Introdução
A Dislexia do Desenvolvimento (DD) é um transtorno neurobiológico caracterizado por déficits significativos na aquisição e no desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita, cujo diagnóstico deve ser realizado por uma equipe interdisciplinar com base no perfil clínico do paciente e de acordo com as diretrizes internacionais (Associação Psiquiátrica Americana [APA], 2023; Organização Mundial da Saúde [OMS], 2022).
O perfil neuropsicológico dos indivíduos com DD mostra dificuldades em diferentes domínios cognitivos em relação aos leitores proficientes (Cruz-Rodrigues et al., 2014; Lima et al., 2013; Mingozzi et al., 2024; Zoubrinetzky et al., 2014). Além dos déficits cognitivos no processamento fonológico (De Groot et al., 2015; Navas et al., 2014), crianças com DD também apresentam dificuldades nos componentes das Funções Executivas (FE), incluindo controle inibitório, flexibilidade mental, memória de trabalho, uso de estratégias e fluência verbal (Barbosa et al., 2019; Lima et al., 2013; Moura et al., 2014; Zoubrinetzky et al., 2014).
As FE representam um conjunto de habilidades cognitivas e metacognitivas que auxiliam o indivíduo a tomar decisões de forma autónoma (Diamond, 2013, 2020) e, assim, estão relacionadas ao desenvolvimento de comportamentos autorregulados (Bjork et al., 2013). Do ponto de vista funcional, habilidades acadêmicas que dependem de processos de FE, incluindo produção escrita, compreensão de leitura, realização de lição de casa, trabalhos, testes e anotações, podem ser negativamente afetadas por déficits nas FE (Meltzer, 2010; Nouwens et al., 2021; Ruffini et al., 2024; Spiegel et al., 2021).
O principal tratamento para a DD baseia-se na abordagem fonológica, combinando treinamento de consciência fonológica e treinamento de fluência de leitura (Darrot et al., 2023; Galuschka et al., 2014; Harrar-Eskinazi et al., 2022; Martins et al., 2020). No entanto, a intervenção neuropsicológica também tem mostrado resultados positivos para minimizar déficits cognitivos e comportamentais em indivíduos com lesões cerebrais adquiridas (Starrfelt et al., 2013; Gazzellini et al., 2012) ou disfunções, como no caso da DD (Lorusso et al., 2011; Nukari et al., 2020; Robertson, 2000).
A Reabilitação Neuropsicológica (RN) visa minimizar o impacto causado pelos déficits cognitivos, aumentando o repertório de estratégias do indivíduo. A RN também pode auxiliar na adaptação psicológica ao expandir as estratégias de enfrentamento e melhorar a autocompreensão e a aceitação (Nukari et al., 2020; Wilson, 2009). Estudos anteriores sobre intervenções neuropsicológicas com jovens com DD mostraram melhorias no desempenho em precisão de leitura e compreensão leitora por meio da estimulação do processamento sensorial, atenção visual e FE (Goldstein & Obrzut, 2001; Lorusso et al., 2011; Taran et al., 2023).
Estudos com desenho experimental de caso único (Single-case experimental design - SCED) têm sido utilizados para investigar a validade dos programas de intervenção em neuropsicologia (Evans et al., 2014; Krasny-Pacini, 2023). Métodos estatísticos para estimar parâmetros e avaliar a qualidade e validade interna dos estudos SCED foram especificamente desenvolvidos para tais estudos (Mcintosh & Rittmo, 2021). Por exemplo, uma meta-análise de estudos de intervenção com desenho de sujeito único para estudantes com dificuldades de aprendizagem mostrou que os modelos de instrução direta e estratégias cognitivas apresentaram tamanhos de efeito mais robustos em habilidades acadêmicas, como leitura (Swanson & Sachse-Lee, 2000). Outro estudo indicou que a associação entre o treinamento cognitivo das FE e o tratamento baseado na fonologia foi mais eficaz para melhorar as habilidades de leitura em grupos com dislexia. Isso sugere que os ganhos na leitura podem estar associados a melhorias nas FE (Pasqualotto & Venuti, 2020).
