Introdução
No ocidente, os animes são conhecidos como animações, ou desenhos animados japoneses, enquanto mangás são histórias em quadrinhos japonesas. Os animes se popularizaram no Brasil nos anos de 1990, sendo hoje um dos países que mais consomem animes do mundo (Abbade, 2017). Os animes são consumidos pelos brasileiros das mais diversas formas e canais, possuindo streamings especializados nessa mídia como Crunchyroll e Funimation, além de streamings gerais que possuem essas mídias, mesmo não sendo o foco principal, como Netflix e Amazon Prime Video.
Esse interesse e influência da cultura nipônica atravessa as crianças e adolescentes em seus cotidianos e seus interesses, inclusive no contexto escolar. Coelho e Gonçalves (2011, p. 590) afirmam que é um campo relativamente amplo, porém é “necessário que outros estudos sejam realizados para que se possa entender o poder e extensão [que os animes e mangás] possuem no Brasil e, além disso, desvendar os processos pelos quais essa expansão ocorre”.
Para as pesquisadoras, o estudo sobre essas mídias se mostra relevante dentro da psicologia, uma vez que cabe à área, entre outras tarefas, compreender e analisar os processos de constituição dos sujeitos e as formas de favorecimento de seu desenvolvimento. As lacunas acadêmicas e a necessidade de repensar as práticas educativas que se interligam aos aspectos psicossociais próprios do sujeito justificam a relevância dessa pesquisa.
Desse modo, este estudo buscou entender como as investigações em psicologia e em educação têm compreendido os animes e mangás. Objetivou-se conhecer as produções científicas recentes dentro dessas duas áreas que pesquisam sobre essas mídias e não as consideram, apenas, produtos de consumo, mas sim ferramentas de ação e intervenção.
Método
Para responder o objetivo deste estudo, a revisão integrativa de literatura mostrou-se o instrumento mais vantajoso, pois a construção de uma análise ampla da literatura que esse tipo de revisão propicia contribui para discussões sobre métodos e resultados de pesquisas, além de auxiliar reflexões sobre a realização de futuros estudos (Mendes et al., 2008).
Primeiramente, foi definida a pergunta norteadora: “Como os estudos em psicologia e em educação têm compreendido os animes e mangás?”. Depois, buscamos definir as informações a serem extraídas dos estudos selecionados utilizando as bases de dados e estabelecendo critérios de inclusão e exclusão (Mendes et al., 2008). É necessário que a busca nas bases de dados seja ampla e diversificada e a determinação dos critérios deve estar em concordância com a pergunta norteadora, buscando a definição dos descritores e dos critérios de inclusão e exclusão (Souza et al., 2010).
Para a presente pesquisa, realizou-se uma busca nas seguintes bases de dados: Scientific Electronic Library Online Brasil (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). A escolha dessas bases buscou acessar uma ampla produção sobre a temática.
Além disso, para que pudéssemos ampliar a possibilidade de resultados, foram realizadas combinações de buscas apresentadas na Tabela 1. Aplicamos os operadores booleanos “AND” combinando um termo da coluna “Palavras-chaves A” com outro termo da coluna “palavra-chave B”.
Tabela 1 : Combinação de palavras-chave utilizadas
| Idioma | Palavras-chaves A | Palavras-chaves B |
|---|---|---|
| Português | [Anime] [Mangá] | [Psicologia da Educação] [Psicologia Escolar] [Psicologia] [Escola] [Educação] [Psicologia Sócio-histórica] [Psicologia Histórico-cultural] |
| Inglês | [Anime] [Manga] | [Educational Psychology] [School Psychology] [Psychology] [School] [Education] [Cultural Historical Psychology] [Cultural Historical Activity Theory] |
Fonte: Elaboração própria
Além da questão norteadora, foram elaborados alguns critérios de inclusão e exclusão para a seleção das teses, dissertações e artigos. Para os critérios de inclusão, foram utilizados: produção dos últimos 10 anos (2012 a 2022); produções das áreas da psicologia e/ou da educação; produções em português, inglês e espanhol; produções disponíveis na íntegra.
Para os critérios de exclusão, foram utilizados: produção repetida em outra base de dados; não esteja correlacionado às mídias japonesas “Animes” e/ou “Mangás”; editoriais, manuais, livros e capítulos de livros; pesquisas que consideram essas mídias apenas como produto de consumo ou análise midiática não interligando com a psicologia ou com a educação.
