Introdução
Na contemporaneidade a temática da educação de surdos permeia diversos espaços de discussões em busca de metodologias e práticas pedagógicas que promovam a aprendizagem e o desenvolvimento desses sujeitos. Seja nos espaços acadêmicos ou nos movimentos sociais objetiva-se encontrar caminhos que atendam às demandas sociais, econômicas, políticas, culturais e educacionais desse grupo, advindas de lutas pelo reconhecimento de direitos fundamentais que tangenciam o reconhecimento da sua peculiaridade linguística e a garantia de uma forma de comunicação estruturada na e pela língua de sinais.
A questão da educação de surdos é um tópico marcado por acalorados debates que permeiam séculos de produção científica e filosófica. No recorte deste artigo objetivamos inventariar a obra de L. S. Vigotski, estruturada na primeira metade do século XX, na tentativa de demonstrar que esse inaugura um olhar para as questões linguísticas e desenvolvimentais dos surdos à frente de seu tempo histórico. Apesar de algumas incongruências iniciais no que tange à defesa de metodologias pedagógicas homogeneizadoras para o ensino desse público, o autor, na fase final de sua produção científica, avança ao defender o estatuto linguístico da língua de sinais e ao estabelecer que seu uso poderia ser um aliado para o sucesso das práticas educacionais e para a complexificação do psiquismo.
Nesse sentido, ao longo deste texto refletimos sobre as contribuições Vigotski para a educação de surdo, visando trazer inspirações para a organização de uma educação que atenda à s demandas linguísticas e desenvolvimentais desses sujeitos na atualidade. Para a construção desse artigo, mapeamos os textos originais de Vigotski traduzidos para a língua portuguesa em que o autor tematiza a questão da surdez e da linguagem. Essa varredura da produção intelectual do autor, para além dos textos nos quais a temática da deficiência é abordada diretamente, nos permite identificar que o desenvolvimento considerado atípico permeia a globalidade das proposições vigotskiana, não se reduzindo a uma fase ou a textos circunscritos. Por essa via elencamos os seguintes escritos que marcam a curta, porém potente, trajetória intelectual do autor no campo da surdez ( Tabela 1 ).
Tabela 1 : Textos de Vigotski abordando a surdez
| Texto | Ano original de publicação |
|---|---|
| Princípios da educação da criança com defeito físico | 1924 |
| A psicologia e a pedagogia da criança com deficiência | 1924 |
| Princípios da educação social das crianças surdas | 1925 |
| Psicologia Pedagógica | 1925 |
| A comprovação experimental dos novos métodos para ensinar crianças surdas a falar | 1925 |
| Prólogo ao livro J. K. Zweifel: Estudo das particularidades da conduta e da educação dos surdos | 1928 |
| Problemas fundamentais da defectologia | 1929 |
| O problema do desenvolvimento da linguagem e da educação da criança surda | 1930 |
| O coletivo como fator para o desenvolvimento da criança deficiente | 1931 |
| As Sete Aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da Pedologia | 1934 |
| A construção do pensamento e da linguagem | 1934 |
| A defectologia e o estudo sobre o desenvolvimento e a educação da criança normal | Sem data |
Fonte: Autores
É interessante observar neste compilado que a temática da surdez é uma marca importante na produção científica de Vigotski, estando presente desde as suas primeiras publicações até aquelas que antecedem sua morte em 1934. Essa coletânea de textos aponta para a surdez enquanto uma questão peculiar da experiência humana capaz de explicar o funcionamento simbólico do psiquismo e o comprometimento do autor com as questões sociais que envolviam a nova ordem política imposta pela Revolução Russa de 1917 – empenhada em universalizar a educação do país e em democratizar o acesso pleno aos bens culturais para as classes historicamente excluídas.
Assim, a surdez, além de uma esfinge teórica que permitia adensar em discussões sobre a constituição do pensamento e da linguagem, era também um problema social que deveria ser resolvido pelo governo soviético com vistas à integração desse público em modelos educativos capazes de proporcionar a aquisição da comunicação simbólica e a complexificação do psiquismo, ou seja, um método de instrução que possibilitasse o desenvolvimento da linguagem e a estruturação do pensamento em seus patamares mais complexos.
