessa forma, em diferentes culturas, sociedades e períodos históricos o desenvolvimento assumirá contornos próprios, tal como pode ser demonstrado em estudos clássicos da Antropologia e da História (Mead, 2015; Ariés, 2012).

Ao início de cada período etário, a relação que o sujeito estabelece com o meio (e o entorno com ele) “é totalmente peculiar, específica, única e irrepetível” (Vygotski, 2012, p. 264). Essa vinculação é chamada por Vigotski de situação social do desenvolvimento, sendo ela o ponto de partida para todas as mudanças que se produzem ao longo do desenvolvimento, pois “a realidade social é a verdadeira fonte do desenvolvimento, a possibilidade que o social se transforme em individual” (Vygotski, 2012, p. 264). Assim, para se deslindar a dinâmica de uma idade Vigotski instaura o conceito de situação social do desenvolvimento: “específica para cada idade, determina, regula estritamente todo o modo de vida da criança e sua existência social” (Vygotski, 2012, p. 264). Na mesma linha Leontiev (2004) afirma que durante “o desenvolvimento da criança, sob a influência das circunstâncias concretas de sua vida, o lugar que ela objetivamente ocupa no sistema das relações humanas se altera” (p. 59).

Para Vigotski (2012), a primeira questão a ser desvelada para o estudo da idade é captar o lugar que o indivíduo ocupa no sistema das relações sociais, somente assim torna-se possível compreender “a questão da origem ou gênese de suas neoformações centrais na idade dada” (p. 264). São as neoformações, conforme já apontamos, que caracterizam “a reestruturação da personalidade consciente da criança, não são uma premissa, mas sim o resultado ou o produto do desenvolvimento da idade” (Vygotski, 2012, p. 264).

Essa nova estrutura da consciência adquirida ao final de uma idade faz com que o sujeito interaja com o meio (e o meio com ele) de uma forma distinta, reorganizando o sistema de suas relações. Ao fim de uma idade, por exemplo, é possível verificar que a pessoa se converte em um ser com características totalmente distintas se comparadas ao início da idade: “o que representa uma enorme riqueza para o bebê quase deixa de interessar à criança na primeira infância” (Vygotski, 2012, p. 23).

Vigotski avança ao estabelecer que a modificação da situação social de desenvolvimento constitui o conteúdo principal das idades críticas ao formular a lei fundamental da dinâmica das idades: “as forças que movem o desenvolvimento da criança em uma idade ou outra, acabam por negar e destruir a própria base do desenvolvimento de toda a idade” (Vygotski, 2012, p. 265).

Vigotski exemplifica o conceito de situação social de desenvolvimento pelo menos duas vezes ao longo de sua obra ao abordar o primeiro ano de vida e a primeira infância. Ao falar do bebê, o autor rompe com a ideia de associabilidade vinculada a essa etapa da vida ao demonstrar a existência de uma sociabilidade específica “profunda, peculiar devido a uma situação social de desenvolvimento única, irrepetível, de grande originalidade” (Vygotski, 2012, pp. 285-286).

Essa conjuntura se caracteriza pela total dependência para consumar as necessidades biológicas mais básicas e para efetivar a sobrevivência. As relações da criança com o meio, dessa forma, se manifestam através de relações da vigilância e do cuidado. “Essa dependência confere um caráter absolutamente peculiar à relação da criança com a realidade (e consigo mesma): são relações que se realizam por mediação de outros, refratam-se através do prisma das relações com outra pessoa” (p. 285).

Vigotski ainda acrescenta uma segunda peculiaridade à situação social das crianças no primeiro ano de vida ao estabelecer que, apesar de elas estarem imersas na sociabilidade, ainda não existe comunicação em forma de linguagem, mas sim “uma comunicação sem palavras, amiúde silenciosa, uma comunicação de gênero totalmente peculiar” (Vygotski, 2012, p. 286). Em um segundo momento, ao abordar a primeira infância, o autor retoma a menção à situação social do desenvolvimento quando explica que nessa etapa a neoformação principal é a linguagem verbal. Ao começar a operar com essa forma de comunicação, “a situação social de desenvolvimento existente no começo da idade, se modifica, uma vez que a criança se torna diferente, se destrói a velha situação social do desenvolvimento e começa um novo período etário” (Vygotski, 2012, p. 350).

Ao analisar a literatura (Davidov, 1986; Elkonin, 2017; Leontiev, 2004, 2017; Tolstij, 1989; Vygotski, 2012; Vygotski, 2022), é possível afirmar que as questões que envolviam a periodização do desenvolvimento eram centrais para os pesquisadores soviéticos, pois se atrelavam às estratégias adotadas para se reorganizar o sistema educacional do país sobre as bases comunistas. Para alcançar esse objetivo, era necessário compreender as atividades promotoras de desenvolvimento em cada etapa da vida e as especificidades das transições de um período a outro. Só assim seria possível estabelecer as bases de uma escola capaz de elevar as capacidades dos indivíduos as suas máximas potencialidades, pois os professores “precisam estar atentos às peculiaridades do desenvolvimento psíquico em diferentes etapas evolutivas, para que possam estabelecer estratégias que favoreçam a apropriação do conhecimento científico” (Facci, 2004, p. 68).

Na Psicologia soviética, no início da década de 1930, foi Vigotski quem lançou as premissas, conforme demonstramos, de uma periodização de base marxista em que se coloca como centrais a relação indivíduo-meio e as condições históricas concretas de vida. Por essas vias há o ineditismo no estatuto do conhecimento de que as particularidades de cada idade não se reduzem à passagem cronológica do tempo, mas sim pelo lugar ocupado pelo indivíduo nas dinâmicas das relações sociais. Apesar dos trabalhos pedológicos de Vigotski traçarem um estudo detalhado sobre as idades e as crises, a sua morte prematura interrompeu aprofundamentos necessários, principalmente ao que diz respeito às atividades guias.

