No processo de seu desenvolvimento, a criança não só cresce, não só amadurece, mas, ao mesmo tempo – e isso é a coisa mais fundamental que se pode observar em nossa análise da evolução da mente infantil – a criança adquire inúmeras novas habilidades, inúmeras novas formas de comportamento. No processo de desenvolvimento, a criança, não só amadurece, mas também se torna reequipada. ( Vygotsky & Luria, 1996 , p. 177)
Algumas aprendizagens
Vigotski* – “um visitante do futuro em seu tempo” ( Vygotsky & Luria, 1996 , contracapa) – é considerado autor de uma abordagem complexa, que traz contribuições a muitas áreas do conhecimento e que passa a ser mais compreendida nos dias de hoje.
Nesta homenagem: “100 anos de Estudos em Defectologia, de Vigotski”, é importante fazer uma revisitação e uma reflexão sobre a influência de seus estudos nos dias atuais e no olhar avaliativo, a respeito de pessoas que apresentam deficiências físicas ou psicológicas. Um de seus primeiros estudos foi voltado para pessoas que apresentavam deficiências físicas ou mentais. Segundo Van Der Veer e Valsiner (1996 , pp. 74-75), “ele afirmava que todas as deficiências corporais – seja a cegueira, surdo-mudez ou um retardo mental congênito – afetavam, antes de tudo, as relações sociais da criança, e não suas interações diretas com o ambiente físico”.
Wertsch (apud Vygotsky & Luria, 1996 , pp. 9-13) conta que os dois autores, no estudo do comportamento, destacam três linhas a respeito da origem do desenvolvimento: uma linha evolucionista que ressalta a importância da filogênese em seus estudos; uma linha histórica que destaca o trabalho e o uso de signos psicológicos no homem primitivo, que difere do uso de instrumentos pelos macacos; a ontogênese, por meio da qual rompem com a ideia de que o desenvolvimento da criança é natural e repete o desenvolvimento da filogênese. Consideram, sim, que o desenvolvimento na infância parte de condições naturais e conta com a mediação da cultura, tornando-se um desenvolvimento psicológico cultural.
A maioria dos estudos, na época, que fazia uma análise genética do desenvolvimento e do comportamento na infância, detinha-se apenas à análise genética voltada à ontogênese.
Ao definir em detalhe os domínios da filogênese, da história sociocultural e da ontogênese, Vigotski e Luria assumem uma posição anti-recapitulista muito vigorosa e rejeitam afirmações a respeito de mero paralelismo entre os domínios genéticos no processo do desenvolvimento. Em sua introdução, afirmam que cada domínio representa uma nova era na evolução do comportamento. (Wertsch, apud Vygotsky & Luria, p. 1996, p. 10)
Uma de suas maiores preocupações científicas era confirmar a premissa de que a explicação da existência da consciência humana não poderia ser dada pela evolução natural do desenvolvimento humano, e sim pela concepção de que as formas ativas dos seres humanos em seus ambientes também mudavam os processos mentais das pessoas que ali viviam. Acreditavam que os seres humanos usavam instrumentos e, com eles, modificavam o ambiente, ao mesmo tempo em que eram modificados por ele. Este tornou-se um princípio básico da psicologia materialista: os processos mentais dependem das formas ativas da vida, e não, simplesmente, de uma evolução natural.
Além dos produtos das gerações anteriores, Vigotski e Luria consideravam as relações sociais, a exposição a um sistema linguístico e os instrumentos utilizados em um determinado contexto, como decisivos para o desenvolvimento da consciência humana. A isso se referiam como o desenvolvimento sócio-histórico da consciência.
Assim, fala-se em formação social da mente, já que o momento histórico e a cultura de determinada comunidade criam motivos, novos problemas, novas formas de comportamento, novos jeitos de assimilar a informação, novas expressões da realidade; por isso, Vigotski e os estudiosos que compartilharam com ele o tão efusivo momento de pesquisas acreditavam que o desenvolvimento da mente humana é determinado pelas formas sociais vivenciadas.
A pesquisa realizada, sugerida por Vigotski e coordenada por Luria – cujo material foi colhido entre 1931 e 1932, na Ásia Central, em momentos de mudanças culturais, apresentada por Luria em 1976 e publicada em português em 1990 –, conclui que as atividades exercidas pelos pesquisados, de distintas regiões e formas de produção, trazem modos diferentes de pensar, os quais não os tornam inferiores, nem primitivos, como se pensava; porém, expostos a novas condições de atividade cultural, apresentavam outras formas de pensar e de resolver problemas.
