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Journal of Human Growth and Development
versión impresa ISSN 0104-1282versión On-line ISSN 2175-3598
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. v.15 n.1 São Paulo abr. 2005
PESQUISA ORIGINAL RESEARCH ORIGINAL
Maternidade de adolescentes de periferias sociais e urbanas: algumas análises à luz da Psicologia Ambiental
Motherhood among poor teenagers belonging to social and urban outskirts: analysis under the light of environmental psychology
Nancy Ramacciotti de Oliveira
Psicóloga clínica e professora do curso de Psicologia da Universidade Católica de Santos - UNISANTOS. End,: Av. Washington Luis, 553 ap.51. Santos - SP . CEP 11055-001. E-mail: nancy@unisantos.br
RESUMO
Esse artigo apresenta reflexões sobre a procriação de adolescentes de periferias sociais e urbanas de duas grandes cidades do Estado de São Paulo (BR), Santos e Santo André, baseando-se em conceitos da Psicologia Ambiental, a partir de três estudos realizados anteriormente com adolescentes grávidas e mães pobres. Naquelas condições sócio-ambientais, a gravidez pareceu diretamente associada a carências advindas de modelos que apresentam necessidades que aquelas adolescentes não podiam prover. A procriação de adolescentes pobres numa sociedade globalizada, com desafios de busca de uma forma de desenvolvimento que seja sustentável, é entendida como um fenômeno psicossocial, que deve ser tratado de forma interdisciplinar, uma vez que alcança âmbitos maiores, de ordem ética e política.
Palavras-chaves: Gravidez na adolescência. Procriação de adolescentes pobres. Psicologia Ambiental. Riscos ambientais para juventude. Procriação e protagonismo juvenil. Escola. Enraizamento.
ABSTRACT
This paper presents considerations, based on concepts of environmental psychology, about breeding of poor teenagers belonging to the urban outskirts of large cities from the state of São Paulo, Brazil. Under these environmental and social conditions, pregnancy seems to be directly associated with lacks existing in the current models, which present needs that cannot be fulfilled by these teenagers. The breeding of poor teenagers in a globalized society, with the challenge of searching for a form of self-supported development, is understood as a psychosocial phenomenon, which must be handled with an inter-disciplinary approach, since it reaches larger realms, such as ethics and politics.
Keywords: Teenage pregnancy. Breeding of poor teenagers. Environmental Psychology. Environmental hazards for youngsters. Teenage breeding and protagonist role-playing. School.
Histórico
Neste artigo, são apresentadas algumas reflexões sobre o fenômeno da gravidez e da maternidade de adolescentes pobres que vivem em grandes centros urbanos. Essas reflexões decorreram de três estudos psicossociais sobre gravidez, maternidade e sexualidade de adolescentes pobres feitos em cidades da Baixada Santista (SP) e na cidade de Santo André (SP) 1,2,3. Tais estudos tiveram como ponto de partida a nossa prática profissional como psicóloga em uma unidade de serviço público de atendimento pré-natal e maternidade.
A partir desses estudos, o protagonismo juvenil e as condições contemporâneas da chamada juventude popular urbana mostraram a relevância da problemática sócio-ambiental frente à questão da gravidez e da maternidade ocorridas nesses contextos4.
No primeiro desses estudos, foram pesquisadas adolescentes grávidas (com uso de 82 questionários e 150 desenhos de auto-retrato) e mães (através de 36 entrevistas em profundidade, realizadas nos locais da moradia, quando os bebês tinham menos de cinco meses). Esse estudo foi retomado num trabalho de seguimento longitudinal, com a investigação dessas mães adolescentes, quando seus filhos já estavam com cerca de três anos e meio, também com entrevistas propostas para realização nas próprias casas, apesar das mudanças de moradia ocorridas no intervalo das pesquisas de campo1, 2..
Para análise dos resultados desses dois trabalhos com mães adolescentes, foram usados eixos temáticos como: histórias de vida, cotidiano, condições de moradia, subsistência, dependência e autonomia, trajetória escolar e de trabalho, aspectos de risco, avaliações da experiência da gravidez e maternidade, projetos, amizades, lazer, maternagem, condições gerais de desenvolvimento do filho, questões de sexualidade e gênero, condições do pai da criança, aspectos emocionais, auto-imagem e identidade.