Apesar dos resultados positivos, poucos estudos abordaram processos de leitura mais complexos, incluindo a compreensão e seus mecanismos cognitivos subjacentes, como as FEs, utilizando uma abordagem neuropsicológica. Assim, este estudo experimental de caso único teve como objetivo investigar a aplicabilidade de um programa de reabilitação neuropsicológica para funções executivas em um paciente com dislexia do desenvolvimento.
Método
Este é um estudo de desenho experimental de caso único, que utiliza medidas repetidas para avaliar a eficácia de uma intervenção específica (Crawford et al., 2010; Evans et al., 2014; Krasny-Pacini, 2023; Loschiavo-Alvares et al., 2013; Manolov et al., 2014). Dada as exigências do método, os escores do caso foram comparados a uma amostra controle (Crawford et al., 2010; Mcintosh & Rittmo, 2021; Swanson & Sachse-Lee, 2000). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, sob o protocolo n. 543.108/2014. As famílias assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Participante
O paciente foi um menino destro, falante nativo da Língua Portuguesa, de 13 anos, de nível socioeconômico médio, cursando o 7° ano do Ensino Fundamental em uma escola pública. O paciente não apresentava histórico de distúrbios neurológicos ou psiquiátricos, não tinha alterações em exames sensoriais (acuidade visual e audiometria), e não estava recebendo tratamento médico ou participando de outros programas de intervenção para dificuldades de aprendizagem.
O diagnóstico foi realizado por uma equipe multidisciplinar (neuropsicologia, fonoaudiologia e psicologia educacional) em um laboratório de pesquisa para transtornos de aprendizagem e foi baseado nos critérios da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) (OMS, 2022), do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5-TR) (APA, 2023) e nas características clínicas: Quociente Intelectual total médio (QI=94) na Escala de Inteligência Wechsler para Crianças, Quarta Edição (WISC-IV) (Rueda et al., 2013); comprometimento significativo nas habilidades de leitura e processamento fonológico, conforme a avaliação da linguagem; e nenhuma queixa comportamental ou emocional significativa relatada pelos pais no Child Behavior Checklist (CBCL) (Achenbach & Rescorla, 2001) (z=0.04; escore total). O participante precisava ter alcançado pelo menos o nível alfabético de proficiência em leitura para ser incluído no estudo.
A amostra de controle consistiu em seis participantes (três meninos e três meninas) de nível socioeconómico médio-alto e alto, com idades entre 13 e 16 anos, cursando entre o 8º ano do Ensino Fundamental e o 2° ano do Ensino Médio em escolas particulares e públicas. Esses participantes apresentavam nível ortográfico de leitura e não tinham histórico de queixas comportamentais ou dificuldades de aprendizagem.
Instrumentos
Funções Executivas
Teste Cor-Palavra de Stroop (Stroop Color-Word Test - SCWT) (Fonseca et al., 2015): avalia o controle inibitório. Foram registrados os escores de tempo e erros para a tarefa Cor-Palavra (incongruente).
Teste das Trilhas – Parte B (Trail Making Test - TMT-B) (Fonseca et al., 2015): avalia a flexibilidade mental. Foram registrados os escores de tempo e erros totais (somas dos erros de alternância e de sequência).
Teste Wisconsin de Classificação de Cartas (WCST) (Cunha et al., 2005): avalia a capacidade de mudar estratégias cognitivas em resposta a contingências ambientais. Foram registrados os seguintes escores: número de categorias completadas, número de acertos, porcentagem de erros e de respostas perseverativas.
Blocos de Corsi (Ordem inversa) (Kessels et al., 2000): avalia a alça visuoespacial da memória operacional. Foram registrados os escores totais (extensão x número de acertos).
Dígitos (Ordem inversa) e Sequência de Números e Letras (Rueda et al., 2013): subtestes da WISC-IV que avaliam a alça fonológica da memória operacional. Foram registrados os escores ponderados para a idade.
Índice de Memória Operacional (IMO) (Rueda et al., 2013): índice fatorial da WISC-IV expresso por ponto composto para a idade.
Torre de Londres (ToL) (Fonseca et al., 2015): avalia habilidades de planejamento e resolução de problemas. Foi registrado o número total de acertos.