Segundo Luria (1990 , p. 215),
Os fatos demonstram, de maneira convincente, que a estrutura da atividade cognitiva não permanece estática ao longo das diversas etapas do desenvolvimento histórico e que as formas mais importantes dos processos cognitivos – percepção, generalização, dedução, raciocínio, imaginação e autoanálise da vida interior – variam quando as condições da vida social mudam e quando rudimentos de conhecimento são adquiridos.
Na análise ontogenética que caminha na linha da infância à vida adulta, ( Luria, 1988 ) identificam-se as funções elementares – processos naturais proporcionados pela herança biológica – que se transformam em funções mentais superiores à medida em que são mediadas pela cultura. À medida que as funções superiores tomam forma, a estrutura total do comportamento vai se modificando.
Quando essa herança biológica trazia alguma deficiência, denominada na época de defeito, Vygotsky (1996) chamava atenção para o fato de que a Psicologia, até então, preocupava-se com as características negativas que o defeito poderia trazer para o desenvolvimento da capacidade mental da pessoa que a portava.
Ele alertava que, ao comparar a criança defeituosa à criança considerada sadia, corria-se o risco de desprezar o mais essencial, o real interesse da Psicologia: as características positivas daquela pessoa.
Esse fato poderia dificultar o aparecimento do que chamou de compensação do defeito . Tal compensação poderia ser feita a partir do defeito natural, por iniciativa da própria pessoa deficiente, possibilitando a ela resultados de supercompensação e tornando menor o impacto que aquela deficiência poderia causar na sua vida.
Por outro lado, os recursos sociais que buscavam complementar essa compensação eram tidos como fatores de incremento da possibilidade de ampliação do desenvolvimento do comportamento e da transformação de funções elementares em funções superiores, e a ignorância das possibilidades do sujeito poderia obnubilar a criação de tais recursos.
Em relação às pessoas que apresentavam rebaixamentos cognitivos, por exemplo, os estudos da Psicologia Materialista produziam perguntas e respostas distintas das que eram produzidas naquele momento histórico. Será mesmo que uma criança com rebaixamento cognitivo funciona, em todos os aspectos, num nível aquém ao de uma criança considerada normal, da mesma idade?
Os estudos e as pesquisas mostraram que, por exemplo, a percepção visual e a memória natural apresentavam desempenhos semelhantes ou melhores do que apareciam nas avaliações de crianças consideradas normais ou talentosas.
As perguntas ligadas à identificação de pessoas talentosas levaram Vigotski e Luria a entender que não existe uma pessoa talentosa, mas que os seres humanos possuem talentos em algumas funções e em outras não, e que, como no caso dos rebaixamentos intelectuais, as pessoas não são para sempre como se apresentam. Os processos mentais modificam-se no meio social, dependendo das mediações que ali acontecem.
Não podemos nos esquecer de que certas pessoas, indiscutivelmente bem-dotadas, muitas vezes possuem capacidades naturais deficientes, de que uma deficiência natural não continua, necessariamente, sendo uma falha por toda a vida de alguém, e de que pode ser preenchida e compensada no decorrer da vida por outros dispositivos artificiais. [...] Ao mesmo tempo, há outros exemplos nos quais boas capacidades naturais permanecem represadas. ( Vygotsky & Luria, 1996 , pp. 236-237)
Dispositivos artificiais são, para Vigotski e Luria, as invenções que possibilitam o ser humano de hoje enfrentar o mundo com menos desgaste de energia.
Segundo Vygotsky e Luria (1996) , o ambiente cultural e industrial do mundo moderno vai modificando gradativamente o cérebro e seu funcionamento.
Hoje pode se dizer que as mudanças culturais, industriais e tecnológicas vão provocando alterações nos mecanismos de coexistência. Quanto mais o ser humano cria dispositivos artificiais para enfrentar o mundo, mais esses dispositivos transformam o ambiente, tornando-o carregado de novos elementos culturais, que vão sendo interiorizados pelos seres humanos, que também se modificam tanto em sua constituição física quanto mental .
Assim, para Vygotsky e Luria (1996 , p. 179), “o comportamento torna-se social e cultural não só em seu conteúdo, mas também em seus mecanismos e em seus meios”. Assim, surgem sistemas estruturais, um desenvolvimento mais sofisticado de linguagem e pensamento, formas de comunicação distintas, ideias mais abstratas e outras habilidades culturais.
