Introdução
A leitura é uma habilidade complexa, pois envolve aspectos linguísticos, cognitivos e ambientais, essenciais para a adequada inserção social. Nesse sentido, a leitura possibilita a ampliação do vocabulário, melhorias na produção escrita e construção de novos saberes por meio da integração de conhecimentos (Cruz & Silva, 2017). Diferentemente da aquisição da linguagem oral, que ocorre naturalmente por meio de interações comunicativas com o meio em que está inserida, a aprendizagem da leitura exige um ensino formal.
A aquisição da leitura consiste em um processo interativo que passa por três níveis: logográfico, alfabético e ortográfico (Frith, 1985). Na etapa inicial – nível logográfico – a criança é capaz de reconhecer palavras familiares que pertencem ao seu léxico de input visual. Para isso, considera características gráficas sem obedecer a organização das letras na formação da palavra, tampouco as características fonológicas. Na etapa seguinte – nível alfabético – a criança passa a identificar o alfabeto e a desenvolver a habilidade de consciência fonológica. Nesse nível ocorre a aprendizagem da relação grafema-fonema sem que o texto seja compreendido. Por fim, no terceiro nível – ortográfico – a leitura passa a ser automatizada, pois a criança já desenvolveu a consciência fonológica e a decodificação da palavra ocorre de forma fluida. Nesse nível, a rota lexical passa a ser predominante e ocorre a compreensão do material lido (Frith, 1985).
Diversas habilidades vêm sendo discutidas na literatura como preditoras da leitura, a saber: processamento fonológico, que inclui a consciência fonológica, memória de trabalho fonológica e nomeação automática rápida (Navas et al., 2014; Schoenel et al., 2020; Stappen & Reybroeck, 2018); e o vocabulário (Guimarães & Mousinho, 2019; Nalom et al., 2015; Sidek & Rahim, 2015). Além dessas habilidades, fatores ambientais, como aspectos socioeconómicos, culturais e emocionais também podem influenciar o desempenho em leitura (Oliveira et al., 2016). No entanto, alguns deles são, com mais frequência, associados a habilidades específicas de leitura do que outros, como: a consciência fonológica, que está fortemente relacionada com a decodificação de palavras, devido à influência na rota fonológica da leitura (Tambyraja et al., 2015) e o vocabulário, considerado o principal preditor da compreensão leitora (Guimarães & Mousinho, 2019; Sidek & Rahim, 2015).
Quando se trata do desenvolvimento da linguagem escrita, o vocabulário é um alicerce para adquirir habilidades de alfabetização (Guaresi et al., 2017), pois à medida que a criança maximiza seu arcabouço lexical, o processo de decodificação se torna mais rápido e, consequentemente, o vocábulo passa a ser compreendido com mais facilidade. Em consonância, acredita-se que quando uma criança é capaz de compreender a linguagem escrita, uma relação de reciprocidade é consolidada entre leitura e vocabulário (Nalom et al., 2015).
Apesar de o vocabulário exercer importante função para o desenvolvimento da leitura, outros fatores que podem interferir na compreensão leitora vêm sendo investigados, pois crianças que aprenderam a 1er nos anos iniciais da alfabetização muitas vezes começaram a apresentar dificuldade na compreensão de leitura a partir do 5° ano, devido ao aumento da complexidade dos textos, visto que conhecer o significado das palavras e aprender a ler/decodificar não é suficiente para compreender textos. Diante desse cenário, pesquisadores realizaram um estudo para investigar se o desempenho em vocabulário e consciência sintática tem relação com dificuldades de compreensão leitora em estudantes do 5° ano e observaram que as duas variáveis mostraram correlação significativa com a compreensão leitora, pois a dificuldade de compreensão também pode ser justificada pela consciência sintática (Mokhtary & Niederhauser, 2013).
A consciência sintática consiste na habilidade metalinguística de refletir e manipular sobre a estrutura gramatical da língua falada (Cain, 2007). Possui papel importante nos estágios mais posteriores do desenvolvimento da leitura, em especial na compreensão leitora (Bublitz, 2010; Mariángel & Jiménez, 2016), possibilita a compreensão sintática relacionada à organização de uma sentença e a detecção de erros no reconhecimento de palavras por meio de habilidades de monitoramento (Brimo et al., 2017).
