Introdução
As ciências que se debruçam sobre a leitura e a escrita estudam o modo como estas habilidades contribuem com o desenvolvimento do aprendiz em vários aspectos. Alguns desses aspectos giram em torno de como o ato de ler e de escrever contribui com a aprendizagem de outros conhecimentos escolares, em como a leitura e a escrita auxiliam no controle das emoções e da motivação dos estudantes, bem como no impacto que causam em si mesmas enquanto habilidades que dão suporte ao desenvolvimento uma da outra durante o processo de alfabetização (Graham, 2020; Shanahan, 2006).
Especificamente em relação à sua mútua influência, sabe-se que a leitura e a escrita compartilham processos comuns que as impactam reciprocamente, tornando-as habilidades isomórficas (Fitzgerald & Shanahan, 2000). No entanto, é possível considerar que essa isomorfia não é total, mas, sim, parcial, pois, ao mesmo tempo em que ambas as habilidades de leitura e de escrita são complementares, elas acabam divergindo entre si em alguns quesitos (Ehri, 2000; Graham et al., 2017), a exemplo de sua finalidade social de compreensão para a leitura e de expressão para a escrita, bem como dos elementos linguísticos ortográfico, semântico, fonológico e morfológicos implicados nessas habilidades.
Seja pela ênfase na finalidade social ou na composição de elementos linguístico-cognitivos, dentre outros fatores, a conexão entre ler e escrever pode ser explicada a partir de três modelos teóricos (Graham, 2020; Shanahan, 2016), aqui indicados como o modelo funcional (functional model), o modelo sociocognitivo (sociocognitive model) e o modelo cognitivo compartilhado (shared cognitive model). Dadas as suas particularidades, o presente trabalho tem como objetivo descrever a importância do modelo cognitivo compartilhado à alfabetização, considerando-se as políticas educacionais brasileiras mais recentes, a saber: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2017 (Brasil, 2017) e o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA) de 2023 (Brasil, 2023).
Contando com uma metodologia de pesquisa bibliográfica de natureza exploratória (Cohen et al., 2007), primeiramente, este trabalho discorrerá sobre o aspecto isomórfico da leitura e da escrita. Em segundo lugar, serão abordados os modelos funcional, sociocognitivo e de cognição compartilhada que embasam a relação entre leitura e escrita. Em terceiro lugar, será considerada a importância do modelo cognitivo compartilhado para a alfabetização. Finalmente, serão tecidas algumas considerações finais.
A isomorfia entre leitura/escrita
A história da escolarização, e, consequentemente, da alfabetização, tem demonstrado o quanto a relação entre a leitura e a escrita é percebida e incorporada na prática pedagógica com diferentes ênfases ao longo de parte da história da educação humana. Enquanto nos séculos XVI e XVII se ensinava a leitura e a escrita separadamente, sendo a leitura mais aprendida do que a escrita para fins de compreensão de textos religiosos, no século XIX, a escrita passava a ser gradualmente mais requisitada, a exemplo da necessidade das pessoas aprenderem a assinar documentos. Inclusive, mais recentemente, no século XX, passou-se a advogar que a escrita fosse ensinada antes da leitura (Fayol, 2005).
No século XXI, porém, a leitura e a escrita, anteriormente enxergadas como dissociadas, passam a ter o seu ensino-aprendizagem concebido a partir da simbiótica relação entre essas habilidades. A título de conhecimento, pesquisadores têm utilizado diferentes metáforas de modo a ilustrar essa simbiose entre leitura e escrita. Servem como exemplos as colocações de que elas são faces da mesma moeda (Ehri, 2000; Morais, 2014; Sargiani & Maluf, 2018), dois baldes tirando água de um mesmo poço ou dois edifícios construídos sobre uma fundação comum (Shanahan, 2016). Independentemente da metáfora adotada para explicar a relação leitura-escrita, o sentido permanece o mesmo e, conforme explana Ehri (2000), diz respeito ao compartilhamento de fatores cognitivos e linguísticos envolvendo o processamento do sistema alfabético e da ortografia das palavras lidas e escritas, especialmente no seu aprendizado inicial.
