Não existem limites precisos de nenhuma índole entre o comportamento normal e o anormal. (Vigotski)
O que define a normalidade do comportamento humano?
Em 2024 registramos cem anos de publicação dos primeiros estudos de Vigotski sobre a Defectologia. De acordo com Mecacci (2017) , o conceito de “defectologia” na URSS na época de Vigotski era compreendido como a “ciência dos defeitos” e lidava, principalmente, com problemas psicológicos em crianças e adultos, no funcionamento dos órgãos dos sentidos ou do cérebro.
Entre os anos 1924 e 1935, Vigotski investiu profundamente nos estudos sobre as limitações sensoriais e motoras em crianças e adolescentes. Seus objetivos eram, por um lado, contribuir para uma educação revolucionária e inclusiva, que garantisse um processo educacional socialista para todas as pessoas na Rússia, naquele momento histórico. E, por outro lado, Vigotski buscava, também, a superação da crise da Psicologia. Buscava compreender de modo global a relação entre os campos da psiquê e da fisiologia (Vigotski, 1984). Seu intuito era compreender a constituição da consciência humana, sustentá-la como um estudo das relações sociais e das forças históricas. Investigar a consciência, no campo de uma nova Psicologia, sob uma lei geral de desenvolvimento, como fenômeno altamente dinâmico e em movimento.
Com este duplo objetivo, Vigotski parte da crítica às categorizações simplistas e estáticas de “normal” e “anormal” no comportamento humano e busca uma superação apoiando-se na perspectiva de que “o conhecimento do singular é a chave de toda a Psicologia Social [...], conquistar para a Psicologia o direito de considerar o singular, ou seja, o indivíduo, como microcosmo” (Vigotski, 1996, p. 368). Para tanto, Vigotski busca, deste modo, investigar a criança em sua situação dramática de vida, em seu meio, com o intuito de compreender os processos de desenvolvimento humano.
A psicologia proposta por Vigotski pode ser reconhecida por sua abordagem dinâmica e dramática do desenvolvimento humano (abordagem revolucionária). Vigotski assume o desenvolvimento como um processo ativo, no qual os seres humanos estão constantemente envolvidos em relações sociais culturais e históricas. Enfatizava conflitos, contradições como força motriz do desenvolvimento. São estes princípios que o mobilizam no estudo da criança com “defeitos”, fossem estes de ordem sensorial ou motora ou outra.
Nessa perspectiva, um dos conceitos-chave elaborados por Vigotski é o processo de supercompensação. Ele argumenta que o ser humano com alguma deficiência ou limitação busca por uma outra organização sistêmica possível, para superar seus desafios. Esse processo de compensação nos faz refletir sobre a dinâmica dramática do desenvolvimento humano à medida que os indivíduos se tornam agentes ativos na busca de soluções para os obstáculos que encontram.
Mecacci (2017) , em um de seus escritos de Vigotski sobre psicologia e patologia realizados a partir de 1930, aponta que a supercompensação é um processo mais complexo, no qual não há apenas substituição de uma função prejudicada por outra intacta, mas sim uma reestruturação de todas as funções superiores da pessoa. As reflexões de Mecacci estão pautadas principalmente nos textos: Psicologia da Esquizofrenia, 1932; Pensamento e Linguagem, 1934; O Problema do Retardo Mental,1935.
O processo de humanização do homem implica na transformação das funções elementares básicas (atenção, memória, percepção, próprias do ser humano) em funções psicológicas superiores (funções cognitivas como lembrança voluntária, intencional, pensamento, linguagem e comportamento volitivo, que se que se constituem e transformam nas relações sociais, culturais e históricas).
Segundo Vigotski (2022) , a compensação e a supercompensação guardam distinções. Na compensação temos uma adaptação à normalidade, aos padrões, ao que segue um curso. Enquanto na supercompensação temos o desenvolvimento de uma posição social a partir do viver ativamente o contexto social.
