Introdução
Esse texto reúne reflexões sobre respostas extraídas dos Cadernos-diários de crianças com dificuldades escolares do Ensino Fundamental I que participaram das oficinas de jogos de um programa de intervenção. A proposta foi desenvolvida em formato remoto, no período de agosto de 2021 a junho de 2022, em uma ONG situada na cidade de São Paulo, no contexto da pesquisa denominada “Jogos, desenvolvimento e qualidade de vida”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cujo objetivo foi investigar as possíveis influências desse programa sobre diferentes capacidades psicológicas (Parecer nº 27117219.7.0000.5561, do Comitê de Ética em Pesquisas com Seres Humanos do IP-USP).
Trata-se de analisar o uso deste recurso didático e, ao mesmo tempo, ferramenta de intervenção. Os Cadernos-diários analisados propiciaram expandir as possíveis contribuições das intervenções para a autopercepção dos participantes com vistas à superação de suas dificuldades escolares. As informações que serão aqui apresentadas referem-se a dois semestres (1º e 2º) do programa de intervenção realizado na ONG.
O objetivo foi propor atividades com jogos e intervir em um contexto lúdico e regrado, convidando as crianças a enfrentarem desafios, observando seus erros e buscando superá-los, sendo essas novas ações fruto dos desequilíbrios ocasionados pelas intervenções, tudo isso feito remotamente. Este processo de tomada de consciência (Piaget, 1974/1977), ou seja, de perceber erros e inconsistências, visando promover mudanças, bem como de afirmar aquilo que está favorável às metas almejadas, exige intencionalidade, levantamento de hipóteses e criação de novos procedimentos, daí a grande contribuição das intervenções. Neste percurso, as crianças são instigadas a tomar decisões, fazer escolhas, enfrentar situações de desequilíbrio e regular suas ações (Piaget, 1974/1977) em função dos resultados obtidos. Ao longo dos dois semestres, observa-se que atitudes e procedimentos vão gradualmente se modificando, ganhando maior consistência em amplitude e profundidade.
O programa de intervenção com oficinas de jogos
O enfoque do programa é propor intervenções adequadas para cada criança, a partir de observações de suas práticas em situações de jogos e enfrentamento de desafios lúdicos, o que aumenta sua eficácia em ajudá-las a produzir melhores resultados escolares (Macedo et al., 2005). Estas intervenções têm caráter formativo, pois desencadeiam informações e/ou orientam sobre o que estão fazendo em termos de acertos e erros. A conscientização das ações e procedimentos considerados desfavoráveis, bem como a mediação para superar dificuldades contribuem para mobilizarem recursos, buscando realizar mudanças nos aspectos identificados como insuficientes. Ao longo do tempo, observa-se que estas são mais significativas e duradouras, por terem sido construídas pelas próprias crianças. Com isso, ao final de um processo que exige participar de dois a três ciclos (ou semestres), geralmente apresentam progressos e novas conquistas.
As crianças encaminhadas para o atendimento em geral têm alguma defasagem de aprendizagem, que nem sempre se restringe somente aos conteúdos escolares. Desatenção, falta de responsabilidade, dificuldade de socialização, indisciplina, pouca autonomia e desorganização são aspectos comumente apontados como causadores de muitas dificuldades no âmbito escolar. Como resultado, apresentam notas baixas, repetem de ano ou desistem de aprender (De Souza & Petty, 2017).
Considerando como ponto de partida que todas são capazes de enfrentar problemas e têm interesse em aprender, o objetivo é promover formas de pensar e agir favoráveis ao desenvolvimento e à aprendizagem, ressignificando a importância e a possibilidade de adquirirem conhecimento, modificando as situações de insucesso e superando pelo menos algumas de suas dificuldades. No contexto das oficinas de jogos, portanto, ocorre um trabalho constante para despertar a atenção e incentivar a organização das ações e dos pensamentos, bem como promover situações em que planejar, antecipar e avaliar são fundamentais. Tudo isso tem um percurso gradual e varia de acordo com a resposta que cada criança consegue dar, almejando a construção de funções essenciais para seu desenvolvimento, denominadas funções executivas (Petty & De Souza, 2012; Diamond, 2013).