Esse conceito é deslindado por Leontiev (1987; 2014) e incorporado no sistema de periodização por Elkonin (2017). Por essas vias, para se entender as forças propulsoras de desenvolvimento, o conceito de atividade é central, assim como sua vinculação com a vida concreta dos indivíduos: “no estudo do desenvolvimento do psiquismo da criança devemos partir da análise do desenvolvimento da sua atividade tal como ela se organiza nas condições concretas da sua vida” (Leontiev, 2004, p. 310). Assim, os autores soviéticos ao analisarem as atividades humanas identificaram que algumas delas assumem protagonismo diferenciado em cada período ontogenético, engendrando neoformações e mudanças significativas nas relações interfuncionais entre as funções psíquicas.

As mudanças qualitativas de cada idade, portanto, ocorrem a partir de atividades específicas que guiam o desenvolvimento e que exercem maior impacto sobre os processos psicológicos.

Alguns tipos de atividade são, numa dada época, dominantes e têm uma importância maior para o desenvolvimento ulterior da personalidade, outros têm menos. (...) Razão por que devemos dizer que o desenvolvimento do psiquismo depende não da atividade do seu conjunto, mas da atividade dominante. (Leontiev, 2004, p. 310)

O uso da palavra dominante pode levar ao entendimento equivocado de que se trata de acepções essencialmente quantitativas, ou seja, como sendo a atividade de maior prevalência temporal em determinada etapa do desenvolvimento. Para a Teoria Histórico-Cultural, não se versa, portanto, da ação que o indivíduo mais realiza (em quesitos métricos), mas sim como sendo a atividade que governa, impulsiona e determina o desenvolvimento.

As atividades-guias1, por essas vias, não se estabelecem como ação inata e análoga a todos os seres humanos, mas se constroem circunscritas na história vinculada as condições concretas da vida dos sujeitos. Vigotski (2021) defende, por exemplo, que a brincadeira de papéis sociais (protagonizada) é a “linha principal do desenvolvimento na idade pré-escolar” (p. 210) e ainda que “a criança é movida por meio da atividade de brincar (...) somente nesse sentido a brincadeira pode ser denominada de atividade-guia, ou seja, a que determina o desenvolvimento da criança” (pp. 235-236).

Porém, esses enunciados não são universais, fazendo-se valer apenas em sociedades em que o sentimento de infância é muito bem apurado, conforme demonstrado por Elkonin (2009). Esse, ao analisar estudos antropológicos sobre sociedades tradicionais, percebe que em algumas delas não existia uma fronteira delimitada entre adultos e crianças, ou seja, as condições de vida delas e o seu lugar naquele meio a faziam adentrar desde muito cedo no labor produtivo dos adultos, ocasionando a inexistência de brincadeiras de papéis sociais: “ausência de jogos protagonizados deve-se à situação especial das crianças na sociedade” (Elkonin, 2009, p. 59).

Assim, para se captar a dinâmica e o movimento que conduz as especificidades psicológicas de cada período, é necessário compreender a inter-relação dialética entre a situação social do desenvolvimento, atividade guia, neoformação e crise. Esses pressupostos são fundamentais para se compreender a dinâmica do desenvolvimento na adolescência em uma perspectiva histórico-cultural. Vigotski na tentativa de compreender o desenvolvimento em sua totalidade se dedicou a uma miríade de temáticas que perpassam as peculiaridades psicológicas humanas, dentre elas, investigou a adolescência, chamada por ele de período de transição, cujas sínteses estão registradas na obra Pedologia do Adolescente (Vygotski, 2012) e Pedologia da Idade de Transição (Vygotsky, 2022).

Vigotski, em algumas interpretações, pode ser definido como um teórico do desenvolvimento humano que se dedicou, majoritariamente, ao estudo da infância. É fato que em grande parte de suas pesquisas empíricas, nas quais buscava desvelar a estrutura e a dinâmica da consciência, as crianças assumam lugar de destaque. Porém, ao se filiar à pedologia é possível notar importantes discussões que ultrapassam os limites dos primeiros anos de vida, que se materializam em um conjunto de textos em que aborda a adolescência.

Esses foram escritos entre 1928 e 1931 em formato de manuais para centros de ensino a distância chancelada pela Universidade Estatal de Moscou. Neles, ao analisar a literatura europeia e norte-americana, o autor retira a adolescência do cativeiro fisiológico ao demonstrar que o ritmo do desenvolvimento é regido por leis histórico-culturais, conforme defende Luria (1991): “as raízes da atividade consciente do homem não devem ser procuradas nas peculiaridades da “alma”, nem no íntimo do organismo humano, mas nas condições sociais de vida historicamente formadas” (p. 75).

As especificidades do desenvolvimento psicológico de adolescentes

Tradicionalmente, a análise da adolescência no campo psicológico e pedagógico se reduziu aos aspectos forjados pela maturação sexual. Cunhou-se a ideia de que esse período, marcado por fortes transformações físicas, se caracterizaria como um estágio patológico e negativo de desordens psicológicas, distúrbios de conduta e angústias emocionais que evoluiria rumo à maturidade. Manuais clássicos de psicologia do desenvolvimento, como o escrito por Cole e Cole (2003), por exemplo, definem essa etapa como sendo aquela atrelada a eventos bioquímicos que alteram o tamanho, forma e funcionamento do corpo, ocasionando instabilidade psicológica. Na mesma linha, Papalia e Feldman (2013) colocam em realce que a adolescência é marcada por dois tipos de mudanças, que dizem respeito às alterações corporais e à maturação sexual.