Levando em consideração a relação entre compreensão da leitura e consciência sintática, foi observado que a consciência sintática foi um preditor significativo da compreensão leitora ao controlar outras variáveis como idade, sexo, quociente de inteligência não verbal, leitura de palavras, vocabulário oral e consciência morfológica em crianças falantes do espanhol que estavam no 4° ano do Ensino Fundamental (Simpson et al., 2020). Também foi identificada correlação entre o subteste de categorização de palavras da Prova de Consciência Sintática (PCS) com a taxa de acurácia de leitura de texto em um grupo de crianças brasileiras do 4° e 5° ano do Ensino Fundamental sem dificuldades de aprendizagem (Teixeira et al., 2016).
De acordo com o exposto acima, o objetivo deste estudo foi analisar se há influência do vocabulário e consciência sintática na leitura de escolares com dificuldades de aprendizagem.
Método
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (HUOL/UFRN), Brasil, sob o número 1.012.635. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e/ou Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). Estudo documental retrospectivo realizado por meio da análise de prontuários do período de avaliação de 2017 a 2019. Os dados investigados foram a história clínica e a avaliação de pacientes do Laboratório de Linguagem Escrita, Interdisciplinaridade e Aprendizagem do Departamento de Fonoaudiologia da UFRN, que avalia e intervém em crianças e adolescentes com queixas de dificuldades escolares, para identificação de sinais sugestivos de transtornos específicos de aprendizagem. Em geral, esses escolares são encaminhados de outros serviços de saúde, educação, da própria clínica escola de Fonoaudiologia da Universidade, bem como por procura espontânea de familiares.
Para seleção dos prontuários, os seguintes critérios de inclusão foram adotados: (a) dados de crianças que participaram do processo avaliativo fonoaudiológico completo no laboratório com os instrumentos de avaliação propostos nesta pesquisa; (b) prontuários com dados de anamnese que continham queixa de dificuldade de aprendizagem da criança em leitura, escrita e/ou matemática, sem qualquer diagnóstico definido; (c) crianças que estavam matriculadas entre o 2° e 4° ano do Ensino Fundamental no momento da avaliação. Como critério de exclusão, foi considerado: (a) escolares que tinham histórico de déficits sensoriais não corrigidos ou neurológicos e/ou psiquiátricos já diagnosticados, ou seja, que já havia alteração que justificasse a sua dificuldade em aprender.
Participaram do estudo 36 escolares de 7 a 12 anos de idade, provenientes de escolas públicas e privadas. A amostra foi composta por 23 (64%) do gênero masculino e 13 (36%) do gênero feminino, com média de idade de 9 anos e 8 meses (dp=1 ano e 3 meses). Quanto ao ano escolar em que estavam no momento em que foram avaliados, 6 (17%) estavam no 2° ano, 13 (36%) no 3° ano e 17 (47%) no 4° ano.
As avaliações foram realizadas entre duas e três sessões de 45 minutos cada por estudantes de graduação e pós-graduação previamente treinados. As seguintes habilidades foram avaliadas:
Vocabulário receptivo: Teste de Vocabulário por Figuras USP – Tvfusp (Capovilla, 2011). Foi utilizada a versão completa do teste, composta por 139 estímulos, distribuídos em 82 substantivos, 25 adjetivos, 31 verbos e uma preposição. As palavras-alvo são apresentadas oralmente pelo avaliador e a criança deve apontar, entre quatro opções, a imagem que corresponde ao que foi dito. O escore total obtido no teste é a soma dos acertos, que vale um ponto cada, totalizando 139.