Essa relação entre os aspectos sócio-ambientais de jovens moradores de periferias sociais e urbanas e a sexualidade foi retomada num terceiro estudo que incluiu um inventário sobre a vida sexual de adolescentes, homens e mulheres, com ênfase em aspectos da procriação3.
As análises tiveram como referência o protagonismo infantil e a juventude atual urbana, conforme Costa4.
OBJETIVO E MÉTODO
No presente artigo, alguns elementos retirados desses três trabalhos são discutidos sob a ótica de psicologia ambiental, incluída aí uma interseção com a geografia e com a sociologia. Para tanto, foram usados: a) o conceito de espaço total como construção de fragmentos de uma história e de uma geografia6; b) o conceito de busca de sanidades enquanto uma forma de ambientalismo7; e c) referências ao desenvolvimento sustentável, em uma visão crítica desse desenvolvimento8.
Para abarcar, nessa ótica, a questão da gravidez e maternidade de adolescentes pobres de centros urbanos, isto é, a inter-relação desse fenômeno com condições sócio-ambientais específicas, as reflexões propostas caminharam nos seguintes temas: características dos territórios de risco, dos prejuízos escolares e do desenvolvimento da crítica; problemas de enraizamento; questões de saúde e/ou sanidades. Finalizando o artigo, apresenta-se uma breve discussão da temática da sustentabilidade em relação à procriação de adolescentes pobres.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Aspectos de território: as adolescentes, os riscos e os fragmentos simbólicos da sociedade globalizada
O ambiente, visto como espaço total dos jovens das periferias sociais e urbanas de algumas cidades brasileiras, é composto por uma forma de pobreza contemporânea e urbana, permeada dos riscos da criminalidade e do tráfico de drogas, e de trânsito de símbolos e valores que não se encontram ali disponíveis para usufruto e realização. A subjetividade de jovens desses espaços emerge no inter-jogo de suas condições internas - de suas histórias familiares e sociais, principalmente vividas na luta por sobrevivência, e de sua convivência com os riscos do território - com a incorporação de uma cultura de necessidades, mitos, ídolos, idéias e imagens de uma sociedade fora de suas condições de pobreza. Eles vivem e crescem num território - um espaço total que é, concomitantemente, uma junção de fragmentos, geográficos e históricos, do planeta e da humanidade6 - de fragmentos próprios de uma sociedade globalizada que constantemente expõe, pela mídia, seus valores de consumo de riquezas.
Em dois estudos feitos com grávidas e mães adolescentes dessas periferias de grandes cidades, todas as entrevistadas referiram direta ou indiretamente situações concernentes à pobreza e à convivência com riscos, principalmente os do tráfico e do uso abusivo de drogas, da violência urbana e da criminalidade. As falas sobre roubos, ameaças e juramentos de morte, fugas, mortes com crueldade, prostituição, abuso sexual e violência doméstica, de forma quase banal, faziam parte do cotidiano do ambiente no qual viviam.
A convivência cotidiana com os perigos do território parecia promover a construção de recursos de defesa para a administração dos riscos. Estar alerta, não manifestar confronto, obedecer às ordens dos traficantes, separar-se do companheiro traficante após um sinal de aumento de risco, conviver com as regras do tráfico e da criminalidade, em especial com as fugas após juramentos de morte e a submissão à violência doméstica foram circunstâncias trazidas nos depoimentos como exemplos de formas de lidar com os perigos daqueles ambientes.
Nesses estudos, entretanto, pode-se observar que os riscos da criminalidade e do tráfico, que rondavam os ambientes das mães adolescentes, não pareciam atingi-las diretamente (com exceção de uma entrevistada, vítima de violência doméstica, espancamentos, agressões e ameaças sofridas do companheiro traficante). Esse dado concorreu para a sugerir a hipótese da existência de alguma proteção diante dos riscos próprios desses territórios - proteção advinda da gravidez e da maternidade, por conta da menor disponibilidade para freqüência a determinados espaços, que uma mãe adolescente pobre dispõe, pelo menos quando tem um filho ainda pequeno.
