Introdução
Toda ciência, antes de ser intitulada como tal, possui um embasamento filosófico que subsidia os seus interesses e preceitos que guiam a sua investigação. O Cognitivismo trata-se de movimento filosófico, ou metateoria, que oferece subsídios para o estudo dos processos cognitivos como um todo, que são as bases das Ciências Cognitivas. Destacam-se, dentro desta corrente filosófica, cinco pressupostos: o primeiro refere-se ao processamento cognitivo e ao comportamento explicado por regras; o segundo diz respeito à visão construtivista dos processos cognitivos; o terceiro defende a ideia de que o comportamento humano é guiado por metas; o quarto sustenta a concepção de um sujeito ativo, contrapondo-se à visão positivista de outros tempos; e, por último, o quinto pressuposto resgata a consciência como objeto de estudo legítimo da Psicologia (Penna, 1984). Tais pressupostos serão abordados em mais detalhes adiante.
Os processos cognitivos são o principal foco, e, portanto, objeto de estudo das intituladas Ciências Cognitivas. Estas são um conjunto de ciências que têm como principal objetivo entender os processos envolvidos na aquisição, representação, armazenamento e utilização do conhecimento. Para tanto, dentro deste conceito amplo de ciência, existem áreas do conhecimento que se focam em conceitos específicos que compõem o todo deste processo, como a Linguística, Neuropsicologia, Neurociência, Inteligência Artificial, Linguística e Psicologia Cognitiva (Castañon, 2018). Nesse sentido, as disciplinas como a Neuropsicologia Cognitiva e a Inteligência Artificial ganham destaque ao permitir uma melhor compreensão sobre os pressupostos epistemológicos e metodológicos nas Ciências Cognitivas, e consequentemente, na Psicologia Cognitiva (Castañon, 2006a; Leopoldo & Joselvevith, 2018).
A Psicologia Cognitiva por sua vez pode ser compreendida como área de pesquisa caracterizada pelo estudo da percepção, processamento, codificação, estoque, recuperação e utilização das informações (Castañon, 2007a; Penna, 1984). Inclui tópicos relacionados ao conhecimento, como percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento e outros que podem ser abordados, dependendo da ênfase de determinados autores (Penna, 1984). O surgimento da Psicologia Cognitiva foi influenciado por disciplinas como Filosofia, Matemática, Engenharia, Neurologia e Linguística. A partir dessa multidisciplinariedade, propôs a mudança da perspectiva do objeto de estudo na Psicologia, que na época era delimitado por três principais vertentes, as psicodinâmicas, as humanistas e as behavioristas (Castañon, 2007a).
No Brasil, o Cognitivismo disseminou-se, principalmente, por meio do ensino e da prática da Terapia Cognitiva (Rangé et al., 2007). De fato, dentre as subáreas da Psicologia Cognitiva, a Terapia Cognitiva, que tem como foco o contexto clínico, está ganhando cada vez mais espaço (Castañon, 2007a). No entanto, mesmo com o aumento da popularidade e o elevado número de publicações científicas, as Terapias Cognitivas apresentam escassa participação nas matrizes curriculares dos cursos de Graduação e Pós-Graduação de Psicologia (Neufeld et al., 2015). De acordo com Soares et al. (2020), estudantes universitários de Psicologia percebem a Terapia Cognitiva como uma abordagem eficaz, porém, dentre outras coisas, também a consideram reducionista. Nesse sentido, os autores salientam a necessidade de sua disseminação no Ensino Superior, permitindo que os estudantes tenham um conhecimento adequado sobre a abordagem.
Por sua vez, os pressupostos filosóficos das teorias psicológicas, em geral, são muito negligenciados, seja por ignorância de quais são eles, ou por ignorância da própria existência desses tipos de problematização. No caso dos fundamentos filosóficos da Psicologia Cognitiva, pouco tem sido discutido e publicado (Castañon, 2007a). Tal cenário recebeu atenção no Brasil por parte de Gustavo A. Castañon, que realizou diversas publicações sobre o tema (Castañon, 2005, 2006a, 2007a, 2007b, 2007d, 2010), para qualquer acadêmico que deseje aprofundar seus conhecimentos sobre o Cognitivismo.