A validez social é o ponto final da educação, já que todos os processos da supercompensação estão dirigidos à conquista de uma posição social. A compensação dirige-se não a um posterior desvio da norma, ainda que seja no sentido positivo, mas ao desenvolvimento supernormal, unilateralmente disforme ou hipertrofiado da personalidade em alguns aspectos, porém no sentido à normalidade, no sentido da aproximação a determinado tipo social. Determinado tipo social da personalidade é a norma da supercompensação. ( Vigotski, 2022 , p. 79)
Essa reflexão sobre a compensação por uma prerrogativa da supercompensação revela uma abordagem que se aproxima aos processos de criação, formando um ciclo dinâmico que caracteriza o desenvolvimento humano em todas as suas dimensões. A supercompensação, nesse contexto, representa uma resposta de criação a desafios iniciais ou limitações impulsionadas no movimento das relações sociais, na vida.
A possibilidade humana de imaginar e criar constitui-se fundamental em nossa evolução como espécie. Essa habilidade nos permitiu avançar de seres biológicos simples para a condição de seres humanos. É esta capacidade tipicamente humana que permite o controle de nossas ações, uma “mão selvagem” conduzida por uma mente cultural ( Barroco & Tuleski, 2007 ).
A base orgânica dessa capacidade reside na plasticidade das substâncias nervosas, tipicamente humanas, que permitem transformar as funções elementares em funções superiores. Essa plasticidade é um mecanismo que permite ao cérebro (e ao corpo humano) modificar suas estruturas em resposta às influências do ambiente e que podem ser significativas e permanentes. No entanto, a atividade cerebral não se limita à simples adaptação a condições constantes e habituais. O ser humano é capaz de projetar-se para o futuro, criar e modificar seu presente, o que o diferencia da adaptação comum a um ambiente estático ( Vigotski, 2009 ).
Mecacci (2017) destaca, ainda, a argumentação de Vigotski sobre a dinâmica entre intelecto e afeto como uma unidade integrada, transformada ao longo do desenvolvimento ontogenético e influenciada por fatores pessoais, sociais e históricos. Vigotski desafia as abordagens tradicionais da psicologia de sua época, que isolavam intelecto e afeto, argumentando que ambos estão relacionados (e que, para Vigotski, se constituem em uma unidade).
A compreensão dos processos cognitivos e afetivos foi investigada por Vigotski com o intuito de compreender doenças mentais, tais como a esquizofrenia. Ele explora a desconexão do pensamento esquizofrênico com o compartilhamento, levando à ausência ou comprometimento de comunicação e ao comportamento autista e associal. Contudo, argumentou que as manifestações da doença são influenciadas pelo ambiente cultural e pelas relações sociais, o que levou a uma abordagem mais contextual na pesquisa sobre esquizofrenia ( Mecacci, 2017 ).
O que destacamos aqui é que os estudos realizados por Vigotski sobre a defectologia tinham um objetivo para além do diagnóstico. Não se restringiam à simples categorização das crianças com limitações, mas buscaram compreender como fatores sociais, históricos e culturais afetam o desenvolvimento individual e como a educação poderia caminhar e contribuir para a superação destas necessidades específicas.
Vigotski criticou abordagens educacionais que separavam crianças com deficiências em classes especiais sob um nível inferior ao das aulas regulares. Argumentou que as escolas especiais precisam desenvolver formas específicas de trabalho que atendessem à singularidade de cada criança, de modo que elas pudessem acompanhar as escolas regulares (e que pudessem apoiar um projeto educacional inclusivo, acessível a todas as crianças).
Propôs uma abordagem articulada para as propostas pedagógicas entre programas especiais e professores especializados, em acordo com as necessidades individuais de cada criança, ao mesmo tempo em que as incluísse em atividades coletivas com outras crianças. A busca de uma “educação social” sob a prerrogativa da importância de proporcionar ambientes educacionais que ultrapassem as maneiras lineares de transmissão de informações.