Por mais que as duas obras citadas incluam discussões sobre os aspectos culturais, esses aparecem timidamente dando sempre lugar a discussões sobre a reprodução ou demarcando a adolescência como um período conflituoso e desafiante, que necessita de roteiros escritos por especialistas que orientem pais e educadores. O que se se percebe na análise é uma depreciação dessa fase do desenvolvimento em que os aspectos físicos, marcados por mudanças biológicas significativas, entendidas como universais e naturais, colocam os adolescentes em um lugar de inadaptação social marcada por problemas (drogadição, gravidez, ISTs etc.) e conflitos (escolares, familiares, etc.). É como se o advento da maturidade genital, que oportuniza ao sujeito exercer a procriação, o colocasse em uma situação transitória de imaturidade psicológica que se harmonizaria na adultez.

Ao tentarmos identificar a quais matrizes psicológicas esses clássicos da psicologia do desenvolvimento (Cole & Cole, 2003; Papalia & Feldman, 2013) se filiam para entender a dinâmica da adolescência, percebe-se que a tônica encontra-se atrelada à psicanálise, que nomeia esse momento do desenvolvimento como estágio genital, na defesa de que o aumento da excitação sexual perturba o equilíbrio psicológico ocasionando comportamento anormal, e na teoria piagetiana, que estabelece que na adolescência há o desenvolvimento de uma nova estrutura lógica, das operações formais, que permite ao adolescente pensar de forma sistematizada.

A Teoria Histórico-Cultural nem ao menos é cogitada como uma via de investigação e explicação do fenômeno da adolescência, o que se constata é uma total dissociação entre aspectos biológicos e culturais, com prevalência para aqueles, que poderia ser solucionado por uma abordagem psicológica fincada sobre as bases do materialismo histórico-dialético. Não estamos aqui desmerecendo o esforço intelectual dos autores desses famosos manuais da Psicologia, porém no que tange à adolescência o debate é feito de forma simplista com forte vinculação ao modelo cartesiano e biologizante de ciência.

A relação dialética entre as características maturacionais e o contexto social não é problematizada e a realidade concreta, que deveria ser analisada como dinâmica e mutável, torna-se apenas o palco para a realização-amadurecimento das mudanças biológicas. A crítica feita por Vigotski à incipiente Psicologia do início do século XX ainda se apresenta com ares de contemporaneidade: “a psicologia tradicional analisa o desenvolvimento da conduta em analogia ao desenvolvimento embrional do corpo, ou seja, como um processo totalmente natural, biológico” (Vygotski, 2012, p.17).

Partir de uma vertente teórica como a de Vigotski para a análise da adolescência requer um deslocamento epistemológico capaz de romper com a base maturacionista ainda presente na ciência psicológica moderna. Por essas vias há a separação entre o cultural e o biológico, o que leva à interpretação equivocada de que a adolescência é um processo independente, autossuficiente e regido unicamente por forças internas. Essas concepções estudam a adolescência em abstrato, à margem do seu meio social e de forma idealizada. Para se construir uma nova compreensão sobre esse fenômeno, torna-se fundamental introduzir a perspectiva histórica do desenvolvimento psicológico, afinal, ainda é urgente forjar uma ciência que “permita sair do cativeiro biológico de psicologia e passar ao terreno da psicologia histórica humana” (Vygotski, 2012, p. 132) e que assuma a adolescência enquanto um produto do desenvolvimento histórico da humanidade.

Trazer à baila as discussões sobre natureza e cultura como centrais para desvelar o fenômeno da adolescência nos parece pertinente, pois possibilita a “incorporação da adolescência à cultura” (Vygotski, 2012, p. 24). O esforço teórico vigotskiano é para retirar essa fase do desenvolvimento das vinculações puramente maturacionistas que operam a partir de um desmembramento mecânico do indivíduo e analisam seu desenvolvimento de forma unilateral - como um processo de contornos apenas naturais.

O que sugerimos é que a Teoria Histórico-Cultural, por sua incorporação ao marxismo e rompimento com o dualismo, oferece instrumental que permite uma nova compreensão sobre a adolescência, agora entendida na unidade biológico-cultural, afinal “na personalidade tudo é construído sobre uma base genética, congênita e, ao mesmo tempo, tudo nela é supra-orgânico, condicional, ou seja, social” (Vigotski, 2006, p. 4). Nessa linha, Marx e Engels (2010, p. 86) explicam que a história por ser dividida em natural e cultural e que “os dois lados não podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem homens, a história da natureza e história dos homens se condicionarão reciprocamente”.

A relação entre natureza e cultura, nos trabalhos de Vigotski, se vincula majoritariamente às explicações sobre a gênese do psiquismo humano no que tange às relações interdependentes entre as funções elementares (naturais) e as funções superiores (culturais). No decurso da história da humanidade a espécie Homo sapiens sapiens desenvolveu uma peculiar forma de adaptação à natureza devido à emergência do trabalho social que permitiu ao ser humano transformar a natureza e, concomitante, assumir o controle do seu próprio comportamento. Por estar em uma posição radicalmente distinta dos demais animais tornou-se necessário o desenvolvimento de novas formas de conduta que permitissem o equilíbrio do humano ao meio, que deixa de ser apenas natural e passa a ser construído historicamente e simbolicamente.