Iowa Gambling Test (IGT) (Malloy-Diniz et al., 2008): avalia a capacidade de tomada de decisão. O escore foi calculado a partir de uma fórmula que representa a tendência de escolha dos diferentes baralhos: (C+D) - (A+B).
Teste de Fluência Verbal (FAS) (Fonseca et al., 2015): avalia a capacidade de evocar palavras usando pistas fonológicas ou semânticas. Foram registrados os escores médios de palavras evocadas para cada categoria.
Escala de Avaliação das Estratégias de Aprendizagem (EAVAP) (Boruchovitch & Santos, 2010): avalia o uso de estratégias em situações de aprendizagem. Foram registrados os percentis de estratégias cognitivas, metacognitivas e totais.
Inventário de Consciência Metacognitiva de Estratégias de Leitura (Metacognitive Awareness of Reading Strategies Inventory - MARSI) (Guan et al., 2011): avalia as diferentes estratégias usadas durante a leitura. Foi registrado o escore total. A escala de pontuação varia de baixa (≤ 2,4), média (2,5–3,4) e alta (≥ 3,5).
Entrevista Semiestruturada de Funções Executivas (Executive Functioning Semi Structured Interview - EFSI) (Kaufman, 2010): foram utilizadas as versões para pais, alunos e professores que avaliam diferentes domínios de FE nos ambientes escolar e familiar. Foram considerados os percentuais totais, sendo que valores altos representam uma maior frequência de queixas.
Parâmetros de leitura
Leitura e compreensão (Corso et al., 2015): o paciente recebeu um texto narrativo de 210 palavras com uma estrutura proposicional de 61 partes. Foram avaliados os seguintes parâmetros: nível de leitura (logográfico, alfabético ou ortográfico), estratégia de decodificação (fonológica ou lexical), fluência (número de palavras lidas em 60 segundos/tempo total de leitura em segundos) e compreensão (recontagem oral: porcentagem de proposições recontadas; questionário de dez perguntas: porcentagem de respostas corretas).
Teste de Cloze (Oliveira et al., 2012): texto narrativo com 40 palavras deletadas para avaliar a compreensão leitora. A pontuação foi calculada a partir da fórmula: Σ palavras corretas x 100/ número de palavras deletadas. O desempenho na leitura foi classificado como: nível de frustração (<44%), nível instrucional (44-57%) ou nível independente (>57%).
Procedimento
As avaliações foram conduzidas por profissionais da psicologia, neuropsicologia e fonoaudiologia nas seguintes etapas:
Pré-intervenção: o paciente, pais e professores foram avaliados com base nos escores dos instrumentos de FE e leitura (variáveis de resposta).
Intervenção: o paciente participou de um programa de reabilitação neuropsicológica para FE (Lima et al., 2017), consistindo em um total de 28 sessões semanais de 60 minutos cada. A intervenção visava o desenvolvimento de estratégias compensatórias de FE voltadas para as competências de estudo e compreensão leitora. O paciente foi instruído e monitorado para aprender estratégias de FE que poderiam ser usadas nos ambientes escolar e familiar. A intervenção foi dividida em quatro módulos: (i) Psicoeducação com paciente, pais e professores sobre a DD, FE e o programa de intervenção; (ii) Orientação aos pais e professores para estruturar um sistema de tutoria, orientando mudanças ambientais e monitorando o uso de estratégias; (iii) Funções executivas aplicadas às competências de estudo: desenvolvimento de estratégias que auxiliem na gestão do tempo, organização de materiais e ambiente, tarefas de casa, estudo para testes e anotações; (iv) Funções executivas aplicadas à compreensão leitora: desenvolvimento de estratégias que auxiliar na compreensão leitora utilizando recursos metacognitivos;
Pós-intervenção: avaliação do paciente, pais e professores utilizando os instrumentos da pré-intervenção.
