Introdução
Os processos de aprendizagem apresentam constante evolução nos campos teórico e prático. Investigar o funcionamento de aspectos subjacentes à leitura e a escrita se fazem fundamentais aos profissionais que atuam no cotidiano prático e na academia, pois os saberes construídos possibilitam almejar novas possibilidades e desdobramentos favoráveis ao ensino, aprendizagem e à pesquisa. Entender o funcionamento de uma língua alfabética como o português é um desafio frente a características que lhe são próprias, como sua estrutura morfofonêmica (Ruan et al, 2018) e seu grau de profundidade ortográfica relativamente transparente (Correa et al., 2021).
Nesse aspecto, as habilidades metalinguísticas podem atuar como mediadoras para entender as complexidades existentes em relação à língua, pois referem-se à capacidade de refletirmos e manipularmos a linguagem em sua natureza, estruturas e funções de forma intencional (Gombert, 1992). Cerca de 40 anos de estudos vêm demonstrando a contribuição das habilidades metalinguísticas para a aprendizagem de escolares em diversas partes do mundo (Mota, 2022). Dentre essas habilidades, a consciência morfológica tem papel importante para a aprendizagem da leitura e da escrita.
Um morfema é considerado a menor parte indivisível de uma palavra, ou seja, constitui-se por significado próprio (Gonçalves, 2019). A capacidade de refletir e manipular intencionalmente os morfemas chama-se consciência morfológica (Carlisle, 1995).
Os morfemas atuam na composição das palavras, podendo alterar ou manter o valor gramatical dos vocábulos. O adjetivo ‘atual’, por exemplo, altera seu valor gramatical ao acrescentarmos o sufixo -izar (atualizar), passando a ser um verbo, mas mantêm-se adjetivo com adição do prefixo des- e do sufixo -ado (desatualizado), passando por alterações semânticas e complexificando morfologicamente a palavra. Assim, quando acrescido ou removido qualquer morfema, é atribuído um significado diferente à palavra.
Quanto à classificação, os morfemas podem ser flexionais ou derivacionais. Os morfemas flexionais modificam a palavras quanto ao gênero, número, grau, tempo e modo, sendo observada na literatura maior facilidade de compreensão para as crianças; já os morfemas derivacionais não possuem uma regra de formação, são abertos, constituídos de sufixos e prefixos (Arantes & Mota, 2022). Alguns morfemas apresentam ambiguidade na escrita, como o caso do -esa/-eza, utilizados para indicar nacionalidade e títulos de nobreza no feminino (e.g., chinesa, princesa) e, substantivos abstratos (e.g., pobreza, tristeza), respectivamente. Também é o caso do par -il/-iu, que indica adjetivos (e.g., gentil, versátil) e verbos no pretérito perfeito do indicativo (e.g. sumiu, caiu).
Com isso, a estrutura morfológica auxilia o aprendiz em processo de aquisição da leitura e escrita a aprender com maior facilidade. Dada a estabilidade que o morfema apresenta, ele auxilia na previsão tanto da escrita quanto a inferir significados de palavras num texto durante a leitura, por exemplo.
Estudos de diferentes naturezas vêm demonstrando esse papel de facilitação da morfologia para a aprendizagem. Allen e Lembke (2020) conduziram um estudo de intervenção em alunos com risco de dificuldades de aprendizagem com foco na morfologia e ortografia, matriculados na 2ª e 3ª séries. Os 26 estudantes completaram medidas de soletração e ortografia, memória de trabalho, vocabulário receptivo. A intervenção foi aplicada de forma intensiva durante cinco semanas. As medidas estatísticas destacaram ganhos e efeitos moderados na medida de soletração.