Vencendo conflitos cognitivos entre fundamentos e ação
Essas contribuições de Vigotski e de seus companheiros de pesquisa, estudos e discussões, dialogaram muito com a autora desde o início da década de 1980, quando uma colega de trabalho, chegada de um mestrado na Polônia, trouxe materiais desse pensador. Vigotski e suas ideias estavam recém chegando ao Brasil. Assim, ela conheceu textos traduzidos pela colega, mas teve dificuldades em encontrar outros materiais, até que, na metade daquela década, começou a aparecer parte da obra de Vigotski e de seus companheiros traduzida em português.
Então, faziam trocas de material, organizavam grupos de estudos e discussão, para compreender essa nova forma de ver o comportamento humano em seu processo de viver e aprender o mundo.
No percurso pessoal e profissional da autora, os saberes e aplicações mais interiorizados estavam relacionados a Piaget e a todos os autores do construtivismo que se estava conhecendo na época. Um pouco mais tarde, conheceu e também estudou Paulo Freire, Darci Ribeiro, Florestan Fernandes e Antonio Gramsci, entre outros, em sua primeira especialização, em Psicologia Escolar e da Aprendizagem, por ocasião da abertura política no Brasil na década de 1980.
Esses autores tinham propostas e reflexões mais próximas às de Vigotski. Foram intensos conflitos internos de caráter cognitivo e afetivo (em relação às situações de aprendizagem) para que Vigotski pudesse “conversar” com os autores já reconhecidos por ela, encontrar seu lugar dentro de seus esquemas de aprendizagem.
Aos poucos, continuou mantendo sua visão de mundo voltada à concepção histórico-crítica, mas possibilitou um diálogo entre Piaget e Vigotski em sua práxis profissional, principalmente quando conheceu a Epistemologia Convergente, proposta por Pichon-Rivière para a Psicologia Social e por Jorge Visca para a Psicopedagogia, assim como quando estudou, em Vigotski, as questões ligadas ao pensamento primitivo e à linguagem da criança pequena.
O trabalho de Vigotski “conversava” com inúmeros pesquisadores, inclusive com Piaget; então, como fruto da pesquisa desses dois autores em sua fundamentação e em seu fazer profissional, foi sendo superado o rigor existente na época, o qual não admitia a articulação dos conhecimentos.
Nas obras então estudadas, Vigotski trata todos os autores, em seu caminho de pesquisa, considerando o tecido de saberes até aquele momento para, a partir dali, questionar, pesquisar e concluir. Assim, Vigotski passou a ser um modelo de cientista, que deve ser um exemplo para o cenário científico, mostrando um respeito e uma ética impressionantes quando cita os autores, apresenta suas pesquisas e avança a partir do que compreendeu e pensou, sendo fiel à sua posição filosófica e científica, sem ter que destruir a pesquisa que lhe possibilitou ir além.
Todo inventor, até mesmo um gênio, sempre é consequência de seu tempo e ambiente. Sua criatividade deriva das necessidades que foram criadas antes dele e baseia-se nas possibilidades que, uma vez mais, existem fora dele. É por isso que observamos uma rigorosidade no desenvolvimento histórico da tecnologia e da ciência. Nenhuma invenção ou descoberta científica aparece antes de serem criadas as condições materiais e psicológicas necessárias para o seu surgimento. (Vigotski apud Van Der Veer & Valsiner, 1996 , p. 12)
Essa visão de Vigotski, que se pode qualificar de humildade e que autorizou a promoção do diálogo entre distintos autores, tinha a ver com o que ele acreditava sobre o homem como ser histórico. Diante dos elogios referentes a estar 50 anos adiantado no tempo, ele dava o crédito aos seus antecessores que pensaram, pesquisaram e registraram nas décadas de 1890 e 1900, o que lhe possibilitou novas pesquisas.
As contribuições de Vigotski para a práxis psicopedagógica
Pesquisas
Além de contextualizar o trabalho sobre a aprendizagem humana numa visão de desenvolvimento histórico a partir dos animais ancestrais do ser humano, passando pela história sociocultural, os estudos ontogenéticos de Vigotski podem fundamentar o trabalho com aprendizes, tanto individuais quanto em grupo. Ele aborda pesquisas que vão mostrando os processos mentais, sem a ideia de classificação em categorias imutáveis, mas acreditando que os processos mentais podem se modificar a partir da mediação da cultura e do conhecimento. Isso pode interessar, e muito, à Psicopedagogia, área da contemporaneidade, que estuda e atende os processos humanos de aprendizagem.