Nesse ínterim, Vigotski, desde entrada no círculo acadêmico formal russo em 1924, já alertava para os dilemas que envolviam a condição da educação do surdo. Em uma análise quantitativa dos seus textos é possível afirmar que a surdez é a deficiência que mais figura nas discussões travadas pelo autor, pois era vista como a peculiaridade desenvolvimental mais grave, pois incidia no domínio da palavra e, consequentemente, em toda a composição do psiquismo. A dificuldade de acesso a uma via comunicativa eficaz, assentada no signo verbal, precarizava o desenvolvimento do pensamento e o enraizamento nas relações sociais com vistas à aquisição das funções psicológicas superiores. Afinal, “[...] palavra significativa é o microcosmo da consciência humana” (Vigotski, 2001, pp. 205-206).
Assim, neste texto, vamos percorrer analiticamente a obra de Vigotski sobre a surdez e a educação de surdo, levando-se em consideração as guinadas epistemológicas percebidas à medida que o autor adensa seus estudos sobre pensamento e linguagem. As potências de seus estudos estão justamente em seus aprofundamentos teóricos e metodológicos, à medida que o autor adensa suas teorizações sobre essa problemática e reformula suas ideias e conceitos.
Nosso propósito, à vista disso, é revisitar os estudos de Vigotski sobre a educação de surdos, nos seus princípios da educação social como formação integral do desenvolvimento cultural da personalidade. Afiançamos a tentativa de trazer à luz que, apesar de passados quase 100 anos da composição inicial de sua teoria, ainda não a colocamos em prática, em sua potência, e, portanto, evidencia-se como contemporânea e imprescindível para se discutir uma sociedade efetivamente inclusiva.
Os fundamentos da Teoria Histórico-Cultural: a centralidade da linguagem para o desenvolvimento humano
A configuração sociopolítica da Rússia após a Revolução de 1917 impulsionou uma série de transformações significativas nos âmbitos econômico, social, artístico e científico que mobilizou o país em busca de práticas alinhadas aos princípios comunistas defendidos pelos revolucionários. Na esfera da psicologia, surge como proposição a Teoria Histórico-Cultural proposta por L. S Vigotski (1896–1934) e seus colaboradores.
Esta abordagem teve por intento desvelar os processos de transformação ao longo do desenvolvimento humano, abrangendo suas dimensões filogenética, ontogenética e microgenética, com especial atenção ao papel da cultura na formação e estruturação do psiquismo. O foco, portanto, estava em explicar os mecanismos psicológicos mais complexos, nomeados como funções psicológicas superiores, que são característicos da espécie humana, tais como linguagem, memória, emoção e imaginação, entre outros. Apesar de quase um século ter transcorrido desde o início do trabalho intelectual de Vigotski, a Teoria Histórico-Cultural continua sendo relevante e atual, fundamentando pesquisas em diversas áreas do conhecimento, incluindo literatura, arte, antropologia, educação e psicologia.
Os fundamentos defendidos pela Teoria Histórico-Cultural estavam estreitamente ligados ao contexto histórico-político vivenciado por Vigotski na Rússia pós-revolucionária. Esses fundamentos estavam alinhados com os objetivos sociais, políticos e ideológicos do país, que estava passando por uma profunda reestruturação. Baseando-se nos princípios do materialismo histórico e dialético como um guia filosófico-metodológico central, e seguindo o ideal de uma reorganização econômica, política e social promovida pelo regime político em vigor, Vigotski procurou desenvolver uma nova compreensão do sujeito, enfatizando sua realidade concreta através de uma abordagem psicológica renovada: “na futura sociedade, a psicologia será, na verdade, a ciência do novo homem. Sem ela, a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria incompleta” (Vigotski, 1996, p. 417).
Por essas vias, tornava-se necessário cunhar uma nova psicologia, que se afastasse dos pressupostos burgueses, e se aproximasse da concepção marxista de sujeito e do ideário de transformação social. As matrizes psicológicas do início do século XX não davam conta de explicar a singularidade do psiquismo humano e analisar a consciência de forma concreta e objetiva. Assim, era urgente estabelecer uma teoria psicológica embasada em princípios marxistas destinada a elucidar os processos psicológicos humanos e abordar os desafios enfrentados pela prática social.
Nessa ordem, a Teoria Histórico-Cultural foi, em sua gênese epistemológica, marxista por excelência, atrelando-se ao projeto revolucionário de uma sociedade comunista com vistas à superação do capitalismo. Partia do marxismo a tese, assumida nos estudos de Vigotski e seus colaboradores, da centralidade da categoria do trabalho social para explicar as bases da constituição ontológica do ser enquanto humano — ou seja, da gênese da atividade consciente na estruturação cultural do homem.