As buscas ocorreram nos meses de junho e julho de 2022. A seleção inicial foi feita por meio da leitura de seus títulos e resumos. Se houvesse dúvidas em relação ao conteúdo, a produção foi lida na íntegra.
Observamos em alguns bancos de dados que muito dos achados não consideravam a palavra “anime” como uma animação japonesa em si, abrangendo palavras parecidas como “animais” e “animal”. O mesmo aconteceu com a palavra “mangá” que não era relacionada à história em quadrinho japonesa, mas também à fruta “manga”. Os achados relacionados a essas mídias estavam misturados às temáticas de biologia, zoologia etc. Achados nesse tipo também foram retirados da análise. Foi utilizando o operador booleano “-” quando possível para tentar remover essas palavras. Ex: “psicologia AND anime -animal”.
Resultados
A Figura 1 exemplifica a procedência das bases de dados analisadas ao resultado dos textos incluídos da revisão integrativa. Nosso corpus amostral foi composto de 15 achados, sendo esses: 6 artigos, 6 dissertações e 3 teses. Os idiomas dos achados foram 12 em português e 3 em inglês, sendo 11 da área da educação, 3 da área da psicologia e 1 contendo as duas áreas concomitantemente. Observou-se, assim, uma predominância na área da educação.
O nosso interesse com essa revisão é apresentar uma visão geral das produções em uma espécie de narrativa com os mapeamentos das produções na investigação da temática. Não iremos centrar em avaliar as evidências científicas produzidas, mas sim em entender como essas produções utilizaram os animes e/ou mangás relacionando a educação e/ou a psicologia.
A análise dos resultados nos conduziu a observar diferentes concepções no modo de enfocar, analisar, discutir e articular essas mídias dentro das áreas pesquisadas. Foi feita uma nova leitura na íntegra dos textos selecionados e propostas algumas categorias temáticas pensando como essas mídias estão sendo observadas em suas pesquisas. As temáticas foram organizadas em três agrupamentos: 1) Auxílio na aprendizagem de conceitos e conhecimento; 2) Reflexão e formação de identidade e/ou imaginário; 3) Influências negativas.
A criação da primeira temática foi feita ao analisar pesquisas que consideram que os animes e mangás possuem a capacidade de auxiliar o aprendizado nas mais diversas formas (Carvalho, 2012; Pereira, 2019; Dalmolin, 2016; Gomes, 2015; Santos, 2014). Algumas dessas pesquisas observam o potencial midiática na construção de outras significações, referentes aos conteúdos escolares como matemática (Pereira, 2019), ciências (Dalmolin, 2016) e português (Gomes, 2015). Outras pesquisas observam uma motivação na leitura e escrita dos alunos proveniente dos mangás (Santos, 2014) e das fanfics criadas as partir dessas mídias (Carvalho, 2012).
Nossa segunda temática foi agrupada pensando em como essas mídias podem influenciar na formação da identidade e do imaginário infantil, assim como auxiliar nas reflexões que essa formação possa atravessar (Nascimento, 2017; Noronha, 2013; Santoni, 2017; Appel et al., 2019; Guerra et al., 2018; Zsila et al., 2018; Cruz, 2017; Rocha, 2012).
Alguns achados analisaram uma obra específica, como Noronha (2013), que analisou Naruto. Nas análises, os autores fizeram uma correlação das obras com os fãs e como eles produzem significações.
Em relação ao processo imaginativo e identitário, Santoni (2017) observa como essas mídias são constituintes da formação de identidades desses jovens, enquanto Noronha (2013) observa um valor heurístico para pensar a construção de uma dinâmica do imaginário. Cruz (2017) discute os esportes dos animes e mangás e as influências das identidades nipônicas em relação aos ocidentais. Seu artigo nos exemplifica no esporte a temática da globalização e a transnacionalização de bens materiais que pode se relacionar aos processos descritos por Noronha (2013) e Santoni (2017) do imaginário e inventário jovem.
Além disso, Noronha (2013) observou como a obra de Naruto apresenta valores heurísticos, interligando com os achados de Rocha (2012) ao observar como essas mídias possuem valores importantes para o contexto educacional como persistência e amizade.
Dentro da psicologia, Guerra et al. (2018) criaram um mangá com a população jovem e relataram a experiência. Foram utilizadas conversações psicanalíticas junto com o mangá considerando a importância de abordagens jovens para um gesto autoral apostado nas singularidades.