Um exemplo da confluência entre leitura e escrita pode ser fornecido com base no trabalho de Graham e Hebert (2011) ao realizarem uma meta-análise de estudos que tratava da influência da prática da escrita e de sua instrução no desenvolvimento da leitura. Nesse estudo, observou-se como o escrever sobre aquilo o que se leu, a instrução realizada para melhorar a habilidade de escrever e a prática de escrita beneficiaram a habilidade de ler do ponto de vista da compreensão leitora e do desempenho na leitura de palavras; sendo, segundo Shanahan e Tierney (1990), sua recíproca verdadeira.
Para além do trabalho de Graham e Hebert (2011), Fitzgerald e Shanahan (2000) pontuaram quatro conhecimentos e alguns compostos por subcomponentes considerados básicos e que são comumente utilizados por leitores e redatores. Esses (sub)conhecimentos partilhados entre a leitura e a escrita são: o metaconhecimento (meta-knowledge), o conhecimento de mundo/prévio (domain knowledge about substance and content), o conhecimento sobre os atributos universais de um texto (knowledge about universal text attributes) e o conhecimento procedural (procedural knowledge).
Sobre o primeiro conhecimento, o metaconhecimento, ele está ligado à motivação e, consequentemente, à obtenção de sucesso durante a leitura e a escrita textual. Para tanto, quatro subcategorias de conhecimento são acionadas pelo leitor/redator para poder gerar o desejo pela realização da leitura e da escrita, são elas: I) saber as funções e propósitos da leitura/escrita; II) saber que o leitor e o redator interagem; III) monitorar a própria produção de sentido (metacompreensão), as estratégias de reconhecimento (via leitura)/produção (via escrita) de palavras, bem como o próprio conhecimento (Fitzgerald & Shanahan, 2000; Shanahan, 2006).
O segundo conhecimento, o conhecimento de conteúdo, também é conhecido pelos termos conhecimento de mundo e conhecimento prévio. Ele se refere a todo conhecimento, experiência ou conscientização que um leitor/redator tem e carrega consigo independentemente do assunto. Esse conhecimento faz menção e está associado às subcategorias semântica e de sentido subjacentes a determinado texto a ser lido ou que podem ser utilizadas para compô-lo ao ser escrito. Além disso, o conhecimento de conteúdo é retido por aquele que lê um texto, assim como ele também pode ser reforçado por quem escreve um texto, ou seja, esse conhecimento consciente é responsável por dar sustento à inferência, à organização, à memorização e à rememoração de informações lidas e escritas (Fitzgerald & Shanahan, 2000; Shanahan, 2006).
O terceiro conhecimento, o conhecimento sobre os atributos universais de um texto, é constituído por três subcategorias que juntas comportam os atributos de um texto. A primeira subcategoria é conhecida como grafofônica e engloba conhecimentos relativos ao reconhecimento e à produção de letras e palavras, para tanto, dependendo da consciência fonológica, da grafêmica e da morfológica do leitor/redator. A segunda subcategoria é de cunho sintático. Ela encabeça as regras gramaticais veiculadas na elaboração de um texto, seja na construção de sentenças ou mesmo na escolha da pontuação adequada ao seu final. Por fim, a terceira subcategoria é a do formato do texto. Reconhecida como sendo uma outra forma de sintaxe em relação à subcategoria anterior, ela envolve a relação do leitor/redator com trechos (blocos ou pedaços) mais amplos do que as sentenças, mas complementares. Podem ser utilizados como exemplos o uso de gráficos, paragrafação, figuras, organização textual, entre outros (Fitzgerald & Shanahan, 2000; Shanahan, 2006).
