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Journal of Human Growth and Development
Print version ISSN 0104-1282
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.20 no.1 São Paulo Apr. 2010
PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH
A desinstitucionalização: limites e possibilidades
Opportunities and limits of deinstitutionalization
Ernesto Venturini
Médico psiquiatra, colaborador de Franco Basaglia, ex diretor do Departamento de Sáude Mental em Imola (Itália), ex assessor da Opas para a America Latina
RESUMO
A desinstitucionalização dentro de um significado mais abrangente a ser atribuído ao ato de curar e reconhecer dois diferentes paradigmas: o "cuidar" e o "curar por meio da terapia". Na dialética entre os dois se introduz um pensamento que se apresenta como uma verdadeira "revolução copernicana": é a perspectiva desenvolvida pela desinstitucionalização, que mais do que um tratamento consiste em um crescimento da pessoa. Como exemplo desta dialética trata-se o assunto dos manicômios judiciários. Na Itália foram totalmente fechados os manicômios desde 1978, mas permanecem 6 pequenos hospitais psiquiátricos judiciários, por dependerem do Ministério da Justiça, não envolvido na reforma da psiquiatria. Hoje criaram-se as premissas para uma efetiva superação dos manicômios judicíarios, mas o sucesso do projeto depende da disponibilidade dos "Centros de Saúde Mental" de assumir tarefa de cuidar dos pacientes que cometeram crime. Os serviços que põem em prática uma desinstitucionalização incompleta revelam-se indisponiveis, ao contrário do serviços daquele que se baseiam em uma desinstitucionalização de fato. Todavia o autor sugere sobretudo uma leitura crítica dos conceitos de imputabilidade e de periculosidade social para a doente mental: até quando eles permaneceram não poderemos nos libertar realmente da ideia do manicômio.
Palavras-chave: desinstitucionalização; cuidar; manicômio judicíario; imputabilidade; periculosidade social.
ABSTRACT
The meaning of "cure" in medicine is examined, in order to understand how such a concept determines different models of deinstitutionalization. "To cure" means both to treat and to take care of. These two terms are intertwined, and their values and shortcomings are highlighted. As example of the dialectic between these concepts it's considered the difficulty to overcome in Italy the Criminal Mental Hospitals. These hospitals weren't closed after the mental health reform, because they were under the authority of Ministry of Justice. Today this situation is changing and the Community Mental Health Centres are involved in taking care of criminal mental health patients. But only the centres that practise the model of "take care" are able to take this responsibility. Nevertheless the Author considers that it's really possible to overcome the mental health stigma, if only it will abrogate the concept of "un-imputableness" for mental patients.
Key words: care; to take care; mental health un-imputability; deinstitutionalization; criminal mental hospitals.
PREMISSA
"Inke tan magrov stak frasin los kret fajne kaserte mjotron presete": essa frase misteriosa aparece num quadro negro no filme O lugar dos morangos de Ingmar Bergman (1957). O filme relata um dia na vida de Isak Borg, ilustre médico sueco, prestes a receber uma homenagem por ocasião de seu jubileu profissional.
Os anos tornaram o velho médico desencantado e um tanto cínico. Durante a viagem para alcançar o lugar da premiação aproveita para rever os lugares de sua adolescência - o lugar dos morangos, exatamente - mas principalmente tem a oportunidade de refletir sobre si mesmo, fazendo uma releitura crítica de sua vida. No fim da jornada vai perceber que mudou - para melhor - tendo conseguido dissolver dentro de si alguns nós dolorosos.
No decorrer da viagem o velho tem alguns pesadelos nos quais vive situações enigmáticas. Numa delas Borg é submetido a uma espécie de prova que diz respeito a suas capacidades profissionais: ele, já tão célebre e famoso, se revela incompetente e incerto. Quando no quadro negro aparece a tal frase misteriosa, Borg não entende seu significado e não sabe responder a pergunta cuja resposta é a própria frase. Exatamente não sabe dizer "qual é o primeiro dever do médico". Não sabe que o primeiro dever de um médico é pedir perdão.
No filme a frase tem um significado peculiar que diz respeito à história de Isak Borg, mas talvez, nas intenções de Bergman, tenha também um valor universal, embora não seja facilmente identificável. Não aparece imediatamente evidente porque o médico - mas poderiamos mais genericamente dizer "a pessoa que cura" - deveria pedir perdão. O que há de tão culpável na profissão de quem cura?
Considerando o impacto da profissão com os temas do sofrimento e da morte, parece que se deva tributar, sempre e de qualquer forma, um indubitável reconhecimento aos médicos. Porem a frase deixa transparecer a existência de uma contradição ligada talvez ao exercício de um poder - o do médico, mas também aquele sócio assistencial - grande demais e dificilmente controlável. O confronto com o exercício do poder e com a emoção primitiva contida na relação de ajuda é sem dúvida um dos problemas fundamentais da cura, sobretudo se a relação é construída com pessoas com necessidades graves.