O uso de jogos deve-se ao fato de sua natureza, ou seja, se para conhecer é preciso agir, para jogar também. O jogo só acontece quando os participantes respeitam as regras sem perder de vista o objetivo da partida. Jogar pode promover mudanças atitudinais e construção de procedimentos em um contexto de intervenções, pois quem joga aprende sobre si mesmo, sobre o próprio jogo e os aspectos inerentes a ele, sobre relações sociais e sobre diferentes conteúdos. É também por meio de um jogar mediado que os erros produzidos podem tornar-se observáveis, para serem analisados e compreendidos pelas crianças (Piaget, 1974/1978).
Estas atividades lúdicas criam um contexto em que aspectos como: observar, criticar, investigar e relacionar são trabalhados e aproximados, o máximo possível, a questões voltadas para as dificuldades escolares que precisam superar. Durante as oficinas, as crianças realizam atividades com jogos e desafios lógicos que transformam o jogar em um meio favorável à criação de situações que apresentam problemas a serem solucionados. A ideia central do trabalho, portanto, consiste em fazer com que o jogador tenha uma atuação o mais consciente e intencional possível, de modo que possa produzir um resultado favorável ou, se isto não ocorrer, que saiba analisar os diferentes aspectos do processo que o impediram (De Souza et al., 2018).
Uma reavaliação constante, favorecida pela intervenção do adulto, faz com que a criança adquira gradativamente a possibilidade de generalizar suas conquistas nas oficinas para outros âmbitos, sejam familiar, social ou escolar (Petty et al., 2019). Tal possibilidade é consequência do que a prática com jogos ensina quanto às formas de pensar e agir características de um “bom jogador”, sendo bastante semelhantes às exigidas para realizar outras tarefas, escolares ou não. A intervenção tem como função básica incentivar o protagonismo infantil, constituindo um trabalho profundo e equilibrado.
Esta metodologia de utilização de jogos permite um trabalho de reflexão sobre atitudes e desenvolvimento cognitivo. Com relação às primeiras, sabe-se que certas atitudes, como ser atento, organizado e coordenar diferentes pontos de vista são fundamentais para se obter um bom desempenho ao jogar e também podem favorecer a aprendizagem, na medida em que a criança passa a ser mais participativa, cooperativa e melhor observadora. Em relação ao segundo, a ação de jogar “aciona” uma série de mecanismos cognitivos, como por exemplo, realizar interpretações, classificar e operar informações, controlar e planejar suas ações, analisar seus procedimentos e escolhas, aspectos muito semelhantes às demandas escolares. O confronto de diferentes pontos de vista, essencial ao desenvolvimento do pensamento lógico, está sempre presente no jogo, o que torna esta situação particularmente rica para estimular a vida social e a atividade construtiva da criança.
Método
Os Cadernos-diários
Para a realização da presente análise, além dos materiais que fazem parte das oficinas de jogos, foi utilizado, como já mencionado, o recurso didático denominado Caderno-diário, composto de dois conjuntos de atividades diferentes (Caderno-diário 1 e Caderno-diário 2), um para cada semestre, especialmente criados para dar suporte ao modelo de atendimento remoto. Estes cadernos foram produzidos pela equipe de pesquisadores do programa de intervenção, tendo sido distribuídos para uso individual e entregues na ONG antes do início de cada semestre. Eles contêm todas as atividades gráficas destinadas às crianças, apresentando propostas a serem respondidas ao longo dos semestres, mediante solicitação ou orientação e de acordo com o planejamento da semana (Petty & De Souza, 2021). Notou-se que este material teve importância crucial para manter a conexão com as propostas, uma vez que se observou interesse e apropriação do mesmo por parte das crianças, que mostraram cuidado para conservá-los, bem como empenho para escrever e capricho nos registros. Este modo como as crianças valorizaram e lidaram com os cadernos é um forte indicador de que estes estavam adequados em termos de amplitude, quantidade e tipos de propostas.