Finalmente, o quarto conhecimento, o procedural, refere-se à capacidade de integrar harmoniosamente uma série de processos relativamente automáticos ligados à compreensão daquilo o que está sendo lido por um leitor e à condução da produção daquilo o que está sendo escrito por um redator. Dentre os processos auxiliares à leitura/escrita que são instanciados harmoniosamente pelo conhecimento procedural, incluem-se o acesso intencional à informação desejada (resgatada da memória), a definição de objetivos/metas, o questionamento, a predição, o resumo e a tentativa de realização de analogias. Em outras palavras, o conhecimento procedimental diz respeito à maneira como são acessadas, usadas e geradas informações durante os atos de ler e de escrever, partindo de processos cognitivos de antecipação e resgate de informação da memória, bem como das estratégias de predição, questionamento, analogia e resumo (Fitzgerald & Shanahan, 2000; Shanahan, 2006).
Os quatro conhecimentos previamente apresentados, e suas subcategorias, ilustram o quanto as habilidades de ler e de escrever estão correlacionadas por um conjunto de conhecimentos comuns a elas e, portanto, tornando-as isomórficas. Além disso, do ponto de vista educacional, esses conhecimentos servem à prática pedagógica na medida em que eles equivalem aos conhecimentos escolares trabalhados por um professor em sala de aula (Fitzgerald & Shanahan, 2000). É por essa razão que o ensino da leitura e da escrita quando feito de maneira mútua contribui para a formação de bons leitores e redatores mais do que se feito de maneira isolada (Ehri, 2000; Graham et al., 2017).
Cabe destacar, no entanto, que a comunalidade entre leitura e escrita é apenas parcial. Dentre outros fatores, isso se deve pela diferença entre a funcionalidade de cada habilidade e, em se tratando do contexto educacional, ao modo como elas são trabalhadas em sala de aula (Shanahan & Tierney, 1990). Isso demonstra o quanto, apesar de complementares, as habilidades de ler e de escrever divergem entre si (Ehri, 2000; Graham et al., 2017), indicando haver em cada habilidade uma contribuição singular ao desenvolvimento uma da outra.
Complementarmente a esses conhecimentos isomórficos, três modelos teóricos que intentam explicar a relação entre ler e escrever também fornecem pistas acerca da singularidade da leitura e da escrita. Em outras palavras, esses modelos teóricos abrangem, a seu modo e dadas as suas finalidades, tanto o aspecto isomórfico quanto o não isomórfico das habilidades de leitura e escrita.
Os modelos que embasam a relação leitura/escrita
Respeitando-se o seu propósito investigativo, as variáveis de análise e as técnicas de mensuração do fenômeno estudado (Shanahan & Tierney, 1990), a conexão entre leitura e escrita também pode ser explicada a partir de três modelos, ou perspectivas teóricas consideradas tradicionais (Graham, 2020; Shanahan, 2016). Eles são o modelo funcional, o modelo sociocognitivo e o modelo cognitivo compartilhado, explicados e exemplificados nesta subseção.
O primeiro modelo, o funcional, entende a conexão entre leitura e escrita a partir do ponto de vista de que elas são ferramentas distintas que podem ser combinadas para resolver um problema, aprender algo novo, desenvolver uma habilidade, entre outras finalidades que resultem em algum ganho de ordem intelectual (Shanahan, 2016). Em outras palavras, a teoria funcional admite estar a conexão entre a leitura e a escrita implicada na funcionalidade dos atos de ler e de escrever. Essa funcionalidade é regida pela facilidade fornecida por uma habilidade para que a outra ocorra ao serem utilizadas com o intuito de alcançar objetivos de aprendizagem em comum, ou seja, novos conhecimentos, informações sobre algo, entre outros objetivos (Graham, 2020).
A relação entre as tarefas de leitura e de escrita não é simples. Todavia, o uso combinado de tarefas de leitura com tarefas de escrita no cotidiano das pessoas pode ser observado em diferentes circunstâncias nas quais o trabalho conjunto entre ambas as habilidades é preferível. Essa preferência se deve ao fato da prática de ler e de escrever incorrer em vários tipos de pensamento e raciocínio cada uma. Assim, quanto mais reflexões são promovidas sobre determinado desafio, maiores são as chances de resolvê-lo. E, por essa razão, esse modelo defende que ler e escrever sejam usadas mutuamente na obtenção de bons resultados nas tarefas diárias dado o seu potencial resolutivo ao serem combinadas. Exemplos da combinação das habilidades de ler e de escrever podem ser percebidos ao se tomar uma nota sobre determinado acontecimento ou informação que se queira registrar e resgatar a posteriori, ao se escrever respostas para perguntas e ao se propor análises textuais (Shanahan & Tierney, 1990). Em todos os casos a escrita serve como meio de expressar ou registrar uma informação a ser retomada por sua leitura em outro momento.