O processo de trabalho, devido ao seu caráter teleológico, orientado a um fim previamente idealizado, conduz o ser a uma “formação de funções novas, a um comportamento novo” (Vygotski, 2012, p. 35). Essa conduta superior possui um ritmo de desenvolvimento próprio e diferenciado que se materializa na articulação de duas linhas de desenvolvimento psíquico: biológico (natural) e o histórico (cultural). Enquanto outras correntes teóricas se esforçam em decompô-las e analisá-las em separado, a Teoria Histórico-Cultural, influenciada pela doutrina da unidade ou monismo de Baruh de Spinoza, advoga que o desenvolvimento cultural se sobrepõe2 aos processos de maturação orgânica, porém, forma-se com ele – dialeticamente – um todo único, fundido entre si, que somente pela via da abstração pode-se diferençar um processo do outro: “na ontogênese aparecem unidas, formam de fato um processo único” (Vygotski, 2012, p. 33). À primeira vista, essa premissa pode parecer contraditória, todavia, o que se coloca em questão é que as funções biológicas são transformadas pela ação das culturais, essas, por sua vez, encontram naquelas o suporte para constituir-se (Pino, 2005). Ainda sobre isso Vigotski sentencia que o “biológico funde-se ao social; o biológico, o orgânico, no pessoal” (Vygotski, 2006, p. 4).

No estudo da adolescência a dualidade entre os aspectos biológicos e culturais levam a uma compreensão errônea do fenômeno. Vigotski (2012) explica que a relação do indivíduo com o meio está estreitamente relacionada aos processos de maturação orgânica, pois amplos os planos – natural e cultural – “coincidem e se amalgamam um com o outro” (p. 36). As mudanças que acontecem nessas linhas desenvolvimentais se intercomunicam e constituem um processo único de formação biológico-social da personalidade. No caso da adolescência, por exemplo, as mudanças advindas da maturação sexual se produzem e se materializam em um meio cultural, passando a ser um processo biológico historicamente condicionado e culturalmente significado. Desse modo, a expressão e o desenvolvimento da sexualidade nesse período não podem ser analisados por contornos apenas biológicos relacionados às funcionalidades dos órgãos reprodutores, mas percebido como um processo histórico, no qual o sujeito modifica as inclinações naturais em formas de comportamento especificamente culturais.

Vigotski inicia sua investigação sobre o desenvolvimento psicológico do adolescente a partir do problema dos interesses. Parece pertinente a escolha desse ponto de partida, pois reafirma seu princípio de que as funções psicológicas culturais, tipicamente humanas, não são automáticas nem se organizam de forma anárquica, mas se vinculam aos interesses que engendram forças motrizes, que variam em cada etapa do desenvolvimento e determinam as mudanças na conduta.

Em síntese, são essas forças motrizes que colocam em movimento os mecanismos de reestruturação/aperfeiçoamento do psiquismo e era urgente captar o processo de desenvolvimento em toda a sua complexidade e não em aspectos facilmente observáveis – “o desenvolvimento psíquico se baseia, antes de tudo, na evolução da conduta e dos interesses da criança, nas mudanças que se produz, na estrutura e orientação do seu comportamento” (Vygotski, 2012, p. 12).

A Psicologia do início do século XX considerava que os interesses eram inatos e condicionados pela natureza biológica dos instintos. Na tentativa de rompimento Vigotski (2012) introduz o conceito de desenvolvimento na teoria dos interesses e defende que “os interesses não se adquirem, se desenvolvem” (p. 18). Nessa acepção há um afastamento da interpretação mecanicista, que entendia a atividade humana como uma soma rígida de impulsos instintivos, ao introduzir a noção de necessidade como sendo a força impulsionadora da ação, é por ela, portanto, que se originam as inclinações e os interesses.

Assim, somente o ser humano em seu processo de desenvolvimento histórico é capaz de criar essas forças através do estabelecimento de necessidades cada vez mais complexas e desvinculadas das necessidades básicas de vida (atreladas exclusivamente à sobrevivência física). A conduta dos seres humanos, portanto, é regida pelas necessidades, sendo a primeira delas a de adaptar-se e pertencer ao meio social, pois “as necessidades humanas se refratam múltiplas vezes no prisma das complexas relações sociais” (Vygotski, 2012, p. 21) ou ainda “a necessidade que é fundamental e determinante de toda vida humana, à necessidade de viver em um meio histórico e social e reconstruir todas as funções orgânicas de acordo com as exigências apresentadas por esse meio” (Vigotski, 2006, p. 3).

A atividade consciente do humano não se vincula de forma exclusiva a motivos puramente biológicos, mas é regida por “complexas necessidades, frequentemente chamadas de superiores ou intelectuais” (Luria, 1991, p. 71). Há, nesses termos, um rompimento com o comportamento ditado pela herança filogenética, colocando o humano como artífice e regulador da sua própria conduta, que deixa de ser condicionada e passa a ser consciente e livre. Essas premissas, tão presentes na Teoria Histórico-Cultural, encontram sua base no marxismo que defende que “o animal produz apenas sob o domínio da carência física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da carência física, e só produz, primeira e verdadeiramente, na [sua] liberdade [com relação] a ela” (Marx, 2008, p. 84).

A atividade humana, devido ao seu caráter volitivo, opera de tal forma que pode entrar em conflito e reprimir as necessidades biológicas. Por mais que a reprodução, por exemplo, seja uma necessidade biológica atrelada à conservação da espécie, em um ambiente social ela passa a ser regida por princípios históricos, ideológicos e políticos, que reconfiguram o ato e a experiência sexual – que deixa de ter contornos apenas reprodutivos e passa a executar-se por meio do erotismo, prazer e do amor sexuado. Na sociedade burguesa “surge um novo critério moral para julgar as relações sexuais. Já não se pergunta apenas – “São legítimas ou ilegítimas?” –; pergunta-se também: “São filhas do amor e de um afeto recíproco?” (Engels, 2010, p. 101).