Entretanto, ainda se faz necessária a produção de um texto introdutório, para um público pouco familiarizado com o linguajar técnico-filosófico, mas que aborde os pressupostos gerais da Psicologia Cognitiva. Dessa forma, o objetivo deste artigo teórico é descrever, de forma introdutória, os fundamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos da Psicologia Cognitiva.
Fundamentos ontológicos da Psicologia Cognitiva
Para uma definição preliminar, pode-se dizer que a Ontologia é o estudo do que existe. De forma mais ampla, pode-se entender a disciplina da Ontologia com base em quatro tipos de estudos principais: 1) o estudo dos compromissos ontológicos; 2) o estudo do que existe; 3) o estudo das características mais gerais do que existe e de como as coisas se relacionam umas com as outras; e 4) o estudo sobre a própria disciplina da Ontologia (Hofweber & Zalta, 2020). Para atingir os objetivos deste artigo, o foco ontológico adotado será na apresentação dos pressupostos da Psicologia Cognitiva acerca do que existe e de quais são as características mais gerais do mundo e do ser humano.
O que é que existe para a Psicologia Cognitiva?
Em linhas gerais, existem duas vertentes principais acerca da natureza daquilo que conhecemos: o Idealismo e o Realismo (Castañon, 2007a). O termo “Idealismo” é empregado de maneiras diferentes, mas podemos compreender essa doutrina a partir do seu entendimento de que tudo que existe é, em algum sentido, mental. Sendo tudo mental, pode-se pensar que nada pode ser conhecido, sem que esteja em alguma mente (Russell, 2007). Ou seja, de forma muito resumida, para o Idealismo, o que existe só existe em nossas mentes.
Porém, podemos dizer que a Psicologia Cognitiva segue o caminho oposto ao Idealismo, afinal, ela está baseada em uma noção realista de mundo (Castañon, 2007a). A tese realista baseia-se na noção de que os objetos do mundo realmente existem e possuem características que independem de nossas teorias e vontades. Ou seja, nossas representações mentais sempre se referem a objetos que possuem existência independente da nossa mente (Castañon, 2007c). Assim, também de forma resumida, para o Realismo, existe um mundo independente de nossas mentes.
Em um sentido prático, isso significa que, para a Psicologia Cognitiva, as representações, os processos e as estruturas psicológicas que são postulados por ela realmente existem e fazem parte de um mundo real e objetivo (Castañon, 2007a). Assim, para os psicólogos cognitivos, os processos cognitivos que estudam não são meras abstrações ou recursos linguísticos úteis, mas sempre têm relação com a realidade.
Porém, é necessário fazer uma ressalva. No passado, o Realismo se baseou, principalmente, no Objetivismo, que é a tese de que são os objetos que determinam nossas representações sobre eles. Entretanto, atualmente, o Realismo se sustenta no Realismo Crítico. Nesta versão contemporânea de Realismo, nossas teorias e representações sobre a realidade são construídas por nós e condicionam, mas não determinam, nossa forma de ver e pensar sobre o mundo. Logo, quando nos deparamos com algum erro, ou seja, quando não há correspondência entre aquilo que acreditamos ser verdadeiro e aquilo que observamos na realidade, mudamos nossas crenças e teorias, para que se tornem coerentes com nossas observações (Castañon, 2007c).
Sendo assim, quando um psicólogo cognitivo utiliza do conceito de “Memória Operacional”, por exemplo, ele está sustentando a ideia de um fenômeno psicológico real que ocorre na mente de todos os seres humanos, independentemente da descoberta de qualquer cientista. Ao mesmo tempo, está ciente de que se os dados do seu experimento não confirmam a ocorrência de tal fenômeno, ele deverá questionar e adaptar suas crenças aos resultados do experimento e não o contrário.
Qual a visão de mundo para a Psicologia Cognitiva?
Se existe um mundo real e objetivo, independente das nossas teorias e crenças, qual sua natureza? Para essa pergunta, a Psicologia Cognitiva, de modo geral, mas não consensual, se fundamenta em duas visões: o Materialismo e o Determinismo.
