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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.40 no.123 São Paulo set./dez. 2023  Epub 26-Ago-2024

https://doi.org/10.51207/2179-4057.20230040 

ARTIGO DE REVISÃO

Educação de Jovens e Adultos e a Psicologia Histórico-Cultural

Youth and Adult Education and the Historical-Cultural Psychology

Gabriel de Nascimento e Silva1 

Herculano Ricardo Campos2 

1. Gabriel de Nascimento e Silva – Mestrado em Psicologia - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil.

2. Herculano Ricardo Campos – Doutor em Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Professor titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, Natal, RN, Brasil.


Resumo

A Psicologia Histórico-Cultural tem ganhado espaço nos últimos anos, no Brasil, em estudos na interface Psicologia e Educação, todavia, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) parece não ser uma temática prioritária de investigação. A EJA é uma modalidade de ensino com caraterísticas peculiares que demandam novas leituras sobre os processos de ensino-aprendizagem e desenvolvimento deste público. No presente artigo, realiza-se uma revisão integrativa de dissertações e teses brasileiras que investigam a EJA à luz da Psicologia Histórico-Cultural. A busca ocorreu no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações e resultou em 28 trabalhos. Observa-se a recenticidade dessa discussão e produção dispersa. As temáticas pesquisadas giram em torno de quatro categorias: (a) os sentidos e significados atribuídos à escolarização; (b) as práticas docentes e recursos pedagógicos utilizados; (c) as políticas educacionais; e (d) o desenvolvimento de funções psicológicas superiores nos estudantes. Conclui-se que essa é uma reflexão ainda inicial, mas que já aponta importantes questões acerca da escolarização básica tardia e o desenvolvimento na idade adulta.

Palavras-Chave: Educação de Jovens e Adultos; Psicologia Histórico-Cultural; Revisão

Summary

The Historical-Cultural Psychology has gained ground in recent years in Brazil, in studies at the Psychology and Education interface, however the Youth and Adult Education (YAE) does not seem to be a priority research topic. The YAE is a teaching modality with peculiar characteristics that demands new readings about the teaching-learning and development processes of this audience. In this article, an integrative review of Brazilian dissertations and theses that investigate the YAE from the Historical-Cultural Psychology perspective is carried out. The search took place in the Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES and in the Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações and resulted in 28 papers. The recentness of this discussion and dispersed production is observed. The themes researched revolve around four categories: (a) the senses and meanings attributed to schooling; (b) teaching practices and pedagogical resources used; (c) educational policies; and, (d) the development of higher psychological functions in students. It is concluded that this is still an initial reflection, but that it already points to important questions about late basic schooling and development in adulthood.

Key words: Youth and Adult Education; Historical-Cultural Psychology; Review

Introdução

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade específica da escolarização básica brasileira, destinada aos estudantes que por algum motivo não cursaram a educação básica na idade esperada, em geral por não ter acesso ou condições de continuar os estudos. Conforme as atuais políticas educacionais, o direito à educação tardia radica em quatro documentos de âmbito nacional: a Constituição Federal (Brasil, 1988), que reconhece aos jovens, adultos e idosos o direito à escolarização formal; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 (1996), reconhecendo a EJA como modalidade de ensino pertencente à educação básica; e, os Pareceres nº 11 (2000) e nº 6 (2010), ambos do Ministério da Educação, nos quais são fixadas as Diretrizes Curriculares e Operacionais, bem como as principais funções dessa modalidade.

Consta em tais normativas a oferta nos níveis fundamental e médio, para alunos com a idade mínima de 15 e 18 anos, respectivamente. Segundo o Parecer nº 11 (2000), seu público-alvo é bastante diverso no que se refere a idade, origens e trajetórias de vida, porém tem como característica marcante a presença da população negra, pobre e subempregada ou desempregada. Tal fato não se deve ao acaso, visto que resulta do passado concreto que marca a Constituição do país, conforme é lembrado no documento:

No Brasil, esta realidade resulta do caráter subalterno atribuído pelas elites dirigentes à educação escolar de negros escravizados, índios reduzidos, caboclos migrantes e trabalhadores braçais, entre outros. Impedidos da plena cidadania, os descendentes destes grupos ainda hoje sofrem as consequências desta realidade histórica. (Brasil, 2000, p. 6)

Em que pese a multiplicidade de sujeitos que compõem a EJA, observa-se a predominância de alunos-trabalhadores que regressam à escola buscando acessar a etapa da escolarização que deveriam ter cumprido na infância e adolescência: “Este contingente plural e heterogêneo de jovens e adultos, predominantemente marcado pelo trabalho, é o destinatário primeiro e maior desta modalidade de ensino. Muitos já estão trabalhando, outros tantos querendo e precisando se inserir no mercado de trabalho” (Brasil, 2000, p. 27). Desse modo, fica evidente a importância das atividades laborais para os alunos que acessam a EJA.

Face ao histórico de privações e das necessidades específicas de aprendizagem que esse público demanda, a EJA deve ser organizada segundo um modelo pedagógico próprio, que contemple essas marcadas experiências, incluindo uma formação específica para os docentes que atuam neste contexto. É necessário, então, repensar os conteúdos trabalhados, metodologias de ensino e o tempo destinado à educação, para evitar novos processos de exclusão (Brasil, 2000).