Consciência sintática: Prova de Consciência Sintática – PCS (Capovilla & Capovilla, 2006). Instrumento elaborado para avaliar escolares do Ensino Fundamental, a PCS apresenta quatro subtestes. O primeiro, julgamento gramatical (20 itens), avalia se a criança consegue identificar frases com erros gramaticais, morfêmicos (exemplo: sua lápis é azul) ou alterações de ordem (ex.: gosto eu de macarrão); o segundo, denominado correção gramatical (10 itens), avalia se a criança tem capacidade para, além de identificar o erro, corrigir a sentença; o terceiro subteste, correção gramatical de frases com incorreções gramaticais e semânticas (10 itens), avalia se a criança consegue discernir o erro da frase junto da alteração semântica e, mesmo assim, corrigir apenas a agramaticalidade da sentença (ex.: as menina desceu para o céu); e, por fim, o subteste de categorização de palavras (15 itens), no qual a criança deve classificar as palavras fornecidas pelo teste em substantivo, adjetivo e verbo. Esse teste oferece informações acerca do nível de escolaridade da criança, visto que as classes de palavras são um conteúdo acadêmico que necessita de instrução formal na escola. O escore total é obtido por meio da soma dos acertos nos quatro subtestes, que totalizam 55 pontos.
Leitura: para análise do nível e compreensão da leitura, foram utilizados o Protocolo de Avaliação do Nível de Leitura baseado no referencial teórico de Condemarin e Blomquist (1989) e Grégoire e Piérart (1997) e o instrumento Avaliação da compreensão leitora de textos expositivos: para fonoaudiólogos e psicopedagogos (Saraiva et al., 2015). Assim, baseando-se no manual do instrumento, a escolha do texto foi feita de acordo com o objetivo do avaliador e com as características do escolar a ser avaliado. Inicialmente, a leitura era sugerida a partir do nível escolar, porém por se tratar de crianças com dificuldades de aprendizagem, considerou-se a análise com um mesmo texto para que as comparações pudessem ser feitas. Na avaliação do nível de leitura, enquanto a criança realiza a leitura oral, o avaliador observa aspectos como utilização de apoio digital durante a leitura, decodificação de grafemas vocálicos e consonantais, de palavras, leitura de palavras inventadas, presença de entonação, tipo de leitura e velocidade de leitura. De acordo com a análise do instrumento utilizado, o nível de leitura é classificado em logográfico, alfabético, ortográfico, transição logográfico-alfabético ou transição alfabético-ortográfico. Para a avaliação da compreensão leitora, foram utilizadas as seis perguntas orientadoras sugeridas pelo instrumento. Para a análise, os seguintes critérios foram adotados: não compreendeu – não acertou nenhuma das perguntas; compreendeu parcialmente – acertou de uma a cinco perguntas; compreendeu totalmente -acertou as seis perguntas.
Os dados coletados foram tabulados e analisados no software IBM® SPSS Statistics versão 20. Foi realizada análise descritiva das variáveis categóricas, por meio das frequências absoluta (n) e relativa (%). e das variáveis quantitativas por meio da média, mediana, valores mínimo e máximo, desvio-padrão e quartis. Para analisar se houve correlação entre as variáveis vocabulário e consciência sintática, foi realizado o Coeficiente de Correlação de Spearman. A magnitude do Coeficiente de Correlação de Spearman foi classificada da seguinte forma: desprezível (menor ou igual a 0,3), fraca (entre 0,4 e 0,5), moderada (entre 0,6 e 0,7), forte (entre 0,8 e 0,9) e muito forte (maior que 0,91). Para verificar a existência de variação de médias das variáveis vocabulário e consciência sintática em relação aos grupos de compreensão de leitura e de nível leitura, foi realizado o Teste de Kruskal-Wallis. Os escolares da amostra foram agrupados em três categorias de nível de leitura – “nível logográfico ou em transição logográfico-alfabético”, “nível alfabético ou em transição alfabético-ortográfico” e “nível ortográfico” – de acordo com a relação entre esses níveis e a habilidade de compreensão leitora para análise estatística dos dados. Foram empregados testes não paramétricos devido à heterogeneidade da amostra. O nível de significância estatística adotado para todos os testes de análise inferencial foi de p≤0,05.
Resultados
Os resultados referentes à distribuição dos participantes quanto ao nível de leitura e compreensão leitora por ano escolar estão apresentados na Tabela 1.