É por meio da ação de produção, mediada pelo trabalho, que os indivíduos transformam sua condição material e seus modos de pensar, agir, sentir e experimentar o mundo. Conforme observado por Marx e Engels (2009) , “o primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades imediatas, a produção da própria vida material” (p. 41). Dessa forma, para a existência humana se materializar, é essencial a produção dos bens materiais indispensáveis à vida, que se concretiza em um processo marcado pela transformação intencional da natureza através do trabalho.
Nessa dinâmica, os sujeitos não apenas criam os meios externos para subsistir, mas também moldam a própria existência psicológica e a dinâmica das relações sociais. Por essas ações, o decurso natural do ser biológico transmuta-se em uma história essencialmente cultural, na qual natureza e cultura imbricam na constituição do ser social. Nesse contexto, durante o processo de desenvolvimento individual do sujeito (ontogênese), as duas linhas desenvolvimentais (biológica e cultural) se entrelaçam para formar um processo singular e intrincado. Essas dimensões se mesclam e mantêm uma relação íntima. Portanto, os aspectos biológicos e culturais não se excluem mutuamente, mas se manifestam de maneira simultânea e interligada na constituição do sujeito.
Outra discussão central na Teoria Histórico-Cultural diz respeito ao papel da linguagem para a estruturação do psiquismo. Por essa via teórica, com o advento do trabalho social e o surgimento da linguagem desencadeou um específico tipo de desenvolvimento psicológico na espécie Homo sapiens . Dessa forma, ao elevar-se um funcionamento psicológico superior a palavra vai desempenhar papel crucial na estruturação consciência:
A palavra é para a consciência o que o microcosmo é para o macrocosmo, o que a célula é para o organismo, o que o átomo é para o universo. É o microcosmo da consciência. A palavra significativa é o microcosmo da consciência humana. ( Vygotski, 2014 , pp. 346-347)
A ação do trabalho incluiu no humano a possibilidade de operação com a linguagem, que, de acordo com Luria (1991) , fez emergir três mudanças essenciais na atividade consciente: a) a capacidade de discriminar objetos, direcionar a atenção para eles e retê-los na memória; b) a habilidade de abstrair e generalizar suas propriedades e c) a capacidade de transmitir e perpetuar informações, permitindo assim que o ser humano assimile a experiência e domine o conhecimento historicamente produzido e acumulado pela humanidade. Assim sendo, o signo (principalmente o linguístico), além de orientar a regulação das ações do sujeito, possibilita a estruturação de seu campo simbólico, sendo a base explicativa da atividade consciente e, portanto, do funcionamento psicológico superior.
A educação de surdos na obra vigotskiana
Para analisar as contribuições de Vigotski para a educação de surdos de maneira cronológica, destacamos, inicialmente, dois textos publicados em 1924: “Princípios da Educação de Crianças com Defeitos” e “A Psicologia e a Pedagogia da Criança com Deficiência”. O primeiro demonstra preocupação em analisar os princípios educativos e aspectos organizativos do sistema educacional pós-revolucionário, ao qual Vigotski (2019) tece críticas severas sobre a ausência de um projeto governamental que leve em consideração as questões da educação das crianças com deficiência. Além da crítica, o autor propõe a criação de um sistema educacional único que permitisse a junção entre a pedagogia especial com a pedagogia geral organizados a partir dos princípios da educação social ( Dainez & Smolka, 2014 ; Vigotski, 1997, 2019).
Mesmo não sendo intitulados aos surdos, há referências importantes sobre esse sujeito, especialmente no que tange o método mais assertivo para educá-los. Neste texto Vigotski estabelece um otimismo, não típico para a época, ao defender que as práticas pedagógicas devem estar empenhadas em ensinar a criança surda a “ouvir com os olhos” em uma demonstração que é possível compensar a deficiência através da utilização de outras rotas de desenvolvimento. Apesar do avanço de não compreender da deficiência pelo viés da incapacidade, o autor defende que o método mais apropriado para a educação de surdos encontra-se no método oral: “para nós, não havia nenhuma dúvida de que precisamente a língua oral, o método oral, deve ser considerado fundamental na educação de surdos” (Vigotski, 2019, p. 97).
No segundo texto, Vigotski avança ao tratar a deficiência em sua dimensão social, medida que a retira de uma apreensão exclusivamente médica, focada no órgão ou função considerada deficitária, e demonstra que o meio constrói exclusões e barreiras que não se atrelam à deficiência em si. Dessa forma, a deficiência é subjetivada como uma expressão menor de vida que aparta aqueles que a possuem das possibilidades máximas de desenvolvimento. Sinaliza imbuído pelas ponderações do psicólogo austríaco Alfred Adler (1870-1937) que a deficiência precisa ser analisada em uma perspectiva positiva e prospectiva (através da dialética déficit-superação), na qual a insuficiência ou lesão orgânica, a depender do meio social, pode transformar-se em força motriz para engendrar possíveis processos compensatórios.