Cumpre destacar que os Cadernos-diários não são simplesmente um “apanhado de atividades”, mas foram concebidos considerando-se diversos conteúdos e formas de desafios, tendo sido elaborados a partir de regularidades e necessidades identificadas, observadas ao longo de mais de trinta anos da proposição de oficinas de jogos em formato presencial (estas também continham atividades para serem feitas com lápis e papel, além dos jogos de cada semestre).
Em termos teórico-práticos, os Cadernos-diários do programa de intervenção foram baseados em três grandes eixos, a saber: ludicidade e trabalho em equipe, epistemologia genética de Piaget e funções executivas. Tais eixos são expressos por meio do uso de jogos de regras e proposição de situações-problema para grupos de crianças, estudos sobre tomada de consciência, fazer e compreender e teoria da equilibração, bem como consideração do tripé controle inibitório, memória operacional e flexibilidade cognitiva.
O conteúdo dos cadernos foi organizado para compor a programação das oficinas de jogos, referente a cada semestre, sendo um total de no máximo 15 encontros semanais. A rotina das oficinas supõe a proposição de desafios iniciais que exigem habilidades e competências variadas, tais como: unir pontos sequenciados por números, encontrar objetos escondidos em um cenário, descobrir palavras em um diagrama de letras, realizar cálculos, fazer desenhos com algum tipo de demanda (por exemplo, “autorretrato”, “eu na escola”). Há ainda perguntas que as crianças precisam responder informando curiosidades a respeito de si mesmas; compartilhar por escrito sua opinião sobre o cotidiano escolar; descrever seu desempenho como estudantes ou escrever sobre preferências e sentimentos. Além disso, há o momento do jogar propriamente dito, cujo material às vezes é composto por matrizes para registro e situações-problema para serem resolvidas, já contidas nestes cadernos. Ao final de cada encontro, geralmente eram propostas atividades com temas para discussão visando fazer o fechamento da oficina. Estes se referiam a alguma pergunta para instigar as crianças a comentarem algo, e estas também fazem parte do material do caderno, em forma de imagens.
O repertório de cada caderno é bem variado e traz diferentes graus de dificuldade e/ou complexidade, que foram colocados em ordem crescente. No primeiro, as atividades iniciais são mais simples e geralmente familiares para as crianças. No segundo, podem até ser conhecidas, mas demandam mais dedicação e atenção para serem resolvidas, além de suporem um conhecimento mais ampliado de si mesmas ou das dificuldades escolares que estariam vivenciando. A qualidade das respostas e quantidade de informações também foram indicadores importantes para a análise dos registros.
Ao todo, foram analisados quatorze cadernos (sete Cadernos-diários 1 e sete Cadernos-diários 2), referentes às crianças que participaram das oficinas de jogos com frequência igual ou superior a 60% ao longo dos dois semestres. Dentre as diversas atividades e registros, foi escolhido o tema autopercepção, que perpassa algumas propostas com perguntas para as crianças responderem em diferentes momentos do semestre. Esse tema foi escolhido por fazer parte de dois eixos do programa de intervenção, relacionados ao processo de tomada de consciência e funções executivas.
Observando-se as respostas, foi possível organizar as informações em categorias quanto ao desempenho, comportamento e relação com o outro, analisadas conforme três temas: dificuldades escolares, mudanças percebidas e evolução do jogar.