Tabela 1 Descrição do nível de leitura e compreensão leitora dos participantes de acordo com o ano escolar (n=36)
Variáveis | Nível logográfico / Transição logográfico-alfabético (n=14) | Nível alfabético / Transição alfabético-ortográfico (n=16) | Nível ortográfico (n=6) | Não compreende (n=24) | Compreensão parcial (n=5) | Compreensão total (n=7) |
---|---|---|---|---|---|---|
2º ano | 1 (7%) | 3 (19%) | 2 (33%) | 2 (8%) | 2 (40%) | 2 (29%) |
3º ano | 5 (36%) | 6 (37%) | 2 (33%) | 10 (42%) | 1 (20%) | 2 (29%) |
4º ano | 8 (57%) | 7(44%) | 2 (33%) | 12 (50%) | 2 (40%) | 3 (42%) |
Fonte: Dados da pesquisa.
Em relação ao desempenho obtido na avaliação do vocabulário e consciência sintática, os participantes apresentaram desempenho dentro do esperado para a escolaridade, conforme os valores de referência dos instrumentos utilizados (Tabela 2).
Tabela 2 Análise descritiva das variáveis quantitativas (n=36)
Variáveis | Média ± DP | Mediana ; Q25 – Q75 | Mínimo | Máximo | Desempenho esperado |
---|---|---|---|---|---|
Vocabulário | |||||
Substantivos | 69,56±6,34 | 71,00; 65,50 – 74,00 | 54 | 79 | – |
Adjetivos | 18,22±3,82 | 19,00; 16,00 – 21,00 | 5 | 25 | – |
Verbos | 25,47±3,35 | 26,00; 23,25 – 28,00 | 16 | 30 | – |
Preposições | 0,14±0,35 | 0,00; 0,00 – 0,00 | 0 | 1 | – |
Total de acertos | 114,75±13,15 | 117,50; 108,25 – 121,75 | 78 | 145 | 105 – 117 |
Consciência sintática | |||||
Julgamento gramatical | 17,69±2,73 | 19,00; 17,00 – 20,00 | 9 | 20 | 17 – 20 |
Correção gramatical | 7,36±2,78 | 8,00; 6,00 – 10,00 | 0 | 10 | 7 – 9 |
Correção gramatical de frases agramaticais e assemânticas | 7,53±2,91 | 9,00; 6,00 – 10,00 | 0 | 10 | 6 – 9 |
Categorização de palavras | 7,61±3,95 | 7,50; 5,00 – 10,75 | 0 | 14 | 5 – 14 |
Total de acertos | 40,19±0,62 | 42,00; 35,50 – 49,00 | 9 | 54 | 37 – 52 |
DP = desvio-padrão; Q25 = primeiro quartil; Q75 = terceiro quadril
Fonte: Dados da pesquisa.
Foi identificada correlação significativa de magnitude moderada entre as variáveis vocabulário (escore total do instrumento utilizado) e consciência sintática (escore total do instrumento utilizado). Na análise da correlação entre os subtestes dos instrumentos, foram identificadas correlações significativas de magnitude desprezível a fraca, exceto em relação aos acertos de preposições (Tabela 3).
Tabela 3 Correlação de Spearman entre vocabulário e consciência sintática (n=36)
Variáveis | CS | JG | CG | CGF | CP |
---|---|---|---|---|---|
VOC | .62** | .53** | .33* | .43** | .64** |
AS | .63** | .53** | .34* | 40* | .76** |
AA | .69** | .47** | .33* | .46** | .58** |
AV | .68** | .53** | .38* | .59** | .63** |
AP | -.06 | .07 | -.20 | -.28 | -.04 |
** p<0.01 * p<0,05 – Correlação de Spearman
VOC = vocabulário (escore total); AS = acertos de substantivos; AA = acertos de adjetivos; AV = acertos de verbos; AP = acertos de preposições; CS = consciência sintática; JG = julgamento gramatical; CG = correção gramatical; CGF = correção gramatical de frases agramaticais e assemânticas; CP = categorização de palavras
Fonte: Dados da pesquisa.
Quanto à comparação das variáveis vocabulário e consciência sintática entre os níveis de leitura (Tabela 4), as médias de consciência sintática apresentaram variação significativa entre os grupos, sugerindo que, à medida que o desempenho em consciência sintática melhora, as crianças avançam no nível de leitura. Apesar de não ter sido encontrada significância estatística, também foi possível observar que o desempenho em vocabulário foi melhor nas crianças que apresentavam nível alfabético e ortográfico de leitura.