James et al. (2020) analisaram a relação entre consciência morfológica e leitura em algumas faixas de idade. Foram encontrados efeitos de idade significativos para os adolescentes, faixa etária mais velha do estudo, e mais fraca às crianças mais novas, de seis a oito anos. A idade foi fator preditivo, demonstrando que, quanto mais velho o aluno, maior era seu desempenho nas tarefas. Oliveira et al. (2020) avaliaram a relação direta da consciência morfológica e a compreensão de leitura no português brasileiro, mediados pela leitura de palavras. Os resultados mostraram que a consciência morfológica não contribuiu diretamente para a compreensão de leitura, havendo, porém, uma relação indireta via leitura de palavras. A consciência morfológica contribuiu de forma significativa para a leitura de palavras, que por sua vez contribui para a compreensão leitora. Correa et al. (2021) encontraram contribuições do processamento morfológico para a velocidade de leitura e nomeação rápida em alunos em processo inicial da aprendizagem da leitura.
Quirin et al. (2021) verificaram, longitudinalmente, que as variáveis cognitivas são importantes para a predição de leitura, identificando relação causal da precisão de leitura para a consciência fonológica e relação recíproca entre a nomeação seriada rápida e a fluência de leitura. Nesse estudo, a consciência morfológica foi importante para a compreensão de leitura, junto ao engajamento escolar em alunos de 4º e 5º ano. O estudo destaca o papel dos preditores cognitivos, especialmente a consciência morfológica e sua importância para predizer a leitura, em níveis de precisão, fluência e compreensão.
Num estudo com disléxicos, Bourassa et al. (2018) mostraram que crianças, no 4º ano de escolarização, usam o conhecimento sobre a estrutura morfológica da língua para ajudar na escrita de palavras. O estudo contou com a participação de um grupo disléxico e outro neurotípico. As análises realizadas indicaram que crianças com dislexia são tão propensas a utilizar informação morfológica para apoiar suas escritas quanto as crianças mais novas com mesmo nível de pareamento ortográfico, apresentando semelhança em desempenho e precisão. Nessa direção, podemos pensar nas contribuições da habilidade morfológica em alunos com dificuldades de aprendizagem específicas.
Guimarães e Mota (2018) analisaram a contribuição da consciência morfológica para diversos tipos de regras ortográficas em alunos do 2º e 4º ano. As autoras encontraram contribuições independentes para a escrita de palavras com regras de contexto intrapalavra, morfológicas e irregulares, ampliando a discussão do papel da consciência morfológica para diferentes tipos de ortografias, evidenciando a importância da habilidade morfológica no desenvolvimento ortográfico.
Guimarães et al. (2014) também encontraram relações da consciência morfológica com a escrita. Alunos de 3º, 4º e 5º anos completaram medidas de escrita, morfologia e compreensão de textos. Em análises de regressão múltipla, foram verificados resultados significativos nas tarefas voltadas à morfologia flexional e derivacional, destacando que a escrita não se resume apenas a um automatismo de padrões ortográficos, mas pauta-se em unidades com significados.
Os resultados obtidos nos estudos preditivos para a leitura apontam contribuição da consciência morfológica para este domínio, onde essa contribuição cresce à medida que a escolaridade aumenta, porém ainda não há muita clareza quanto essa contribuição em estudos de intervenção (Mota, 2009; Ferraz & Souza, 2019). Em escrita, nota-se maior consistência da relação com a consciência morfológica. Em contraponto, outras habilidades metalinguísticas vêm demonstrando, em maior número de evidências, a contribuição para a leitura e escrita (e.g., César, 2018; Souza, 2018).
Observada esta lacuna, Treiman (2018) sugere que parte de erros de ortografia podem ser provenientes da falta de conhecimento dos morfemas e de como sua grafia é estável. Quando não ocorre o ensino formal da ortografia, as dúvidas em relação à escrita se multiplicam e a escrita do aluno, levando a risco e problemas de aprendizagem, marcada por uma escrita defasada em relação aos pares (Chiaramonte & Capellini, 2022). Desta forma, há que se pensar em práticas que facilitem a aquisição e o desenvolvimento ortográfico.