Referente à sexualidade, alguns artigos dentro da psicologia mostram os diferentes tipos de interesses de alguns dos espectadores/leitores. Zsila et al. (2018) pesquisam sobre as motivações dos consumidores do gênero yaoi1reforçando os mais diversos interesses sobre as formas de sexualidade e gênero para além da forma binária normativa. O artigo de Appel et al. (2019), por sua vez, realizou uma pesquisa referente ao interesse sexual de companheiras inanimadas (em especial robôs), assim como a timidez, intenções e compras desses produtos. Esse artigo abre o debate sobre uma possível revolução nos relacionamentos interpessoais.
Ainda referente à sexualidade, Nascimento (2017) aprofunda aspectos psicológicos dos personagens do anime sobre as questões de identidade de gênero correlacionando ao local escolar em que se passa a obra e os professores e pedagogos envolvidos.
Enquanto nossos outros achados observaram fatores positivos e favoráveis que essas mídias possuem, os achados de nossa terceira temática apresentam fatores negativos que essas mídias possam apresentar (Setubal, 2015; Coyne et al., 2015).
Setubal (2015) apresenta a análise de um mangá brasileiro específico Turma da Mônica Jovem observando como essa mídia possui um discurso de narrativa simples (linear e pouco complexa), apresentando um consumo de cultura midiática que traz pouco debate e reflexão. Coyne et al. (2015) fazem uma relação entre a leitura de diversos mangás (shonens) e o comportamento agressivo de adolescentes americanos relatando que a agressão dos mangás pode influenciar o comportamento desses adolescentes.
Discussão
Correlacionando as três temáticas elaboradas (Auxílio na aprendizagem de conceitos e conhecimento; Reflexão e formação de identidade e/ou imaginário; Influências negativas) podemos constatar que existem questões potentes para serem analisadas observando os resultados em uma totalidade.
Pensando nas questões psíquicas e sociais, as pesquisas mostram a potencialidade dessas mídias para favorecer a reflexão sobre a cultura e o processo de crescimento da criança e do adolescente, focalizando questões como tecnologia, sexualidade, identidade e gênero.
Appel et al. (2019) pontuam que o grande e crescente grupo de otaku2 no mundo vem se espalhando desde os anos 1980. O “otakismo” chegou no coração da cultura popular abrindo porta para novas tecnologias e interesses desse grupo. Os autores observam nesse grupo uma preferência por mundos ficcionais à realidade cotidiana, além de amizades virtuais às presenciais. Esses interesses abrem possibilidades para um futuro, talvez não muito longe, de preferência entre parceiros virtuais e ficcionais a humanos. De acordo com a pesquisa, se relacionar sexualmente com robôs pode ser um atrativo para esse grupo.
A questão da sexualidade, do sexual e das diversas formas de amor são temáticas muito debatidas nessas mídias, sendo observada entre as pesquisas dentro da área.
Zsila et al. (2018) observam as diversas motivações dos consumidores pelo gênero Yaoi sendo atreladas a diferenças culturais e legais de um país. Os autores dão o exemplo de diversas pesquisas em países diferentes que identificaram essas motivações:
Recentemente, Chou realizou uma pesquisa qualitativa sobre leitores de yaoi de Taiwan e descobriu que as leitoras são motivadas a desafiar tabus sociais, experimentar uma liberdade em relação a restrições de gênero [....] Da mesma forma, Lilja e Wasshede descobriram que os leitores suecos de yaoi expressaram interesse em materiais yaoi por retratarem a igualdade de gênero e seus aspectos sexualmente excitantes. Zhang investigou os motivos de jovens entusiastas de yaoi chinesas e descobriu que desafiar construções tradicionais de gênero, escapismo, voyeurismo e estética são as características mais atraentes da mídia yaoi para mulheres. Nagaike analisou os motivos dos entusiastas yaoi heterossexuais masculinos e concluiu que os espectadores/leitores masculinos desejam se identificar com personagens masculinos feminizados em narrativas que desconstroem os paradigmas sociais da masculinidade, obtendo assim uma compreensão mais profunda de seus próprios dilemas relacionados às convenções de gênero. (Zsila et al., 2018, p. 3, tradução nossa)
Assim, leitoras do sexo feminino podem consumir yaoi como parte de uma rejeição ou resistência às normas patriarcais conservadoras sobre sexo e gênero. Em outras culturas, os fãs podem ler yaoi como uma forma de afirmar e/ou participar de comunidades de direitos LGBTQIA+ rejeitando o binarismo de gênero. Ainda, outros leitores desfrutam do gênero devido às narrativas de romance que evitam estereótipos femininos e masculinos. (Zsila et al., 2018).