Os riscos das periferias urbanas não estão localizados em espaços com fronteiras claras. Ao contrário, eles espalham-se por todo o ambiente, pelas casas, ruas, escolas e nos poucos espaços de lazer, em especial, nos bares e bailes. As diversões oferecidas nesses ambientes, em geral coletivas, são muito ligadas ao trânsito de drogas e tráfico.
Justamente a perda da disponibilidade para essas diversões era a principal queixa das jovens pesquisadas - indisponibilidade claramente entendida por elas como um prejuízo advindo da gravidez e da maternidade. No entanto, o "estar presa" pela criança, isso é, pelo tempo dedicado ao filho, retirava as adolescentes mães, em graus e formas diferentes, dos espaços de "zoar", gerando uma situação de certa proteção pelo distanciamento dos riscos desses espaços. Essa situação foi sugerida em todos os casos pesquisados, e foi freqüentemente expressa por muitas das jovens ao lamentarem a perda desse tipo de lazer.
Os maiores riscos psicossociais aparentes, em algumas das jovens pesquisadas (prostituição, surto psiquiátrico, violência, delinqüência e tráfico), foram associados especialmente aos prejuízos na inserção familiar, com situações de abandono, precariedade, turbulência e danificação. Entretanto, nos casos em que a relação com a família de origem apresentava-se melhor instalada, com maior segurança e confiança nos vínculos, foram mais evidentes os perigos relacionados ao ambiente em que elas moravam: aqueles bairros muito pobres.
Nesses bairros, a pesquisa de campo é bastante difícil. Os espaços pobres de periferias urbanas, especialmente as favelas dominadas pelo tráfico, constituem-se territórios com fronteiras por vezes invisíveis, mas rígidas. São territórios permeados pelos riscos, mas isolados e pouco decifráveis, apesar de abrangidos extensa e intensamente pela comunicação de massa (principalmente pela televisão).
Pelo aumento da violência e da criminalidade, esses territórios acabam por se tornar quase que impenetráveis para estudo e compreensão, já que apresentam grandes riscos para a segurança dos pesquisadores. Ali, para penetração e investigação, é preciso contar com permissão e intermediação de forças locais, muitas vezes ligadas à violência e à contravenção.
Num dos trabalhos de campo, realizado em 2001, por exemplo, a disponibilidade das jovens para ocorrência de entrevistas nas suas próprias residências foi bem menor do que no estudo anterior, feito cerca de três anos e meio antes.
Esse fato foi analisado com uso das seguintes hipóteses:
- a ocorrência, proporcionada pelo desenvolvimento da adolescente, do um aumento de percepção crítica diante da situação de pobreza, condição evidente nas moradias e ambientes em que elas viviam e pouco visível em seus trajes e imagens pessoais;
- o perigo dos ambientes ter aumentado ou se tornado mais visível para as jovens entrevistadas, se comparado à situação anterior. Nesse sentido, elas estariam tentando proteger a entrevistadora, evitando sua entrada em território de risco;
- as jovens que expressaram maior resistência da ida à casa pela entrevista não tinham mais bebês pequenos (um segundo filho), cuja presença poderia protegê-las de riscos relacionados à pesquisa (pelo depoimento) e também proteger a entrevistadora, já que não havia mais uma identificação direta da pesquisa com serviços de pré-natal ou maternidade (etapa do trabalho de campo quando o bebê era bem pequeno).
Por tudo isso, e pela constatação de que, atualmente, um enorme contingente de jovens brasileiros vive e sobrevive em territórios pobres e urbanos dominados pelo tráfico - na forma de crime organizado em nível internacional -, a problemática da procriação de dessas adolescentes deve ser tratada por políticas públicas que não apenas enfatizem a prevenção da contracepção e das DSTs (com informações sobre práticas sexuais consideradas seguras), mas que, sobremaneira, articulem seus modelos de intervenção com as condições desses ambientes marcados pela insegurança.