Análises estatísticas
Todas as análises estatísticas foram conduzidas usando o programa Singlims_ES.exe, desenvolvido por Crawford et al. (2010) para estudos de caso único empregando o desenho caso-controle em neuropsicologia. O programa utiliza um teste t modificado para comparar os escores pré-intervenção e pós-intervenção entre o caso e os controles. O nível de significância (valor de p), o tamanho do efeito (zcc) e o intervalo de confiança (IC) são calculados com base nas mudanças de escores. O valor de p é uma medida da generalização dos resultados. Diferenças foram consideradas significativas em p≤0,05. O tamanho do efeito z é um análogo ao d de Cohen e compara o escore de um caso único a uma amostra de controle com um intervalo de confiança de 95%. O tamanho do efeito foi considerado baixo (z=0,20), médio (z=0,50) ou alto (z=0,80). Por fim, o IC indica a incerteza sobre o verdadeiro tamanho do efeito, ou seja, a porcentagem da população de controle que obtém um escore menor que o caso (Crawford et al., 2010; Manolov et al., 2014).
Resultados
As Tabelas 1 e 2 mostram as comparações pré e pós-intervenção para os diferentes instrumentos entre o paciente e os controles. Diferenças significativas foram observadas no pré-tratamento para SCWT (tempo), TMT-B (tempo), Sequência de Números e Letras, IMO, ToL, WCST (erros perseverativos), EAVAP (estratégias cognitivas, metacognitivas e total), EFSI (versões para paciente, pais e professor), teste de Cloze, velocidade de leitura e respostas às perguntas (Tabela 1). Diferenças marginalmente significativas foram encontradas no Subteste Dígitos, FAS (tarefa fonológica) e MARSI (escore total).
Tabela 1 Comparação pré-intervenção entre o paciente e grupo controle
Escores | Grupo controle (n=6) média ± DP | Escore do paciente | Teste de significância | Tamanho do efeito (zcc) | Percentual estimado do grupo de controle com pontuação mais baixa do que o paciente | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Pré-intervenção | t | p | Point | (95% Cl) | Point | (95% Cl) | ||
Idade | 14.17±1.47 | 13 | -0.74 | 0.25 | -0.8 | -1.70–0.17 | 24.72 | 4.45–56.54 |
SCWT (tempo) | 24.17±8.04 | 49 | 2.86 | 0.02 | 3.09 | 1.06–5.09 | 98.23 | 85.59–99.99 |
SCWT (erros) | 0.5±1.22 | 1 | 0.38 | 0.36 | 0.41 | -0.45–.23 | 64.0 | 32.79–89.05 |
TMT-B (tempo) | 92.0±36.61 | 253 | 4.07 | <0.001 | 4.4 | 1.65–7.15 | 99.52 | 95.06–100.0 |
Corsi (Ordem inversa) | 55.5±15.81 | 48 | -0.44 | 0.34 | -0.47 | -1.3–0.4 | 33.94 | 9.61–65.38 |
Dígitos (Ordem inversa) | 9.33±1.63 | 6 | -1.89 | 0.06 | -2.04 | -3.48–0.56 | 5.86 | 0.02–28.92 |
Sequ. de Números e Letras | 10.67±0.52 | 9 | -2.97 | 0.02 | -3.21 | -5.28– -1.12 | 1.55 | 0.0–13.16 |
IMO | 100.0±5.37 | 85 | -2.59 | 0.02 | -279 | -4.63– -0.92 | 2.45 | 0.0–17.78 |