Os fãs dessa temática colocam em pauta a sexualidade e as relações de gênero através dessas mídias tanto lendo e assistindo quanto escrevendo e comprando. O comércio de yaoi representou em 2010 ¥2,2 bilhões (aproximadamente U$ 24,5 milhões).
A temática da sexualidade atravessa outros segmentos e gêneros dentro dessas mídias abrindo debates para outros públicos. Cruz (2017) observa como dentro dos animes de esportes (em geral shonen, nomenclatura voltada ao público masculino jovem), Yuri!!! on Ice abre caminhos para a evocação de tópicos da comunidade queer. “Ao ostentar personagens do sexo masculino engajados numa atividade ordinariamente associada a atributos “femininos”, a série pôde criar disjunções entre o imaginário social acerca da patinação e visões estereotípicas de gênero” (Cruz, 2017, p. 1102). O anime teve uma boa recepção no mundo, inclusive no Brasil.
Interligando sexualidade e educação, Nascimento (2017) observa que a ruptura transformadora da quebra de paradigmas tradicionalistas e valores conservadores de um ambiente escolar só podem ocorrer com a presença de professores e pedagogos comprometidos a contemplar o sujeito para além da mera regurgitação de conteúdo. O autor analisa no anime uma migração possível de uma escola em condição de “arena de guerra dos sexos” para um palco de revolução de gênero e quebra de paradigmas correlacionando que “nenhuma revolução é possível no campo da exterioridade se não ocorrer antes no campo da interioridade”. Essa crítica relaciona a necessidade na mudança dos professores e gestores em relação ao conhecimento e aceitação sobre sexualidade e identidade de gênero dos alunos (Nascimento, 2017, p. 130).
Cruz (2017) observa que os papéis e manifestações na cultura dos mangás e animes estão se aproximando com a cultura de massa ocidental fortalecendo debates de temáticas importantes para representatividade e identidade cultural. O autor aborda como isso acontece dentro dos animes de esporte reforçando assim as observações de Norris (2010) ao afirmar que os animes e mangás não devem ser vistos como meros veículos de propaganda a serviço de uma niponicidade, uma vez que esta está sempre sujeita à transformação, negociação ou mesmo rejeição.
Essa utilização das mídias para refletir as temáticas sociais e culturais importantes corresponde às pontuações de Noronha (2013), ao acreditar que a história dos mangás possui símbolos necessários para que o psiquismo infantil avance e impulsione a passagem necessária para a vida adulta. Exemplificando uma obra em especial, a autora acredita que “não nos resta dúvida de que o imaginário infantil pode encontrar no mangá Naruto uma importante referência” (Noronha, 2013, p. 258).
Santoni (2017) pontua que a identificação com tais personagens e histórias dos animes e mangás atua como um mecanismo prazeroso de entretenimento que traz lições de vida capazes de mostrar “que sempre temos desafios pessoais a serem superados e que isso é um processo natural da vida, que é composta por momentos bons e ruins, e cabe a nós escolhermos enfrentar ou recuar diante dos problemas” (Santoni, 2017, p. 120).
Em relação ao contexto escolar, as pesquisas observaram uma situação favorável ao se utilizarem dessas mídias como uma ferramenta que auxilia na aprendizagem, tanto nos fatores de leitura e escrita quanto nas significações diferentes para os conteúdos escolares. Essas observações se aproximam de todas as cinco pesquisas de nossa primeira temática (Carvalho, 2012; Pereira, 2019; Dalmolin, 2016; Gomes, 2015; Santos, 2014), além de se relacionarem com pesquisas de outras temáticas.
Santoni (2017), por exemplo, acredita que elementos da cultura pop (inclusive os mangás e animes) possam atuar como formas lúdicas de se trabalhar no ensino e ajudar na estimulação de interesse dos estudantes em determinadas temáticas. “Há cores, texturas, narrativa visual, elementos históricos, construção de diálogos, percepções visuais, desenhos que são construídos a partir de formas geométricas, além de trabalhar com a subjetividade e ajuda a estimular o trabalho em conjunto” (Santoni, 2017, p. 118).