Sobre a educação de surdos pondera que se trata do capítulo mais difícil da pedagogia, pois a surdez, devido ao caráter semiótico de estruturação do psiquismo, representa uma “desgraça incomensuravelmente maior que a cegueira, porque a surdez isola-o da relação com as pessoas” (p. 125). Quanto ao objetivo da educação de surdos persiste a defesa de que ela deve se empenhar em fazê-los falar, uma vez que o aparelho fonador permanece intacto, porém, a crítica quanto ao método se faz presente, considerado “um trabalho forçado e difícil para o surdo” (p. 128). Interessante observar que o autor tece duras críticas à forma como o método oral é aplicado, mas defende a sua reformulação por concordar com o seu objetivo final. Nessa esteira analítica reconhece que a “linguagem dos gestos constitui sua linguagem natural” (p. 129) e a oral assume um caráter “antinatural”, porém, apesar de admitir o estatuto linguístico da língua de sinais, o autor a qualifica como pobre e limitada, no sentido de restringir interações comunicativas mais amplas. Em síntese, vai defender uma organização de ensino que tenha por horizonte a aquisição da fala oral em um modelo que se materialize na premissa de que “a linguagem seja-lhe necessária e interessante e a mímica não interessante e inútil” (p. 132).
Nesses escritos iniciais já se percebe o anúncio da primazia da palavra, microcosmo da consciência, para estruturação do pensamento e alicerçadora da experiência social: “sem linguagem, não há consciência” (p. 129). O que se estabelece aqui, posteriormente será adensado em obras como “A construção do pensamento e da linguagem” ( Vigotski, 2009 ), na qual defende-se que as especificidades psicológicas dos sujeitos, funções psicológicas superiores, são construídas a partir das relações sociais marcadas pelos intercâmbios com os outros mediados pela linguagem e pelos instrumentos técnicos. Assim, a palavra signo, por natureza, é indispensável não apenas por possibilitar a comunicação entre os pares, mas é responsável pela mudança que o significado promove no plano mental. Dessa forma, é pela linguagem que os indivíduos se comunicam e estabelecem seus arranjos interativos, permitindo a categorização do mundo e a possibilidade de abstração e generalização.
O que se intensifica nos textos nos anos posteriores é a contraposição ao olhar biologizante sobre a deficiência. O autor inaugura na psicologia do desenvolvimento um olhar positivo para o que se considerava atípico e uma perspectiva de reorganização psicológica através da compensação. No caso dos surdos, estabelece que através da visão e de outros órgãos dos sentidos torna-se possível o acesso a experiência social e a linguagem. A falta de audição, portanto, seria compensada pelo estabelecimento de uma visoespacialidade adquirida por vias compensatórias. O que antes era lido pela psicologia tradicional como uma supervisão é agora interpretado por Vigotski como “riqueza funcional, adquirida na experiência, a qual se considerava erroneamente inata, típica da estrutura orgânica” (2019, p. 114).
Mais tarde, em 1925, no texto “Princípios da educação social das crianças surdas” ( Vygotski, 1997 ), ainda se percebe o autor vinculado às ideias da filosofia oralista. Sua tese central fundamentava-se na criação de uma prática pedagógica de educação social para os surdos, segundo um sistema científico ordenado e coerente, com o propósito de integrar as experiências fragmentadas com um foco prioritário no ensino da língua oral. Ele, apesar de reconhecer seu estatuto, desaprovava a língua de sinais e a considerava como uma forma primitiva de comunicação, que condenava o surdo a “permanecer em um estágio de extrema defasagem e atraso intelectual” (p. 388); para ele, a língua de sinais não permitia a construção de conceitos e imagens abstratas. O autor argumentava: “é necessário organizar a vida da criança de tal maneira que a linguagem lhe seja necessária e interessante, enquanto a mímica não seja nem interessante nem necessária para ele” ( Vygotski, 1997 , p. 125).