ToL | 22.0±1.9 | 17 | -2.44 | 0.03 | -2.63 | -4.38– -0.85 | 2.95 | 0.0–19.86 |
WCST (corretas) | 71.17±9.26 | 71 | -0.02 | 0.49 | -0.02 | -0.82–0.78 | 49.35 | 20.68–78.31 |
WCST (erros) | 82.5±20.98 | 96 | 0.6 | 0.29 | 0.64 | -0.27–1.51 | 71.14 | 39.34–93.42 |
WCST (perseverativos) | 50.33±3.14 | 34 | -4.82 | <0.001 | -5.2 | -8.42– -1.99 | 0.24 | 0.0–2.28 |
IGT | 2.0±22.09 | -4 | -0.25 | 0.41 | -0.27 | -1.077–0.56 | 40.57 | 14.1–71.15 |
FAS (fonológica) | 10.61±1.76 | 7.0 | -1.9 | 0.06 | -2.05 | -3.50– -0.56 | 5.8 | 0.02–28.78 |
FAS (semântica) | 14.89±1.56 | 12.33 | -1.52 | 0.09 | -1.64 | -2.88– -0.34 | 9.46 | 0.2–36.56 |
EAVAP (cognitivo) | 60.83±18.35 | 5 | -2.82 | 0.02 | -3.04 | -5.02– -1.04 | 1.86 | 0.0–14.9 |
EAVAP (metacognitivo) | 81.67±9.83 | 55 | -2.51 | 0.03 | -2.71 | -4.51– -0.89 | 2.69 | 0.0–18.79 |
EAVAP (total) | 87.5±14.05 | 25 | -4.12 | <0.001 | -4.45 | -7.29– -1.67 | 0.5 | 0.0–4.72 |
MARSI (total) | 3.65±0.7 | 2.27 | -1.83 | 0.06 | -1.97 | -3.38– -0.52 | 6.38 | 0.04–30.19 |
EFSI (paciente) | 16.19±7.44 | 35 | 2.34 | 0.03 | 2.53 | 0.8–4.22 | 96.68 | 78.73–100.0 |
EFSI (pais) | 17.25±10.39 | 57 | 3.54 | 0.01 | 3.83 | 1.4–6.25 | 99.17 | 91.88–100.0 |
EFSI (professora) | 1.19±1.4 | 39 | 25.0 | <0.001 | 27.01 | 10.99–43.28 | 99.99 | 100.0 |
Velocidade de leitura | 177.6±11.33 | 29.43 | -12.11 | <0.001 | -13.08 | -20.99–5.28 | 0.0 | 0.0 |
Recontagem oral | 24.19±7.59 | 18.03 | -0.75 | 0.24 | -0.812 | -1.72–0.15 | 24.31 | 4.26–56.12 |
Resposta às questões | 78.0±10.95 | 50 | -2.37 | 0.03 | -2.56 | -4.27– -0.81 | 3.21 | 0.0–20.87 |
Cloze | 83.0±11.91 | 20 | -4.9 | <0.001 | -5.29 | -8.56– -2.04 | 0.22 | 0.0–2.08 |
Nota: EAVAP – Escala de Avaliação das Estratégias de Aprendizagem, EPSI – Entrevista Semiestruturada de Funções Executivas, FAS – Teste de Fluência Verbal, IGT – Iowa Gambling Task, IMO – Índice de Memória Operacional, MARSI – Inventário de Consciência Metacognitiva de Estratégias de Leitura, SCWT – Teste Cor-Palavra de Stroop, TMT – Teste das Trilhas, WCST – Teste Wisconsin de Classificação de Cartas.
Tabela 2 Comparação pós-intervenção entre o paciente e grupo controle
Escores | Grupo controle (n=6) média ± DP | Escore do paciente | Teste de significância | Tamanho do efeito (zcc) | Percentual estimado do grupo de controle com pontuação mais baixa do que o paciente | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Pré-intervenção | t | p | Point | (95% Cl) | Point | (95% Cl) | ||
SCWT (tempo) | 24.17±8.04 | 34 | 1.13 | 0.16 | 1.22 | 0.11–2.28 | 84.55 | 54.21–98.87 |
SCWT (erros) | 0.5±1.22 | 2 | 1.14 | 0.15 | 1.23 | 0.11–2.29 | 84.67 | 54.37–98.9 |
TMT-B (tempo) | 92.0±36.61 | 108 | 0.41 | 0.35 | 0.44 | -0.42–1.26 | 64.88 | 33.57–89.63 |
Corsi (Ordem inversa) | 55.5±15.81 | 54 | -0.09 | 0.47 | -0.1 | -0.89–0.71 | 46.67 | 18.61–76.17 |