Conforme sugerem os exemplos mencionados, o caráter de funcionalidade desse segundo modelo advém do uso de uma abordagem procedural por seus usuários no intento de realizar objetivos diversos ao serem combinadas as habilidades de ler e escrever. Apesar de fornecer contribuições sobre a relação entre ler e escrever, o modelo funcional não recebeu tanta atenção de pesquisadores (Fitzgerald & Shanahan, 2000) como ocorreu com os demais modelos.
O segundo modelo, o sociocognitivo, trata da relação entre leitura e escrita a partir da interação entre leitor e redator, com enfoque nos seus propósitos comunicativos inerentes às produções escritas e à prática leitora (Shanahan, 2016). Esse modelo pressupõe que a relação entre ler e escrever se desdobra da comunicação entre quem escreve algo para ser lido e quem lê algo que foi escrito. Assim, quem escreve direciona o conteúdo de seu texto para determinados leitores ao passo que quem lê entra em uma situação de interação/conversa com o autor de um texto mesmo que não de forma literal. Dessa relação resulta um maior discernimento sobre aquilo o que se lê ou se escreve com base no diálogo entre redator e leitor (Graham, 2020).
Essa perspectiva de compreensão da relação leitura-escrita defendida no segundo modelo tem a ver com o modo como quem escreve intenta prever as necessidades de seu leitor sobre o que ele lerá e como quem lê se empenha em compreender aquilo o que o redator escreveu, negociando o seu papel um com o outro, com destaque ao papel social e não apenas ao aspecto cognitivo implicado nas abordagens teóricas que explicam a leitura e a escrita. Por parte de quem escreve, por exemplo, são feitas adaptações nos textos de modo a adequá-los à audiência, considerando, para tanto, algumas categorias que modulam o texto, a saber: a idade do leitor, a intimidade entre redator e leitor, a escolha de vocabulário, a complexidade sintática, entre outras informações relevantes que auxiliam na compreensão da produção escrita. A instrução sobre a necessidade de se atentar para o leitor mostra que as escolhas feitas com base em certas categorias podem sensibilizar os redatores para com os problemas encontrados pelo leitor sobre a compreensão textual. Paralelamente, as pesquisas que explicam o quanto os leitores pensam nos redatores concluem que sua preocupação, geralmente, está centrada na falta de compreensão do texto escrito. Por sua vez, estudos sobre atividades que discutem a intenção do autor ao escrever uma obra mostram que as discussões levam as crianças a desempenharem a habilidade de reconhecimento de erros e discrepâncias textuais, também favorecendo seu autorreconhecimento enquanto leitores que apresentam um ponto de vista sobre o que leem (Shanahan & Tierney, 1990).
Conforme explanam Shanahan e Tierney (1990), as práticas de leitura e de escrita nesta perspectiva comunicativa são consideradas experiências e não pura repetição de informações aprendidas sobre como ler e escrever. Esse posicionamento diante da literacia (da alfabetização e do letramento) é considerado essencial por favorecer o aprendizado da leitura e da escrita por sua finalidade social situada, contemplando-se a interação entre as pessoas.
Corroborando com o ponto de vista de que um redator escreve considerando a expectativa de quem lerá o texto (Rubin, 1984), o trabalho de Hyland (2001) buscou explorar o modo como um redator estabelece explicitamente a presença de seus leitores no discurso de seus artigos científicos ao reconhecer suas preocupações interpessoais, em vez de gerenciar ou se preocupar com seu próprio posicionamento enquanto autor. Com isto, a base da construção dos argumentos de um artigo, ou outro gênero textual do campo acadêmico, giraria em torno do convencimento dos leitores com conhecimento sobre determinada área científica a partir da antecipação de suas expectativas de modo a evitar refutações sobre o texto escrito. Por sua vez, Nelson (2012) explica o quanto os leitores hábeis tendem a especular o autor e suas intenções ao escrever um texto, mesmo sem ter certeza de suas reais intenções ao produzir determinado texto. Como consequência, essa atitude especulativa faz com que o leitor possa construir inferências e suposições, por exemplo, sobre os objetivos do texto, o que, por sua vez, pode afetar sua compreensão de leitura.