Mais uma vez se percebe a tentativa de substituição da língua de sinais pelo método oral. O enfoque, dessa forma, esteva em colocar a primeira em um espaço de inutilidade para a criação da necessidade da língua oral no contexto comunicativo da criança surda. No entanto, neste texto, assim como no de 1924, são apresentadas críticas contundentes aos métodos empregados na oralização, os quais são descritos como procedimentos mecânicos, artificiais e dolorosos para as crianças. Mesmo assim, tais pontos de vista não descartam a perspectiva de que a oralização seja a abordagem mais eficaz para a educação dos surdos, vista como o caminho para permitir que o surdo se integre ao mundo dos ouvintes e participe de práticas comunicativas mais amplas.
Com a publicação do texto “O coletivo como fator para o desenvolvimento da criança com deficiência” ( Vygotski, 1997 ), de 1931, começam a surgir os primeiros sinais de uma mudança epistemológica no pensamento de Vigotski sobre os surdos e a língua de sinais. Essa transformação provavelmente ocorreu devido ao maior contato de Vigotski com os sujeitos surdos, ao evidente fracasso das práticas oralistas e à consolidação e amadurecimento de sua teoria sobre a linguagem e o pensamento. Nessa fase, caracterizada pelo forte impulso de integração das pessoas com deficiência na esfera social, a defesa de Vigotski (1997) pela substituição do método oral em favor da língua de sinais tornou-se evidente, concebida agora como uma linguagem autêntica, como pode ser observado no trecho a seguir:
Apesar de todas as boas intenções dos pedagogos, a luta da linguagem oral contra a mímica, em geral, termina sempre com a vitória da mímica, não porque esta seja, do ponto de vista psicológico, a verdadeira linguagem do surdo-mudo. Nem porque seja mais fácil - como muitos pedagogos afirmam -, mas sim porque constitui uma linguagem autêntica em toda a riqueza de seu significado funcional. (p. 231)
Observa-se, conforme temos tentado demonstrar até então, que ocorrem mudanças significativas nas convicções do autor em relação às diretrizes educacionais direcionadas às crianças surdas. Por exemplo, os sinais deixam de ser vistos como intrusos e desnecessários e passam a ser considerados aliados no processo de desenvolvimento da fala, sendo reconhecidos como uma forma não vocal de linguagem. Nesse contexto de maior amadurecimento teórico, Vigotski (1997) estabelece que a abordagem mais adequada e produtiva para o progresso da criança surda deveria se basear no poliglotismo, que implicaria no domínio de diferentes formas de linguagem, incluindo a “mímica e a linguagem escrita” (p. 232). Sob essa proposição, todas as possibilidades de atividade linguística da criança surda deveriam ser exploradas, de modo que a língua de sinais não ocupe mais um lugar secundário, intromissor ou primitivo, como anteriormente, mas auxilie na aquisição de formas de expressão linguística ( Góes, 2002 ).
O texto intitulado “A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal” (Vigotski, 1997, 2011, 2019), embora não tenha uma data específica, parece ter sido escrito após “O coletivo como fator para o desenvolvimento da criança com deficiência” (Vygotsky, 1997), visto que as ideias nele contidas se desenvolvem e avançam a partir deste último. Naquele defende a ideia de que o desenvolvimento cultural desempenha um papel fundamental na compensação da deficiência, Vigotski (1997, 2009, 2011) argumenta que é através da educação social que se abrem caminhos alternativos e indiretos para o desenvolvimento. Esses sistemas simbólicos alternativos, adaptados às particularidades psicofisiológicas das crianças com deficiência, visam facilitar sua integração no mundo da cultura. Para ilustrar esse princípio, o autor menciona a escrita no ar: “no caso dos surdos-mudos, a dactilologia (ou alfabeto manual) permite substituir por signos visuais, por diversas posições das mãos, os signos sonoros do nosso alfabeto e compor no ar uma escrita especial, que a criança surda-muda lê com os olhos” ( Vigotski, 2011 , p. 867).
Um aspecto crucial a salientar é a concepção de fala apresentada por Vigotski em seus textos da fase final (2011). O autor destaca que a fala não está restrita à ação do aparelho vocal, mas pode ser realizada por meio de outros sistemas de signos – assim como a escrita, que pode ser transferida do domínio visual para o tátil, como ocorre no sistema Braille. Assim, para os surdos, a expressão da linguagem humana é garantida por um mecanismo psicofisiológico completamente distinto do comumente observado. Em vez de se manifestar oralmente, ela se revela através da comunicação visoespacial. A emissão da palavra transfere-se do aparelho fonador para os movimentos das mãos.