A meta educacional consiste na criação de contextos em que as crianças possam se envolver em discussões, colaborações, atividades em grupo e trocas significativas com os outros. Valorizar as possibilidades das relações com as crianças com o intuito de criar oportunidades. Trata-se de uma problematização essencial para uma educação inclusiva.
Educação escolar, diagnóstico e inclusão escolar
Em pesquisa de tese publicada em 2004, Garcia (2004) realizou um denso estudo sobre as políticas de inclusão escolar no Brasil. A pesquisa, de caráter documental, buscou mapear as políticas educacionais brasileiras a partir dos anos 1990, com o intuito de compreender o quanto estas políticas repercutem na vida das crianças que possuem algum tipo de deficiência. E, ainda, investigar desdobramentos das políticas públicas brasileiras, ou seja, o quanto estas políticas atendem às legislações vigentes e garantem condições para que a inclusão possa acontecer no espaço escolar.
Há que se considerar que, especialmente desde 2004, temos vivenciado a publicação de diferentes legislações que regulamentam o movimento que se pretende cada vez mais inclusivo nas redes de ensino, no Brasil.
O movimento pela inclusão no Brasil, amparado legalmente por vários documentos, inclusive convenções internacionais das quais o país é signatário, tem como legislação mais recente o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146, 2015) ou Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Esta lei, que ratifica acordos já firmados voltados à inclusão em seu sentido mais amplo, dedica um capítulo à educação, no qual pactua com a visão de que todas as pessoas devem estar na escola e que todas as escolas devem receber todo e qualquer aluno, independentemente das necessidades do discente e/ou das condições da escola. ( Fontenele et al., 2023 , p. 2)
Esse movimento de uma escola mais inclusiva vem tomando diferentes delineamentos no Brasil. Um artigo de revisão sistemática realizado por Fontenele et al. (2023) buscou analisar as práticas escolares que envolvem o uso de laudos e diagnósticos no contexto da inclusão escolar no Brasil, no período de 2009 a 2019. Ao examinar a literatura disponível, identificaram várias discussões e tensões relacionadas a esse uso que podem ser sinalizadas aqui em quatro pontos.
O primeiro é o uso da avaliação pedagógica em substituição ao diagnóstico clínico. Embora essa abordagem tenha o potencial de reduzir a medicalização das práticas educacionais, também levanta questões sobre como caracterizar adequadamente o público que deve ser atendido no Atendimento Educacional Especializado (AEE). O segundo, a importância de os professores terem acesso ao diagnóstico para embasar suas práticas. No entanto, isso levanta dúvidas sobre a valorização da observação direta como método pedagógico válido. O terceiro, os efeitos do uso de laudos e diagnósticos nas práticas de inclusão são ambíguos. Por um lado, argumenta-se que a inclusão só pode ocorrer a partir desses dispositivos. Por outro lado, há o reconhecimento de que, em muitos casos, não se sabe como agir com as crianças e adolescentes que têm laudo ou diagnóstico, o que pode levar a dependência desses documentos. E o quarto, que alguns estudos problematizam os laudos e diagnósticos como agentes de estigmatização e medicalização das práticas pedagógicas. Apontam para os efeitos limitantes, o que questiona o sentido de considerar recortes relacionados a diagnósticos em direção a uma educação social e inclusiva.
E pesquisa divulgada recentemente (2023), pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, apresentou dados alarmantes: 1 em cada 36 crianças americanas com menos de 8 anos é diagnosticada com autismo. O conteúdo desta matéria está disponibilizado no site da BBC Brasil (2023) . Trata-se de pesquisa realizada a cada dois anos, indica uma tendência consistente de crescimento nos casos. Na edição anterior do levantamento, a taxa era de 1 caso a cada 44 crianças. Também a porcentagem de meninos é superior, mas a evidência de meninas também vem aumentando consideravelmente ano após ano.