Quanto aos tópicos escolhidos no Caderno-diário 1 (relativo ao primeiro semestre), as respostas de autopercepção (percepção e justificativa) foram agrupadas de acordo com os seguintes aspectos: (a) criança e desempenho; (b) criança e progresso ou sentimento; e (c) criança e o outro (ou adulto). Sobre criança e desempenho, as respostas foram analisadas em termos de dificuldades escolares, ou seja, o que é difícil aprender e como ficou assim; comportamento e porque atrapalha; se a professora fica brava e o que acontece. Sobre criança progresso e sentimento, observou-se mudanças percebidas, em termos de o que aprendeu desde que veio às oficinas; no que percebeu melhoras; quem percebeu e porquê. Sobre criança e o outro foi focalizada a evolução do jogar a partir da resolução de situações-problema. Neste caso, as respostas foram obtidas por meio dos registros do jogo das 4Cores, no contexto das intervenções (facilidade para jogar; percepção de ciladas; utilização de táticas).
Com relação aos tópicos escolhidos no Caderno-diário 2 (relativo ao segundo semestre), o mesmo critério foi utilizado, ou seja, as respostas de autopercepção (percepção e justificativa) também foram agrupadas em três categorias. Na análise do item (a) criança e desempenho, foram considerados assuntos escolares, quanto ao que estuda nas férias; se gosta de ler; saudades e medos na escola; o que é fácil e difícil de aprender. Quanto ao item (b), criança e progresso/sentimento, havia perguntas sobre mudanças e conquistas, questionando sobre auto-observação de atitudes, tais como: fazer atividades sem ajuda; evitar distrações; persistência na dificuldade; prestar atenção; fazer perguntas; colaboração com professores. No item (c), criança e o outro, foram consideradas as respostas das situações-problema relacionadas ao jogo Tangram, utilizado neste semestre, no contexto das intervenções das oficinas de jogos, a saber: reconhecer e desenhar peças, bem como identificar dificuldades nesta resolução.
As respostas refletem a autopercepção de cada criança sobre os temas acima mencionados e permitiram inferir melhoras (ou pioras) a partir dos registros, bem como trouxeram algumas informações sobre características do grupo ao interagirem com os temas das perguntas.
Resultados e Discussão
Em termos quantitativos, foi realizada uma distribuição das respostas aos itens, por tema e categoria, separando-as em afirmativas (sim) e negativas (não), para dar uma ideia geral de como as crianças reagiram às perguntas. Na Tabela 1 apresentamos a distribuição das respostas dos Cadernos-diários 1 e 2.
Tabela 1 Distribuição das respostas aos itens selecionados por categorias
Cadernos- diários 1 e 2 | Categorias – autopercepção | |||||
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Itens selecionados | Criança e desempenho | Criança e progresso/sentimento | Criança e outro | |||
Afirmações e Negações | SIM | NÃO | SIM | NÃO | SIM | NÃO |
Assuntos Escolares | 16 | 1 | 14 | 3 | 11 | 6 |
Mudanças e conquistas | 20 | 0 | 17 | 3 | 20 | 0 |
Evolução do jogar | 12 | 2 | 11 | 3 | 7 | 7 |
Fonte: Elaborado pelos autores
SIM= Reconhecimento afirmativo de ação; NÃO= Reconhecimento de ausência de ação
É importante esclarecer que foram consideradas respostas sim aquelas que expressaram reconhecimento afirmativo de ações/comportamentos. As respostas não, por sua vez, expressaram reconhecimento de ausência de ações.
Ao analisar exclusivamente as frequências absolutas, nota-se um predomínio de respostas do tipo sim, indicador importante para expressar afirmação do que se perguntou, seja admitir um erro, identificar uma necessidade de ajuda, perceber uma atitude, reconhecer que há assuntos difíceis, ou observar o descontentamento da professora. O sim, nesta perspectiva de afirmação, não é necessariamente bom, no sentido de que pode revelar uma atitude negativa em relação ao que deveria ser feito, por exemplo, reconhecer que não estuda ou que faz muita bagunça. Por outro lado, uma afirmação pode simplesmente informar que a criança não apresenta dificuldade em alguns quesitos e percebe isso. Do mesmo modo, o não pode não ser necessariamente negativo, pois indica que ela percebe sua incapacidade (mesmo que momentânea) de fazer algo. Pode, ainda, colocar em evidência a negação de algum problema, talvez por ignorar sua existência. Deste modo, todas as respostas geram a possibilidade de receber algum questionamento ou orientação, o que contribui para ocorrer a revisão de alguma situação, ou construir uma justificativa para as ações e atitudes, já que o contexto é sempre de diálogo. Pode-se dizer, assim, que sempre há aspectos interessantes para serem analisados, pois expressam características da autopercepção e podem direcionar os focos de intervenção.