Vigotski apresenta uma teoria revolucionária para época, pois foi capaz de comprovar a maleabilidade dos processos mentais e a importância de não se inferiorizar uma pessoa por apresentar um defeito, nem generalizar o impacto que esse pode causar, quando se imagina que todas as funções mentais também apresentarão algum déficit.
Nesse sentido, outra preocupação está relacionada à não desvalorização de uma pessoa por pensar diferente, por processar mentalmente de forma distinta da maioria, por ter tido um caminho diferente em sua história de vida, um contato com culturas distintas, não frequentando o ensino formal, por exemplo.
Partindo da forma de ver decorrente, por exemplo, da pesquisa feita entre 1931 e 1932 ( Luria, 1990 ), é preciso questionar por que ainda hoje tem-se uma incompreensão em relação a isso, principalmente em relação aos aprendizes que trazem, em seu currículo oculto, saberes distintos do que a escola espera e podem ser considerados incapazes para aprender, ou crianças com muitas dificuldades, ou pessoas em cujas possibilidades de mudança a partir das interações com o conhecimento e com a sua cultura ainda não se acredita.
Na mesma pesquisa, buscou-se compreender o pensamento de pessoas não expostas a um programa de formação mais completo: mulheres que viviam em vilarejos, analfabetas, camponeses que viviam em locais distantes, mulheres que faziam cursos rápidos para trabalhar em creches, trabalhadores de fazendas, alguns com cursos rápidos, e mulheres que estudavam dois ou três anos para desempenhar o papel de professoras. A pesquisa buscou avaliar processos mentais ligados à percepção, à generalização e à abstração, à dedução e à inferência, ao raciocínio e à solução de problemas, à imaginação e à autoanálise. Em muitas das respostas dos entrevistados, encontraram dois tipos de pensamento: um situacional, ligado às vivências e à prática, e um categorial, apto para expressar a capacidade de abstração, organizando o pensamento em categorias.
Essa parece ser uma das grandes contribuições de Vigotski para o pensamento atual a respeito do que seja inclusão. Na mentalidade das escolas, com o objetivo de possibilitar a aprendizagem de uma pessoa que está apresentando dificuldades, está instalada a necessidade de laudos médicos que indiquem o nome da dificuldade ou do talento, como se todas as pessoas que apresentassem tal diagnóstico necessitassem da mesma forma de trabalho.
Normalmente, os laudos vêm com o nome e o número, os quais indicam uma determinada dificuldade, um determinado distúrbio ou transtorno; porém, dificilmente trazem as questões ligadas ao contexto cultural e histórico daquela pessoa.
Alguns profissionais apresentam páginas e páginas de resultados em forma de gráficos, códigos e percentagens; no entanto, no resultado final, dificilmente consideram o percurso do sujeito, as relações que esse percurso histórico, em determinado contexto cultural, pode contribuir para a compreensão daquele resultado. Por outro lado, há profissionais que, em uma olhada de poucos minutos, categorizam os sintomas que o sujeito apresenta, consultando um manual que agrupa sinais e sintomas e, em uma única página, apresentam o nome do problema e a solução pedagógica, psicológica ou psicopedagógica, sem nem mesmo ter estudado com profundidade o que indicam.
Também há processos de avaliação que trabalham para compreender os sinais e sintomas que o sujeito apresenta e, com um caráter interdisciplinar, buscam compreender o funcionamento do aprendiz. Fazem isso com o intuito de provocá-lo e compreendê-lo como alguém que tem, a partir das suas possibilidades, meios para desenvolver recursos que compensam suas faltas, que possibilitam a transposição de obstáculos, que o colocam em uma posição ativa, que pode participar de seu avanço em direção a um aprendizado maior do que o anterior.
A ideia é a de que os laudos possam ser substituídos por informações a respeito de como aquele sujeito aprende, as quais contribuam para a compreensão daqueles que acompanham os processos de aprendizagem e possam desempenhar o papel de mediadores da cultura para ele.
Somente saber o nome de uma dificuldade de aprendizagem, de um distúrbio ou transtorno de nada adianta se profissionais que diagnosticam e profissionais que acompanham processos de aprendizagem não souberem ler a pessoa que aprende, seu contexto, seu percurso histórico, a fim de localizar possibilidades, que são o ponto de partida de qualquer processo de aprendizagem.