Até há alguns anos, acreditava-se que o autismo ocorria aproximadamente em cada quatro de 10.000 crianças. Estes números sofreram grandes alterações nos últimos anos. Uma pesquisa realizada pelo “Center of Diseases Control and Prevention” (Centros de Controle e Prevenção de Doenças - CDC) nos EUA apontou que, no ano 2000, a prevalência de autismo era um em 166; em 2002, um em 150; em 2004, um em 125; em 2006, um em 110 casos; e, em 2008, a prevalência foi um em 88 indivíduos. Em 2010, os novos estudos destacaram um marco de um em 68 casos diagnosticados sendo aproximadamente um em cada 42 meninos e um em cada 189 meninas. Havendo, em 2012, um aumento de 78% na taxa do autismo quando comparados ao ano de 2002. Em termos de porcentagem calcula-se que a prevalência do transtorno do espectro do autismo subiu mais de 75% nos últimos dez anos. ( Galdino, 2016 , p. 75)
Contudo, no Brasil, não dispomos de estatísticas oficiais ou estudos epidemiológicos semelhantes atualizados.
O TEA (Transtorno do Espectro Autista), é definido pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e pela Associação Americana de Psiquiatria (APA, 2014), como um Transtorno de Neurodesenvolvimento. Ele se caracteriza pela presença de comportamentos estereotipados, além de alterações significativas nas relações sociais e comunicação. Os fatores que contribuem para o TEA são uma combinação complexa de influências genéticas e ambientais (APA, 2014).
Pessoas com TEA frequentemente enfrentam desafios para se adaptar a contextos sociais, compreender gestos e expressões faciais, participar de brincadeiras compartilhadas ou iniciar e manter conversas. Além disso, é comum observar distúrbios na fala, variações na entonação e no volume da voz. Os padrões comportamentais restritos e repetitivos podem se manifestar por meio de movimentos motores estereotipados, resistência a alterações na rotina, adoção de rituais e interesses fixos. É importante mencionar também a possibilidade de Disfunções de Integração Sensorial em pessoas com TEA. Isso envolve desafios na regulação sensorial, como hiporreatividade ou hiper-reatividade aos estímulos sensoriais, dificuldades na diferenciação de estímulos sensoriais e problemas motores relacionados à sensação. Essas características exigem intervenções terapêuticas, suporte escolar e social com o objetivo de minimizar os impactos associados ao TEA (APA, 2014; Mattos, 2019 ; Brasil, 2014 ; Monteiro et al., 2020 ; Rodrigues & Almeida, 2017 ).
Paoli e Machado (2022) revelam um panorama complexo e multifacetado do autismo, indo além das aparências superficiais que muitas vezes envolvem essa condição. Alertam para os riscos inerentes a uma abordagem unidimensional do autismo, destacando a importância de evitar uma “história única” desse espectro, como advertido por Adichie (2019) . Essa “história única” pode ser perigosa, pois simplifica a compreensão do autismo e perpetua estereótipos.
Um desses estereótipos reside na tendência de categorizar o autismo de forma binária (e biológica), como uma condição definida apenas por déficits ou diferenças, algo que acaba sendo enquadrado por padrões biomédicos. Isso pode levar a uma visão limitada e descontextualizada do autismo, que não reflete a complexidade das experiências das pessoas, no espectro. Tampouco reflete a perspectiva de Vigotski, que, há quase um século, posicionou-se contra a concepção biologizante das pessoas com desenvolvimento atípico. Os termos “atípico” e “típico” estão sendo utilizados nesse texto, pois são considerados, no momento, menos estigmatizados pelas autoras.
Tal artigo também aborda os avanços conquistados pelos movimentos sociais em prol da diversidade, que têm contribuído para uma compreensão mais inclusiva das pessoas com autismo. No entanto, a pesquisa reconhece que ainda existe resistência a perspectivas progressistas e inclusivas em relação à deficiência e ao autismo e alerta para que o TEA não seja reduzido a uma única narrativa porque se manifesta de maneira plural e única em cada pessoa. Portanto, é fundamental considerar a neurodiversidade do espectro e reconhecer que todos têm potencialidades a serem exploradas e desafios a serem superados.