Dígitos (Ordem inversa) | 9.33±1.63 | 8 | -0.76 | 0.24 | -0.82 | -1.73–0.15 | 24.2 | 4.21–56.01 |
Sequ. de Números e Letras | 10.67±0.52 | 9 | -2.97 | 0.02 | -3.21 | -5.28– -1.12 | 1.55 | 0.0–13.16 |
IMO | 100.0±5.37 | 91 | -1.55 | 0.09 | -1.68 | -2.94– -0.36 | 9.07 | 0.17–35.84 |
ToL | 22.0±1.9 | 20 | -0.98 | 0.19 | -1.05 | -2.04– -0.0 | 18.73 | 2.05–49.92 |
WCST (corretas) | 71.17±9.26 | 71 | -0.02 | 0.49 | -0.02 | -0.82–0.78 | 49.35 | 20.68–78.31 |
WCST (erros) | 82.5±20.98 | 96 | 0.51 | 0.32 | 0.55 | -0.34–1.39 | 68.33 | 36.69–91.8 |
WCST (perseverativos) | 50.33±3.14 | 21 | -8.65 | <0.001 | -9.34 | -15.01– -3.74 | 0.02 | 0.0–0.01 |
IGT | 2.0±22.09 | 26 | 1.01 | 0.18 | 1.09 | 0.02–2.09 | 81.97 | 50.92–98.17 |
FAS (fonológica) | 10.61±1.76 | 6.0 | -2.43 | 0.03 | -2.62 | -4.37– -0.84 | 2.99 | 0.0–20.02 |
FAS (semântica) | 14.89±1.56 | 14.33 | -0.33 | 0.38 | -0.36 | -1.17–0.49 | 37.66 | 12.06–68.65 |
EAVAP (cognitivo) | 60.83±18.35 | 70 | 0.46 | 0.33 | 0.50 | -0.38–1.33 | 66.85 | 35.34–90.88 |
EAVAP (metacognitivo) | 81.67±9.83 | 80 | -0.16 | 0.44 | -0.17 | -0.97–0.65 | 44.06 | 16.64–74.05 |
EAVAP (total) | 87.5±14.05 | 80 | -0.49 | 0.32 | -0.53 | -1.37–0.35 | 32.11 | 8.47–63.71 |
MARSI (total) | 3.65±0.7 | 3.63 | -0.03 | 0.49 | -0.03 | -0.83–0.77 | 49.0 | 20.4–78.03 |
EFSI (paciente) | 16.19±7.44 | 33 | 2.09 | 0.05 | 2.26 | 0.67–3.81 | 95.47 | 74.69–99.99 |
EFSI (pais) | 17.25±10.39 | 49 | 2.83 | 0.02 | 3.06 | 1.05–5.04 | 98.16 | 85.24–99.99 |
EFSI (professora) | 1.19±1.4 | 41 | 26.33 | <0.001 | 28.44 | 11.57–45.57 | 99.99 | 100 |
Velocidade de leitura | 177.6±11.33 | 43.45 | -10.96 | <0.001 | -11.84 | -19.01–4.77 | 0.0 | 0.0 |
Recontagem oral | 24.19±7.59 | 27.87 | 0.45 | 0.34 | 0.49 | -0.39–1.32 | 66.38 | 34.92–90.59 |
Resposta às questões | 78.0±10.95 | 80 | 0.17 | 0.44 | 0.18 | -0.63–0.98 | 56.38 | 26.31–83.69 |
Cloze | 83.0±11.91 | 47.5 | -2.76 | 0.02 | -2.98 | -4.93– -1.01 | 1.99 | 0.0–15.58 |
Nota: EAVAP – Escala de Avaliação das Estratégias de Aprendizagem, EPSI – Entrevista Semiestruturada de Funções Executivas, FAS – Teste de Fluência Verbal, IGT – Iowa Gambling Task, IMO – índice de Memória Operacional, MARSI – Inventário de Consciência Metacognitiva de Estratégias de Leitura, SCWT – Teste Cor-Palavra de Stroop, TMT – Teste das Trilhas, WCST – Teste Wisconsin de Classificação de Cartas.
No momento pré-intervenção, o paciente utilizava predominantemente a estratégia fonológica para a leitura, o nível de leitura era alfabético, o escore total da MARSI foi classificado como baixo e a classificação no teste de Cloze era nível de frustração.
Diferenças significativas persistiram entre o paciente e os controles no pós-intervenção para Sequência de Números e Letras, WCST (erros perseverativos), FAS (tarefa fonológica), EFSI, velocidade de leitura e teste de Cloze (Tabela 2).