Pode-se dizer que a maior parte dos psicólogos cognitivos sustentam a ideia de um Monismo Materialista, ou seja, a ideia de que o Universo e tudo que existe fazem parte de um único mundo físico. Entretanto, nem todos concordam com essa posição. Existem cognitivistas importantes, como Noam Chomsky, que defendem que uma visão dualista do tipo Cartesiana (que, no homem, existe uma divisão entre mente e corpo) pode ser perfeitamente racional e não deveria ser descartada de forma arbitrária (Castañon, 2007a).
Parte dessa disputa decorre da metáfora computacional. Tal metáfora permitiu a adesão de uma versão de Materialismo mais sofisticada e que não sofria dos mesmos problemas de um tipo de fisicalismo radical simplório, que reduziria a mente ao cérebro, ou de um reducionismo comportamental. Por outro lado, sustentava a ideia de que a mente e o cérebro poderiam ser considerados fenômenos distintos, que mereciam foco de atenção e pesquisa, sem que fosse necessária a pressuposição de qualquer tipo de dualismo ou reducionismo (Castañon, 2006b).
Porém, mesmo considerando esta metáfora uma possibilidade de adequação do estudo do mental a uma concepção Materialista, ela não elimina de todo modo pressupostos dualistas. Poderíamos dizer que se trata de um dualismo meramente metodológico, mas, a verdade é que podemos adotar uma completa independência entre dois tipos diferentes de análise, no nível físico e mental, fazendo com que não haja, necessariamente, uma resposta suficiente a esse problema (Castañon, 2007a).
De qualquer modo, podemos concluir que a Psicologia Cognitiva adota uma visão Materialista acerca do mundo, ou seja, assume que há um mundo real e material que é objeto do nosso conhecimento. Porém, não apresenta consenso sobre esse mundo ser monista (ou seja, a ideia de que há apenas um mundo material) ou dualista (ou seja, a crença de que o físico e o mental não se resumem à mesma natureza).
Se há discussão sobre o Materialismo, o compromisso da Psicologia com o Determinismo não é tão claro também. O Cognitivismo, de modo geral, aceita tanto as causas quanto as razões como determinantes dos comportamentos. Assim, para o psicólogo cognitivo, existem processos cognitivos automáticos que se desenvolvem de acordo com leis e podem ser entendidos por meio de causalidades. Em outras palavras, os eventos que ocorrem no mundo não possuem uma intenção para ser. Por exemplo, uma folha da árvore não cai por vontade própria, mas cai por ser o seu processo causal, influenciado diretamente por algo existente no mundo (Castañon, 2007a; Penna, 1984).
O conceito de causalidade também pode ser observado para além do cognitivismo. Nas Ciências Cognitivas, o termo “bottom-up” refere-se ao processamento cognitivo iniciado a partir de um estímulo externo sem a intencionalidade do sujeito. Por exemplo, quando uma pessoa observa uma flor ao chão toda a informação visual é captada pelo sistema visual e processada no córtex pré-frontal, sem que ela tenha a necessidade de tomar alguma decisão, ou seja, é um processo causal (Matlin, 2004).
Porém, no Cognitivismo não se assume que todos os processos cognitivos ocorram da mesma forma, existem processos superiores, criativos e de atribuição de significados que não podem ser compreendidos, apenas, por meio de causas. Nesse sentido, quando consideramos o comportamento dirigido a metas, baseado em valores e compreendemos a consciência como um fenômeno dotado de intencionalidade, passamos a entender o comportamento orientado por razões. Por exemplo, quando temos que tomar uma decisão como responder ou não um e-mail, isso caracteriza o processo de razão, no qual podemos deliberadamente escolher o que fazer frente a um estímulo externo (Penna, 1984).
Tal conceito também pode ser encontrado nas Ciências Cognitivas e é conhecido como “top-down”, isto é, um processamento que o indivíduo faz a partir do que o estímulo provoca. Seguindo o exemplo da flor, muito embora o processamento causal até o córtex ocorra de forma involuntária, o significado do estímulo pode ser dimensionado de acordo com as experiências passadas da pessoa. Uma flor, para alguns, poderia representar amor ou romance; entretanto, para outros, poderia lembrar de um estado de luto ou tristeza. Então, neste caso, o estímulo externo é processado e ganha um significado de acordo com a razão de quem observa (Matlin, 2004).