Apesar disso, Rocha (2012) observa que alguns educadores tendem a se manter em posição de antagonismo e preconceito em relação a essas mídias. O modo como os professores, entrevistados na pesquisa, se referem ao que as crianças dizem se mantém à margem das conversas sobre o tema. Alegam que o anime é “violento demais” e que contém personagens com “nomes complicados”, além de estarem sempre em situação de luta. Os professores da pesquisa alegam que não conseguem entender se as lutas são “do Bem contra o Mal” ou só uma briga “todos contra todos”. Relatam ainda que “ouviram dizer que os bonequinhos estão sempre se lamentando, parece que estão sempre chorando ou resmungando, o que acreditam que gera uma sensação de stress e infelicidade em quem assiste, no caso, as crianças” (Rocha, 2012, p. 3).
Esses relatos de professores sobre a agressividade se correlacionam à pesquisa americana abordada por Coyne et al. (2015). Os autores analisaram 11 mangás diferentes (volumes aleatórios dos best sellers da época e não histórias completas) em que foram encontradas, frequentemente, agressões (em especial física ou verbal) sem justificativas ou consequências. Os autores acreditam que isso pode levar os leitores a ficarem confusos sobre as consequências de um comportamento agressivo no mundo real.
Em uma segunda parte, os autores interligam o resultado dessa análise com uma pesquisa de campo realizada com alunos do Ensino Fundamental. Os autores acreditam que os mangás podem aumentar a probabilidade de uma “imitação subsequente dessa violência” correlacionando o aumento da agressão física desse jovem com o fato deles lerem mangás mais agressivos. O artigo finaliza alertando sobre o consumo, impacto e a preocupação que pais, professores devem ter ao “expor” os jovens a essas mídias, em especial, adolescentes que “podem possuir certos traços de personalidade e características” que fariam com que ao ler o mangá aumentasse a possibilidade de agressividade (Coyne et al., 2015, p. 222, tradução livre).
Essa ideia de consumo e exposição do jovem é pontuada por Setubal (2015) no mangá brasileiro Turma da Mônica Jovem (ou TMJ, versão baseada na história em quadrinho Turma da Mônica). A autora observa que por mais que o TMJ possua temáticas envolvendo ficção, aventura, romance eles ainda não agregam a problemática do consumo em suas tramas, que é observada pela autora como temática central. Para ela, a forma como as temáticas são tratadas não favorece a apreensão de um discurso crítico por parte do público-leitor.
A autora ainda observa que TMJ possui estereótipos típicos como a patricinha loira e fútil, o rapaz esportista, o CDF da turma etc. Ela pontua que existe uma dicotomia muito grande entre os personagens fazendo com que os atores da trama sejam apresentados ou como “bons” ou como “maus”, não deixando margem para comportamentos híbridos.
Porém, Rocha (2012) reforça como é necessária uma postura menos antagonista em relação a essas mídias, em especial na área da educação. A autora acredita que a aproximação dos educadores poderá estimular formas de compreensão e aproximação das crianças.
Caso as professoras se aproximassem um pouco mais das conversas, é bastante provável que soubessem, por exemplo, que nos animes não lutam “todos contra todos”, independentemente de pertencerem ao Bem ou ao Mal, e que os “bonequinhos” não “estão sempre se lamentando, chorando ou resmungando”. Talvez pudessem ouvir alguns meninos dizerem que valorizam a persistência, a amizade, os bons sentimentos que “leem” nos animes, não parecendo, de forma alguma, que estes sejam valores opostos àqueles que educadores costumam assumir como importantes. Talvez, então, as educadoras pudessem colocar sob suspeita a afirmação de que as crianças que assistem a estes desenhos vivem uma “sensação de stress e infelicidade”. (Rocha, 2012, p. 113)
A afirmação da autora nos faz refletir sobre o artigo mencionado de Coyne et al. (2015). A análise dos mangás feita pelo artigo não considerou as obras como uma totalidade, centrando apenas em volumes separados e desconexos, além de criar classificações taxativas ou pragmáticas para a avalição.
Um exemplo seria a classificação criada pelos autores para “Consequência” nos mangás dos achados. As classificações possíveis para a questão da “Consequência” são “Recompensado”, “Punido” ou “Sem Consequências”. Mas como é possível avaliar as consequências dos atos dos personagens em uma obra se não analisar a obra em uma totalidade? As avaliações foram feitas apenas com fragmentos das histórias e não obras por completo.