A EJA, nos termos da lei, deve ainda atender a três funções específicas: reparação, equalização e qualificação. A função reparadora se refere à inclusão social desse público na escola, considerando as condições socioculturais que outrora os excluiu. A função equalizadora diz respeito à necessidade de redistribuição dos recursos sociais visando a redução de disparidades entre os distintos grupos sociais, bem como na construção de uma educação corretiva que favoreça o desenvolvimento do sujeito e, consequentemente, melhores inserções profissionais. Finalmente, a função qualificadora compreende uma perspectiva de educação ao longo da vida, permanentemente, para todos (Brasil, 2000).

A partir de tais definições, depreendemos que as políticas de EJA são um mecanismo compensatório de um histórico classista e racista presente na educação escolar brasileira desde o período colonial. Visa remediar uma dívida social não reparada para com os sujeitos que não tiveram condições materiais de acessar a cultura letrada enquanto bem social da humanidade. Essa modalidade de ensino representa, ainda, o atendimento a um direito constitucional e uma tentativa de enfrentamento a uma grave desigualdade social e educacional que vem, historicamente, atingindo determinados indivíduos e grupos sociais no país (Di Pierro, 2005).

Diante dessas especificidades, a escolarização básica tardia revela muitos desafios aos educadores, que nem sempre estão devidamente preparados para enfrentá-los. É necessário compreender as influências sócio-históricas, políticas e pedagógicas da EJA para superar a visão comum dessa modalidade apenas como compensatória ou supletiva, e encaminhá-la na perspectiva do pleno desenvolvimento e da emancipação humana. Frente aos desafios postos, o contexto educacional nos convoca à reflexão sobre essa realidade particular.

Nessa seara, a Psicologia pode contribuir no debate sobre ações e relações pedagógicas nos diferentes espaços de aprendizagem, sejam eles na educação escolar ou em outros contextos. Contudo, as relações entre a Psicologia e a EJA ainda são incipientes. A Psicologia Escolar tem, ao longo da história, se detido ao estudo das relações entre aprendizagem e os processos de desenvolvimento de crianças e adolescentes, o que não acontece com a mesma recorrência no exame das práticas educativas com jovens, adultos e idosos (Calve, 2013).

Ao mapear as produções acadêmicas publicadas por autores da Psicologia sobre a EJA, observamos anteriormente que a aproximação dos psicólogos com essa modalidade de ensino se dá de modo inicial, com escassos materiais sobre práticas e pesquisas neste espaço. Os poucos estudos existentes restringem-se, predominantemente, ao exame de questões subjetivas dos estudantes, baseado em suas histórias de abandono e retorno à escola e os sentidos atribuídos ao processo de escolarização tardia. Na ocasião, concluímos que: “revela-se urgente a necessidade de avançar nas reflexões sobre os processos pedagógicos observados em tais contextos, inclusive por causa da peculiar incidência deles sobre a aprendizagem e o desenvolvimento dos sujeitos neles implicados” (Silva & Campos, 2019, p. 32).

Para endossar o debate sobre a escolarização tardia na EJA, recorremos à Psicologia Histórico-Cultural, ou Sócio-Histórica, em busca de fundamentos teóricos que permitam a compreensão e problematização dos processos de aprendizagem e desenvolvimento mobilizados nesse contexto, bem como sua implicação para a organização do ensino. A Teoria Histórico-Cultural, embasada no método materialista histórico-dialético, fomenta a reflexão de que as mudanças históricas na sociedade produzem alterações na consciência e na atividade humana. Assumindo tal premissa, o referencial pretende estudar a totalidade social, superando as dicotomias individual e coletivo, biológico e social, natureza dada e natureza adquirida, dicotomias essas ainda tão caras aos campos da Psicologia e Educação (Facci, 2004; Vygotski, 2012).

No que se refere à relação ensino-aprendizagem e desenvolvimento, Vygotsky (2005) já reconhecia em sua época que era dada pouca atenção para as especificidades da aprendizagem adulta. Alguns teóricos, dizia ele, afirmavam que o homem chegava em uma fase de estabilidade no desenvolvimento na idade adulta e não adquiria novos conceitos. Rebatendo essas compreensões, comentava que nesse momento da vida as relações entre aprendizagem e desenvolvimento continuam ocorrendo, porém qualitativamente diferentes das que acontecem na infância. Ou seja, na adultez os processos psíquicos já alcançados podem ser requalificados através das situações de aprendizagem, favorecendo a aquisição de novas formas de pensamento sobre si mesmo, sobre o mundo e sobre sua ação no mundo.

Seja na infância, seja na idade adulta, o papel da educação escolar é encaminhar os alunos na direção de desenvolver o que hoje lhes falta, pois, conforme a máxima de Vygotsky (2005, p. 38): “o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento”. Desse modo, cabe à escola organizar os meios necessários que exijam do estudante a construção de novos conhecimentos, que o faça ultrapassar suas atuais capacidades, ou seja, que produza desenvolvimento.