De fato, ainda que consideremos os dados empíricos das Ciências Cognitivas modernas, até então, tais achados não são suficientes para negarmos que temos controle consciente sobre o que fazemos. Em vez disso, os dados apoiam a ideia de que nem sempre somos livres e nem sempre somos livres da mesma forma, de acordo com as nossas condições e com as ocasiões que enfrentamos. Ou seja, a tentativa de explicar a natureza e demarcar o cognitivo, resultado do cognitivismo, apresenta-se como um dilema para as Ciências Cognitivas (Lavazza, 2019; Reis & Rodrigues, 2019).
Assim como no item anterior, aparentemente, a Psicologia Cognitiva adota uma visão Determinista do Mundo, mas, parece não demonstrar consenso sobre a visão do Ser Humano enquanto determinado puramente por causas. Porém, podemos concluir até aqui que, dentro de uma visão Cognitivista, o Mundo é real, material e determinado.
Qual a visão de Ser Humano para a Psicologia Cognitiva
Ainda que a Psicologia Cognitiva tenha recebido diversas críticas acerca de sua visão sobre o Ser Humano, muitas vezes tais críticas carecem de sustentação teórica. Castañon (2007a) e Penna (1984) descrevem 13 itens que caracterizam a visão de Ser Humano para essa corrente teórica (Castañon, 2007a).
O Ser Humano é dotado de consciência. Esse item parece óbvio, mas, por muito tempo, foi tratado com menor importância pelas tradições dominantes da Psicologia pré-Cognitivismo, como a Psicanálise e o Behaviorismo. Para esta abordagem, a consciência não se resume a um epifenômeno, sem qualquer papel causal nas ações humanas, mas assume um papel interacionista na relação mente-corpo. Dessa forma, a Psicologia Cognitiva retoma a consciência como objeto legítimo de estudo de uma Psicologia científica.
O Ser Humano é ativo. Para a Psicologia Cognitiva, o Ser Humano não é apenas uma máquina passiva às causalidades do Universo, mas sim alguém que busca ativamente metas, constrói suas próprias estruturas cognitivas e atribui ativamente significado às suas experiências.
O Ser Humano é movido por causas e razões. As causas ocorrem em função da natureza física e química que compõem o Ser Humano. Dessa forma, nesse nível de análise, estamos sujeitos às mesmas leis físicas e químicas que governam o Universo do qual fazemos parte. Porém, em decorrência da atividade de todo esse sistema, propriedades emergentes da atividade cerebral, como a consciência, passam a ter outro nível de determinação: as razões. Uma vez que explicações baseadas em razões são adotadas, também passamos a considerar a noção de escolha e liberdade, culminando em uma visão oposta à visão de Mundo e Ser Humano mecanicista, adotada pelo Positivismo.
O Ser Humano é orientado a metas. A ideia é de que o Ser Humano não pode ser adequadamente descrito, previsto ou compreendido em termos de estímulo-resposta; afinal, toda ação humana é prospectiva. É fundamental compreender as metas, planejamento e estratégias conscientes, para poder explicar as ações de um indivíduo.
Ser Humano é um processador de informação. Nesse item, temos a famosa metáfora computacional do Cognitivismo, a ideia de que o Ser Humano é um processador de informação que engloba a noção de que a atividade humana está o tempo todo ocorrendo por meio da recepção, decodificação, transformação, armazenamento, recuperação e utilização de informações. Porém, vale ressaltar que o Cognitivismo sempre considerou a metáfora do computador uma linguagem útil para abordar os fenômenos cognitivos, sem fazer qualquer tipo de redução do Ser Humano a essa máquina. Ele é um processador de informação, mas, não apenas isso.
O Ser Humano tem seus processos cognitivos governados por regras. O processamento, citado no item anterior, não ocorre ao acaso, ele segue etapas e estruturas em forma de regras. São como o sistema operacional de nossa mente e podem ser consideradas inatas, ou, no mínimo, com uma tendência para desenvolvê-las.