Por fim, o terceiro modelo, cognitivo compartilhado, explora conhecimentos e processos cognitivos de ordens diversas de modo a explicar as habilidades de leitura e escrita (Shanahan, 2016). Esse modelo defende ainda o posicionamento de que os conhecimentos e sistemas cognitivos responsáveis pela configuração da leitura também agem na configuração da escrita, demonstrando que os processos de ler e de escrever, apesar de distintos, estão intimamente ligados por propósitos recíprocos (Fitzgerald & Shanahan, 2000; Shanahan, 2006). Em outras palavras, a leitura e a escrita são formadas por processos cognitivos que se sustentam na representação de conhecimentos em níveis linguísticos de ordem fonológica, ortográfica, semântica, sintática e pragmática (Fitzgerald & Shanahan, 2000).
Desses substratos cognitivos compartilhados pela leitura e escrita, destaca-se o grafofônico que compreende, dentre outros itens linguísticos, a sensibilidade fonológica e o conhecimento dos grafemas pelos estudantes (Shanahan, 2016). Ehri e Roberts (2006) constatam que esses dois itens linguísticos têm uma função primária indispensável para que a criança consiga apreender o sistema de escrita alfabética e para que possa desempenhar as habilidades de ler e de escrever.
Por sua relevância à alfabetização, os pesquisadores aprofundam essa discussão a respeito da sensibilidade fonológica, especialmente em nível de fonema, e do conhecimento dos grafemas explicando a complementariedade de ambos os itens linguísticos ao longo da fase inicial da escolaridade das crianças. Segundo Ehri e Roberts (2006), o aprendizado da escrita, inicialmente, é decorrente do aprendizado da leitura. Por conseguinte, a experiência com leitura propicia o armazenamento das palavras lidas na memória do leitor a partir da conexão existente das letras com a ortografia presente em materiais escritos e dos sons com as pronúncias do que foi lido. Ou seja, na medida em que o aprendizado da leitura acontece, são desenvolvidas a consciência fonêmica e o processamento das palavras enquanto unidades ortográficas constituídas por letras.
Em paralelo à leitura, a escrita também é aprendida a partir dos elementos fonêmicos e do conhecimento sobre as letras, conhecimentos estes, segundo Scliar-Cabral (2019; 2021), caracterizados pelos traços invariantes componentes de cada letra e que lhes rendem uma identidade própria a ser identificada, recordada e lida pelo leitor ou manuscrita pelo redator, sendo estes traços invariantes os seguintes: | (linha reta) . (ponto) о (círculo) ɿ (bengala) ϲ (semicírculo) ᴜ (semioval) ⸧ (elipse) ~ (til). Além disso, segundo Simons e Probst (2014) e Santos et al. (2021), a produção de cada letra decorre do resgate ao estímulo escrito (grafema) e do estímulo falado (fonema) que impulsiona o processo de ordem perceptivo-viso-motora, enquanto uma resposta do controle da mão pela visão do redator (integração viso-motora), de seus dedos e de sua palma da mão (coordenação motora fina).
Enquanto habilidades consideradas decorrentes de processos distintos, elas são subsidiadas por basicamente os mesmos mecanismos mentais (Andersen et al., 2018; Berninger et al., 2002; Fitzgerald & Shanahan, 2000; Shahar-Yames & Share, 2008), porém com distintas demandas cognitivas (Ehri, 2000; Souza & Maluf, 2004).