Esse arcabouço teórico permite compreender os jovens e adultos como sujeitos históricos, inseridos no meio sociocultural, dotados de conhecimentos e experiências adquiridas ao longo da vida, mas que podem ser qualificadas e otimizadas através da mediação pedagógica oferecida na escola, sendo este um importante papel para a EJA. Nesse sentido, na intenção de identificar o que tem sido produzido sob essa orientação, este artigo se propõe a mapear e analisar dissertações de mestrado e teses de doutorado defendidas em Programas de Pós-Graduação stricto sensu no Brasil que investigam a EJA à luz dos aportes teórico-metodológicos da Psicologia Histórico-Cultural. Optamos por utilizar esses estudos como objetos de investigação, pois se referem aos produtos finais, mais elaborados, do percurso formativo de mestres e doutores, cuja qualidade e relevância foram reconhecidas por pesquisadores experientes da comunidade acadêmica.

Método

Adotamos a revisão integrativa de literatura como opção metodológica. Essa é uma metodologia de cunho bibliográfico cuja finalidade é mapear o estado do conhecimento através da identificação e sistematização dos principais resultados discutidos na literatura, visando revelar possíveis lacunas e indicar novas perspectivas (M. Souza et al., 2010). Possibilita, ainda, evidenciar as tendências teórico-metodológicas, as principais categorias analíticas empregadas e os aspectos da realidade explorados.

A busca exploratória ocorreu no período de agosto a novembro de 2020, na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES. Ambas as plataformas foram escolhidas tendo em vista que se constituem os maiores bancos de dados da pós-graduação stricto sensu brasileira, além de reunir e disponibilizar virtualmente esses trabalhos. Utilizamos como descritores de busca “educação de jovens e adultos”, em associação com “psicologia histórico-cultural”, “teoria histórico-cultural”, “psicologia sócio-histórica” e “teoria sócio-histórica”. Foram levantadas teses de doutoramento e dissertações de mestrado produzidas em programas nacionais, disponíveis online e sem restrição temporal. Excluímos trabalhos repetidos ou que não apresentavam discussões sobre as especificidades da EJA à luz da Psicologia Histórico-Cultural.

Para o tratamento do material, desenvolvemos uma matriz bibliográfica com o objetivo de categorizar os dados gerais relativos aos trabalhos e seus autores: formação acadêmica do autor, tipo de estudo, ano de defesa, programa de pós-graduação ao qual estava vinculado, metodologia, tema abordado e referências adotadas. Posteriormente, a análise dos trabalhos pautou-se em quatro questões norteadoras: a) Qual o objetivo do trabalho e as questões de pesquisa que demandam uma leitura a partir da Psicologia Histórico-Cultural? b) Qual o público-alvo ou segmento da EJA investigado? c) Quais as principais conclusões? e d) Quais as principais contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para o campo da EJA?

Resultados

Após excluir os artigos que não se enquadravam no crivo descrito anteriormente, 28 teses e dissertações atenderam aos critérios estabelecidos e constituíram o corpus da pesquisa. Quanto aos dados gerais sobre os trabalhos, 71% (n=20) são dissertações e 29% (n=8) são teses. Seus autores são provenientes, majoritariamente, de cursos de licenciatura, com destaque para Pedagogia (n=11), seguido de Matemática (n=5), Letras (n=4), História (n=1) e Física (n=1). Aparecem, ainda, pesquisadores com formação nas áreas de Psicologia (n=5) e Administração (n=1). Esses trabalhos foram defendidos, predominantemente, em programas da área da Educação, no eixo Sul-Sudeste do país. A Região Sudeste concentra 43% (n=12) desses trabalhos, ao passo que as regiões Sul, Nordeste, Centro-Oeste e Norte contam com 25% (n=7), 18% (n=5), 7% (n=2) e 7% (n=2) das produções, respectivamente, conforme detalhado na Figura 1.

Fonte: elaboração própria.

Figura 1 : Incidência de estudos por Programas de Pós-Graduação nas distintas regiões do país 

Diante desta figura, notamos que essa discussão é dispersa pelos vários estados e pontual nas respectivas universidades, não havendo indícios de que o tema seja objeto recorrente de estudo nestes grupos de pesquisa ou programas de pós-graduação. Observamos ainda a recenticidade de tais produções, como descrito na Figura 2. Os trabalhos mais antigos encontrados datam de 2006, mas é a partir de 2011 que ocorre um considerável aumento no número das publicações. Vale ressaltar que a EJA foi reconhecida como modalidade de ensino em 1996, com a LDB, no entanto, só uma década após a promulgação o campo se tornou objeto de estudo por autores que adotam a Teoria Histórico-Cultural, o que pode sinalizar o pouco interesse na temática.

Fonte: elaboração própria.

Figura 2 : Número de estudos por ano de publicação 

No que se refere ao seu tipo, destacamos a predominância de estudos de cunho empírico (86%), seguidos pelos estudos teóricos (14%). No tocante às metodologias utilizadas, é evidente o uso exclusivo de abordagens qualitativas de pesquisa, ancoradas em diferentes estratégias, tais como: análise documental, estudo bibliográfico, estudo de caso, pesquisa participante, dentre outras. Entre os principais instrumentos empregados para a coleta de dados, estão: entrevistas, observação participante, diário de campo, questionários, etc.