Os prejuízos escolares e a (im)possibilidade de crítica das adolescentes acerca de seus ambientes e de seus cotidianos
Segundo Ferrara9, a crítica do cotidiano é condição necessária para o sujeito transformar sua história, construir seu presente e futuro.
Nos relatos sobre suas histórias, as jovens pesquisadas falavam de suas vicissitudes nas ligações amorosas e familiares e de suas lutas por sobrevivência. Com percepções fragmentadas e um pouco confusas acerca do cotidiano, elas descreviam a vida quase como um destino, do qual a primeira gravidez transformava-se em epicentro.
As mudanças de endereço e uma quase ausência de pertinência a instituições escolares ou sociais (clubes, associações, igrejas) eram as condições presentes nas vidas das entrevistadas, principalmente após o nascimento de seus bebês. Elas cuidavam das crianças em suas casas, faziam poucas e fracassadas tentativas de volta à escola, além de algumas tentativas esporádicas de inserção no mercado profissional.
Para a subsistência, elas dependiam de suas famílias de origem, ou de seus companheiros e das famílias deles. Seus projetos e expectativas voltavam-se para as necessidades materiais, que careciam de potencial para realização - conseguir um bom emprego e ter uma casa própria. Também queriam terminar os estudos (sem identificar ou delimitar o limite do término) e pensavam em ter outro filho num futuro (aquelas entrevistadas que tinham tido apenas um filho).
Acerca desse cotidiano, elas mostravam pouca condição de reflexão ou crítica. Os prejuízos escolares pareciam ser determinantes para a dimensão dessa falha.
Em geral, as adolescentes não estavam mais na escola quando haviam engravidado, ou ali estavam com dificuldades de pertinência. Durante a gravidez e principalmente depois do nascimento do bebê, as tentativas de re-inserção eram poucas e difíceis. Após algum tempo do nascimento da criança, as adolescentes manifestavam desejos de voltar a estudar, mas havia obstáculos para as re-matrículas. As constantes mudanças de endereço, e até de cidade, ocorridas nas tentativas de construir uma nova família, exigiam providências para o retorno à escola, quanto a vagas e documentação, que teriam que ser feitas sem ajuda de adultos. A maternidade fazia com que elas fossem encaradas como adultos que teriam que tomar conta da própria vida e da de seus filhos - fazer matrículas, arranjar vagas em creches e em escolas, enfim, tornar a se inserir, quase sempre às próprias custas, na trajetória para um melhor desenvolvimento.
Em geral, após a procriação, uma adolescente pobre não é mais tratada como filha a ser educada, mas sim como mãe, que deve cuidar de seus filhos - um degrau de crescimento bastante grande para ser transposto sem ajuda externa. Entretanto, para as adolescentes pesquisadas, isso parecia natural, ou inevitável. Em seus relatos, havia a sugestão de que esse rápido "desmame" (da condição de filha adolescente / dependente, para a condição de mãe / independente) era decorrência de dois fatores. Primeiro, uma clarificação de fronteira causada pela procriação: a saída de um mundo de privilégios de filho para entrada no mundo de pais, dos quais se espera autonomia e responsabilidade. Em segundo lugar, mas não menos importante, essa retirada da condição de dependência podia funcionar como uma descarga para a responsabilidade psicológica, social e econômica da família, com a liberação de um membro que não mais necessitaria de acompanhamento em seu desenvolvimento, ser cuidado e educado para a vida.
Com essas condições, era muito difícil o retorno aos estudos. Ao lado disso, todas as entrevistadas manifestaram valorização da escola, como passagem necessária para um ingresso bem sucedido no mercado profissional, e associavam a não disponibilidade para os estudos com a ocorrência da gravidez. Assim, elas pareciam apenas reproduzir parte do discurso político e da saúde pública acerca da gravidez de adolescentes, sem alcançar uma expressão crítica sobre esse fato e sobre suas vidas. As dificuldades com a escola ficavam restritamente explicadas pelo problema de ter filhos cedo, não incluindo outros fatores, como os problemas familiares e sociais, ou até, as dificuldades próprias das escolas e das creches. Apenas havia a afirmação de que a escola precisava ser "terminada" algum dia (como nos vários relatos da possibilidade de "eliminar matérias" e de ser "dispensada"), não sendo entendida como um direito a um espaço/tempo de e para o desenvolvimento.