Um núcleo central para se entender essa dinâmica na adolescência diz respeito à atração sexual humana, quando o outro é visto como objeto do desejo afetivo-sexual. Essa ação, em maioria, é vista como um interesse de ordem biológica, engendrado exclusivamente pelo apogeu de características orgânicas vinculadas à reprodução. Vigotski (2012), possivelmente levando em consideração as ponderações de Engels (2010), reposiciona essa questão ao defender que é “imprescindível tomar em conta à natureza histórica da atração humana, a forma histórica do amor sexual entre os seres humanos” (p. 22). Até então, apenas os humanos no seu processo de desenvolvimento histórico, irrepetível em outras espécies, foram capazes de criar novas forças motrizes para reger suas condutas e sair do jugo do determinismo biológico. Aquilo que nos é dado pela natureza, via transmissão hereditária, deixa de ser o destino na qual “as próprias necessidades naturais têm experimentado uma profunda mudança no desenvolvimento histórico do homem” (Vygotski, 2012, p. 21).

O que Vigotski instaura é a retirada dos interesses do domínio biológico ao defender que estes se constituem com características especificamente humanas e culturais, que os sujeitos, ao superarem os limites de sua natureza animal no processo de vida social, deixam de ser regidos por impulsos instintivos, passando a agir de forma livre e consciente, ou seja, orientando e dominando seus próprios interesses.

Na adolescência os conteúdos dos interesses são radicalmente modificados: a maturação sexual, em seus aspectos orgânicos e sociais, reconfigura a situação social de desenvolvimento do indivíduo. As rápidas alterações físicas, marcadas por mudanças hormonais que impactam no tamanho e na forma do corpo, são significadas culturalmente modificando a dinâmica das relações e a estrutura do meio social. O corpo a que nos referimos aqui não se reduz à estrutura física de um organismo vivo, mas o entendemos como signo – detentor de dimensões semióticas.

As mudanças na altura, peso e a maturação sexual, embora possuam certa universalidade, impactam os adolescentes de forma distinta, pois são significadas em um meio sociocultural que atribui expectativas de performance psicológica e corporal3. Esse novo sistema que amplia as vivências do sujeito o aproximando do universo adulto faz emergir aspirações e necessidades culturais cada vez mais complexas, principalmente relacionadas à inserção na dinâmica das relações sociais, reconfigurando a direção dos interesses, que agora assumem contornos mais complexos se comparados à infância.

Os interesses, nessa conjuntura, se constituem como necessidades culturais. Essas se manifestam sobre as bases das necessidades biológicas. O desejo de relacionar-se afetiva e sexualmente, por exemplo, tem suas premissas na reconfiguração hormonal à qual o corpo humano experiencia na adolescência. Porém, as inclinações desse interesse são circunscritas em delineamentos culturais e históricos marcados pelas condições objetivas de vida material e social.

Com experimental clareza temos podido observar como a maturação e o surgimento de novas atrações e necessidades internas ampliam infinitamente o círculo de objetos que possuem força incitadora para os adolescentes, como esferas inteiras de atividades, antes neutras para eles, se convertem agora em momentos fundamentais que determinam a sua conduta, como, a partir do novo mundo interno, surge para o adolescente um mundo exterior completamente novo (Vygotski, 2012, p. 11).

Vigotski (2012) argumenta que uma das peculiaridades centrais da adolescência se caracteriza por ser “período de ruptura e extinção dos velhos interesses e por um período de maturação de uma nova base biológica que permite mais tarde o desenvolvimento de novos interesses” (p. 28). Essas alterações significativas no sistema das necessidades-interesses na adolescência colocam em crise a instabilidade adquirida na idade escolar impulsionando mudanças significativas no psiquismo e no comportamento. Assim, só é possível compreender o desenvolvimento psíquico do adolescente quando se apreende que os interesses (e as necessidades que os engendram) mudam nessa fase de forma radical. A maturação biológica e as formas como ela são significadas no meio social reorganizam a situação social de desenvolvimento do adolescente, que o coloca em outro lugar de cobranças e expectativas sociais.

O universo infantil, marcado pela tutela e cuidado, é rompido de forma brusca ao exigir do adolescente uma atuação mais autônoma no mundo – seja no delineamento de perspectivas de futuro vinculado a escolhas profissionais, seja no exercício de dinâmicas afetivas-sexuais: “a transformação da crisálida em mariposa pressupõe tanto a extinção da crisálida como o nascimento da mariposa; toda evolução é, ao mesmo tempo, involução (Vygotski, 2012, p. 25). Nesse contexto, de alteração de papel social, surgem para o adolescente novos interesses, ao ponto que desaparecem os velhos, esse processo de “ascensão a um nível novo significa o desaparecimento do velho e este largo processo de extinção dos interesses infantis na idade de transição, é particularmente sensível e com frequência doloroso” (Vygotski, 2012, p. 25).

A relação com o mundo (dos objetos e das relações sociais) é drasticamente reajustada na adolescência. Na idade pré-escolar, por exemplo, as crianças anseiam por agir diretamente sobre o mundo, porém, devido as suas limitações corporais e pela organização adultocêntrica dos espaços, ocorrem impedimentos que freiam esses desejos, que são reconfigurados através da brincadeira de faz de conta. Elas querem ir à Lua, cuidar de um bebê, dirigir uma locomotiva, mas esses desejos não podem ser realizados de forma objetiva, e, por isso, utilizam a imaginação para criarem narrativas, cenários, objetos, desenhos etc. que passam a compor o cenário lúdico e permitem o acesso ao mundo, até então, intangível: “É disso que surge a brincadeira, que deve ser sempre entendida como uma realização imaginária e ilusória de desejos irrealizáveis (Vigotski, 2008, p. 25). Ao brincar, a criança cria objetos (o graveto se transforma em arma) e dramatiza as relações sociais (a menina se torna a professora), diferentemente do adolescente, que experiencia um acesso cada vez mais direto e menos limitado ao mundo. O adolescente começa a adentrar de forma mais atuante no círculo das relações, introjetando suas regras e desvendando os diversos papéis sociais que desempenha (ele precisa performar como filho, estudante, esportista etc.).