Em termos qualitativos, agrupando as informações coletadas dos dois Cadernos-diários é possível fazer uma descrição sobre cada aspecto, o que permite inferir algumas contribuições do programa de intervenção no que diz respeito ao processo de tomada de consciência e desenvolvimento de funções executivas, em particular, da possibilidade de se manter com foco nas tarefas a serem executadas e buscar soluções.
No que se refere aos assuntos escolares, sobre criança e desempenho escolar, há menções relacionadas a admitir dificuldade de prestar atenção e não gostar de estudar, bem como considerar alguns conteúdos escolares de fato desafiantes (Língua Portuguesa e Matemática, predominantemente) e outros facilmente compreensíveis ou atraentes (como Educação Física e Ciências). Também foram citadas situações em que percebem ter capacidade para realizar as atividades solicitadas.
Sobre criança e progresso/sentimento, por sua vez, notou-se que as crianças percebem que ficar conversando, fazer bagunça e sair do lugar na classe geram problemas e, em oposição, ficar quieta e fazer as lições são atitudes reconhecidas como algo que favorece a professora a dar aula. Ao serem questionadas sobre saudade e medos, as crianças mencionaram ter saudade dos amigos, da convivência social (recreio, educação física) e de estudar; sobre receios ao retornarem para a escola, várias afirmaram ter medo das provas, de serem reprovadas, de esquecer como resolver uma conta. No que se refere à relação com o outro, igualmente demonstram perceberem que falar muito, esquecer material, não fazer as lições, brigar e bagunçar são fatores que dificultam o trabalho em sala de aula. Tais fatores, uma vez admitidos, serviram como ponto de partida para um diálogo baseado na busca de soluções para enfrentar e/ou evitar as ações percebidas como “ruins”, que impactam muitas vezes contra elas mesmas, ou seja, geram consequências que as prejudicam.
Essas respostas, portanto, foram desencadeadoras de mudanças, pois indicaram percepção do que estava acontecendo e foram importantes referências para o processo de intervenção acontecer. Além disso, como já foi mencionado, mesmo nas respostas em que havia negação dos problemas, foi possível trazer à tona algum contraponto para instigar a criança a analisar outro ângulo da situação e, com isso, ampliar seu repertório de possibilidades de procedimentos ou atitudes.
Com relação às mudanças percebidas, na categoria criança e desempenho houve unanimidade de menções voltadas para algo “positivo” ter ocorrido ao longo dos dois semestres de oficinas de jogos. A autopercepção deu-se tanto em relação a algo bem pontual (como criar novos jogos, ajudar em artes e sentir-se bem participando) quanto conseguir observar melhoras na escola e na produção escrita. Em geral, as crianças apresentaram predisposição para agir com ampliação da autonomia em prol das atividades e demandas escolares. Em termos dos progressos, notou-se menções relativas a atitudes de persistência para seguir tentando realizar uma tarefa, mesmo quando encontraram dificuldades e mais atenção para realizar as demandas feitas por adultos, resultando em maior compreensão, melhor desempenho ao jogar e também ao escrever. Além disso, algumas crianças comentaram que estavam mais criativas. Sobre o aspecto da criança em relação ao outro, todas as respostas indicaram ter recebido elogios e feedbacks positivos dos adultos que notaram melhoras, bem como observaram diminuição de estresse. Ou seja, ao responderem afirmativamente sobre fazer perguntas para solucionar dúvidas, assim como se disporem a cooperar com a professora, as atitudes e procedimentos se tornaram perceptíveis para os adultos com quem convivem, tanto na família quanto na escola.