Problemas de "enraizamento" para adolescentes grávidas e mães
O "enraizamento" concreto ou simbólico num território, o interesse pelo local e pelo lugar, criam as condições de desenvolvimento da identidade relacionada aos sentidos de pertinência, de modelos de identificação e possibilidade de trocas de conteúdos e continentes psicológicos.
A instabilidade quanto à moradia, com constantes mudanças comuns às populações urbanas mais pobres, é acentuada pelo evento da gravidez de adolescentes. Engravidar e ter filhos são fortes motivos para mudar de casa, de bairro e até de cidade (para morar com um companheiro, ou com sua família).
Essas mudanças acarretam problemas de "enraizamento" no tocante a grupos de amigos, "turmas", família de origem e instituições, principalmente quanto às referências para pertinência em escolas e inclusão dos filhos em creches do bairro. Quanto aos domicílios, muitas das adolescentes mães indicavam viver provisoriamente nas casas em que habitavam, seja porque desejavam sair dali para lugares melhores, ou porque assim precisavam.
Com isso, as jovens tinham dificuldades na integração com a vizinhança, perdiam amigos em vez de fazê-los, criavam poucas raízes porque iriam ou queriam ir embora.
A carência e o empobrecimento de contatos de amizade observados em diferentes momentos das pesquisas pareciam diretamente relacionados a: saída da escola; descolamento de espaços de lazer (já que eles são praticamente inexistentes nos bairros pobres); e o cuidado com a criança, que restringia as saídas de casa, ou de seus arredores. As adolescentes investigadas indicaram ter poucos amigos na vizinhança; em geral, tinham algumas colegas, jovens também mães, mas os contatos pareciam pouco estimulantes ou valorizados.
As atividades do cotidiano em geral desenrolavam-se dentro do campo doméstico, destacando-se as tarefas da casa, o cuidado com os filhos e companheiros, o envolvimento com alguns serviços esporádicos ou a sua procura e, basicamente, assistir televisão - um veículo poderoso na criação, manutenção e reprodução de modelos e ideais quase nunca possíveis de serem atingidos por essas adolescentes, ainda mais, sendo mães.
As adolescentes grávidas e mães pareciam prisioneiras daquelas condições sócio-ambientais, mais ainda do que as adolescentes não mães, e do que os adolescentes homens.
Era a ocupação com os filhos que as mantinha fora, ou nas fronteiras da rede escolar. Além disso, também estavam fora da rede institucional, fosse de projetos culturais, de creches para os filhos, ou de atividades de lazer ou de esporte. Enfim, elas pareciam presas com os filhos - frutos e raízes biológicas - , mas não enraizadas, na casa e nos seus arredores, com restrições e limites para ir e vir, para pertencer a outros e diversificados espaços.
Questões de sexualidade e procriação numa sociedade globalizada: aspectos de sanidades
Adolescentes pobres e urbanos possuem fragmentos de permissão para suas vidas sexuais, como referência ao grande valor do sexo e à valorização da "liberdade sexual" da sociedade contemporânea.
Ao lado disso, eles são chamados à responsabilidade para prática de sexo seguro (com uso de prevenção diante de DSTs e especialmente da Aids) e para a contracepção, através do discurso de um modelo de saúde pública, ou de seus fragmentos, com referências a que as pessoas devem aumentar suas competências para administrar seus destinos em saúde (como prevenção de doenças) e procriação.
A questão problemática que se coloca diante desses modelos sociais - que incluem erotismo, responsabilidade para sexo seguro e competência para a contracepção - é a dificuldade da articulação desses modelos com as condições psicológicas e sócio-ambientais específicas de jovens pobres. Eles têm que manejar suas condições do âmbito da sexualidade (pouca experiência na genitalidade; liberdade social para vida sexual; exposição maciça ao erotismo pela mídia), com carências graves no âmbito social (grandes prejuízos para alternativas gratificantes no cotidiano; falta de suporte para angústias, em especial as ligadas aos sentimentos de solidão; envolvimento com situações de risco provenientes da proximidade com a criminalidade, as drogas e o tráfico).