Isso acarreta na compreensão de que esse compartilhamento da base de conhecimentos e processos cognitivos é parcial e não tão simples, especialmente a exemplo de algumas crianças apresentarem bons desempenhos em uma habilidade, mas não em outra, como comprovado pela pesquisa realizada por Fayol et al. (2009) que apontou haver cerca de 4% de crianças falantes de francês consideradas bons leitores que são, ao mesmo tempo, maus redatores, sendo sua recíproca possível de ser verdadeira. Tal fenômeno já havia sido explicado por Ehri (1987, 2000) ao pontuar que maus leitores são, geralmente, maus redatores, sendo o seu contrário menos provável de acontecer, pois os maus redatores podem identificar e recuperar a pronúncia dos grafemas mais facilmente, mas, por terem baixa memória ortográfica, as dificuldades em sua produção na escrita aparecem e tornam a habilidade mais árdua de ser executada com a eficácia esperada.
É com base nessa distinção entre os desempenhos nas habilidades de ler e de escrever que, segundo Ahmed et al. (2014), codificar não é o processo inverso de decodificar, apesar de ambas estarem ligadas ao princípio alfabético, ou seja, à visão de que há uma relação entre fonemas e grafemas e vice-versa. Isso se explica pelo fato de a passagem grafema-fonema, de decodificação para a leitura, não ser simétrica à passagem fonema-grafema, de codificação para a escrita (Shanahan, 2006), pois para a leitura só é requisitado o reconhecimento abstrato da sonoridade parcial ou total do conjunto de letras representadas em grafemas enquanto que, para a escrita, mesmo em se tratando de uma palavra bastante familiar, é necessário acionar todos as formas ortográficas para representar um som na grafia (Share, 2008; Shahar-Yames & Share, 2008). Por essa razão, é mais fácil ler do que escrever palavras, pois a demanda cognitiva diante da relação grafofonêmica é menos complexa do que a da relação fonografêmica. Por complexidade cognitiva demandada pela leitura e escrita, entende-se o quanto essas habilidades em sua realização individual sobrecarregam e demandam da memória o processamento de informações necessárias ao seu funcionamento (Fitzgerald & Shanahan, 2000; Graham, 2020; Shanahan, 2006), ou seja, demandando maior processamento na memória para ser operacionalizada acuradamente (Ehri, 2000).
Na próxima subseção, será ilustrada a relação que a alfabetização e o modelo cognitivo compartilhado mantêm entre si e que reverbera no desempenho em leitura e escrita de alfabetizandos brasileiros.
O valor do modelo cognitivo compartilhado à alfabetização
Conforme discutido na subseção anterior, o modelo cognitivo compartilhado que explica a relação entre leitura e escrita está embasado no argumento de que existem processos cognitivos compartilhados entre as habilidades de ler e de escrever. Além disso, é preciso destacar que a relação embasada por componentes cognitivos processados na mente de quem lê e escreve tem repercussões na educação, especialmente em se tratando das pessoas que estão em estágio inicial de aprendizagem destas habilidades.
Essa repercussão pode ser ilustrada com base nos resultados de diferentes avaliações de larga escala utilizadas para verificar o nível de aprendizagem dos estudantes no país em relação, por exemplo, aos conhecimentos fonológicos, sintáticos, semânticos e morfológicos esperados pelas políticas educacionais mais recentes no país (Brasil, 2017; 2023), como é o caso do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), ligado ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), e ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (NEP).
O SAEB foi desenvolvido para servir de instrumento avaliativo e fonte de informação complementar à taxa de reprovação e retenção escolar para que o IDEB possa acompanhar a qualidade da educação básica brasileira em curso nas instituições educacionais do setor público e privado, considerando-se as habilidades de ler, escrever e calcular. Uma vez coletados e tabulados, os dados do IDEB são divulgados bianualmente em uma escala de zero a dez, referenciando o desempenho dos estudantes em âmbito nacional e por estado da federação (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, 2019). Um exemplo dos resultados do IDEB está exposto no Gráfico 1 abaixo, que traz um recorte do amplo desempenho de alfabetizandos do Brasil de 2005 a 2021 (INEP, 2019; 2022a).

Fonte: Elaboração própria com base em MEC/INEP (Brasil, 2019; 2022a).