Frente às produções encontradas, observamos que as questões sobre a EJA que demandam uma leitura a partir da Psicologia Histórico-Cultural são diversas. Para orientar nosso processo de análise de dados, agrupamos os estudos conforme as temáticas abordadas e elencamos quatro categorias que retratam os temas mais recorrentes, são eles: (a) os sentidos e significados atribuídos à vivência da escolarização tardia; (b) o exame das políticas educacionais para jovens e adultos no Brasil; (c) a análise da prática docente e o uso dos recursos pedagógicos; e (d) desenvolvimento das funções psicológicas superiores em alunos da EJA.

O primeiro grupo de pesquisas discute a produção de sentidos e significados atribuídos à vivência escolar, incluindo os motivos para a interrupção e retorno desses alunos à escola, bem como, a experiência da escolarização tardia. Dentre os estudos mais antigos deste levantamento, estão as pesquisas de Abreu (2006) e Szanto (2006). A primeira investiga o impacto do processo de alfabetização de pessoas adultas na transformação da identidade pessoal desses sujeitos. Já a segunda, busca compreender as trajetórias e projetos de vida de jovens da EJA, como também, o sentido conferido à educação escolar. De modo semelhante, Casanova (2015) analisa os sentidos e significados construídos por um estudante da EJA sobre a escola e sua escolarização. Bittencourt (2013) analisa os significados acerca da formação e inserção no mercado de trabalho para jovens do Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA). Ainda sobre os alunos do PROEJA, Ribeiro (2019) estuda o sentido da atividade de estudo conferido por eles à experiência escolar e Carvalho (2015) investiga os letramentos e as construções identitárias no discurso dos alunos. Pereira (2012) analisa a produção de sentidos sobre a linguagem escrita para adultos pouco escolarizados da EJA. Já Caldeira (2011) buscou conhecer as trajetórias de vida e os motivos que levaram os estudantes à EJA, destacando as percepções sobre a aprendizagem nos diferentes momentos da vida.

As políticas educacionais brasileiras de EJA são alvos dos estudos de Silva (2011), Calve (2013), Lima (2014) e Lima (2015). Os três primeiros discutem a questão das políticas a partir da categoria ontológica trabalho e suas repercussões na aprendizagem e no desenvolvimento humano. Calve (2013) disserta acerca das concepções de trabalho, aprendizagem e desenvolvimento presentes nos documentos oficiais sobre EJA. Silva (2011) investiga a centralidade do trabalho, entendido enquanto práxis ou trabalho alienado, na constituição psíquica e na aprendizagem de jovens e adultos precariamente escolarizados. Já Lima (2014) discute sobre as limitações da EJA no pleno desenvolvimento das capacidades humanas e a subordinação à reprodução do capital. Por fim, Lima (2015) problematiza a crescente presença de adolescentes na Educação de Jovens e Adultos e interroga como o ensino regular e a EJA têm se organizado frente a esse atual movimento.

O terceiro grupo de discussões envolve pesquisas sobre a prática docente e a utilização de diferentes recursos pedagógicos. A prática do professor de matemática é alvo do estudo de Jacinto (2011), que analisa o modo pelo qual são organizadas as atividades pedagógicas dirigidas aos jovens e adultos. Alves (2020), ancorado no conceito de Atividade Orientadora de Ensino, examina as potencialidades de um programa de tarefas de ensino sobre equações na EJA. Ainda sobre a docência em matemática, Loures (2015) estuda o ensino de geometria analítica tendo em perspectiva os aspectos culturais do alunado. Souza (2010) investiga a utilização de tecnologias educacionais na prática pedagógica no contexto da EJA. Também recorrendo às tecnologias, Fonseca (2009) analisa o uso de um blog como recurso pedagógico nas aulas de língua portuguesa. Já Fernandes (2013) investiga a implementação e utilização de um ambiente virtual de aprendizagem como suporte ao ensino da matemática na EJA. Poroloniczak (2019) examina os fundamentos do método cubano de alfabetização de adultos “Yo, sí puedo”, bem como sua versão brasileira, e suas aproximações com os pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural. A utilização da rima como estratégia cognitiva fomentadora no processo de alfabetização de jovens e adultos foi tema de Camargo (2007). Por sua vez, Santos (2012) investiga o uso da Teoria Histórico-Cultural como fundamento da prática pedagógica em uma escola que oferta a EJA.

Finalmente, o último grupo de estudos diz respeito às investigações sobre o desenvolvimento das funções psicológicas superiores nos jovens e adultos. O tema da formação do pensamento conceitual é alvo de quatro trabalhos, que tratam especificamente de entender o modo pelo qual os alunos da EJA constroem conceitos relacionados à astronomia (Valente, 2007), à matemática escolar (Araujo, 2017), à elaboração e resolução de problemas matemáticos (Obst, 2015) e à consciência histórica nas aulas de história (Simabukulo, 2018). Marchesoni (2019) pesquisa a promoção do letramento no desenvolvimento da leitura e escrita nos educandos em fase de alfabetização, através dos gêneros textuais do cotidiano. Já Silva (2015) investiga o desenvolvimento da oralidade em língua inglesa. Por último, Noronha (2013) discute os modos de pensamento de adultos em processo de escolarização na EJA.