O Ser Humano possui um inconsciente cognitivo. Como afirmado acima, a atividade humana ocorre por meio do processamento de informação; porém, em grande medida, as estruturas e regras que operam esses processos ocorrem de modo involuntário (ou automático). Isso se deve pelo fato de que muitos desses processos estão inacessíveis, ou dificilmente acessíveis, à nossa consciência.
O Ser Humano constrói as regras que regem sua cognição. De modo geral, os cognitivistas apoiam a ideia de que, no mínimo, a maior parte das regras, processos e estruturas que orientam o processamento de informações do ser humano são construídas por meio das interações que os indivíduos estabelecem com o meio.
O Ser Humano possui tendências inatas. Apesar da aparente incoerência com o tópico anterior, um dos pressupostos da Psicologia Cognitiva é a crença de que estruturas muito básicas da cognição são inatas, ou, no mínimo, que possuímos uma tendência inata para desenvolvê-las. Assim, nascemos com um programa básico que, na medida em que interage com o meio, vai sendo reprogramado e aperfeiçoado.
O Ser Humano reage a significados atribuídos. Para a Psicologia Cognitiva, as pessoas não reagem a estímulos físicos, mas aos significados atribuídos a eles. Assim, distancia-se de qualquer tipo de visão behaviorista, ao incluir na sua explicação da ação humana a atribuição de significado como um mediador do comportamento.
O Ser Humano tem emoções que atuam através das cognições. O estudo das emoções e motivação ainda pode ser considerado o grande ponto fraco da Psicologia Cognitiva, por uma conveniência metodológica. Afinal, por muito tempo optou-se por estudar os processos cognitivos independentemente das emoções e motivação. Porém, estes fenômenos não deixaram de existir ou de receber atenção de estudiosos da cognição. Em geral, os cognitivistas assumem que tanto as emoções quanto a motivação ocorrem de modo subordinado às cognições, por meio da atribuição de significado aos eventos no mundo.
O Ser Humano é epistemicamente motivado. Parte da nossa motivação é meramente cognitiva, ou seja, voltada para a busca de conhecimento, diretamente ligada a uma busca por sentido. Para a Psicologia Cognitiva, o Ser Humano é um caçador de consistência, como um cientista ingênuo que busca compreender o mundo e, principalmente, o seu comportamento e o das outras pessoas.
O Ser Humano é constituído de mente e corpo. A Psicologia Cognitiva assume uma distinção clara entre o físico e o mental. Inicialmente, por meio da metáfora do computador, em que se assumiu que poderia haver dois níveis distintos de análise do ser humano, assim como dividimos a análise do hardware do software do computador. Nesse sentido, um psicólogo cognitivo estaria muito mais interessado em como o ser humano utiliza os processos cognitivos, do que, necessariamente, onde eles ocorrem.
Todos os pressupostos citados acima estão diretamente relacionados com a terapia que se baseia na Psicologia Cognitiva, isto é, a Terapia Cognitiva. A concepção de que o homem atribui significados ao mundo e reage a isso é um dos principais focos terapêuticos desta abordagem. A visão de homem como constituído por mente e corpo, sujeito a emoções que atuam através das cognições, criador de regras que regem a cognição e que possui tendências inatas também é facilmente detectável na Terapia Cognitiva, por este motivo, torna-se ainda mais relevante conhecer os pressupostos gerais da Psicologia Cognitiva, uma vez que interferem de forma direta no manejo clínico desta terapia (Beck, 2021).
Fundamentos epistemológicos da Psicologia Cognitiva
O termo “epistemologia” deriva de duas palavras gregas, a “episteme”, que pode ser entendida como “conhecimento” ou “compreensão”, e a palavra “logos”, que pode ser entendida como “relato”, “argumento” ou “razão” (Steup & Neta, 2020). A Epistemologia, enquanto campo filosófico, está preocupada em responder perguntas acerca do conhecimento. Alguns exemplos das mais diversas questões estudadas no campo epistemológico podem ser representados por dúvidas como: “o que é o conhecimento”, “qual é a sua origem, ou natureza?” e “como adquirimos o conhecimento?”.
Qual a Natureza do conhecimento para a Psicologia Cognitiva?