Essa modificação do sistema de interesses provoca uma crise no desenvolvimento que coloca em marcha mudanças significativas na estrutura da personalidade. Vigotski (2012) explica que o fundamento das crises se situa na reformulação da vivência interior, “reestruturação que radica na mudança do momento essencial que determina a relação da criança com o meio, isto é, na mudança das suas necessidades e motivos que são os motores do seu comportamento” (p. 285). No processo simbiótico das transições corporais e da alteração da situação social de desenvolvimento são engendrados interesses e necessidades cada vez mais complexos que orbitam em torno da inserção do adolescente no sistema das relações sociais de forma mais autônoma. O meio social requer deles uma inserção mais atuante na esfera das relações humanas, de tal forma que seja possível uma atuação que assimile as funções sociais exercidas pelas pessoas e introjete as normas de conduta socialmente elaboradas.

A reestruturação de necessidades e motivos, a revisão dos valores é o momento essencial na passagem de uma idade a outra. Ao mesmo tempo também se modifica o meio, isto é, a atitude da criança perante o meio. Começam a lhe interessas coisas novas, surgem novas atividades e sua consciência se reestrutura, se entendemos a consciência como a relação da criança com o meio. (Vygotski, 2012, p. 385)

Assim sendo, a passagem da idade escolar para adolescência é compreendida pela periodização histórico-cultural como um dos períodos críticos que marcam o ciclo do desenvolvimento humano. Como já argumentamos, a crise não se reduz aos aspectos considerados negativos, como a rebeldia e isolamento, por exemplo, esses atributos se manifestam devido às mudanças abruptas que se efetivam em um curto espaço de tempo ocasionando inadaptação e ânsia por alcançar as expectativas culturais impostas pelo meio social.

O período crítico não pode ser interpretado apenas em níveis biológicos, pois não são as transformações quantitativas fisiológicas que forjam a instabilidade, mas sim o meio social: “a crise é produto da reestruturação das relações sociais recíprocas entre a personalidade da criança e as pessoas em seu interno” (Vygotski, 2012, p. 375). A crise da adolescência possui um caráter positivo, pois abrange uma dimensão criadora: “o desenvolvimento não interrompe jamais sua obra criadora e até nos momentos críticos se produzem processos construtivos” (Vygotski, 2012, p. 259). Na passagem da infância para a adolescência apresenta-se a emergência de uma forma superior de atividade intelectual, pensamento por conceitos, que marca a efetivação do desenvolvimento, afinal “desenvolvimento é um processo de formação e surgimento do novo” (Vygotski, 2012, p. 260). Essa nova estrutura da consciência, adquirida na adolescência, modifica drasticamente todo o sistema de relações do indivíduo, seja com a realidade externa e consigo mesmo.

É interessante observar que Vigotski não caracteriza a adolescência, como um todo, como uma época crítica, pelo contrário, ele a coloca entre as idades estáveis interposta entre a crise dos 13 anos e a crise dos 17 anos. Para ele, essa inclusão é uma postura de coerência as suas defesas e de crítica às teorias que reduziram esse período a uma “patologia normal e a uma profundíssima crise interna” (Vygotski, 2012, p. 261).

Nesses contornos, a adolescência é caracterizada pelo “período de mudanças internas orgânicas, mas também pela reestruturação de todo um sistema de relações com o meio” (Vygotski, 2012, p. 26). O erro crasso, portanto, estava em que “os cientistas biologicistas esquecem com grande frequência que o adolescente não é apenas um ser biológico, natural, mas também, histórico, social” (p. 36). O que temos argumentado até aqui é que Vigotski estabelece a impossibilidade de se reduzir o estudo da adolescência apenas aos aspectos biológicos, pois essa fase do desenvolvimento apresenta como traço principal a dialética biológico-cultural: “esse período consiste na maturação sexual e ao mesmo tempo é a etapa da maturação social da personalidade” (Vygotski, 2012, p. 36).

Aqui mais uma vez percebe-se o ineditismo de Vigotski ao resolver os imbróglios da Psicologia pelas vias da dialética. A maturação sexual não é apenas um fenômeno biológico, mas se circunscreve em contornos políticos-ideológicos que se materializam em um campo essencialmente social e historicamente demarcado. As transformações corporais são significadas pela cultura que impõe ao adolescente uma série de expectativas e os reposiciona na dinâmica das relações sociais, ou seja, a posição que ocupavam no sistema societário se altera.

Esse penetrar em uma nova situação social de desenvolvimento exige outra forma de atuação no mundo e, consequentemente, uma configuração de pensar mais complexa que permita significar essas experiências sociais – agora mais alargadas e profundas. Conforme destaca Leontiev, o período da adolescência se distingue dos demais por ser “o começo de um ativo trabalho do sujeito sobre si mesmo, é o período da formação da consciência moral, dos ideais, do desenvolvimento da autoconsciência” (Leontiev, 1987, p. 57).

A particular condição biológico-social do adolescente – que proporciona o enriquecimento da experiência e a expansão da relação com o meio – faz emergir “algo essencialmente novo no seu pensamento” (Vygotski, 2012, p. 51). Essa reconfiguração da operação psicológica marca o “potente auge do desenvolvimento intelectual” (Vygotski, 2012, p. 49) que vai modificar todo o sistema da personalidade. O advento a uma forma de pensamento mais complexa não se reduz à maturação das funções psicológicas elementares, mas é um processo eminentemente social, produto do desenvolvimento histórico da humanidade, que se dá a partir “dos problemas propostos, da necessidade que surge e é estimulada, dos objetivos colocados perante o adolescente que o meio social circundante o motiva e o leva a dar esse passo decisivo no desenvolvimento do seu pensamento” (Vigotski, 2001, p. 171). O desenvolvimento de novas formações psicológicas, conforme já colocamos, se objetifica pela ação das atividades-guias – responsáveis por mudanças estruturais no psiquismo e na personalidade em dada idade.