Nós nos acostumamos com a ideia de que o homem lê com os olhos e fala com a boca, e somente o grande experimento cultural que mostrou ser possível ler com os dedos e falar com as mãos revela-nos toda a convencionalidade e a mobilidade das formas culturais de comportamento. ( Vigotski, 2011 , p. 868)
A análise histórica da obra vigotskiana sobre a educação de surdos nos permite verificar o amadurecimento teórico do autor na medida que intensifica seus estudos sobre pensamento e linguagem. A mudança de postura quanto à melhor metodologia de ensino para as pessoas surdas demonstra a grandiosidade de um cientista que não se vinculava a dogmas, mas a um projeto societário empenhado em elevar os sujeitos a suas máximas possibilidade desenvolvimentais. Por mais que, a depender do ano de publicação, verifica-se incongruência quanto aos aspectos que envolvam a língua de sinais e a metodologia oralista, a defesa de uma educação social para os surdos se mostra como uma marca contínua desde os textos de 1924: “o ponto central e cada vez mais determinante da pedagogia surda é a educação social do surdo” (Vigotski, 1997, p. 134).
Por uma educação social de surdos
A educação social é um conceito do período revolucionário que perpassa as obras de Vigotski (1997, 2011, 2019). A relevância da educação social preconizada pelo autor é fundamental para os estudos desenvolvimentais da pessoa com deficiência. Em um olhar inédito para a época, Vigotski retira a criança com deficiência do espaço restrito do déficit, da concepção da psicologia biologizante, mecanicista, clínico-terapêutica e negativa da época e a reposiciona a partir de um olhar otimista pautado nas potencialidades de reestruturação corporal e psíquica através da compensação.
Já em seus primeiros trabalhos como em Psicologia Pedagógica (2019) e nos adensamentos contidos em Fundamentos da Defectogia (2019) Vigotski aponta os princípios da educação social como capaz de estabelecer um modelo educativo que proporcione aprendizagens e desenvolvimento. Por essas vias, Vigotski (2019) defende, a partir do marxismo, uma concepção educativa vinculada ao projeto socialista. É um imperativo, especialmente nos textos defectológicos, a necessidade de se estabelecer a educação social para a constituição de um novo sujeito capaz de assentar uma nova sociedade comunista. Este modelo educativo se orienta pelo trabalho, como atividade planejada, organizada, coletiva e colaborativa, que mobilizas aspectos criadores necessários a manutenção e aperfeiçoamento da vida.
Os princípios da educação social consistem na defesa de uma educação pública de qualidade que acolha a diversidade humana e tenha por objetivo a transmissão e assimilação do conhecimento escolar para todas as pessoas – apesar da multiplicidade de corpos e de formas de aprendizagem. Por essas vias, o acesso aos bens historicamente acumulados pela sociedade deve ser de acesso comum e universal, pois pertence a todo o gênero humano e não apenas a uma classe dominante – hegemonicamente detentora dos privilégios. Este modelo organiza-se a partir da atividade laboral prospectiva à ampliação dos processos de humanização, observando os modos singulares de se constituir como humano e nas suas diversidades qualitativas. O trabalho, como categoria fundante do ser social, ocupa lugar central, como sendo a atividade vinculada à autorrealização da existência humana, orientada à vida objetiva, envolvendo a participação ativa (colaborativa) do aluno nas relações (coletiva) e produções humanas.
Em suma, essa concepção ancora-se em propósitos que objetivam o desenvolvimento do humano em sua integralidade, ou seja, que desenvolva as máximas as potencialidades e possibilidades do indivíduo. A defesa de Vigotski tem como princípio uma educação de base social e política, fundada no aniquilamento das fronteiras que separam pessoas com deficiências daquelas consideradas normais, incluindo-as nas mais variadas formas de trabalho, pois, nesse campo “trabalhar não significa saber fazer carpintaria ou trançar um cesto, mas algo muito mais profundo” ( Vygotski, 1997 , p. 85). Por essas premissas o autor já vislumbrava a participação ativa dos surdos nas atividades laborais vinculadas às complexidades da vida fora da escola, “sem enfoque filantrópico-inválido da educação de surdos” ( Vigotski, 2019 , p. 176). A educação social possibilitaria a “garantia ao surdo tudo o que a ela está relacionada: a comunicação, linguagem e a consciência”( Vigotski, 2019 , p. 176).
Por fim, na perspectiva vigotskiana, almejamos para os surdos uma educação que promova a formação integral do desenvolvimento cultural da personalidade, respeitando suas especificidades linguísticas e cultuais, passando pelo reconhecimento coletivo e colaborativo de sua diversidade cultural.










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