Observa-se um número crescente de pesquisas que exploram as habilidades de leitura e escrita (Pereira et al., 2022). A pesquisa-intervenção pode oferecer contribuições ao estabelecimento de relação entre as competências cognitivas e o aprendizado, favorecendo a construção, a partir de evidências empíricas, de modelos teóricos que impactem na educação (Correa, 2008). No Brasil, poucos estudos de intervenção em consciência morfológica foram conduzidos nos últimos dez anos (Barbosa, 2013; Correa, 2016; Guimarães, 2016; Migot, 2018; Sousa, 2023). Dada a importância que essa habilidade pode ter para o campo educacional, este estudo adotou como objetivo geral investigar na literatura a produção de intervenções em consciência morfológica no Brasil em programas de pós-graduação. De forma específica, apontar contribuições da habilidade morfológica para a aprendizagem e explicitar a composição estrutural dos componentes organizacionais da pesquisa-intervenção em consciência morfológica produzida no Brasil.
Método
Baseado nas evidências que a consciência morfológica contribui para a melhoria da aprendizagem, investigou-se o espaço que esta vem tendo no âmbito acadêmico a partir de produções de programas de pós-graduação, em estudos interventivos intermediados por programas de ensino voltados a processamento/ conhecimento/ consciência morfológica. As bases de dados utilizadas para busca foram as plataformas CAPES de Teses e Dissertações e Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, haja vista que estas concentram grande parte das produções acadêmicas nacionais. Os termos de filtragem utilizados foram: “consciência morfológica”, “processamento morfológico”, “morfologia”, isoladamente, e, após, seguidos dos operadores booleanos “AND” e “OR”, com os termos “intervenção”, “efeitos”, “aprendizagem”, “leitura”, “escrita” e “ortografia”, com a posterior busca dos mesmos termos traduzidos em língua inglesa.
Foram incluídas as teses e dissertações que atendessem aos seguintes critérios: (1) estudos que abordem a consciência/ processamento/ conhecimento morfológico com delineamentos experimentais/ quase-experimentais; (2) estudos publicados na modalidade tese ou dissertação que ocorreram em programas brasileiros de pós-graduação em Psicologia, Educação e/ ou Linguagem no período de 2011 a 2021; (3) estudos controlados que possuíssem medidas pré e pós-teste; (4) pesquisas realizadas em ambiente escolar. Foram excluídos, no entanto, estudos que: (1) não apresentavam delineamento quase e/ ou experimental; (2) não apresentavam disponibilização pública na Internet; (3) estudos de comparação entre grupos sem programa de aprendizagem/ intervenção; (4) estudos duplicados entre os bancos de dados.
Inicialmente foram encontrados 45 trabalhos, sendo 26 na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações e 19 na Plataforma CAPES, a partir dos termos estabelecidos. Após a leitura dos títulos e resumos, foram desconsiderados 10 trabalhos por duplicidade entre os bancos de dados e 30 devido delineamento de pesquisa não se enquadrar no escopo de interesse descrito nos critérios de inclusão e exclusão. A Figura 1 ilustra o percurso metodológico da revisão conduzida.
Dos trabalhos analisados, cinco atendiam aos critérios de inclusão. A análise dos estudos procedeu-se a partir destes, analisando a sistemática, as tarefas aplicadas durante as intervenções e os resultados obtidos (Quadro 1).
Quadro 1 : Trabalhos que atenderam aos critérios de inclusão estabelecidos
| Autor/ Ano | Instituição | Tipo de Trabalho | Título | Objetivos |
|---|---|---|---|---|
| Sousa (2023) | Universidade Salgado de Oliveira | Dissertação | Efeitos de uma intervenção em consciência morfológica no desenvolvimento da leitura e ortografia em crianças do 4º ano do ensino fundamental | Verificar os efeitos de uma intervenção em consciência morfológica na leitura e ortografia de alunos do 4º ano do ensino fundamental. |
| Migot (2018) | Universidade de São Paulo | Tese | Desenvolvimento da consciência morfológica e o seu papel no vocabulário, na leitura e na escrita | Investigar o desenvolvimento da consciência morfológica e o seu papel na ampliação do vocabulário, das habilidades de leitura e de escrita. |