Gráfico 1 Desempenho nacional no IDEB 2005-2021 nos Anos Iniciais
Conforme demonstra o Gráfico 1 supracitado, o IDEB nacional observado em 2005 para os Anos Iniciais foi de 3,8, com um aumento de 2,1 pontos na média, chegando-se a 5,9 em 2019, após pouco mais de uma década. Esses dados evidenciam um tímido, mas constante, aumento nos resultados obtidos pelas escolas brasileiras no que se propõe mensurar o instrumento.
Além do avanço tímido e progressivo na obtenção de bons resultados no IDEB, nota-se um leve declínio na média nacional, com a obtenção de 5,8 em 2021, com uma diferença de 0,1 ponto comparado ao ano de 2019, com uma média de 5,9. De modo geral, os resultados do IDEB de 2021, apesar da ocorrência do Coronavírus (SARS-CoV-2), mostram a fragilidade na qual a educação brasileira se encontra quando se trata do desempenho em ler e escrever palavras pelas crianças em processo final de alfabetização, fragilidade esta já apontada pelo SAEB de 2019 (INEP, 2021; 2022b).
A avaliação do SAEB contemplou três eixos básicos relativos aos conhecimentos de língua portuguesa do 2º ano, quais foram: i) de “apropriação do sistema de escrita alfabética”, ii) de “leitura” e iii) de “produção textual”. Dentre esses três eixos, o primeiro, relativo à “apropriação do sistema de escrita alfabética”, considera a capacidade das crianças em estabelecer relações de ordem grafofonêmica para ler e fonografêmica para escrever palavras isoladas. Esse eixo pode ser considerado imprescindível à alfabetização, pois reflete a base de conhecimentos iniciais necessários à alfabetização do 1º ao 2º ano (INEP, 2021).
A média no desempenho em língua portuguesa de crianças brasileiras foi de 750 pontos, posicionando-as no Nível 5 em uma escala que vai do Nível 1 ao 8. Uma interpretação qualitativa desses desempenhos aponta que os estudantes conseguem realizar correlações grafofonêmicas, levando-os a ler palavras di-, trie polissilábicas com estruturas silábicas que variam das mais simples, como a canônica no português brasileiro formada por uma consoante (C) e uma vogal (V), às estruturas silábicas mais complexas, como CCV. Por outro lado, na escrita, os estudantes podem apresentar dificuldades para estabelecer correlações fonografêmicas que favoreçam à escrita de palavras trissílabas com estrutura silábica complexa, assim como polissilábicas. Em suma, os resultados do SAEB de 2021 sugerem que, apesar de estarem no Nível 5, os estudantes brasileiros ao final do 2º ano não conseguem consolidar as habilidades básicas para escrever.
Esse resultado do SAEB ilustra o quanto as habilidades mobilizadas pelos estudantes no 2º ano e que são explicadas pelo modelo cognitivo compartilhado da relação entre leitura e escrita são caras à alfabetização. Esse modelo consegue explicar o processamento do desempenho dos estudantes ao final do segundo ano considerando as habilidades cognitivas mobilizadas para ler e escrever palavras a partir de seus componentes constituintes de ordem fonológica, ortográfica, semântica, sintática e pragmática, mencionados na subseção anterior.
Salienta-se, de acordo com Ellis (2016), que esses componentes são acionados durante o processamento da leitura e da escrita. Assim, seria necessário um estímulo visual para que: I) fossem acionados os componentes semântico, fonológico e ortográfico para ler palavras já conhecidas e II) o componente fonológico para ler palavras desconhecidas. Por sua vez, o estímulo de pensar a respeito do que escrever demandaria, para além da destreza motora da mão: I) os componentes semântico, fonológico e ortográfico para escrever palavras conhecidas e II) os componentes fonológico e grafêmico para escrever palavras desconhecidas.
Esses processamentos da leitura e da escrita de palavras (des)conhecidas considerados como práticas de linguagem pela BNCC (2017) são responsáveis pelo domínio do sistema de escrita alfabética do português, considerando-se as regras das relações entre fonemas e grafemas internalizadas na mente humana em um conjunto de conhecimentos ortográficos passíveis de formar palavras com sentido socialmente estabelecido e prontas para serem expressas via habilidade manuscrita (pela mão), digital (por tecnologias da informação e comunicação) e oral (a fala).