Identificar a atividade-guia na adolescência é um desafio, pois a prática de estudo, típica da idade escolar, continua a exercer protagonismo. Atrelada a ela, o trabalho passa a ocupar espaço fundamental junto com um formato de comunicação, chamada de íntima pessoal, na qual o conteúdo principal é o outro. A educação escolar assume um protagonismo importante nessa etapa, pois através dela o adolescente se coloca em atividade de estudo (por meio de anotações, pesquisas, leituras etc) para acessar e se apropriar dos conteúdos científicos. Porém, nesse entrever a sociedade impõe que o estudo precisa estar direcionado a uma perspectiva de futuro vinculado à escolha profissional, assim “o trabalho passa a ocupar o primeiro plano” (Vygotski, 2012, p. 41) e a impulsionar uma experiência social mais ampla e autônoma.

Elkonin (2017) percebeu que na adolescência também se consolidam as relações íntimas pessoais em um formato específico de comunicação na qual os pares assumem um papel determinante: “existem bases para supor que a atividade principal nesse período de desenvolvimento é a atividade de comunicação, que consiste no estabelecimento de relações com os colegas sobre a base de determinadas normas morais e éticas” (p. 167). Na mesma linha Davidov (1986) estabelece que a atividade de comunicação íntima pessoal se materializa por uma necessidade de o adolescente comparar-se e identificar-se com os adultos e com os parceiros de mesma idade, com o propósito de “encontrar modelos para a imitação, construir, segundo esses modelos, suas relações com as pessoas” (Davidov, 1986, p. 83). Apesar de não ser tematizado por Elkonin (2017) e nem Davidov (1986), supomos que esse formato de comunicação também se estabelece impulsionado pelas dinâmicas afetivas-sexuais que nessa etapa assumem características próprias: o outro como objeto de desejo, o rito do namoro, a descoberta do corpo como fonte de prazer etc.

Na adolescência, por conseguinte, vemos emergir uma renovação, aperfeiçoamento e reestruturação no conteúdo do pensamento devido à formação dos conceitos. Nessa época é requerido do adolescente o domínio de um conteúdo novo, que impulsiona o desenvolvimento e os mecanismos de complexificação do pensamento. Em grande medida, esse controle diz respeito aos mecanismos que regem a ordem social, que são exteriores e anteriores ao sujeito, como, por exemplo, as convicções, interesses, concepção de mundo, normas éticas, regras de conduta etc são interiorizadas, transferindo-se para a personalidade. Assim, os modos como as pessoas se relacionam (dimensão interpsicológica) são convertidos em formas individuais de comportamento (plano intrapsicológico): “a natureza psicológica da pessoa é o conjunto das relações sociais, transferidas para dentro e que se tornaram funções da personalidade e formas da sua estrutura” (Vigotski, 2000, p. 27).

Essa relação diferenciada com o mundo oportuniza ao adolescente ascender a uma “consciência social objetiva” (Vygotski, 2012, p. 64) que permite desvelar as ideologias que regem as relações e as estruturas científicas que explicam os fenômenos do mundo objetivo. Vigotski anuncia que as diversas esferas da vida cultural – conhecimento, ciência, filosofia e arte – só podem ser corretamente assimiladas por conceitos. Isso não quer dizer que a criança não se apropria das verdades científicas ou da vivência estética, mas o faz “de maneira incompleta, não adequada” (Vygotski, 2012, p. 64) em decorrência de sua participação pouco ativa nas dinâmicas sociais. O adolescente, ao contrário, quando assimila esse conteúdo “que tão somente em conceitos pode apresentar-se de modo correto, profundo e completo, começa a participar ativa e criativamente nas diversas esferas da vida cultural que tem diante de si” (Vygotski, 2012, p. 64).

O uso da palavra ativa nesse citação não é casual, pois Vigotski, assim como Marx, vislumbra uma sociedade em que os sujeitos possam ser essencialmente ativos e no sistema da periodização histórico-cultural isso se torna possível na adolescência, pois o pensamento por conceitos permite entender as relações e os fenômenos em sua essência, estrutura e dinâmica, isto é, em sua totalidade. Podemos afirmar, desse modo, que o pensamento por conceitos altera radicalmente a apreensão do indivíduo sobre o mundo que o cerca, ao passo que também transforma sua ação sobre o meio, que passa a ser mais consciente, emancipada e crítica. Assim sendo:

Tão somente aqueles que os abordam com a chave dos conceitos estão em condições de compreender o mundo dos profundos nexos que se ocultam atrás da aparência externa dos fenômenos, o mundo das complexas interdependências e relações dentro de cada área da realidade e entre suas diversas esferas. (Vygotski, 2012, p. 64)

Para não se cair em um simplismo cultural ou em interpretações ingênuas, torna-se importante demarcar que a complexificação do pensamento, que chega ao seu coroamento através dos conceitos, é um processo paulatino que envolve a qualidade das relações sociais e a apropriação do saber sistematizado através dos conteúdos científicos desenvolvidos e acumulados pela humanidade. Não basta estar no meio social, como se o conteúdo da experiência humana fosse absorvido de forma passiva, é necessário apropriar-se qualitativamente dele, de tal forma que ele passe a pertencer ao patrimônio individual do sujeito. Conforme lembra Marx, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstância de sua escolha” (2011, p. 17) dado que o meio social, nas suas entranhas de classe, limita o desenvolvimento pleno a um determinado tipo social hegemônico em seus marcadores de raça, biotipo físico-mental, gênero e sexualidade.