Os impactos pandêmicos: o que podemos pensar?
No contexto da pandemia do COVID-19 e, no pós-pandêmico, as discussões permeadas por Vigotski se tornam especialmente relevantes. Primeiramente, a persistência do fechamento prolongado de escolas, devido às necessidades sanitárias, impactou a vida cotidiana das crianças e suas famílias e ficou evidenciado por relatos de estresse e ansiedade. Como destacado pelos dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi registrado no Brasil o maior período de fechamento de escolas em 2020 em comparação a 35 nações analisadas. No total, as escolas brasileiras permaneceram fechadas por 178 dias, enquanto a média das nações membros da OCDE foi de 48 dias, considerando os níveis de educação infantil e ensino fundamental. Tema discutido em matéria disponibilizada pelo site da Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (IEDE) (Oliveira, 2021).
Vigotski (1996) traz como exemplo o contexto da guerra o qual podemos fazer um comparativo ao período contemporâneo pós-pandêmico. Ambos se revelam eventos traumáticos que podem se manifestar de maneira intensificada ou mesmo por situações excepcionais como lapsos de memória, esgotamentos, agitação. Tanto a guerra quanto a pandemia são eventos inesperados que podem implicar adversidades. A perspectiva de Vigotski (1996) de que comportamentos não convencionais não estão restritos a distúrbios graves, mas permeiam nossa vida cotidiana, assume particular relevância em tais circunstâncias. Além disso, o aumento no diagnóstico de TEA durante a pandemia pode ser refletido sob a mesma perspectiva.
Realizamos uma pesquisa na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), com o intuito de mapearmos a produção acadêmica nacional recente, sobre a inclusão nas escolas. Para essa busca utilizamos algumas combinações de palavras-chave, conforme explicitado na tabela a seguir ( Tabela 1 ), a fim de avaliar a evolução temporal da produção de teses e dissertações. Não utilizamos nenhum recorte temporal para que o banco de dados retornasse toda a produção registrada. Um dos objetivos foi investigar o possível aumento nos estudos acadêmicos após o advento da pandemia de COVID-19.
Tabela 1 : Palavras-chave utilizadas para busca e número de trabalhos localizados - 2023
Palavras-chave | Número Trabalhos localizados |
---|---|
Criança AND diagnóstico AND Autismo AND TEA | 224 |
Criança AND laudo AND “Transtorno do Espectro Autista” | 5 |
Criança AND parecer AND “Transtorno do Espectro Autista” | 34 |
Infância AND diagnóstico AND Autismo AND TEA | 43 |
Infância AND laudo AND “Transtorno do Espectro Autista” | 0 |
Infância AND parecer AND “Transtorno do Espectro Autista” | 3 |
Criança AND diagnóstico AND Autismo AND TEA AND educação | 73 |
Criança AND laudo AND “Transtorno do Espectro Autista” AND escola | 5 |
Criança AND parecer AND “Transtorno do Espectro Autista” AND Inclusão escolar | 8 |
Fonte: elaboração própria
A busca resultou em um total de 394 trabalhos acadêmicos, englobando tanto teses quanto dissertações. Por meio da aplicação de uma planilha no Excel , eliminamos os títulos duplicados, culminando na obtenção de 260 trabalhos, dos quais 61 correspondem a teses e 199 a dissertações.
Ao observar a evolução das produções ao longo do período, verificamos que a partir de 2014 é notável um incremento nas publicações, destacando-se o ano de 2021 como aquele com a maior expressividade, totalizando 37 trabalhos publicados. Há que se considerar que os impactos da pandemia ainda vêm sendo pesquisados e suas publicações podem não estar referenciadas neste mapeamento.