Discussão

Dada a pluralidade das questões investigadas, notamos que essa diversidade de objetos de pesquisa evidencia a múltipla e complexa realidade educacional da EJA. O processo de escolarização básica de jovens e adultos, que ocorre numa idade distinta daquela esperada, apresenta uma série de especificidades e desafios enfrentados pelos alunos e professores. Esse contexto interroga educadores e demais pesquisadores atuantes no campo, além de imprimir novos questionamentos sobre a relação indissociável entre os processos de ensino-aprendizagem e desenvolvimento humano, que buscamos sintetizar a seguir.

A experiência escolar nesse espaço é marcada por atrasos, reprovações, frustrações, desistências e pelo histórico de negação de direitos (Simabukulo, 2018). O público-alvo dessa modalidade, diferentemente do ensino regular, apresenta três trajetórias escolares definidoras, são elas:

[...] aqueles que iniciaram a escolaridade na condição de aluno trabalhador; os adultos e adolescentes que ingressaram na escola regular e a abandonaram há algum tempo; e os adolescentes que ingressaram e cursaram recentemente a escola regular, mas acumularam grande defasagem entre idade e série cursada. (Silva, 2011, p. 16)

Apesar destes caminhos característicos, observa-se a predominância de alunos-trabalhadores historicamente excluídos do ensino regular. São homens e mulheres que regressam tardiamente à escola, a fim de acessar uma etapa que deveriam ter cumprido na infância (Jacinto, 2011), revelando o quanto essa modalidade de ensino é atravessada pelas contradições da dinâmica social marcada pelo trabalho. Neste sentido, os alunos que foram forçados pelo trabalho a abandonar a escola na idade esperada para o estudo retornam posteriormente para obter qualificação que lhes permita alçar melhores condições de trabalho e de vida (Lima, 2014).

Essa pluralidade de sujeitos e trajetórias reverbera nos diversos e, por vezes, conflitantes sentidos e significados atribuídos à escolarização pelos alunos, nos vários estudos. A escola na EJA pode ser percebida como meio para adquirir conhecimentos que permitam uma melhor inserção no mundo do trabalho, para atender às exigências do cotidiano e acompanhar a dinâmica da sociedade letrada e tecnológica, como meio para aceleração dos estudos e rápida certificação, ou, ainda, como espaço de socialização e descontração (Bittencourt, 2013; Carvalho, 2015; Casanova, 2015; Lima, 2015; Pereira, 2012). Por outro lado, pode se configurar como uma experiência negativa marcada por sentimentos de vergonha, inferioridade, estranhamento e não pertencimento, ao retornar à escola e não encontrar as condições materiais necessárias para a sua permanência e o seu bom aproveitamento (Abreu, 2006; Pereira, 2012; Szanto, 2006).

Seja nas experiências escolares exitosas ou nas situações de fracasso, o professor ocupa um lugar de destaque no processo educativo. Sobre a prática docente, as pesquisas questionam os limites e possibilidades de atuação junto a jovens e adultos. Há de se considerar que na idade adulta o indivíduo participa de modo mais ativo em seu contexto social, possui trajetória mais extensa de experiências que devem ser consideradas para que ocorra, de fato, uma aprendizagem significativa (Silva, 2015). No entanto, observa-se que são desenvolvidas práticas pedagógicas semelhantes ao trabalho com crianças, infantilizadas. São recorrentes as críticas aos currículos, às metodologias de ensino, às estratégias de avaliação e aos recursos didáticos utilizados, por não atentarem às particularidades dos alunos dessa modalidade. Essa inadequação reflete fragilidades na formação inicial de professores para atuar no contexto de escolarização tardia que, em muitos cursos de licenciatura, têm negligenciado as discussões sobre EJA (Alves, 2020; Ribeiro, 2019).

Dessa maneira, não é de estranhar que o discurso dos professores seja marcado pela lógica naturalizante, centrada nos alunos e há muito criticada. Afirmam recorrentemente que o insucesso dos estudantes é devido a supostos déficits cognitivos, carências culturais, questões emocionais ou, ainda, ao histórico de famílias desestruturadas (Alves, 2020; Caldeira, 2011; Ribeiro, 2019; Szanto, 2006). Essa visão individualista arraigada acerca do fracasso escolar culpabiliza unicamente os discentes e obscurece os aspectos essenciais que são base para a produção de tais insucessos. Tal perspectiva desconsidera o caráter eminentemente social da constituição humana e, consequentemente, seus reflexos no contexto escolar (Vygotski, 2012).

Embora sejam observados tímidos avanços no número das pesquisas sobre a EJA, sobretudo após os anos 2000, as reflexões sobre os processos de aprendizagem na idade adulta ainda são escassas. Em um levantamento bibliográfico sobre o tema em pesquisas de mestrado, doutorado e artigos científicos, realizado por Ribeiro (2019), é revelado que muitos materiais apenas tocam de forma tangencial na questão da aprendizagem de adultos, evidenciando uma lacuna conceitual que reverbera, consequentemente, nas práticas profissionais.