Como abordaram Vigotski e Luria, a respeito de que as possibilidades precisam ser entendidas como talento cultural, ou seja, adquiridas na interação com a cultura,
[...] essas formações psicológicas são produto da influência social sobre o ser humano; são a representação e o fruto do ambiente cultural externo na vida do organismo. Todas as pessoas têm essas formações mas, dependendo da história de cada pessoa e da plasticidade variável de suas capacidades constitucionais originais, elas são ricamente desenvolvidas em uma pessoa e, em outra, encontram-se em embrião. ( Vygotsky & Luria, 1996 , pp. 237-238)
Quando os autores fazem tal afirmação, referem-se a instrumentos que fazem medições descoladas das influências sociais; ao ver deles, estão medindo as capacidades inatas, que são apenas um ponto que indica de onde partir e que, ao utilizar a mediação, pode-se chegar a resultados diferentes.
Eles mesmos questionam-se: O que constitui o desenvolvimento cultural e como se deve proceder para defini-lo e avaliá-lo com testes psicológicos específicos? Ao que respondem, dizendo que o grau de desenvolvimento cultural aparece não somente tendo-se em vista o conhecimento adquirido, mas observando-se como são utilizados os objetos culturais e, também, como a pessoa coloca em prática seus processos psicológicos.
Não basta avaliar aquisição de conhecimento, mas sim as suas aplicações no cotidiano. Por isso, nos instrumentos de pesquisa encontrados em seus estudos, a mediação e o conceito de zona de desenvolvimento proximal são tão importantes. O método de pesquisa experimental utilizado por Vigotski conta com a mediação da linguagem, tanto oral quanto escrita. A conversa, em pequenos grupos ou em situações de investigação individual, poderia até anteceder o momento da investigação em si; e as perguntas que pudessem existir a partir das primeiras respostas iam trazendo a característica do desenvolvimento cultural das pessoas avaliadas.
Assim como Piaget, Vigotski também utilizou o método experimental, o qual conta com novas questões, contra-argumentos e problematizações na interação do examinador com seu investigado, sendo uma contribuição pertinente para o desenvolvimento avaliativo dos profissionais da Psicopedagogia.
Por meio dos exemplos, as pesquisas estudadas trazendo a forma de interagir com o entrevistado, considerando o caráter dialógico da entrevista, principalmente no sentido da compreensão do pensamento da pessoa, em cada desafio apresentado, nas distintas funções superiores investigadas.
Neste trabalho, a autora faz um recorte, visando apresentar alguns instrumentos que podem ser utilizados nas situações de intervenção psicopedagógica, desde que se considere a sua origem e não sejam simplesmente utilizados como mais uma possibilidade classificatória, mas sim utilizados como instrumentos que contribuam para se constatar o momento do processo em que a pessoa avaliada se encontra.
Foram escolhidos dois instrumentos para compreender o funcionamento do pensamento de pessoas, apoiados nos estudos de Vigotski, sem a intenção de quantificar, mas de entender como o caminho utilizado pelo sujeito que aprende contribui mais ou menos para a compreensão do seu processo de aprender – mais próximo às lembranças das vivências ou mais elaborado a partir das relações formais aprendidas na escola.
1) Método da dupla estimulação
Apresentado por Vygotsky (1987) , é inspirado nos experimentos de Ach e Rimat, adaptado com a utilização do método de Sakharov e que trata da formação de conceitos, sem permitir a experimentação inicial originalmente sugerida por Ach. O material combina cinco cores diferentes, seis formas distintas, com duas alturas e duas larguras, combinada com quatro palavras sem sentido (CEV, LAG, MUR, BIK), o qual é utilizado com o objetivo de ver se o sujeito já atingiu um nível conceitos abstratos.
Esse material foi aplicado em pessoas de várias idades e permitiu a Vigotski constatar que: crianças pequenas pouco expostas a uma educação formal focada em conceitos respondem baseadas em suas categorias; crianças mais velhas buscam a comparação entre os objetos, sem conseguir chegar a uma categoria abstrata, mas já percebendo distintos atributos; adolescentes escolarizados mostram a influência dos conhecimentos formalizados em suas possibilidades de abstrair e formar conceitos.
Hoje, tendo esse recurso aplicado em aprendizes com idade a partir de 11 anos, busca-se entender em que fase da formação de conceitos eles se encontram.