Outro exemplo seria na categoria nomeada “Gênero”. As classificações possíveis foram “Homem”, “Mulher” ou “Indefinido”, sendo que muitos dos mangás analisados pelos autores têm identidades de gênero mais diversas, inclusive rejeitando a ideia do binarismo de gênero (exemplos: Haku e Orochimaru de Naruto; Giselle Gewelle de Bleach). Além disso, em outros mangás listados só é possível identificar os gêneros depois de ler a obra na totalidade, reforçando novamente a necessidade de analisar em sua totalidade (exemplo Akito Souma de Fruit Basket).
Além disso, o posicionamento em relação à agressividade pontuada pelos autores na segunda parte do estudo não considera a construção de interpretações, significações a partir de outros contextos que não apenas as mídias. Rocha (2012) afirma: “As intepretações são atravessadas por outros fatos, por outras significações produzidas em outros contextos e em outras relações e não unidimensionalmente pelo que está sob o controle da televisão e/ou autores que esta mídia faz circular” (2012, p. 112). Reduzir uma agressividade a uma leitura de um mangá desconsidera o adolescente como um sujeito atravessado por outras significações e contextos, além de desconsiderar os fragmentos positivos que esses mangás possam trazer.
Um exemplo seria a pesquisa com alunos do Distrito Federal realizada por Santoni (2017). O autor percebeu que os mangás e animes ocupam um espaço considerável na vida da maioria dos entrevistados, sendo esses, em geral, consumidores diários. Os alunos observaram que eles começaram a adotar alguns “códigos de ‘honra’ dos personagens, como cuidar uns dos outros, não deixar que os garotos mais velhos tirem vantagens deles e a contar uns com os outros, incluindo nos afazeres escolares (Santoni, 2017, p. 116).
Outra forma de utilização dessas mídias é aproveitar do interesse que os jovens possuem para trabalhar questões e representações subjetivas. Guerra et al. (2018) utilizam os mangás como uma estratégia de composição de autoria dos sujeitos concebendo fala, representação e apresentação subjetiva.
Santoni (2017) observa que a formação de identidade marca os fãs de animes e mangás e não de uma forma ruim, promovendo mudanças no modo de agir, pensar e enxergar o mundo. O próprio autor observa em sua dissertação como essas mídias o marcaram e que de certa forma o motivaram e inspiraram a entrar em uma universidade e na pós-graduação.
E, é bastante gratificante, como professor e acima de tudo, como humano, ver que algo semelhante ao que aconteceu comigo, atua na vida de diversos garotos e garotas, e que talvez estes contatos lhe inspirem em suas aspirações profissionais futuras e como pessoas. (Santoni, 2017, p. 130)
Considerações
A revisão realizada permitiu analisar como os animes e mangás são utilizados nas áreas da psicologia e da educação. Observou uma prevalência dos estudos na área da educação e uma escassez dentro da psicologia.
Nossa revisão identificou três temáticas que se entrelaçam dentro dos processos de desenvolvimento, conhecimento e fortalecimento de identidade de crianças e adolescentes. A discussão dos achados e das temáticas permitiu afirmar que, em geral, o campo da educação tem uma relação positiva com essas mídias, revelando um potencial tanto na aplicabilidade (como recurso educacional) quanto no processo educacional. Os achados em psicologia reforçam um potencial que essas mídias possuem para elaboração de temáticas (como tecnologia, sexualidade, amizade, persistência) considerando a importância de abordagens próximas ao cotidiano e interesses das crianças e adolescentes.
Relacionando os achados em educação e a psicologia, foi observada a necessidade de um ambiente escolar comprometido a contemplar os alunos para além da mera reprodução do conteúdo programático, necessitando uma postura menos antagonista em relação aos animes e mangás. O psicólogo escolar poderia auxiliar os educadores estimulando novas formas de compreensão e aproximação das crianças e adolescentes com o contexto escolar e com o desenvolvimento humano.
Foi possível observar que o uso dos animes e mangás favorece a elaboração e reflexão sobre questões fundamentais para o processo de desenvolvimento da criança e do adolescente, tanto no campo educacional quanto psicológico. Acredita-se que essas mídias possam ser favoráveis no trabalho dos pedagogos, psicólogos e psicopedagogos.