Paradoxalmente, o Brasil abriga um dos mais conhecidos métodos de alfabetização de adultos, elaborado por Paulo Freire, estudado e aplicado em vários locais do globo, como é lembrado nos estudos. A EJA foi influenciada sobremaneira pelas teorizações e experiências práticas do educador, sobretudo seu olhar para a relação entre os saberes prévios dos alunos, sua cultura, sua realidade concreta, e as práticas pedagógicas. Dada sua concepção de sujeito histórico, constituído pelo trabalho na dinâmica sociocultural, o legado de Freire é articulado, em algumas pesquisas, às formulações teóricas da Psicologia Histórico-Cultural. No entanto, por conta do caráter assumidamente político de luta pela emancipação dos oprimidos, presente nas obras, suas ideias foram amplamente perseguidas por governos conservadores, ao ponto de fragilizar sua adoção no país (Poroloniczak, 2019; Ribeiro, 2019; Santos, 2012; Szanto, 2006).

Sob a lente do materialismo histórico-dialético, as políticas públicas para EJA são alvo de questionamentos quanto a sua efetividade, limites e contradições. O avanço no campo dos direitos à educação nas últimas décadas é inegável, sobretudo para as camadas populares do país, fruto de grandes lutas sociais. Todavia, ainda não são todos os alunos que têm condições materiais para o acesso e permanência na escola (Simabukulo, 2018). Em relação aos que conseguem se inserir, Lima (2014) interroga que tipo de educação recebem, uma vez que as políticas educacionais voltadas à EJA apregoam a formação pragmática, imediatista e presa à esfera do cotidiano. A perspectiva que orienta tais documentos reitera uma concepção de escola que se alinha à lógica de reprodução social do capital na medida em que se distancia de uma perspectiva de educação comprometida com o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas.

Nessa esteira, Santos (2012) argumenta que a EJA tem sido historicamente uma modalidade negligenciada pelo Estado. É apresentada com um caráter assistencialista, sem uma elaboração teórico-prática consistente capaz de promover a recuperação desses alunos e contribuir com a formação do pensamento crítico, científico. Bittencourt (2013), em seu estudo, questiona as campanhas e programas educacionais compensatórios, de caráter aligeirado, fragmentado e, por vezes, de má qualidade, propostos no país em distintos momentos, que se propõem a apenas certificar rapidamente os indivíduos visando sua inserção no mercado de trabalho. Essas diretrizes ratificam um projeto educacional utilitarista, cujo objetivo primordial é o de conformação dos indivíduos como força de trabalho, atendendo às demandas atuais do capitalismo (Calve, 2013).

Em face aos documentos oficiais que regem a modalidade no Brasil, Silva (2011) destaca que essas normativas pontuam sobre o passado concreto da realidade histórica brasileira, que criou uma dívida social para um determinado grupo de pessoas, as quais buscam por reparação, equalização e qualificação na EJA. Todavia, salienta, esses textos não esclarecem, de forma ampla e crítica, os motivos que levaram e levam à exclusão dos sujeitos ao direito à educação na idade própria. Desse modo, entendemos que a ausência de uma explicação consistente sobre a gênese da desigualdade social e educacional, que ainda assola o país, leva a uma compreensão salvacionista de que a escola, por si só, seria capaz de reparar as mazelas sociais.

Entretanto, é necessário compreender que, inseridos numa sociedade classista, a educação não escapa dessa lógica e está assentada nas contradições da divisão social do trabalho. Para uma grande parcela referente aos trabalhadores é destinada uma educação que não desenvolve plenamente as capacidades humanas, pois está restrita tão somente à formação necessária para execução do trabalho alienado. Uma escola pensada sobre os ditames do capitalismo não exclui, necessariamente, os indivíduos subalternizados, mas propicia formas de inclusão marginal, precarizada. O modo de produção capitalista não necessita que esses indivíduos acessem conhecimentos que vão além da prática instrumental do cotidiano. Contudo, a Psicologia Histórico-Cultural oferece novos instrumentos teóricos para pensar e operar uma nova escola, que promova aprendizagens orientadas ao conhecimento da realidade e para o desenvolvimento de uma consciência crítica (Lima, 2015; Silva, 2011).

No que se refere à aprendizagem, apreendemos que é uma característica constitutiva do sujeito, de caráter cognitivo e afetivo. Trata-se de um processo universal e necessário para que o indivíduo acesse as construções especificamente humanas, formadas ao longo da história social. Não há uma idade adequada para aprender, ou um limite máximo definido. Há, no entanto, diferentes formas nas quais a aprendizagem se apresenta, nos distintos períodos da vida. Aprendemos durante toda a vida, não somente na infância e adolescência, e em diversos contextos, de modo que nossa atividade psíquica sofre distintas mudanças ao longo do tempo (Caldeira, 2011; Marchesoni, 2019). A esse respeito, já salientava Vygotski (2012) que em cada período etário o indivíduo pensa, atua, aprende de modo particular, sendo orientado por uma atividade principal, que também se modifica nas várias idades culturais.

Na medida em que apresenta novas concepções acerca da relação entre aprendizagem e desenvolvimento, tal perspectiva permite reposicionar o papel da escola na constituição dos sujeitos, nos distintos períodos do desenvolvimento. A plena formação do ser humano só é possível através da escola, cuja função é propiciar e estimular aprendizagens que conduzam ao máximo desenvolvimento das funções psicológicas superiores, da capacidade de entender cientificamente, conceitualmente, a sociedade em que está inserido. São exemplos funções como: atenção voluntária, percepção, memória, linguagem, pensamento conceitual, planejamento, dentre outras; funções essas que estarão presentes de modo mais qualificado quanto maior for o acesso do indivíduo ao conhecimento sistematizado (Jacinto, 2011; Lima, 2014; Marchesoni, 2019; Obst, 2015).