Como Vigotski não apresentou o experimento completo em seu livro, nos grupos de estudos dos quais a autora participava na época (início da década de 1980) foi buscada em uma tradução mais completa, não publicada, a forma como Ach utilizava o material. Fez-se, então, a mesma adaptação sugerida por Vigotski. Entregava-se o material todo misturado, com as palavras escondidas na parte de baixo da peça, e pedia-se para a pessoa separar aquelas peças em grupos; depois, pedia-se que explicassem por que separaram daquela forma; então, viravam-se duas peças de cada vez, a fim de que a pessoa percebesse se a sua separação fazia sentido ou não e, assim, sucessivamente. Era permitida a manipulação para as mudanças, mas não a visualização da palavra escrita embaixo de cada peça. Somente as peças viradas pelo examinador permaneciam com as palavras à mostra. Eram quatro palavras sem sentido, e cada palavra indicava uma dupla de atributos das peças que a possuíam. Por exemplo, CEV era a palavra que se encontrava embaixo das peças pequenas e baixas.
Vygotsky (1987) indicou as possíveis respostas ao experimento. a) Agrupamento de forma desorganizada ou amontoada: estágio de tentativa e erro; estágio da organização do campo visual; estágio mais elaborado, mas ainda sincrético, tira de um grupo e junta ao outro, com as conexões não objetivas. b) Agrupamento demonstrando um pensamento por complexo: tipo associativo (por semelhanças); com associação por contraste; coleções; complexos em cadeias; complexo difuso; pseudoconceito. c) Pensamento por conceitos: agrupamento com base na máxima semelhança; conceitos potenciais (precursores de conceitos); conceitos (sínteses abstratas).
Para constatar se os conceitos construídos são capazes de ser verbalizados, depois do agrupamento que revela conceitos abstratos, pede-se que a pessoa imagine a si mesmo como um escritor de dicionário e escreva o significado das palavras sem sentido que se encontram embaixo das peças que formaram aquele conjunto – CEV, LAG, MUR e BIK.
Essa é uma prova mediada, é não é possível indicar se o sujeito se encontra num nível de abstração – conceito abstrato – ou em qualquer fase anterior, embora Vigotski alerte para o fato de que nenhuma forma de expressão, na construção de conceito, apareça pura. Elas misturam-se e, quando a pessoa se dá conta, ela já chegou ao pensamento por conceitos.
Assim, segundo Luria, Vigotski conclui:
[...] não há dúvida de que a transição do pensamento situacional para o pensamento taxinômico conceitual está relacionada a uma mudança básica no tipo de atividade em que o indivíduo está envolvido . Enquanto a atividade está enraizada em operações gráficas, práticas, o pensamento conceitual depende das operações teóricas [...] resulta na formação de conceitos “científicos” e não cotidianos. [...] Como Vygotsky observou, enquanto impressões emocionais ou ideias concretas dão colorido ao significado das palavras nos estágios iniciais do desenvolvimento, um sistema semântico historicamente desenvolvido controla o significado posteriormente, de modo que as palavras funcionam para produzir abstrações e generalizações. ( Luria, 1990 , p. 70)
Para Luria (1990) , Vigotski baseou essas conclusões em investigações realizadas na linha da ontogênese; no entanto, restava esclarecer de que forma isso se dava nos estágios consecutivos da sociedade humana; e também como esse desenvolvimento acontecia em distintas culturas existentes no mundo e nas comunidades em que sistemas de formalização do pensamento não são privilegiados e em que predominam atividades consideradas mais rudimentares. Então, nasce a pesquisa realizada na Ásia Central, com a utilização de tantos outros recursos, dos quais serão salientados alguns que podem ser utilizados hoje em dia para compreender o funcionamento do pensamento das pessoas que procuram a Psicopedagogia.
2) Pensamento situacional ou categorial
Uma outra forma de conhecer como os sujeitos pensam e estão utilizando seu pensamento é proporcionada pelo material que possibilita observar o pensamento classificatório, mais aproximado da generalização e da abstração, ou das situações práticas vividas pelas pessoas investigadas.
Naquela pesquisa realizada entre 1931 e 1932 ( Luria, 1990 ), um dos instrumentos utilizados era um grupo de quatro desenhos, com os quais era possível formar agrupamentos, cujo pensamento base fosse categorial ou situacional. Por exemplo: um grupo que contivesse o desenho de um martelo, um serrote, uma tora de madeira e um machado – ou uma situação de serrar ou cortar uma tora ou um tronco de madeira – cumpria com esse objetivo, pois a classificação poderia ser realizada tendo em vista a categoria “ferramentas”.