Contudo, essa problemática é pouco presente, ou até oculta, na maioria das organizações sócio sanitárias. Na origem do sofrimento que acompanha muitas formas de doença e de marginalização não se encontra apenas a dor física, a limitação funcional ou a dependência, mas o que se encontra é principalmente a percepção de não ser mais considerados como pessoas dignas de respeito e de amor.
Ao analisar as organizações sócio sanitárias nós esperaríamos que dentro delas as relações, entre curadores e curados, além daquelas entre os próprios operadores, fossem inequivocamente terapêuticas. Mas, mesmo prescindindo das formas mais brutais de aproveitamento dos pacientes, hemos de constatar uma certa manipulação psicológica sobre os pacientes, em nome da terapia. O saber clínico ou a interpretação psicoterapêutica serve para afirmar, às vezes, o poder de um pensamento - o do terapeuta - que prevarica o pensamento do paciente.
Essa atitude é a consequência da modalidade paternalista com a qual o curador frequentemente se relaciona com quem se encontra em condição de contratualidade social reduzida.
Parece-me necessário, de fato, colocar a desinstitucionalização dentro de um significado mais abrangente a ser atribuído ao ato de curar, assim como ele se desenvolveu historicamente e como se desenvolve no presente.
OS DOIS PARADIGMAS
Impõe-se logo uma primeira admissão. A ciência médica e a psiquiátrica, no decorrer da historia, revelaram-se frequentemente orgulhosas de seu poder, de seus progressos, e pouco propensas à autocrítica. "Cura" etimologicamente significa, ao contrário, solicitude para com alguém ou alguma coisa, implica uma relação de participação e de solidariedade com a pessoa cujas capacidades existenciais e sociais sejam reduzidas. Cura indica também o conjunto das ações, das prescrições, que se implantam para resolver um sofrimento, um vulnus contra um estado de saúde.¹
Em geral podemos reconhecer duas atitudes que de varias maneiras se cruzam, se integram, se contrapõem e que caracterizam o ato médico e aquele psiquiátrico: de um lado, assumir para si a complexidade do evento doença nos seus aspectos antropológicos, existenciais e públicos; por outro lado, tratar mais especificamente os sintomas, mediante uma terapia que torna disponível um articulado corpo de conhecimentos.2,3
Estas duas atitudes correspondem a dois precisos e diferentes paradigmas: o paradigma do "cuidar" e aquele de "curar por meio da terapia". Um pode ser identificado com uma valência feminina, o outro masculina, um constitui um comportamento ativo, o outro aquele passivo, mas frequentemente um e outro se transformam em seu contrário. Na historia da medicina e da psiquiatria parece prevalecer ora um paradigma ora outro; mas mesmo quando coexistem, seu equilíbrio é sempre instável e difícil.4
Na medicina hipocrática o curador assumia para si o "cuidado" com o paciente, pois havia a ideia de um bom governo da cura a ser realizada por meio de ações terapêuticas e preventivas, analogamente à ideia do bom governo da cidade a ser realizado mediante o exercício da democracia.5
Na idade média e na idade renascentista os lugares de cura eram essencialmente os asilos: neste caso o cuidar das pessoas correspondia, numa ótica religiosa, à idéia de uma boa morte, mais do que de uma boa vida. Progressivamente a atenção se deslocou dos doentes para as doenças e em época moderna chegou-se a uma progressão que identifica a saúde como a norma positiva absoluta e a doença como o fato anômalo negativo. Com o nascimento da clínica constituiu-se um saber técnico e um aparato ideológico.6,7
O modelo clínico - fruto do paradigma da prestação - explica a patologia mas não a doença: os médicos, que conhecem as patologias por sua competência disciplinar, são os protagonistas ativos da cura; os pacientes, que sabem da doença por percepção direta em seu corpo, são apenas os objetos passivos.8
As modalidades de cura das doenças psíquicas reproduzem os modelos adotados para as doenças físicas, mas outras vezes se afastam destes modelos. O louco é posto, a cada vez, dentro ou fora de uma linha de confim entre exclusão e inclusão social; seu atravessamento muda conforme as mudanças da organização social. Michel Foucault tornou evidente como, na época do iluminismo, tentou-se colocar a "loucura" dentro da "razão" mediante a medicina.9
A tentativa registrou parciais sucessos e clamorosos fracassos. O manicômio era a caricatura, mas também a radicalização monstruosa, do "cuidar": a instituição tornou-se dona absoluta da vida dos loucos.10-12