Nessa circunscrição psicossocial, as questões de sexualidade e procriação tomam características próprias que não podem ser isoladas no campo geral do desenvolvimento e, especificamente, do desenvolvimento da sexualidade num sentido psicológico e/ou genético.
O conceito de busca de sanidades7, próprio das reflexões do ambientalismo, pode ser útil para a discussão dessa temática, pois amplia limites do pensamento clássico da saúde pública. Nesse sentido, a procriação de adolescentes pobres passa a ser tratada não só como um problema da ordem da saúde da adolescente e a de seu filho, como da sanidade dos eco-sistemas em que está inserida.
As primeiras discussões canadenses acerca da questão ambiental incluíram essa idéia de "sanidades" e fizeram parte da própria origem dessa questão. Qualquer problema relacionado com a sanidade do ambiente teria que ser considerado através de um lado técnico e de um lado de integração com outros sistemas, já que todos os problemas ambientais relacionam-se com a organização humana que está naquele espaço.
A palavra "sanidade", do latim sanare, tem o sentido de curar e tratar. Nas primeiras discussões ambientais, tratava-se de curar e tratar a água, o solo, o ar, e os sistemas agrários, por exemplo, tanto tecnicamente como em sua integração com os outros eco-sistemas.
Tratar a questão da gravidez e da maternidade de adolescentes pobres dentro das temáticas ambientais decorre de se pensar as sanidades das cidades, de seus metabolismos, das pessoas, e de suas relações interpessoais e sociais.
Foi a partir do século XX que a gravidez de adolescentes passou a ser considerada um problema de saúde pública10, atingindo em suas ultimas décadas uma maior dimensão no que tange a intervenções voltadas a seu tratamento e prevenção .
Já na ótica mais ampliada do conceito ambientalista de sanidades, a procriação de adolescentes pobres e urbanas fica mais diretamente relacionada a questões sócio-políticas. Na organização dos eco-sistemas próprios das cidades, essa procriação pode apresentar elementos de busca de condições construtivas, como também elementos opostos a essas condições.
Com respeito a aspectos construtivos (busca e/ou encontro de sanidades), verificou-se que todas as adolescentes pesquisadas, nos dois momentos dos estudos separados por mais de três anos, não deram indicações de uso abusivo de drogas, mesmo aquelas que conviviam com companheiros ou namorados que abusavam de drogas e/ou traficavam. Ao contrário, elas referiram ter diminuído o uso das drogas ou substituído por drogas menos nocivas (pelo menos na consideração social, como é o caso da substituição da maconha pelo cigarro).
Adicionalmente, a causa da gravidez dessas adolescentes também pode estar localizada em outros movimentos não disruptivos. A disponibilidade para engravidar, ativa ou passiva, consciente ou inconsciente, pode ser uma forma de escape e administração de riscos associados a condições sócio-ambientais muito adversas, como já exposto, por distanciá-las de situações de maior proximidade de criminalidade, tráfico e drogas, pelo menos pelo tempo que ficavam mais dedicadas ao bebê.
De outro lado, pensar em sanidades, inclui refletir acerca do futuro adverso dessas jovens e de seus filhos, isto é, a perpetuação das condições de prejuízos sociais quanto ao acesso à educação, lazer, moradia e condições adequadas para o desenvolvimento.
Quando os filhos das adolescentes forem maiores de quatro anos (limite temporal das pesquisas de referência desse artigo), haverá riscos maiores do que os já presentes para inclusão, qualificação, e construção de uma identidade com capacidades para a criatividade, mudanças e permanências? Esses riscos serão diretamente provenientes da ocorrência da procriação na adolescência? - Essas são questões ainda em discussão, sugerindo novas investigações, especialmente as voltadas ao estudo do fenômeno da gravidez de adolescentes pobres na ótica sócio-ambiental.