No entender de Vygotski (2012), há períodos ótimos, nos quais é mais fácil e proveitoso que a aprendizagem aconteça. Esses períodos são aqueles em que os processos psicológicos estão formados, ou em vias de maturação, de modo que através da mediação pedagógica do professor o estudante pode superar os limites atuais do seu desenvolvimento. Todavia, a aprendizagem escolar tardia se configura pouco produtiva, notadamente em condições desfavoráveis, quando o indivíduo se ocupa com outras atividades, como o trabalho.

Nessa perspectiva, Facci (2004) argumenta que a educação deve ser guiada pelo princípio do desenvolvimento, ou seja, entendendo que em cada período etário o sujeito se relaciona com a realidade concreta de modo particular. A prática pedagógica deve, então, considerar as necessidades internas e externas que favorecem a construção de novos interesses, capacidades e formações psicológicas, além de incidir sobre a zona de desenvolvimento proximal do alunos (Jacinto, 2011; Santos, 2012). Para isso, cabe ao educador conhecer o processo de desenvolvimento, suas forças motrizes, para poder estabelecer as finalidades e objetivos pedagógicos adequados, que promovam de fato o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (Caldeira, 2011).

Depreendemos, então, que as principais contribuições da Psicologia Histórico-Cultural para pensar o campo da EJA dizem respeito a concepções de aprendizagem e desenvolvimento, pautadas numa visão de ser humano histórico e culturalmente situado. A teoria esclarece que as particularidades da consciência são determinadas pelas relações objetivas dos sujeitos com a realidade, sob a mediação do trabalho, ou seja, a consciência é entendida como expressão individual de aspectos sociais. Essa perspectiva descortina a essência sócio-histórica do psiquismo e busca superar concepções ambientalistas e individualistas acerca da atividade humana, bem como suas repercussões no processo de escolarização (Calve, 2013; Bittencourt, 2013; Lima, 2014; Noronha, 2013; Pereira, 2012). Exemplificando tal discussão, comenta Ribeiro (2019):

Se os estudantes da EJA têm dificuldade para responder a determinadas instruções da forma esperada pela escola e pelos professores, não significa que possuam algum atraso no desenvolvimento, mas sim, que não estão suficientemente familiarizados com os códigos formais da escola, seja por suas trajetórias descontinuas de escolarização ou pela privação no acesso aos bens culturais. (Ribeiro, 2019, p. 18)

Tal concepção influi na crítica à patologização da educação, entendendo que os sujeitos pouco escolarizados não são deficitários em seu desenvolvimento psicológico, pois essas supostas limitações cognitivas são frutos de uma realidade sócio-histórica específica que cerceia as possibilidades de desenvolvimento (Simabukulo, 2018). Os problemas que se apresentam à vida humana devem ser articulados à dinâmica do momento histórico, tendo em vista a totalidade social que ordena essas relações. Situações como o analfabetismo (Abreu, 2006; Poroloniczak, 2019) ou o precário acesso à cultura digital e às novas tecnologias (Fernandes, 2013; Souza, 2010) evidenciam o quanto determinados grupos sociais têm, historicamente, seu desenvolvimento empobrecido e limitado em função da atual forma de sociabilidade. As condições materiais de vida são o que impossibilitam a aquisição de estruturas intelectuais mais amplas e complexas.

Todavia, em que pese os usos da Psicologia Histórico-Cultural para pensar o campo da EJA, observamos nesses estudos diferentes apropriações da teoria. Localizamos trabalhos que ressaltavam sua diretriz teórico-filosófica fundante, o materialismo histórico-dialético, ao passo que outros desconsideravam. Além disso, encontramos pesquisas relacionando a obra de Vigotski e seus colaboradores com estudos de Piaget e Emília Ferreiro, com a denominação de sociointeracionismo ou socioconstrutivismo, ou, ainda, diálogos com a Psicanálise e a Etnografia.

Não pretendemos dissertar neste artigo sobre a pertinência ou não dessas interpretações, apenas indagar qual base filosófica orienta essas diferentes leituras. As perspectivas biologicistas, subjetivistas ou descritivas certamente entram em contradição com uma teoria orientada pela e para a totalidade social. Ao identificar resultados semelhantes em seu estudo, Ribeiro (2019) alerta que algumas leituras influem para descaracterizar a base ontológica histórica da Psicologia vigotskiana e a alinha aos pressupostos neoliberais e pós-modernos. Ocorre, segundo a autora, que as análises estão restritas, em grande medida, aos livros de Vigotski traduzidos para o português a partir das edições norte-americanas, obras essas que apresentam supressões e deturpações que podem levar a interpretações equivocadas do pensamento do autor.