| Correa (2016) | Universidade Federal do Paraná | Dissertação | Impacto de um programa de ensino para o desenvolvimento de habilidades metafonológicas e metamorfológicas na aprendizagem inicial da leitura e da escrita | Investigar os impactos de um programa de ensino voltado para o desenvolvimento de habilidades metafonológicas e metamorfológicas sobre a aprendizagem da leitura e da escrita em alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental. |
| Guimarães (2016) | Universidade do Estado do Rio de Janeiro | Tese | É princesa ou princeza? Qual o papel da consciência morfológica na leitura e escrita de crianças falantes do português? | Discutir quais as contribuições da consciência morfológica para os processos de leitura e escrita das crianças falantes do português no Brasil. |
| Barbosa (2013) | Universidade Federal do Paraná | Tese | O papel da consciência morfológica no aperfeiçoamento da linguagem escrita | Apresentar evidências empíricas que possam indicar o papel que as habilidades morfológicas desempenham sobre o aperfeiçoamento da linguagem escrita. |
Resultados
Barbosa (2013) se propôs apresentar evidências empíricas que pudessem indicar o papel da consciência morfológica e fonológica no aperfeiçoamento da escrita. Para tal, participaram da pesquisa 111 crianças de turmas de 4º ano de uma escola pública do Paraná. A pesquisa contou com três tempos de análise, sendo o pré-teste, pós-teste imediato e pós-teste diferido. Os participantes foram distribuídos, por características de desempenho mais ou menos elevadas, em quatro grupos equilibrados a partir de Teste t, sendo três grupos experimentais, que receberam instrução em morfologia e, um grupo controle, que recebeu instrução em matemática. Como medidas, a pesquisa utilizou de instrumentos de leitura (Cloze), escrita sob ditado (palavras e pseudopalavras), conhecimento lexical, morfologia (derivação, decomposição morfológica, flexão em contexto e analogias gramaticais), vocabulário (Wisc III) e consciência fonológica.
A intervenção baseou-se em cinco sessões de atividades com duração de 30 minutos. Quanto à divisão e caracterização das propostas interventivas, cada grupo experimental teve um estudo-alvo, tendo o Grupo 1 focou no desenvolvimento da morfologia derivacional, no par homófono -esa e -eza. O Grupo 2 teve como foco as regras morfológicas flexionais, estudando nas seções os elementos ‘-am’ e ‘-ão’ em verbos conjugados no pretérito na terceira pessoa do plural, e verbos conjugados no futuro do presente na terceira pessoa do plural, respectivamente. O Grupo 3 focou no estudo da morfologia flexional e derivacional, com foco nos elementos ‘-il’, ‘-iu’ e na conjugação ‘-ir’, em verbos conjugados no pretérito na terceira pessoa do singular. Ao final das cinco sessões, foi administrado o pós-teste imediato para verificar o efeito imediato da intervenção na ortografia. O pós-teste diferido ocorreu após um mês do programa de cinco sessões, período incidente com o recesso escolar.
Como resultados, a partir de análise de invariância os grupos mantiveram os ganhos da intervenção dos morfemas-alvo quando comparadas com os outros grupos no pós-teste diferido nas tarefas de discriminação de palavras com os respectivos elementos mórficos estudados. Tanto o Grupo 1 (F=6,58; gl=3; p=0,000), que recebeu instrução explícita com foco nos morfemas -esa, -eza, o Grupo 2 (F=4,29; gl=3; p=0,007) e o Grupo 3, que teve como foco os morfemas -il, -iu e -ir (F=0,33; gl=3; p=0,810), mostraram, a partir dos testes estatísticos conduzidos, diferenças significativas entre os demais grupos.
O estudo de Guimarães (2016) foi conduzido com 33 crianças de 2º ano de uma escola pública do Rio de Janeiro. O objetivo do estudo foi verificar se a intervenção em consciência morfológica teria efeitos significativos no desempenho da leitura de palavras, compreensão de textos e escrita. Como instrumentos, foram utilizadas medidas de leitura de palavras, compreensão de texto, escrita, consciência fonológica e consciência morfológica (derivacional e flexional).
A intervenção foi realizada por meio de 19 sessões, com orientações explícitas sobre o processo de formação de palavras e das classes gramaticais (verbos, substantivos e adjetivos). O foco de organização das sessões foi a partir de dois tipos de morfemas: com valor semântico (sufixos -aria e -eiro, prefixos des-, im- e in-) e com valor gramatical (-esa e -eza, -am e -ão, -il e -iu).