O acesso irrestrito aos bens culturais e relacionais, que leva ao pensamento por conceitos, precisa ser de alcance universal, como uma via de desmantelamento das estruturas capacitistas, homofóbicas, racistas e de classe que estruturam e sustentam a sociedade capitalista. O pensar por conceitos é uma possibilidade, que se materializou ao longo do desenvolvimento histórico da humanidade, porém a sua ascensão não é automática e em condições de subalternização e cerceamentos pode não se materializar. Afinal, em uma sociedade capitalista, onde a exclusão e exploração alicerçam as relações, não é objetivo que uma forma de pensamento que permita “compreender a realidade, aos outros e a nós mesmos” (Vygotski, 2012, p. 73) se universalize. Uma sociedade efetivamente livre e emancipada só é possível através do acesso universal e democrático ao conhecimento que permita que todos os sujeitos ascendam ao pensamento por conceitos.

Considerações

Neste artigo buscamos dissertar sobre as teorizações dos precursores da Teoria Histórico-Cultural, em especial L. S. Vigotski, sobre o problema da idade colocando em tela a adolescência. Em discussões que envolvam a educação escolar e práticas clínicas cujo público pertença a essa fase do desenvolvimento nos parece salutar desvelar a estrutura e dinâmica do funcionamento psíquico de tal idade a fim de nos afastarmos de noções maturacionais e naturalizantes que feitichizam e estereotipam a adolescência.

Em contrafluxo a outras correntes psicológicas hegemônicas que reduzem essa fase do desenvolvimento humano a conflitos advindos da reconfiguração da sexualidade e ao aparecimento das características sexuais secundárias, a Teoria Histórico-Cultural se interessa em compreender a adolescência de forma material e contextualizada, ou seja, percebê-la como um constructo histórico em que aspectos sociais, políticos e ideológicos forjam o sujeito adolescente.

O foco desloca-se do ser apenas biológico e concentra-se na situação social de desenvolvimento que oportuniza ao adolescente uma revolução no seu modo de pensar, que ao complexificar-se passa a operar através dos conceitos – reestruturando o psiquismo, a personalidade e as relações com o meio circundante. Nosso intuito neste texto foi demonstrar que a idade e as fases do desenvolvimento a ela subjacentes não podem ser cronometradas e nem reduzidas a um dado astronômico demarcado no calendário, devendo assumir prevalência a análise da situação social do desenvolvimento e a interpretação de que os ciclos vitais são variáveis e se constituem na dialética biológico-social.

Ao analisar a adolescência em textos escritos nos anos 30 do século XX, Vigotski rompe com o dualismo cartesiano, marcado pelo separatismo natureza-sociedade, na defesa de que o desenvolvimento humano precisa ser analisado como uma totalidade que compreende aspectos biológicos e culturais. O argumento angular é que a especificidade do psiquismo humano não contempla apenas a evolução biológica, como um processo linear e universal, deslocado das relações construídas no terreno da história e da cultura.

Na análise da adolescência o conceito de história é central, pois diz respeito à relação dialética entre a filogênese (história do desenvolvimento biológico da espécie) e ontogênese (história do desenvolvimento cultural individual). No entrever e no entrelaçamento desses dois planos que se defende que a constituição da consciência do adolescente é um processo que se materializa circunscrito na cultura. É nesta arena (ideológica, política e econômica) que as expressivas mudanças biológicas são significadas demarcando uma situação social do desenvolvimento específica que impulsiona a oferta de atividades que impulsionam o desenvolvimento e complexificam o pensamento.

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1 Usaremos atividade-guia em consonância com as traduções mais recentes feitas por Zoia Prestes. É interessante notar que a tradutora em Vigotski (2008) optou pelo termo atividade principal e em Vigotski (2021) por atividade-guia.

2 Ao falarmos em sobreposição nos referimos que no transcurso do desenvolvimento das funções psicológicas superiores não se modifica o tipo biológico do indivíduo. Quando o sujeito se torna capaz de construir órgãos artificiais – ferramentas – há um refinamento das ações sobre o ambiente sem que se altere a estrutura física do seu corpo. Enquanto nos demais animais há uma dependência exclusiva aos limites do corpo no que tange à atuação sobre a natureza, ou seja, está circunscrita no código genético, no humano essa ação é aperfeiçoada e vincula-se à criação de instrumentos que expandem as fronteiras do corpo. Assim, o humano liberta-se das condições estritamente biológicas e os órgãos artificiais operam em substituição aos naturais.

3 Contemporânea de Vigotski, a norte-americana Margaret Mead, na esteira dos estudos antropológicos, percebeu que a adolescência era narrada no Ocidente como um período conturbado, marcado por conflitos e inadaptações. Nessa conjuntura, indaga-se: “as turbulências que atormentam nossos adolescentes se devem à natureza da adolescência em si mesma ou à civilização?” (Mead, 2015, p. 23). Para responder essa questão, adentra, por volta de 1925, em Samoa, sociedade remota da Oceania, e percebe que nessa localidade a transição da infância para a vida adulta era marcada por certa tranquilidade, em grande medida pelas questões que envolvem sexo, gravidez etc., serem tratadas de forma despretensiosa, ou seja, não eram transformadas em tabus nem espetacularizadas.

Trabalho realizado no Centro Universitário Estácio de Brasília e Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal, Brasília, DF, Brasil.

Recebido: 07 de Abril de 2023; Aceito: 31 de Julho de 2023

Correspondência: Fabrício Santos Dias de Abreu SQS 304 Bloco H apto 105 – Asa Sul – Brasília, DF, Brasil – CEP 70337-080 E-mail: fabra201@gmail.com

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

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