Complementarmente à BNCC, a CNCA (2023), enquanto uma política voltada à qualificação do contexto educacional brasileiro com vistas a melhores resultados na alfabetização, toma como premente, dentre outras preocupações, a formação docente embasada na multidimensionalidade do processo de alfabetização. O escopo dessa multidimensionalidade engloba os conhecimentos necessários à apreensão do sistema de escrita alfabética, para tanto, destacando a importância da compreensão docente acerca dos conhecimentos ortográficos e de outros conhecimentos singulares do português, como a sua fonologia, semântica, morfologia e sintaxe.
Uma triangulação entre os resultados do SAEB de 2021, os componentes do modelo cognitivo compartilhado aqui apresentados e as políticas de alfabetização atuais, a saber BNCC de 2017 e CNCA de 2023, podem fornecer pistas sobre a prospecção educacional brasileira a respeito da aprendizagem da leitura e da escrita. A partir da compreensão das habilidades cognitivas acionadas no processamento da linguagem verbal, é possível fornecer parâmetros a respeito da alfabetização de modo a (i) reverter o quadro em que se encontram os estudantes brasileiros em relação à leitura e à escrita, (ii) qualificar a formação docente ao contribuir com conhecimentos a respeito do funcionamento do sistema de escrita alfabética do português, (iii) consolidar e fortalecer os conhecimentos metalinguísticos necessários à reflexão e à autonomia dos estudantes sobre o uso da própria língua, bem como (iv) favorecer o alcance das metas propostas tanto na BNCC (2017) quanto no CNCA (2023).
Considerações
Com o objetivo de descrever a importância do modelo cognitivo compartilhado à perspectiva de alfabetização descrita nas políticas educacionais brasileiras atuais, BNCC e CNCA, buscou-se demonstrar neste artigo o quanto a leitura e a escrita apresentam uma relação de proximidade e, ao mesmo tempo, de distanciamento entre si a ponto de torná-las habilidades únicas. Nesse sentido, a compreensão de como a leitura e a escrita são processadas, cada qual ao seu modo, na mente humana se torna um ponto central à alfabetização pelo reconhecimento da inter-relação entre elas suscitar a compreensão paralela de outros conhecimentos inevitáveis à (de)codificação. É por esse prisma e por essa tentativa de enxergar a alfabetização que o modelo cognitivo compartilhado fornece um panorama de compreensão sobre a organização do processamento mental de modo a levar os profissionais da educação a embasarem suas práticas pedagógicas ao considerar como seus estudantes organizam seus conhecimentos para ler e escrever.
Para tanto, faz-se indispensável a mobilização docente quanto à mobilização didático-pedagógica voltada à metarreflexão dos componentes do processamento da leitura e da escrita para a alfabetização. É possível citar como exemplos: (i) o incentivo à prática de leitura e escrita realizadas de maneira individual ou coletiva; (ii) as estratégias de trabalho com compreensão leitora cuja finalidade alude, dentre outros quesitos, à sensibilização de ordem semântica e pragmática do estudante; (iii) o planejamento de um trabalho com canções, jogos e brincadeiras centradas no uso das representações abstratas da fala em seus variados níveis fonológicos, como o fonêmico, o silábico, o da rima e o da aliteração; (iv) a prática das habilidades de percepção visual, motora e sua relação com o intuito de preparar e ou reforçar para a produção dos desenhos às letras; (v) a prática de desafios, como, por exemplo, a “adedonha” ou “forca” de palavras, para se pensar sobre o conhecimento ortográfico subjacente à escrita; entre outros componentes e atividades.
Por fim, as possibilidades a respeito de como levar alguém a ler e a escrever são diversas e podem abranger um leque significativo de experiências e recortes sociais, mas, ao fim e ao cabo, conforme discutido neste artigo, é preciso primar também por um aprendizado consciente e embasado na cognição humana.