Na análise dos resultados, foram observadas diferenças nas habilidades morfológicas, evidenciado pelo cálculo de Cohen’s como largo tamanho de efeito do treino de intervenção para ortografia de palavras morfologicamente complexas (d=1,17), e médio para a morfologia derivacional (d=0,61). Não foram evidenciadas diferenças significativas entre os grupos nos demais domínios investigados.
No estudo de Correa (2016), o objetivo foi investigar impactos de um programa de ensino voltado para o desenvolvimento das habilidades metafonológicas e metamorfológicas sobre a aprendizagem da leitura e escrita em alunos do primeiro ano do Ensino Fundamental. A pesquisa ocorreu em uma escola pública do Paraná, com 94 crianças distribuídas em três grupos experimentais e um controle. Uma turma recebeu treinamento em consciência morfológica, outra em consciência fonológica e outra em ambas as habilidades.
Os alunos foram submetidos a medidas de pré-teste e pós-teste, com a aplicação de instrumentos de leitura de palavras, escrita (autoditado), consciência fonológica e consciência morfológica (decomposição e derivação). Quanto à intervenção, todas as turmas tiveram 23 sessões de treinamento. A turma controle recebeu instrução em matemática, focando resolução de situações-problemas. A turma que recebeu instrução em consciência morfológica e fonológica focou o trabalho com prefixos (re-, des-), sufixos (-eiro, -dor, -o/a, -s, ão), aliteração (“re” e “de(s)”) e rima (“eiro”, “dor”, “o” “a”, “s”, “ão”). A turma que recebeu instrução somente em consciência morfológica teve o treinamento focado em derivação (prefixos re-, des- e sufixos (-eiro, -dor) e flexão (gênero do substantivo -o/-a, número do substantivo -s e flexão verbal -ão). Já a turma que recebeu apenas treinamento em consciência fonológica teve treinamento focado em aliteração (“re” e “de(s)”) e rima (“eiro”, “dor”, “o” “a”, “s”, “ão”).
Quanto aos resultados, não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre as turmas após o teste de Kruskal-Wallis no pré e pós-teste. A autora destaca que, mesmo não estatisticamente significativas, observam-se diferenças nas médias do pós-teste em relação ao pré-teste em todas as turmas nos itens de morfologia flexional.
O trabalho de Migot (2018) teve como objetivo principal investigar o desenvolvimento da consciência morfológica e o seu papel na ampliação do vocabulário, das habilidades de leitura e escrita. A pesquisa contou com a participação de 44 crianças de 3º ano de uma escola pública de São Paulo, distribuídas em grupo controle e experimental.
Como instrumentos, a pesquisa contou com período pré e pós-teste (em dois momentos), tendo medidas de controle (inteligência não verbal, consciência fonológica e nomeação rápida) e experimentais (consciência morfológica – produção de neologismos, analogia derivacional, derivação em contexto e definição de palavras afixadas; escrita sob ditado e leitura – taxa de leitura e compreensão medida via teste de Cloze). Para a intervenção, houve apoio contextual do livro “Emília no país da gramática”, de Monteiro Lobato, focando a manipulação de prefixos e sufixos derivacionais frequentes no português, com atividades de identificação, adição, substituição de afixos e seus significados, formulada em seis sessões de 30 minutos para grupos de sete crianças.
Quanto aos resultados, no primeiro pós-teste, foram verificadas correlações moderadas entre a tarefa de ditado e analogia (r=0,635, p<0,01) e com derivação (r=0,579, p<0,01). A tarefa de leitura em um minuto e o teste de Cloze também apresentaram correlações moderadas com as tarefas de consciência morfológica. Observou-se evolução no desempenho médio das tarefas de fluência de leitura, compreensão e ortografia, porém não foram diferenças estatisticamente significativas.
Sousa (2023) realizou um estudo com uma amostra de 47 alunos do 4º ano do Ensino Fundamental, divididos entre grupo experimental e grupo controle, para verificar os efeitos de uma intervenção focada em pares homófonos (-esa/ -eza, -am/-ão, -il/ -iu) e estabilidade morfêmica. O grupo experimental participou de 12 sessões de intervenção, enquanto o grupo controle continuou com o ensino regular. Foram utilizados testes como o TDE (Teste de Desempenho Escolar) para avaliar a ortografia e o PROCOMLE para leitura. Além disso, foram aplicadas tarefas específicas para medir o conhecimento de morfologia derivacional e decomposição morfológica.