Partiremos da questão acerca da natureza do conhecimento. Para a Psicologia Cognitiva, o conhecimento é conjectural, isto significa que, na busca pela verdade, o conhecimento é uma crença verdadeira justificada, é um modelo lógico que corresponde à realidade de um modo aproximado, mas nunca por completo. Este compromisso epistemológico adotado pela Psicologia Cognitiva demonstra um otimismo epistemológico, uma concepção criticista em relação à busca pelo conhecimento, como fica evidente ao buscar conhecer padrões e leis gerais de funcionamento da mente, onde reconhece que certas características da mente não são possíveis de serem descritas em padrões. Sendo assim, admite que algumas destas características se encontram além do alcance da investigação científica (Castañon, 2007a).
Se o conhecimento é uma crença verdadeira justificada sobre a realidade da qual estamos sempre nos aproximando, como a Psicologia Cognitiva explica a forma pela qual adquirimos este conhecimento? Nesta questão, a Psicologia Cognitiva se demonstra expressivamente comprometida com a perspectiva construtivista que se contrapõe às perspectivas tradicionais do empirismo e do racionalismo. As duas perspectivas filosóficas tradicionais encontram-se em lados opostos ao tratar essa questão: de um lado, o empirismo, ao defender que o conhecimento é adquirido através do que a realidade externa impõe ao sujeito; de outro, o racionalismo, ao alegar que o conhecimento é inato e desenvolvido através de estruturas pré-formadas (Sternberg, 2016). No entanto, em contraposição ao Empirismo e ao Racionalismo, o Construtivismo defende que o conhecimento é adquirido através de uma construção necessariamente colaborativa entre o sujeito e o mundo, onde o sujeito desempenha uma participação ativa no desenvolvimento de suas próprias cognições (Piaget, 1973).
Outra distinção está entre os termos Construcionismo e Construtivismo. O Construcionismo está relacionado à ideia de que a associação de partes separadas forma o conhecimento e negligencia a participação ativa do sujeito neste processo de construção, sendo este um aspecto essencial ao Construtivismo (Castañon, 2007a). Para o Construtivismo, o processo de construção se trata de formar mentalmente, organizar, interpretar, analisar, deduzir algo sobre o mundo, o que evidencia a participação de um sujeito ativo neste processo de representar mentalmente os objetos, e não meramente passivo às impressões causadas pelo mundo (Gardner, 2003). Ao defender esse posicionamento, a explicação construtivista sobre a aquisição do conhecimento demonstra-se parcialmente racionalista por dois motivos principais: pela pressuposição de características inatas dos sujeitos e pela percepção de sua função ativa e criativa (Castañon, 2007a).
Primeiramente, o Construtivismo se compromete com a concepção inatista por assumir que os sujeitos possuem estruturas genéticas que emergem ao longo do desenvolvimento humano e possibilitam a construção de conhecimento. Todavia, ainda não somos capazes de delimitar com total clareza quais são as estruturas mentais prévias e quais são as estruturas construídas, mas definitivamente, seja por um inatismo potencial ou condicional, a Psicologia Cognitiva assume que a capacidade humana de adquirir conteúdos e construir o conhecimento implica em algum tipo de potencial genético (Castañon, 2007a).
A segunda característica que compromete o Construtivismo com uma visão racionalista é a percepção de uma função ativa e criativa dos sujeitos. Jean Piaget utiliza os conceitos de assimilação e acomodação, os quais demonstram com maior clareza essa percepção. A assimilação envolve o processo do sujeito de incorporar uma experiência aos seus esquemas e teorias existentes, contudo, se a tentativa de explicar a experiência não condizer com um esquema, o esquema tende a ser modificado para que uma nova informação seja acomodada. Deste modo, é reafirmada a percepção ativa e criativa do sujeito, o qual desempenha o papel de quem interpreta a experiência ao assimilá-la com seus esquemas, bem como os modifica para que se acomodem à realidade (Castañon, 2015; Terribile, 2019).