As instituições acadêmicas que se destacam na condução dessas pesquisas são a Universidade de São Paulo (USP), com um total de 31 produções, seguida pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com 25, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com 17 contribuições.
Realizamos a leitura dos títulos dos trabalhos, buscando aos que tratavam de diagnósticos e observamos a ampliação de estudos sobre infância e autismo. A seguir, apresentamos a Tabela 2 onde é possível visualizar o número de trabalhos por ano.
Tabela 2 : Número de trabalho por ano de publicação - 2023
Ano de publicação | Número de trabalhos |
---|---|
2007 | 1 |
2008 | 1 |
2009 | 2 |
2010 | 2 |
2011 | 3 |
2012 | 4 |
2013 | 4 |
2014 | 16 |
2015 | 14 |
2016 | 26 |
2017 | 27 |
2018 | 30 |
2019 | 34 |
2020 | 29 |
2021 | 37 |
2022 | 28 |
2023 | 2 |
Total Geral | 260 |
Fonte: elaboração própria
Outra pesquisa em curso, conduzida por Pinheiro (2023) , que tem como objetivo realizar uma análise abrangente dos estudos que incorporam referências a Vigotski em teses e dissertações, nos ajuda a ter um parâmetro local da produção relacionada à educação especial.
A investigação consistiu em um mapeamento das produções acadêmicas defendidas no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, que, de acordo com Sarmento (2006) , é reconhecido como um importante polo de disseminação da psicologia histórico-cultural.
Pinheiro (2023) realizou a busca pelos trabalhos no repositório da UFSC e, por meio do seguinte conjunto de palavras-chave: “Teoria Histórico-cultural”, “Psicologia Histórico-cultural”, “Psicologia Soviética”, “Psicologia Marxista”, “Abordagem Histórico-Cultural”, Vygotsky, Vigotski, Vygotskiana, Vygotskyano, “Perspectiva Histórico-cultural”, identificou um total de 273 trabalhos no conjunto global de produções, entre teses e dissertação, do programa, que somavam 1630 trabalhos. A coleta de dados consistiu na obtenção das seguintes informações: título, autor, ano de publicação, nível de qualificação (dissertação ou tese), orientador(a), coorientador(a), palavras-chave do trabalho e linha de pesquisa.
Com os dados compilados procedeu-se à leitura exaustiva dos títulos, resumos e palavras-chave dos 273 trabalhos identificados, com o intuito de detectar quais deles abordavam a temática da educação especial. Neste processo, identificamos um total de 19 trabalhos relacionados a essa temática, sendo 15 dissertações e 4 teses.
As produções tratam das políticas públicas voltadas para a inclusão, educação de pessoas surdas, inclusão de pessoas cegas e autistas, formação de professores, Atendimento Educacional Especializado e crianças com deficiência.
Dentre os trabalhos identificados, merece destaque uma pesquisa que se concentra de forma mais específica na área da educação infantil, intitulada “Os Fundamentos Psicológicos da Educação Infantil e da Educação Especial na Organização da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis (2000-2010)”. Este estudo aborda dois principais eixos de investigação: o primeiro diz respeito às estratégias organizacionais adotadas na educação infantil para atender aos sujeitos da educação especial, enquanto o segundo explora os fundamentos psicológicos subjacentes à Educação Infantil e à Educação Especial no contexto da rede municipal de Florianópolis.
A pesquisa aponta para o problema de considerar a diferença como sinônimo de desigualdade e equiparar as deficiências à ideia de “anormalidade”. Essa abordagem leva à estigmatização das crianças com deficiência e à patologização de questões sociais e educacionais. Kuhnen (2011) sugere que a abordagem pedagógica implícita nas diretrizes oficiais serve a um propósito ideológico de manter a hegemonia burguesa na educação. Ela argumenta que essa abordagem obscurece a possibilidade de um conhecimento sistematizado acessível a todos na sociedade capitalista e contribui para a alienação das crianças desde uma idade precoce.