A intervenção contou com o apoio de atividades comuns ao cotidiano escolar, como palavras cruzadas, caça-palavras, dinâmicas... e destacou o papel metalinguístico por meio do ensino explícito demonstrado por um roteiro a ser seguido pela professora da turma, a qual passou por treinamento prévio com o pesquisador.
Os resultados indicaram que o grupo experimental obteve ganhos significativos em comparação ao grupo controle nas tarefas de escrita e morfologia derivacional. No TDE, o grupo experimental apresentou média pós-teste de 21,35 (DP=10,49), enquanto o grupo controle obteve 18,38 (DP=12,35). Na tarefa de morfologia derivacional, o grupo experimental teve média de 6,96 (DP=1,61), enquanto o grupo controle alcançou 4,21 (DP=3,04), com um tamanho de efeito elevado (Cohen’s d>0,8). Resultados semelhantes foram observados na tarefa de decomposição morfológica, com média de 7,83 (DP=1,7) para o grupo experimental e 6,08 (DP=3,02) para o grupo controle.
No entanto, no teste de PROCOMLE, que avaliou a leitura, não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos, com o grupo experimental obtendo média de 8,87 (DP=3,47) e o grupo controle com 9,29 (DP=3,63).
O Quadro 2 sintetiza a caracterização do foco das sessões de intervenção apresentadas.
Quadro 2 : Características das sessões de intervenção quanto à amostra e foco
| Autor/ Ano | Amostra | Sessões | Foco da intervenção | ||
|---|---|---|---|---|---|
| Série | Idade Média | n | |||
| Sousa (2023) | 4º ano | 9,1 | 47 (GE: 23; GC: 24) | 12 aulas de 30 minutos | Atividades com sufixos de escrita ambígua por concorrência, sendo sufixos gramaticais derivacionais (-eza/-esa; -il/ -iu), sufixos gramaticais flexionais (-am/-ão) e estabilidade morfêmica. |
| Migot (2018) | 3º ano | 7,5 | 44 (GE: 22; GC: 22) | 6 aulas de 30 minutos | Sensibilização e manipulação da estrutura morfológica de palavras derivadas (prefixos ‘des-’ e ‘re-’ e sufixos -eiro/a, -isto/a, -ada) em atividades com instruções explícitas de identificação, adição e substituição de afixos. |
| Correa (2016) | 1º ano | 5,6 | 102 (GE: 80; GC: 22) | 23 aulas de 90 minutos | Atividades explícitas de morfologia derivacional (prefixos re-, des- e sufixos -eiro, -dor) e flexional (gênero do substantivo -o/-a, número do substantivo -s e flexão verbal -ão). |
| Guimarães (2016) | 2º ano | 7,8 | 33 (GE: 17; GC: 16) | 19 aulas de 50 minutos | Atividades de manipulação morfêmica de nível semântico (prefixos des-, im- in- e sufixos -aria, -eiro) e nível gramatical (sufixos -eza, -esa, -am, -ão, -il, -iu). Baseada em pequenos textos para contextualização sintático-semântica e construção de livro de morfemas com as situações apreendidas. |
| Barbosa (2013) | 4º ano | 9,6 | 111 (GE: 97; GC: 14) | 5 aulas de 30 minutos | Elementos mórficos homófonos “-esa” e “-eza” / “-am” e “-ão” / “-il” e “-iu” (cada um dos três grupos experimentais ficou com um par de morfemas homófonos). |
GC: Grupo Controle; GE: Grupo Experimental. n= Número de participantes
Já o Quadro 3 sintetiza os efeitos observados, bem como os resultados.