Tabela 4 Comparação das variáveis quantitativas entre os níveis de leitura (n=36)
Variáveis | Nível logográfico / Transição logográfico-alfabético (n=14) | Nível alfabético/ Transição alfabético-ortográfico (n=16) | Nível ortográfico (n=6) | Teste de Kruskal-Wallis | |
---|---|---|---|---|---|
Média+DP | Média ± DP | Média ± DP | Quiquadrado | Valor de p | |
Vocabulário | 111,93±17,71 | 114,38±8,98 | 122,33±7,78 | 3,12 | 0,21 |
Consciência sintática | 34,36±12,36 | 42,31 ±7,82 | 48,17±4,79 | 9,62 | 0,00* |
*p<0,01 – Teste de Kruskal – Wallis
DP = desvio-padrão
Fonte: Dados da pesquisa.
Em relação à compreensão leitora, não foi observada variação significativa do desempenho em vocabulário e consciência sintática entre os grupos de participantes que não compreendem a leitura e os que apresentam compreensão parcial e compreensão total (Tabela 5). No entanto, é possível notar que as crianças com compreensão parcial e total apresentaram melhor desempenho nestas habilidades.
Tabela 5 Comparação das variáveis quantitativas entre os grupos de compreensão de leitura (n=36)
Variáveis | Não compreende (n=24) | Compreensão parcial (n=5) | Compreensão total (n=7) | Teste de Kruskal-Wallis | |
---|---|---|---|---|---|
Média+DP | Média+DP | Média+DP | Qui-quadrado | Valor de p | |
Vocabulário | 112,29±14,58 | 119,80±5,07 | 119,57±10,19 | 3,38 | 0,18 |
Consciência sintática | 37,83±11,27 | 43,60±8,23 | 45,86±7,51 | 4,40 | 0,11 |
DP = desvio-padrão
Fonte: Dados da pesquisa.
Discussão
O estudo investigou se há influência do vocabulário e consciência sintática na leitura de escolares com dificuldades de aprendizagem com o objetivo de compreender melhor os fatores que interferem no processo de aquisição de leitura, visto que atualmente a consciência sintática vem sendo investigada predominantemente em estudos internacionais (Cain, 2007; Deacon & Kieffer, 2018; Mokhtary & Niederhauser, 2013; Rodríguez-Ortiz et al., 2021) como preditora da compreensão de leitura, complementando a contribuição do vocabulário para essa habilidade.
Segundo a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018), espera-se que escolares de 3° a 4° ano consigam ler e compreender textos curtos. Porém, apenas sete participantes da amostra apresentaram compreensão total do texto lido. Esse número reduzido denota a importância da avaliação fonoaudiológica em crianças com queixas de dificuldades de aprendizagem, pois os sujeitos com idade ou escolaridade mais avançadas podem apresentar níveis de leitura e compreensão leitora aquém do esperado (Capellini & Cavalheiro, 2000). Além da escolaridade, outras variáveis como histórico de dificuldade de aprendizagem na família, ser do sexo masculino, baixo desempenho em nomeação automática rápida e vocabulário, dificuldade no reconhecimento de letras e na decodificação de palavras simples podem influenciar a fluência de leitura e, consequentemente, a compreensão leitora (Psyridou et al., 2021).
Embora tenha sido utilizado apenas o escore total do teste de vocabulário receptivo nas comparações entre os grupos de nível de leitura e compreensão leitora, considerou-se relevante descrever as classes gramaticais substantivo, adjetivo, verbo e preposição, visto que estudos prévios na área de linguagem apontam a relevância da aprendizagem por categorias para o desenvolvimento morfossintático, o que facilita o desenvolvimento dessas relações entre linguagem oral e escrita (Befi-Lopes et al., 2013; Gândara & Befi-Lopes, 2010; Nalom et al., 2015).
Considerando que a consciência sintática consiste na capacidade de compreender, julgar e manipular estruturas sintáticas, compreender a função das palavras nas sentenças requer o conhecimento do significado destas, o que permite compreender melhor o sentido de um texto lido. Portanto, é esperada a associação entre vocabulário e consciência sintática (Brimo et al., 2017). As correlações significativas entre vocabulário e consciência sintática deste estudo evidenciam que, apesar de as variáveis competirem entre si na explicação das dificuldades de compreensão leitora, cada uma contribui de forma específica e individual para as crianças compreenderem textos escritos de diferentes complexidades (Mokhtary & Niederhauser, 2013).