Enquanto, naquela pesquisa, eram utilizados desenhos que tinham relação com a vivência das pessoas, naquela cultura e naquela época, é possível organizar grupos de desenhos ou imagens relacionados à cultura e à época atuais, que contribuam para o entendimento do quanto as pessoas são capazes de pensar considerando elementos mais práticos ou mais abstratos, como também a forma com a qual as palavras são utilizadas para expressar uma ou outra forma de pensar.
Na formação de psicopedagogos, a autora tem utilizado a construção do material, com a intenção de exercitar um olhar não patologizante, mas atento à evolução do pensamento e da linguagem.
Nesse exercício, também tem encontrado três possíveis tipos de respostas: respostas inspiradas nas atividades cotidianas, denotando um pensamento situacional; respostas que ora abstraem e trazem o conceito, e ora prendem-se à experiência prática; respostas que revelam o pensamento abstrato, capaz de estabelecer categorias e chegar a um conceito, denotando um pensamento categorial.
Ensaio: Imaginação e criação na infância
Outra grande contribuição de Vigotski para a práxis psicopedagógica de hoje está relacionada a um de seus primeiros ensaios: Imaginação e criação na infância, relacionado ao desenvolvimento da dimensão simbólica do pensamento. Segundo Vygotsky (2018) , o cérebro humano possui duas importantes atividades: uma reprodutora, ligada à função da memória, e outra criadora, capaz de combinar as experiências vividas e imaginar situações passadas não vividas e situações que ainda não aconteceram.
Para Vygotsky (2018 , p. 15), “o cérebro não é apenas o órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, mas também o que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novo comportamento”. Ele acredita que é esse processo criador que faz com que se combinem experiências vividas pela pessoa com as vividas por outras pessoas, projetando-se para o futuro e modificando o presente. Nesse sentido, entende a imaginação como base da atividade criadora que se manifesta tanto no campo artístico quanto no técnico e científico.
Esse estudo de Vygotsky (2018) oferece, para os profissionais que possuem como objeto de atenção a aprendizagem humana, quatro formas importantes para entender as relações entre a imaginação e a realidade. Tais formas mostram que imaginação não é apenas uma ação destinada à diversão, à brincadeira infantil, mas é uma função psicológica superior, necessária à vida.
A primeira forma é a primeira lei da constituição da imaginação: “a atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência constitui o material com que se criam as construções da fantasia.” ( Vygotsky, 2018 , p. 24). Isso quer dizer que quanto mais experiências significativas, mais recursos a pessoa possui para enriquecer sua imaginação. Experiências vividas alimentam e possibilitam a formação de imagens mentais a ser combinadas e utilizadas em ações posteriores. Assim, a fantasia, ao invés de opor-se à memória, aproveita das lembranças registradas para criar combinações não encontradas na realidade.
O segundo jeito de a fantasia relacionar-se com a realidade tem a ver com a ampliação das possibilidades de formar imagens mentais para além da experiência vivida. Com relatos das vivências de outrem, é possível fazer combinações com a imaginação já desenvolvida e imaginar algo que ainda não foi vivenciado, mas é real, pois foi vivido por outra pessoa.
Nesse sentido, a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e desenvolvimento humano. Ela transforma-se em meio de ampliação da experiência de uma pessoa porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, ela pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua própria experiência. [...] Se, no primeiro caso, a imaginação apoia-se na experiência; no segundo, é a própria experiência que se apoia na imaginação. ( Vygotsky, 2018 , pp. 26-27)
A terceira forma de relação entre a fantasia e a realidade é apontada como uma forma que envolve a emoção e, ao explicar esse envolvimento, denomina-a como a lei da expressão dupla do sentimento, que aparece subdivida entre a lei do signo comum e a lei da realidade emocional da imaginação.
A lei do signo comum possibilita que a pessoa faça combinações de imagens que possuem um tom afetivo comum, pois se assemelharam em suas vivências não por terem características lógicas comuns, mas por terem gerado na pessoa sentimentos semelhantes, de repulsa ou de aproximação. Com isso, as combinações realizadas são totalmente inesperadas, pois são criadas a partir da marca afetiva que uma determinada situação deixou internamente. Elas têm a ver com estados de ânimo vividos e que ficam marcados internamente, de tal forma que objetos ou situações podem remeter ao mesmo estado de ânimo já vivido. Um exemplo pode ser o da criança que se assusta com o palhaço de nariz vermelho e, por isso, não gosta de objetos que possuem essa cor. Então, o sentimento influi na imaginação.