O contexto de intervenção propiciou, assim, um olhar para a capacidade de encontrar recursos não apenas externos – para resolver problemas e descobrir novas competências. Observou-se, por esse repertório de respostas, que as crianças consideraram importante buscar mudanças em aspectos muito valorizados no âmbito escolar, tais como: prestar atenção, tentar agir de modo favorável ao curso das atividades em sala de aula e criar novas atitudes como estudantes. Isso tem potencial para impactar positivamente nos processos de desenvolvimento e aprendizagem, certamente contribuindo para melhorar a autoestima e o autoconhecimento.
Sobre a evolução do jogar, algumas informações sobre autopercepção merecem destaque. Na categoria criança e desempenho, a maioria das crianças afirmou ter facilidade para pintar o jogo das 4Cores e conseguir lembrar qual a quantidade de peças do Tangram, depois de realizar várias montagens. Com isso, pode-se inferir que houve compreensão das regras e ações compatíveis com essa compreensão, mesmo que sem garantir o sucesso na resolução dos desafios que os jogos demandaram. Isso foi notado ao ser questionada a percepção da produção de erros ou incompletudes ao final da atividade (categoria criança e progresso/sentimento). Em outras palavras, produzir ciladas ao pintar uma figura do 4Cores não é exatamente um bom resultado, mas num contexto de intervenções; esse reconhecimento é considerado positivo no processo de enfrentamento dos desafios e percepção de erros. Isso tende a provocar um desequilíbrio que gera a busca por melhores estratégias de resolução e, portanto, em novas situações, poderá ocorrer antecipação de erros e construção de estratégias mais bem sucedidas.
No caso do Tangram, solicitou-se o desenho das peças, buscando saber se as crianças tinham alguma memória da geometria, já que foi solicitado que desenhassem sem olhar para o material. Todas souberam indicar a quantidade correta de peças, bem como mencionar seus nomes, mesmo que nem todas conseguissem representar graficamente cada uma. O fato de admitirem achar desafiante desenhar já foi suficiente para ocorrer uma conversa que as incentivou a encontrar soluções, possibilitando o compartilhamento de ideias sobre como cada uma resolvera. No que se refere à criança e o outro, solicitou-se analisarem se houve intenção no emprego de táticas para jogar. A maioria afirmou não ter agido de modo intencional para realizar suas ações.
Em todas as situações, as respostas das crianças proporcionaram um ambiente de amplo diálogo, primeiro sobre o jogar propriamente dito, visando analisar as formas de enfrentamento da situação-problema, argumentando-se que para não cair em ciladas é necessário agir com intencionalidade, ou seja, ter alguma estratégia para pintar – e isso ocorreu do mesmo modo em relação ao Tangram. Em segundo lugar, buscou-se uma expansão da tomada de consciência sobre a importância de se evitar ações aleatórias (por ensaio-e-erro) e tentar construir alguma tática para melhorar a qualidade dos procedimentos. As intervenções, assim, colocaram em evidência a incompletude ou insuficiência das ações que não apresentavam algum objetivo e contribuíram para as crianças entenderem o motivo de agir com foco em uma meta.
Considerando o exposto e analisado, a partir das respostas das crianças, é possível dizer que a autopercepção é condição necessária, mas não suficiente para evitar erros, como por exemplo produzir ciladas no 4Cores ou não conseguir montar uma figura do Tangram. Por meio de intervenções, os desequilíbrios e incompletudes constatados nas próprias produções colocaram em evidência a necessidade de agir com intencionalidade, aliando construção de táticas com autopercepção. Tais atitudes e procedimentos favoreceram pintar outras figuras sem que regiões adjacentes fossem da mesma cor, bem como conseguir montar corretamente outras figuras.