Quadro 3 : Efeitos e resultados observados nos estudos analisados
| Autor | Efeitos | Resultados |
|---|---|---|
| Sousa (2023) | Ortografia e Consciência Morfológica | O grupo experimental apresentou ganhos significativos em tarefas de escrita de palavras com regras morfológicas e no conhecimento morfológico, sugerindo a eficácia da intervenção. |
| Migot (2018) | Consciência Morfológica e Vocabulário | A intervenção em morfologia derivacional impactou positivamente o desenvolvimento do vocabulário e a fluência de leitura em alunos do 3º ano. |
| Correa (2016) | Leitura, Ortografia, Consciência Fonológica e Morfológica | O grupo C, que recebeu ensino em ambas as habilidades (consciência fonológica e morfológica), obteve os melhores resultados em leitura e escrita, quando comparado aos grupos controle e os grupos com intervenção em uma única habilidade. |
| Guimarães (2016) | Ortografia e Consciência Morfológica | A intervenção melhorou significativamente a ortografia de palavras morfologicamente complexas (efeito alto) e a morfologia derivacional (efeito moderado). Não houve efeito na leitura de palavras ou compreensão de texto. |
| Barbosa (2013) | Ortografia e Consciência Morfológica | A intervenção focada em elementos mórficos homófonos demonstrou que alunos expostos ao treinamento obtiveram avanços na escrita e compreensão de regras morfológicas. |
Assim, os resultados apresentados no Quadro 3 confirmam a eficácia das intervenções em consciência morfológica, destacando-se os avanços significativos na escrita e no conhecimento morfológico dos alunos. Ao mesmo tempo, apontam para a necessidade de estudos futuros que investiguem com maior profundidade o impacto dessas intervenções no desenvolvimento da leitura.
Discussão
O objetivo principal desta revisão foi investigar na literatura a produção de intervenções em consciência morfológica no Brasil em programas de pós-graduação. Para tanto, recorremos busca sistemática em bases de dados. Os resultados indicam um pequeno número de trabalhos produzidos, desta natureza, em período recente no Brasil.
As investigações em consciência morfológica têm demonstrado impactos na leitura e na escrita, porém, percebe-se a necessidade de ampliação do número de estudos que aprofundem o tipo de atividade/ instrução, para que haja uma implementação mais eficaz no âmbito das pesquisas e a nível educacional, auxiliando na explicitação nos documentos balizadores da educação. Ng et al. (2022) destacam que não há pesquisas de como melhor ensinar morfologia para crianças, tampouco orientações para o trabalho em sala de aula de forma sistematizada. Manyak et al. (2018) sugerem uma sequência de diretrizes para ensinar morfemas derivacionais da língua inglesa a partir de uma lista desenvolvida pelos mesmos, em uma sequência de seis etapas de prática orientada (introdução, análise, prática, exame, questionário e desafio a partir do afixo apresentado), porém, deixam a cargo dos professores a seleção dos afixos, bem como os ajustes de acordo com seus conhecimentos e necessidades do sistema de ensino.
No português, não possuímos estudos que contemplem listas ou os principais afixos explorados, por ano escolar, tampouco a indicação de foco de ensino por ano/ série escolar, o que poderia facilitar a organização didática e elaboração de diretrizes e planos de aprendizagem direcionados. Contudo, os estudos revisados nos apontam que o ensino explícito de morfemas de escrita ambígua nesta fase favorece a construção e reflexão sobre a ortografia das regras morfológico-gramaticais, o que pode nos indicar a necessidade de explorar a partir de pesquisas de produção de afixos (e.g., Paula & Leme, 2017) e análises qualitativas sobre o conhecimento morfológico para auxiliar nesta demanda.
Atualmente, é necessário e sugerível que as formas de estimulação do pensamento em sala de aula sejam explicitamente consideradas, com o objetivo de promover uma aprendizagem de qualidade (Pásten, 2021). Nesse sentido, a reflexão sobre as demandas e decisões pedagógicas se faz necessária e pertinente.
Para observarmos aspectos metodológicos e facilitadores de aprendizagens, é necessária a organização das propostas de ensino para que a aprendizagem seja planejada e de caráter intencional, facilitando a observação dos elementos explicitamente descritos que favoreceram (ou não) as aquisições de competências e habilidades. O estabelecimento de uso de suportes para os planos de aprendizagem, como sequências didáticas, que pressupõem um conjunto de atividades sistematicamente planejadas, que “procura favorecer a mudança e a promoção dos alunos ao domínio dos gêneros e das situações de comunicação” (Dolz & Schneuwly, 2004, p. 97), são ferramentas que parecem favorecer, além da organização, a análise dos aspectos de ensino-aprendizagem.