Considerações
O debate sobre o que define a normalidade do comportamento humano nos remete a reflexões profundas sobre a natureza do desenvolvimento humano, influenciada por fatores sociais, históricos, culturais e individuais. À luz dos estudos de Vigotski sobre a Defectologia e a Pedologia, compreende-se que a noção de normalidade não pode ser reduzida a categorias estáticas e simplistas. É preciso contextualizá-la nas intrincadas dinâmicas sociais e históricas que transformam a experiência humana.
A abordagem de Vigotski nos convida a repensar as práticas educacionais, especialmente no que diz respeito à inclusão nas instituições educativas. Sua crítica às abordagens segregacionistas e sua defesa de uma educação social que reconheça e valorize a singularidade de cada criança aponta para a necessidade de políticas e práticas que promovam a diversidade e a equidade no ambiente escolar.
No entanto, as discussões sobre inclusão nas escolas enfrentam desafios complexos, especialmente no que se refere ao uso de diagnósticos e laudos no processo de inclusão. A necessidade de equilibrar a busca por estratégias individualizadas de apoio com a prevenção da estigmatização e medicalização das práticas pedagógicas é crucial para garantir uma educação que rompa com as rotulações de crianças normais ou anormais. O laudo pode se constituir em ferramenta de diagnóstico, favorecendo a organização escolar e o trabalho do professor.
Ainda que a pandemia do COVID-19 tenha trazido novos desafios para a educação na perspectiva inclusiva, sobretudo pelo possível aumento no número de diagnósticos, por exemplo, é emergente que a escola assuma seu papel. Para além dos laudos, quem são essas crianças? Como garantir o acesso equitativo à educação em tempos de crise social? Para tanto, se faz urgente a escuta e o diálogo com as famílias e comunidade escolar, a escuta e a observação atenta das crianças em suas individualidades e relações sociais.
É importante destacar que os dados provenientes da pesquisa realizada na BDTD, aqui citados revelam um aumento significativo no número teses e dissertações sobre a infância e autismo nos últimos anos, em especial após 2014, com destaque para o ano de 2021. O que indica um crescente interesse acadêmico pela temática, possivelmente relacionado ao aumento do diagnóstico do TEA. A identificação da problemática, portanto, é reconhecida.
Esses resultados, em conjunto, evidenciam avanços no sentido de problematizar as questões que permeiam o processo de inclusão escolar no Brasil. Mas nos mostram que, apesar de seus fortalecimentos, ainda deixam lacunas de conhecimento a serem debatidas. Há muito que investigar sobre como traduzir os ideais inclusivos em ações concretas capazes de promover, de fato, a participação e aprendizagem de todos os estudantes.
Ademais, o mapeamento de pesquisas realizado evidencia que os estudos que articulam as contribuições de Vigotski ao contexto atual de aumento dos diagnósticos de TEA e aos desafios enfrentados pelas escolas no pós-pandemia, são emergentes em continuidade. Sobretudo, porque as contribuições do autor para o campo dos debates defectológicos e pedológicos desempenham um papel fundamental na ressignificação de estratégias para enfrentar desafios e o processo de uma educação que seja, além de acessível, social e humana.
É importante, ainda, reconhecer que ainda há muito a ser feito. É necessário investir em formação de professores, desenvolvimento de práticas pedagógicas inclusivas e desconstrução de estigmas e preconceitos em relação às diferenças individuais. Além disso, é fundamental promover uma abordagem mais contextualizada reconhecendo a diversidade de experiências e potencialidades dentro do espectro.
Em última análise, as reflexões apresentadas neste artigo nos convidam a repensar nossas concepções de normalidade e a buscar abordagens mais humanizadas e inclusivas para compreender e apoiar o desenvolvimento humano em toda a sua diversidade e complexidade. A escola se constitui em espaço social, cultural e histórico potente, que pode ser transformador, revolucionário e inclusivo.