Observa-se que, na pós-intervenção, a estratégia de leitura utilizada pelo paciente era predominantemente lexical, seu nível de leitura era ortográfico, o escore da MARSI foi classificado como médio, e no Teste de Cloze ele estava no nível instrucional. Não foram feitas comparações para TMT-B e WCST (categorias) porque tanto o caso quanto os controles não cometeram erros no TMT-B e completaram as seis categorias do WCST nos testes pré e pós-intervenção. A Figura 1 mostra os escores pré e pós-intervenção do caso para recontagem oral, resposta às perguntas e teste de Cloze.
Discussão
O paciente obteve escores pré-intervenção mais baixos do que os controles em medidas neuropsicológicas (controle inibitório, flexibilidade cognitiva, alça fonológica da memória operacional, fluência verbal fonológica e planejamento), e medidas ecológicas de FE (estratégias cognitivas e metacognitivas de aprendizagem, estratégias de compreensão leitora, EF aplicadas ao ambiente escolar e familiar) e parâmetros de leitura (velocidade de leitura e compreensão). Déficits de FE (Barbosa et al., 2019; Cruz-Rodrigues et al., 2014; Lima et al., 2013; Moura et al., 2014; Zoubrinetzky et al., 2014) podem fazer parte do perfil neuropsicológico de indivíduos com DD, devendo ser considerados tanto no processo diagnóstico quanto na elaboração de estratégias de intervenção.
Do ponto de vista clínico, o programa de reabilitação neuropsicológica mostrou-se eficaz na melhoria do controle inibitório, flexibilidade cognitiva, memória operacional, planejamento, repertório de estratégias de aprendizagem e compreensão leitora. Após a intervenção, a velocidade de leitura permaneceu lenta, mas tanto a estratégia de decodificação predominante quanto o nível de leitura melhoraram, passando de fonológico para lexical e de alfabético para ortográfico, respectivamente. Vale ressaltar que a intervenção não incluiu treinamento para habilidades de decodificação, como consciência fonológica (Darrot et al., 2023; Galuschka et al., 2014; Martins et al., 2020) ou parâmetros de leitura, como fluência (Galuschka et al., 2014; Tressoldi et al., 2008). Pelo contrário, a intervenção enfatizou estratégias metacognitivas de leitura, ou seja, aumentando o uso de estratégias de compreensão, representadas por atividades de autorregulação e autoavaliação. Portanto, para ser incluído no estudo, o paciente precisava ter alcançado pelo menos o nível alfabético de leitura. Consequentemente, os recursos cognitivos estariam menos envolvidos na decodificação (reconhecimento, conversão grafema-fonema) e mais disponíveis para processos de leitura de ordem superior (ou seja, compreensão leitora).
O número de proposições (macro e microprocessos) lembradas pelo paciente na recontagem oral foi maior pós-intervenção, embora não tenha sido significativamente diferente do que o dos controles no início do estudo. Além disso, o número de respostas corretas na resposta às perguntas melhorou significativamente na pós-intervenção. Por outro lado, o desempenho no teste de Cloze permaneceu significativamente inferior ao dos controles, mesmo que o percentual de respostas corretas fosse maior e a classificação geral tenha passado no nível de frustração para o instrucional. Os resultados da MARSI e EAVAPI também mostraram que o paciente começou a usar mais estratégias de compreensão. Da mesma forma, um estudo que investigou o efeito de um programa de intervenção nos processos metacognitivos de leitura em estudantes da 5ª e 6ª série também relatou resultados positivos (Gayo et al., 2014). No entanto, o estudo atual descreve os efeitos de um programa NR clínico e sistemático.
Algumas medidas neuropsicológicas não foram afetadas pela reabilitação neuropsicológica. O escore do Subteste Sequência de Números e Letras permaneceu inalterado (9) e foi inferior ao dos controles, embora estivesse dentro da média para a idade. O percentual de respostas perseverativas no WCST e o número médio de palavras geradas no FAS (tarefa fonológica) foram menores pós-intervenção. É possível que essas dificuldades tenham persistido devido às características do perfil clínico do paciente. Por exemplo, apenas a categoria semântica, mas não a fonológica, foi prejudicada no FAS pré e pós-intervenção, sugerindo que o paciente tinha mais dificuldades em acessar o léxico por meio de pistas fonológicas (Lima et al., 2013; Navas et al., 2014).