A revisão apresentada demonstrou que, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, crianças possuem sensibilidade de aprendizagem para morfemas e conseguem estabelecer relações de uso-significado em tarefas cotidianas. Tal facilidade deve-se, por vezes, ao aprendizado das regras ortográficas, que são proeminentes nesta etapa de ensino. Contudo, a compreensão de leitura ainda necessita ser melhor investigada em consideração aos aspectos do impacto da consciência morfológica, necessitando de investigações com instrumentos capazes de identificar sua contribuição na língua portuguesa do Brasil, bem como já apontado por Goodwin e Ahn (2013) em uma meta-análise com estudos prevalentes em língua inglesa. Pesquisas com grupos específicos, como crianças com dificuldades de aprendizagem ou transtornos de linguagem, podem ser relevantes para entender tal relação em português.
A pesquisa-intervenção em ambientes ecologicamente válidos e com uso de medidas de controle pré-definidas colaboram na ampliação da discussão e aperfeiçoamento dos estudos na área. Além dos estudos acadêmicos, também auxiliam na transposição pesquisa - práticas pedagógicas, com o potencial de transformar os contextos educacionais, conforme pondera Mota (2008). Dos trabalhos incluídos na revisão, Sousa e Mota (2023) publicaram um jogo de cartas e um livro-manual (Mota & Sousa, 2024) a partir da pesquisa realizada por Sousa (2023), com intuito de alcançar profissionais que atuam com escolares e preencher lacunas em relação a inexistência de materiais validados nesta área. Contudo, ainda se observa necessidade de ampliação de formas de divulgação e formação na área.
O entender metodológico proposto por Nunes e Bryant (2006) também alerta sobre a consideração da questão da transposição/ transformação social e rigor científico, conjugando diversas técnicas favorecendo uma discussão que oriente a pesquisa acadêmica e a prática de educadores. Nos trabalhos selecionados, as autoras propuseram delineamentos que permitissem ambas as especificidades: o controle dos participantes em grupos atendidos, auxiliando na caracterização amostral e entendimento da realidade educacional, subsidiadas pelas testagens padronizadas pré e pós-intervenção, e as reflexões acerca do desenvolvimento metalinguístico propiciado pela intervenção, subsidiado por discussões acerca dos resultados obtidos, vislumbrando mudanças práticas.
Considerações
Neste artigo, exploramos por meio de uma revisão sistemática a produção e o papel das intervenções em consciência morfológica em contexto brasileiro. Dadas as peculiaridades do sistema de escrita, vêm-se notando, apesar do pequeno número de produções, efeitos significativos na aprendizagem da leitura e da escrita em tais estudos, colaborando para as investigações de leitura e escrita e compondo um corpo teórico empírico sustentado por evidências empíricas.
O pensar em intervenções em consciência morfológica pressupõe um agir e um caminhar a favor da promoção da aprendizagem, juntamente com a promoção e apropriação dos conhecimentos metalinguísticos. Portanto, faz-se necessário identificar níveis de aprendizagem e estabelecer parâmetros de ensino condizentes com a realidade das crianças considerando sua efetiva participação para a implementação de tais. A periodicidade, duração e formato dos planos de intervenções propostos (individual, em grupos, coletivas) devem observar os resultados que se almeja alcançar e congruência ao contexto (ecológico e/ou laboratorial), associando ao currículo e às demandas pedagógicas vigentes, a fim de efetivar aprendizagens, atuando nas defasagens e ampliando os conhecimentos dos alunos.
Na pesquisa-intervenção em consciência morfológica ainda é necessário explicitar com maior clareza os procedimentos adotados, destacando os elementos abordados de forma explícita para fins de análises a respeito de efetividade e replicabilidade, sendo estas perspectivas para estudos futuros, associadas a estudos com outros delineamentos, como longitudinal e exploratório.