Visto que através do Construtivismo a Psicologia Cognitiva oferece um posicionamento acerca de como os indivíduos adquirem o conhecimento, enquanto ciência, de que forma sustenta a obtenção do conhecimento científico? A teoria filosófica de ciência adotada pela Psicologia Cognitiva pode ser identificada em inúmeras citações de autores basilares do Cognitivismo, no entanto, foi através das análises do filósofo e psicólogo Gustavo Castañon (2007a) que este compromisso foi diretamente reivindicado ao Racionalismo Crítico de Karl Popper.
Uma das principais noções desta escola de filosofia da ciência é a tese de que toda observação da realidade se faz a partir de uma hipótese, dedução, teoria, mas nunca de forma completamente neutra ou objetiva como defendia o Positivismo Lógico. O método científico foi proposto por Popper a partir da formulação conjectural de uma nova teoria que deve ser comparada logicamente com outras teorias para identificar se há coerência em sua composição e, em decorrência desta constatação, determinar se está sujeita à investigação experimental que proporcionará ou não a confirmação da teoria formulada (Popper, 2013).
Esta concepção pode ser perfeitamente alinhada à perspectiva construtivista no sentido de que trata o conhecimento científico como uma verificação – ou assimilação, nos conceitos de Piaget – de teorias e hipóteses previamente estabelecidas sobre a realidade, que podem vir a ser confirmadas ou falseadas empiricamente. Nesta última, a verificação revela uma realidade diferente da hipótese prévia, exigindo que uma nova hipótese seja formulada para, assim dizendo, ser melhor acomodada (Castañon, 2007a). Além disso, a influência do Racionalismo Crítico na Psicologia Cognitiva apoia a concepção de que o objeto de estudo científico não precisa ser necessariamente público, desde que através de inferências sobre as suas propriedades possa gerar consequências observáveis e públicas suscetíveis à investigação científica (Barrs, 1986).
Fundamentos metodológicos da Psicologia Cognitiva
A partir das concepções ontológicas e epistemológicas abordadas anteriormente, é possível afirmar que o método científico adotado pela Psicologia Cognitiva não está focado no significado da experiência dos sujeitos ou no conteúdo de suas representações mentais, mas no que diz respeito a sua forma de organização, manipulação, regras e relações causais que estruturam a cognição (Bem & De Jong, 1997). A título de exemplo, isto quer dizer que, ao investigar as crenças políticas de um sujeito, a Psicologia Cognitiva está interessada em observar a forma como estas crenças se organizam ou influenciam o comportamento do sujeito, independentemente de os conteúdos das crenças serem favoráveis a um determinado partido ou outro. Esta perspectiva funcionalista não tem como objetivo negar a existência de conteúdos e significados individuais dos sujeitos, mas de reconhecer as limitações da ciência moderna e realizar um recorte metodológico que proporciona a delimitação de um objeto de estudo acessível à investigação científica (Castañon, 2007a).
Em geral, a Psicologia Cognitiva apresenta uma opção metodológica pelo estudo do indivíduo, ou seja, pode ser considerada uma abordagem individualista. Até mesmo no seu estudo do social, por meio da Psicologia Social Cognitivista, o enfoque dado é o estudo de como pessoas comuns constroem representações a respeito de suas interações sociais. Nesse sentido, a unidade de análise da Psicologia Cognitiva sempre será o indivíduo que, com certeza, está imerso em diversas relações sociais. Tais relações não são foco da Psicologia Cognitiva, mas, sim, os processos cognitivos como crenças e representações acerca dessas relações (Castañon, 2007a).
Desde seu florescimento, o Cognitivismo congregou diversas áreas na busca do entendimento acerca da cognição. Assim, parece evidente a relevância dada aos esforços para multidisciplinariedade nos pressupostos metodológicos da Psicologia Cognitiva. A integração entre os conhecimentos da Psicologia Cognitiva e outras disciplinas permite o avanço no desenvolvimento de novas técnicas e métodos. Dentre as diversas disciplinas, destacam-se a Linguística, Neurociência Cognitiva, incluindo a Neuropsicologia Cognitiva, e a Ciência Cognitiva Computacional (Castañon, 2007a).