As mudanças pós-intervenção evidenciadas pelas medidas ecológicas de FE administradas ao paciente, pais e professores não foram suficientes para minimizar as diferenças entre o paciente e os controles. Esses resultados são inconsistentes com a observação clínica e com os efeitos positivos observados no nível de leitura e estratégias de compreensão. Especificamente, no caso dos instrumentos administrados aos pais e professores, os resultados podem sugerir uma pressão aumentada para que o paciente melhorasse seu desempenho nas diferentes tarefas escolares. Portanto, esses achados não podem ser interpretados somente como uma falta de efeito da intervenção nos ambientes escolar e familiar. As medidas ecológicas têm sido usadas para determinar a eficácia de intervenções clínicas porque se assemelham às demandas diárias do paciente. Estudos futuros usando instrumentos padronizados capazes de classificar o desempenho podem minimizar essa limitação.
Algumas características do programa de reabilitação neuropsicológica podem explicar as melhorias alcançadas pelo paciente. Primeiro, a intervenção teve como objetivo promover a autorregulação em situações escolares e na compreensão leitora por meio de instrução explícita de estratégias de FE, permitindo que o paciente pudesse lidar com as demandas escolares. Esses princípios também foram abordados em outras intervenções envolvendo estratégias de FE, mas sob um ponto de vista educacional (Gayo et al., 2014).
Em segundo lugar, constatamos que a ênfase na compreensão leitora e em seus aspectos estratégicos se mostrou eficaz para indivíduo com DD que apresenta menos déficits de de codificação. Assim, a reabilitação neuropsicológica pode complementar outras abordagens terapêuticas convencionais para DD (Darrot et al., 2023; Galuschka et al., 2014; Pasqualotto & Venuti, 2020), e a ênfase nas FE amplia o escopo do tratamento, que anteriormente se limitava ao processamento sensorial e à atenção (Lorusso et al., 2011). Por exemplo, outra abordagem de reabilitação neuropsicológica para dislexia, que enfatizou o treinamento atencional, mostrou efeitos positivos para a decodificação, mas não para a compreensão leitora (Lorusso et al., 2011).
Por fim, o envolvimento dos pais e da escola nos módulos de psicoeducação e orientação pode ter auxiliado na transferência das estratégias aprendidas para outros contextos. O princípio da transferência de efeitos é crucial para a eficácia de qualquer intervenção e tem sido reconhecido como um dos principais desafios para a reabilitação neuropsicológica (Barnett & Ceci, 2002). Assim, pais e professores atuaram como mediadores da resposta ao tratamento, supervisionando o treinamento, monitorando e reforçando as estratégias.
Os estudos de caso único com delineamento de séries temporais (SCED) têm ampla aplicabilidade no contexto clínico e, neste estudo, esse delineamento possibilitou a observação das idiossincrasias do paciente. No entanto, a utilização de técnicas estatísticas apropriadas para a comparação de um indivíduo com uma amostra de controle é central para o sucesso desses estudos. Assim, o delineamento (Crawford et al., 2010) utilizado neste estudo foi adequado para testar a eficácia da reabilitação neuropsicológica. No entanto, algumas limitações deste estudo e perspectivas para estudos futuros incluem: uso de medidas ecológicas padronizadas de FE; pareamento de caso e controles pelo nível de leitura; um estudo futuro com um delineamento experimental para a análise dos efeitos das FE na compreensão leitora; inclusão de medidas de desempenho de outros domínios cognitivos para avaliar a possível transferência de efeitos para habilidades não treinadas; e medidas de acompanhamento para determinar a persistência dos efeitos a longo prazo.
Considerações
Em conclusão, este estudo demonstrou a eficácia de um programa de reabilitação neuropsicológica para a dislexia do desenvolvimento, utilizando um delineamento experimental de caso único. A reabilitação neuropsicológica enfatizou as funções executivas e foi eficaz na melhoria das medidas de desempenho cognitivo, das medidas ecológicas de funções executivas e dos parâmetros de leitura. Portanto, a reabilitação neuropsicológica pode ser parte integrante do processo de intervenção para indivíduos com dislexia, ajudando a minimizar os déficits e a desenvolver estratégias compensatórias para lidar com as dificuldades nos ambientes escolar e familiar.