Em nosso levantamento encontramos resultados semelhantes aos apresentados por Ribeiro (2019), no que se refere às principais obras utilizadas como referências. Dentre os estudos levantados, as referências mais utilizadas da Psicologia soviética são justamente as obras “A formação social da mente”, “Pensamento e Linguagem” e “Psicologia Pedagógica”, de Vigotski, que são citadas em 64% (n=18), 54% (n=15) e 32% (n=9) dos estudos, respectivamente. Outro autor recorrente é Leontiev, com a obra “O desenvolvimento do psiquismo”, que aparece em 39% (n=11) dos trabalhos.

Entre os autores brasileiros citados que utilizam a Psicologia Histórico-Cultural como fundamento teórico, destacamos a presença da pedagoga Marta Kohl de Oliveira, com o texto “Jovens e adultos como sujeitos de conhecimento e aprendizagem”, referenciado em 9 pesquisas. A pesquisadora, que desenvolveu estudos sobre os temas desenvolvimento e cognição na vida adulta, contribuiu para iniciar uma reflexão sobre Psicologia do Desenvolvimento e aprendizagem tardia tendo em perspectiva a realidade educacional da EJA.

Contudo, outros autores clássicos da Psicologia Histórico-Cultural, como Luria, Elkonin e Davidov, bem como seus diversos comentadores e continuadores brasileiros, são pouco utilizados nas pesquisas no campo da EJA. O retorno a esses autores certamente permitiria pensar e aprofundar as contribuições desse referencial teórico para esse contexto educacional peculiar, visando qualificar os processos pedagógicos e transformar a realidade educacional posta.

Considerações

Em síntese, conforme apontado nos estudos de nosso levantamento, os autores que adotam o referencial teórico da Psicologia Histórico-Cultural pouco têm lançado olhares para a escolarização básica de jovens e adultos e as múltiplas realidades que compõem a EJA. No entanto, a teoria pode oferecer chaves interpretativas para alavancar a discussão acerca da aprendizagem escolar e do desenvolvimento humano para além da infância e adolescência. Algumas pesquisas levantadas já apontam para uma reflexão inicial nesse sentido, visando oferecer fundamentos teóricos consistentes para os educadores em suas práticas.

A EJA diferencia-se radicalmente do ensino regular em função dos sujeitos que a compõem. Essa modalidade não recebe qualquer indivíduo vivenciando a etapa da juventude ou vida adulta, mas sim um grupo específico: são os sujeitos historicamente excluídos do ensino escolar, aqueles com pouca ou nenhuma escolarização. No entanto, o rótulo “jovens e adultos”, de que trata a lei, carrega uma multiplicidade de indivíduos com diferentes idades, histórias de vida, interesses e inserções. Isso implica que uma mesma sala de aula pode ser ocupada por adolescentes, adultos e idosos, cada qual com uma série de vivências prévias acumuladas ao longo da vida, e essa dinâmica intergeracional e cultural deve ser observada nas práticas pedagógicas, para que atenda a todos (Ribeiro, 2019).

Em que pese a diversidade da EJA, observamos que é frequentada predominantemente por alunos-trabalhadores, o que evidencia a centralidade do trabalho nessa modalidade de ensino. O trabalho aparece, então, como o principal motivador em relação com os estudos, seja pela interrupção do processo escolar por conta da necessidade de inserção nas atividades produtivas, bem como retornando para atender às demandas por qualificação profissional do mercado. Essa situação social específica impõe aos educadores a necessidade de refletir sobre o papel da escola no processo de desenvolvimento na adultez mediado pelas atividades de trabalho e estudo, como também, suas implicações aos processos pedagógicos na EJA, o que demanda novos estudos.

A Psicologia Histórico-Cultural, embasada no método materialista histórico-dialético, tem fomentado ainda questionamentos acerca das políticas educacionais e os limites e possibilidades da educação escolar no capitalismo (Calve, 2013; Silva, 2011). Nas definições legais acerca da EJA, qual concepção de educação está em jogo? Quais seus objetivos e função social? Na prática, é produzida de fato uma educação libertadora, que conduza os sujeitos às máximas potencialidades de desenvolvimento? Essas são algumas questões depreendidas dos estudos que nos levam a refletir sobre as contradições inerentes ao modo de produção capitalista que capturam a educação e limitam sua ação transformadora.

Todavia, a educação é um campo de disputas entre diferentes projetos políticos que coexistem e no interior dessas contradições também residem as possibilidades de superação. Nesse sentido, a teoria convoca os educadores para um saber/fazer opositor da realidade capitalista, com vistas a construir uma escola empenhada no processo de humanização. Para isso, é necessário ultrapassar a visão de EJA cujos objetivos são apenas a compensação, aceleração dos estudos e preparação para o mercado de trabalho, e apostar numa educação orientada para o desenvolvimento de estruturas psicológicas mais amplas e complexas, favorecendo o conhecimento da realidade além de sua aparência imediata.

Referências

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Nota: O presente estudo contou com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Este artigo deriva da dissertação de mestrado do primeiro autor, sob orientação do coautor.

Trabalho realizado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil.

Recebido: 21 de Novembro de 2022; Aceito: 24 de Julho de 2023

Correspondência: Gabriel de Nascimento e Silva Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Campus Universitário – Lagoa Nova – Natal, RN, Brasil – CEP 59078-970 E-mail: psigabrielsilva@gmail.com

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

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