O processo de pesquisa da Psicologia Cognitiva geralmente ocorre em três etapas: formulação de problemas, formulação de hipóteses e modelos, e aplicação de métodos experimentais (Castañon, 2007a). Na primeira etapa, os fenômenos investigados são explorados e descritos, e os métodos mais utilizados são a observação naturalista, o autorrelato e o estudo de caso (Castañon, 2007a). Na segunda etapa, em que é realizada a elaboração de hipóteses ou modelos, alguns dos métodos mais utilizados são a análise correlacional (que visa identificar associações entre determinadas variáveis) e a simulação computadorizada (que visa testar modelos teóricos por meio de simulações de computador) (Castañon, 2007a).
Já a terceira etapa refere-se aos métodos experimentais e quasi-experimentais, que são métodos baseados na manipulação de determinadas variáveis, visando identificar seus efeitos sobre outras. A ideia é poder identificar causalidade entre elas e poder corroborar, ou não, uma teoria (Castañon, 2007a). Métodos experimentais são úteis para testar hipóteses (Sternberg, 2016). Nesse sentido, a interdisciplinaridade entre a Psicologia Cognitiva e a Neurociência facilitou a testagem de hipóteses por meio de técnicas computadorizadas (Eysenck & Keane, 2017).
Considerações
Este artigo se propôs a apresentar de forma introdutória os fundamentos ontológicos, epistemológicos e metodológicos da Psicologia Cognitiva. Não se pretendeu esgotar o tema, que é complexo e permeado por subjetividades, mas servir de subsídio para estudantes de Psicologia aprofundarem os conhecimentos sobre esta Escola de pensamento. A compreensão dos princípios filosóficos sobre a natureza da realidade e a natureza do conhecimento sobre as quais uma proposta teórica é construída e do contexto no qual uma Escola foi fundada permite um conhecimento mais completo sobre a Psicologia enquanto ciência.
Os fundamentos ontológicos da Psicologia Cognitiva foram abordados pela concepção do realismo crítico e, posteriormente, discutiu-se a possibilidade de considerar a Psicologia Cognitiva enquanto uma disciplina fundamentada no materialismo e em algum tipo de determinismo. Ainda na questão epistemológica, argumentou-se a favor de uma visão de Ser Humano como um Ser dotado de consciência, ativo, movido por causas e razões, orientado a metas. Atuante como um processador de informações, munido de processos cognitivos governados por regras e de um inconsciente cognitivo, construtor de regras que regem sua cognição, possuidor de tendências inatas e de emoções que atuam através da cognição, sendo reativo a significados atribuídos, epistemicamente motivado e constituído de mente e corpo.
Com relação às questões acerca do conhecimento, a Psicologia Cognitiva demonstra como principais fundamentos epistemológicos o Construtivismo e o Racionalismo Crítico. Ambas as concepções estão associadas à visão de Ser Humano ativo e construtor de suas próprias cognições, sendo o Racionalismo Crítico a base da concepção de ciência adotada pela Psicologia Cognitiva. O método científico focado em estabelecer leis e regras gerais da cognição é reconhecidamente funcionalista; no entanto, a Psicologia Cognitiva assume esta limitação e considera necessário o recorte metodológico que proporciona a delimitação de um objeto de estudo acessível à investigação científica.
No que se refere aos fundamentos epistemológicos, apresenta-se como uma corrente que estuda o Ser Humano em seu aspecto individual, ou seja, no nível dos processos cognitivos individuais. Para isso, recorre à congregação de diversas disciplinas, como a Psicologia, Neurociência, Linguística, Filosofia, Inteligência Artificial, entre outras. Define-se, assim, como uma abordagem primordialmente multidisciplinar. Apresenta-se como um programa de pesquisa baseado em etapas metodológicas que contemplam métodos descritivos, elaboração de hipóteses ou modelos e, por fim, os métodos experimentais.
A ascensão do movimento cognitivista e o sucesso dos achados no campo de pesquisa da Psicologia Cognitiva que deram mais força ao movimento continuam conquistando espaço na Psicologia e em outras áreas de conhecimento. Este constante crescimento evidencia a importância de disseminação de seus achados, mas também das suas bases teóricas que possibilitaram o desenvolvimento de um movimento que atualmente contribui para a consolidação da Psicologia como disciplina científica.