Procriação de adolescentes pobres: risco também para a sustentabilidade±?
Mesmo que as hipóteses acerca da reprodução da pobreza causada pela procriação de adolescentes pobres sejam criticadas eticamente, o aumento expressivo das taxas de procriação em adolescentes pobres expõe um dilema diretamente relacionado às sociedades sustentáveis. Nesse sentido, interroga-se: como poderão ser alcançadas direções de sustentabilidade, num mundo com enormes diferenças sociais, no qual cresce ou se mantém o fenômeno expressivo da gravidez de adolescentes?
O conceito de sustentabilidade inclui a noção de que o desenvolvimento deve ocorrer de forma que as necessidades satisfeitas no presente não comprometam as necessidades do futuro, das próximas gerações7,12. Por isso, a procriação dos adolescentes pobres é uma temática diretamente relacionada à sustentabilidade, porque ligada ao futuro das próximas gerações, mães e filhos, e do planeta.
Por outro lado, a procriação de jovens pobres e urbanas pode ser resposta direta e/ou indireta às graves necessidades do tempo presente - mais simbólicas do que as de natureza sexual, muito mais relacionadas e criadas pelo espaço total e pelas condições dos territórios do que por escolhas entre alternativas de desenvolvimento. Para uma adolescente pobre, ter um bebê e uma esperança de constituir família pode ser uma saída para dar conta de necessidades presentes e urgentes, como a constatação do desamparo e da falta de horizontes.
As preocupações públicas relacionadas à procriação adolescente são voltadas especialmente para o futuro, isto é, relacionadas a prejuízos que poderão atingir as condições sociais dessas adolescentes e de seus filhos - prejuízos nas suas competências para a sobrevivência no e do modelo contemporâneo de sociedade. Em espaços com enormes diferenças na distribuição das riquezas e das carências sociais, como nas periferias sociais e urbanas de grandes cidades brasileiras, as novas gerações formadas por filhos de adolescentes pobres estão assim colocadas nesse dilema da sustentabilidade - uma provável busca de sobrevivência de parte da geração presente acaba mantendo, agravando ou até perpetuando os prejuízos que já se encontram instalados na geração de seus pais.
Como toda a procriação humana, a procriação de adolescentes tem uma dimensão ética. É essa dimensão que precisa ser colocada no centro das discussões sobre o fenômeno da gravidez e maternidade de adolescentes pobres e urbanas, e do aumento de sua incidência. Com isso, as dimensões políticas que cercam a questão poderão ser trabalhadas para além das intervenções (sem dúvidas necessárias) que as políticas públicas têm adotado, ainda com pouca eficácia, pelo menos quanto à sua prevenção.
REFERÊNCIAS
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Recebido em 10/06/2004
Modificado em 14/10/2004
Aprovado em 10/01/2005
A "maternagem" está sendo entendida como uma interação adulto-criança que inclui acolhimento, compreensão, paciência, orientação e suporte por e com a criança, em suas angústias.5 (p.157).
No estudo de seguimento longitudinal, as adolescentes que não deram entrevistas em suas casas, vieram ao encontro da pesquisadora para as entrevistas, vestidas com roupas da moda, usando batom e perfume.
O conceito de sanidade é mais abrangente do que o de saúde, relacionando-se diretamente com as ideologias e com a política. Por outro lado, as visões eco-energéticas expressam-se estritamente sob o conceito higienista de saúde, pouco oferecendo de visão crítica ao desenvolvimento desigual. Diferente do conceito de sanidades, o conceito higienista não está ligado à noção de sobrevivência compartilhada, somente entendendo a sanidade como uma possibilidade de higiene.
± Conforme Pol11, o termo sustentabilidade não tem uma definição operativa suficiente e apresenta enfoques distintos de acordo com as perspectivas das problemáticas ambientais. A ênfase em desenvolvimento ou em sustentável é diversa, mas os conceitos de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável tiveram a virtude de facilitar pontos de encon- tro (mesmo que não de acordo) entre diversos interesses, sendo assumidos por ambientalistas e também por estruturas empresariais e industriais.