A lei da realidade emocional da imaginação leva o sujeito a combinações fantasiosas que provocam sentimentos, a despeito de não serem realidade. Por exemplo, uma criança que sente medo à noite por imaginar que a sombra de um brinquedo projetada na parede, por uma incidência luminosa, seja um monstro. A imagem criada por ela é fruto da sua fantasia, mas o medo é real e precisa ser compreendido como tal.
As duas leis podem também se relacionar a sentimentos positivos. Na primeira, a criança, diante do palhaço, pode ter um sentimento de alegria, de graça, provocando imagens agradáveis em relação ao vermelho; na segunda, a criança pode realizar, a partir da sombra, uma combinação que remeta a uma imagem ilusória de alguém que está ali para proteger e não para ameaçar, gerando um sentimento de alívio.
É importante considerar os fatores emocionais que envolvem o desenvolvimento da imaginação; isso também tem a ver com os estados de ânimo das pessoas que aprendem e com a possibilidade de realizar combinações ilusórias que podem gerar sentimentos distintos.
Finalmente, a quarta forma de relação entre a fantasia e a realidade é descrita por Vygotsky (2018 , pp. 30-31): “a sua essência consiste em que a construção da fantasia pode ser algo completamente novo, que nunca aconteceu na experiência de uma pessoa e sem qualquer correspondência com algum objeto realmente existente”. Essa forma está relacionada à capacidade de inventar dos seres humanos. Ao ser concretizada, a combinação imaginária realizada passa a existir no mundo, a ter uma utilidade e a influir no movimento da vida real. É resultado de um ciclo que combina a experiência pessoal, a experiência dos outros, os sentimentos gerados pelas necessidades, pelos sonhos e pelo pensamento racional, o qual, fruto da imaginação, transforma-se em ato de criação e concretiza-se. No entanto, não acontece somente como objeto de utilidade, no campo da técnica, mas também no campo das ciências e das artes.
Ideias, conceitos resultados de pesquisas presentes nas práticas atuais
Quando se trabalha em Psicopedagogia a partir da Caixa de Trabalho ou dos Projetos de Aprender, dos Jogos e Brincadeiras, por exemplo, tem-se a oportunidade de desenvolver a exploração e as vivências brincantes. Estas, mobilizadas pelo interesse da criança ou do adolescente, no momento de atendimento, vão possibilitar a ampliação de repertório, a utilização de instrumentos criados para formação de mais imagens mentais, o aumento de combinações e o desenvolvimento da imaginação.
Também vão colocar em ação a imaginação até ali desenvolvida, por meio de atividades criadoras tanto no campo artístico (das artes plásticas, da literatura, da música, da danças e outras), no campo técnico (construção de maquetes, instalações usando a eletricidade, execução de receitas, confecção de objetos, como caixas, prateleiras e jogos de tabuleiros), como no campo científico (realização de experiências com água, com magnetismo, observação e registros em distintos espaços, observação de comportamentos de plantas e animais, criação de experiências culinárias e outros), contribuindo para transformar funções elementares em processos mentais superiores.
Muitos desses aprendizes não são introduzidos no mundo social e são incentivados a continuar com a sua forma primitiva, instintiva, de ser, como diria Vygotsky (1996) . Pouco se estimula o uso das regras e dos instrumentos construídos para resolver problemas, para além da idade inicial em que isso é esperado e possível. Algumas crianças usam chupeta ou mamadeira até seis ou sete anos. Não usam a louça e os talheres necessárias para ser introduzidas na cultura e deixar que a cultura seja convidada para transformá-las. Algumas não aprendem a limpar a si mesmas, a fazer sua higiene pessoal até sete ou oito anos, por exemplo. Outras não aprendem a arrumar suas camas, a lavar seus pratos, a contribuir nas tarefas de casa até seus quatorze ou quinze anos...
Assim, essa não participação do mundo sociocultural na formação dos sujeitos tem dificultado a aprendizagem da apropriação das ferramentas necessárias para aprender o mundo e para desenvolver comportamentos esperados pela sociedade, na qual o sujeito nasceu e da qual é integrante.
Vigotski encontra-se na prática psicopedagógica de muitos dos profissionais dessa área! Então, uma grande homenagem a ele!