Em termos mais amplos, o processo de intervenção teve como objetivo incentivar as crianças a perceberem os problemas criando alternativas de enfrentamento e superação das suas dificuldades. Quando isso ocorre e, principalmente, ao ser possível consolidar os novos procedimentos e modos de pensar, a tendência é conseguirem expandir as conquistas, uma vez que tenham sido internalizadas, para qualquer situação e em outros campos de atuação, ou seja, ao terem percebido melhoras no desempenho ao jogar podem ampliar o uso de estratégias e autopercepção para sua vida, tanto no âmbito familiar como no contexto escolar.
Considerações
Este texto pretendeu demonstrar como o recurso didático dos Cadernos-diários permite acessar aspectos da autopercepção de participantes de oficinas de jogos, relacionados ao seu desempenho ao jogar, bem como aos comportamentos, sentimentos e atitudes diante da percepção dos desafios propostos neste contexto de intervenções.
Esta ferramenta proporciona observar de que maneira a subjetividade das crianças, como uma espécie de “abrir-se para dentro”, repercute no processo de tomada de consciência e construção de novas atitudes a partir de seu repertório. Isto aliado à compreensão das regras como reguladores das ações, no sentido de uma organização externa, terá como consequência a melhoria da qualidade, a coordenação dos procedimentos e a ampliação do foco nas tarefas. Ao longo deste processo, a tendência é que a própria criança realize autorregulação de suas ações e atitudes, trazendo benefícios para a aprendizagem e desenvolvimento.
A tomada de consciência pode ter sido desencadeada com maior facilidade ou adesão pelo fato de jogos de regras serem usados como instrumento de intervenção. Jogar e resolver situações-problema geralmente despertam nas crianças interesse, vontade de participar e motivação para melhorar o desempenho ao longo do tempo. A ludicidade, a valorização do trabalho em equipe, respeito mútuo e cooperação, bem como o aspecto instigante e desafiador que caracterizam e permeiam o contexto das oficinas parecem ter um papel fundamental para as crianças, mesmo com dificuldades importantes, mobilizarem o máximo de recursos internos ao participarem das atividades. Com isso, sentem-se mais confiantes para expressar suas lacunas e anseios, revelam suas características enquanto aprendizes e abrem espaço para receber sugestões que as ajudam a lidar com o que precisam mudar ou melhorar, com vistas a buscar soluções e superar desafios.
Em síntese, a autopercepção desencadeada pelo uso dos Cadernos-diários no contexto de intervenções com jogos serve como ponto de partida, tornando os erros observáveis, mesmo que não gerem mudanças imediatas. Estas acabam ocorrendo com o passar do tempo e de acordo com as mobilizações de cada criança. Ainda será necessário coordenar estas percepções com novas possibilidades. Este é o papel das intervenções: promover a ampliação do repertório de ações com foco nas tarefas, que possam trazer melhores resultados. O desencadeamento é um mobilizador desejável em intervenções, pois está relacionado ao processo de tomada de consciência subjetiva. Para que este se dê, o indivíduo deve perceber que seu procedimento ou ação não gerou um bom resultado e, simultaneamente, reconstruí-lo num outro nível, mais avançado e abrangente. Piaget (1975/1976) se refere a este processo como diretamente ligado à equilibração cognitiva, a qual permite que se passe de um nível interacional a outro, melhor, no sentido de mais amplo.
As intervenções com oficinas de jogos, portanto, têm se mostrado como uma boa alternativa para desencadear a tomada de consciência não somente dos procedimentos para jogar, mas também dos mecanismos para aprender. Na análise a que este texto se refere, este resultado é relevante considerando inclusive que as intervenções foram feitas remotamente, o que não parece ter influenciado negativamente no funcionamento das oficinas para atingir os objetivos pretendidos.
A ampliação no número de resultados referentes ao uso de Cadernos-diários no contexto de oficinas de jogos poderá, futuramente, confirmar se este novo recurso de fato permite acessar aspectos da autopercepção de crianças com dificuldades escolares. Além disso, poderá também confirmar se este material contribui para a melhoria da relação com a aprendizagem e os desafios enfrentados, o que, em última instância trará amplos benefícios para si mesmas, com implicações nos âmbitos familiar e escolar.