No presente estudo foi possível observar que os grupos de escolares que estavam entre o nível de leitura alfabético e ortográfico apresentaram desempenho significativamente melhor em consciência sintática do que aqueles de nível logográfico ou em transição entre o nível logográfico e alfabético. Dificuldades metalinguísticas relacionadas à sintaxe estão associadas a déficits no aprendizado ortográfico da leitura e escrita. Assim, as crianças com queixas de dificuldade na leitura demonstram que a idade e escolaridade não estão diretamente relacionadas ao desempenho nas tarefas de consciência sintática (Teixeira et al., 2016), o que não ocorre em crianças sem queixas escolares, visto que apresentaram melhor desempenho em tarefas de consciência sintática, taxa e acurácia de leitura e compreensão leitora (Teixeira et al., 2016).
Já em relação aos grupos quanto à compreensão leitora, não foram observadas diferenças significativas nas duas habilidades, porém, os escolares que apresentaram compreensão de leitura parcial e total obtiveram médias melhores em vocabulário e consciência sintática do que aqueles que não compreendem (Rodríguez-Ortiz et al., 2021; Simpson et al., 2020).
Um estudo realizado com crianças de 3° e 4° ano identificou que a correlação entre vocabulário e compreensão de leitura foi semelhante à correlação entre consciência sintática e compreensão de leitura. Além de analisarem a correlação entre essas variáveis, os autores do estudo observaram ainda que essas foram semelhantes à correlação com a consciência morfológica, que também é considerado um preditor de compreensão, e concluíram, portanto, que a consciência sintática contribui para a compreensão de leitura, tanto quanto o vocabulário e a consciência morfológica (Deacon & Kieffer, 2018).
A melhor compreensão da relação entre a leitura e as habilidades aqui estudadas pode contribuir para o avanço no diagnóstico diferencial entre possíveis dificuldades e transtorno e propiciar uma intervenção mais direcionada na compreensão leitora, visto que as relações entre a consciência sintática e consciência morfológica (Mota et al., 2009), consciência morfológica e consciência metatextual (Santos et al., 2018), e consciência fonológica e aquisição de regras ortográficas (Rego & Buarque, 1997) têm sido o maior foco de estudos nacionais.
Uma limitação do estudo se trata da heterogeneidade da amostra em relação à faixa etária e ausência de diagnóstico, nos quais as crianças e adolescentes encontravam-se em diferentes etapas do desenvolvimento. No entanto, compreender a diversidade de desempenho dessa população é importante para melhor delineamento de sinais para algum transtorno do neurodesenvolvimento. Além disso, foi possível notar que a idade não é a variável que realmente determina o desempenho pior ou melhor. Assim, é importante que estudos futuros observem as relações entre o vocabulário, a consciência sintática e a leitura de acordo com os quadros diagnósticos, visto que há importante relação entre elas nesse processo de aprendizagem.
Verificar a relação entre estas variáveis é essencial para que profissionais da saúde e educação que atuam com escolares no processo de alfabetização consigam realizar intervenções direcionadas quanto à compreensão leitora. As limitações aqui apresentadas podem servir para o fortalecimento de futuros estudos neste campo da aprendizagem, em especial para o entendimento das relações recíprocas existentes entre habilidades linguísticas e metalinguísticas no avanço da linguagem escrita, especialmente no campo da Fonoaudiologia.
Considerações
O vocabulário é considerado um importante preditor da compreensão leitora, porém outras habilidades, como a consciência sintática, vêm sendo investigadas quanto à relação com o desenvolvimento da leitura. Os resultados do presente estudo indicam que a consciência sintática pode influenciar o desempenho em leitura de escolares com dificuldades de aprendizagem, pois crianças com melhor desempenho em consciência sintática apresentaram nível de leitura mais avançado. Dentre os aspectos da compreensão leitora, quanto melhor essa capacidade, o vocabulário receptivo e a consciência sintática também se mostraram mais desenvolvidos. Esses achados permitem observar que o avanço entre os níveis de leitura acontece independentemente da idade e escolaridade neste grupo de escolares com dificuldades de aprendizagem.