Apesar do pensamento de Sigmund Freud, das contribuições da análise sociológica, daquela fenomenológica, do pensamento critico do movimento anti-institucional que impuseram a exigência de uma releitura radical do significado da cura, apesar de tanto se falar de inovação, o que impressiona hoje é a substancial imutabilidade da psiquiatria em relação àquela do passado. Existe uma mudança de linguagem, mas confundem-se as técnicas com as qualidades dos processos.13
Examinando o estado atual da cura constata-se que a eficácia ou a produtividade social dos procedimentos médicos condicionam as escolhas da cura e sua eficácia propriamente terapêutica. Essas lógicas são encontradas, por exemplo, na exigência de catalogação (o DSM IV), na exasperada confiança na farmacologia e na bioengenharia e, por outro lado, nas instâncias de controle dos comportamentos, nas formas perversas de medicalização e institucionalização difusa.14
Se se analisar as práticas psiquiátricas, descobre-se que as funções de cura estão aprisionadas naqueles mesmos paradigmas que atravessaram a historia da psiquiatria: de um lado o paradigma do tratamento e do outro o paradigma do cuidar.15
No primeiro caso, a terapia está centrada na resolução dos sintomas, privilegiando os parâmetros clínicos, se propõe a adaptação do sujeito ao contexto social. Os resultados falam de rendimentos, de utilização das vagas/camas, de despesa.15,16
O paradigma do tratamento reduz a cura à "estabilização" do paciente, se preocupa em evitar as recaídas. A internação hospitalar é vista como a principal oportunidade para incidir sobre o evento mórbido. A confiança nos efeitos benéficos dos fármacos é alta: seu uso é prolongado e os efeitos colaterais são minimizados.17
Na organização do trabalho prevalece a estratégia da espera - a intervenção se dá somente depois de um pedido formal. São escassos os atendimentos em lugares externos - no domicílio do paciente, no lugar de trabalho, na escola.18
O cuidar valoriza, ao contrario, as dinâmicas sociais, privilegia o atendimento do paciente. Os modelos organizativos do espaço e o estilo da intervenção são caracterizados pelo exercício de ações ativas - visitas domiciliares, intervenções nos lugares de trabalho, de estudo, de vida.18
Os resultados interrogam-se sobre o aumento das capacidades de escolha das pessoas, sobre a extensão de suas relações sociais, sobre a aprendizagem de novas habilidades, sobre o aumento de suas competências. O paradigma do cuidar se reconhece nas políticas de empowerment. Mas acontece facilmente que os profissionais caiam em formas de paternalismo, ao invés de favorecer aquelas condições estruturais que permitem ao paciente recuperar seu papel ativo.
Pode-se dar também uma visão ingenuamente onipotente da possibilidade da cura, pode-se dar uma espécie de dependência do serviço pelo paciente, uma espécie de maternage, que acaba produzindo sua infantilização.19,20
Em muitos casos se efetiva e se teoriza a impossibilidade da alta do paciente do circuito psiquiátrico e se produz uma simbiose "crônica" entre paciente e serviço.
A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Mas - e aqui fecho minha premissa, talvez um tanto entediante, e vou desenvolver mais especificamente o tema proposto - nas últimas décadas as modalidades de cura em psiquiatria passam por um importante redimensionamento.
Na dialética entre os dois paradigmas se introduz um novo pensamento que se apresenta como uma verdadeira "revolução copernicana".
É a perspectiva introduzida pela extraordinária vitalidade dos movimentos dos usuários, dos familiares, da auto e mutua ajuda, do recovery, reportáveis sumariamente à chamada desinstitucionalização.3
Trata-se de uma nova maneira de entender a saúde e a doença, que afunda suas raízes nos movimentos dos direitos civis dos anos 1960-70, que se apoia num rico passado científico, filosófico e que encontrou uma significativa referência em algumas específicas experiências internacionais. Estas experiências abalam radicalmente a idéia de cronicidade e irrecuperabilidade do paciente psiquiátrico, impõem com força a exigência de mudar a relação entre curador e curado.21
Mas antes de desenvolver esse tema precisamos esclarecer do que falamos ao usarmos o termo "desinstitucionalização". Essa palavra é de origem anglo-saxã e geralmente indica a superação daquelas "instituições totais", que foram estigmatizadas com força nos anos 60. Em 1975 o National Institute of Mental Health aponta os parâmetros de reconhecimento do processo, e em 1979 na Medline da National Library of Medicine de Bethesda aparece uma entre as mais creditadas definições: cuidar de pessoas no território, em vez de em um ambiente institucional. No início o foco fica centrado apenas na superação da instituição do manicômio, mas sucessivamente se estende para todas as práticas que acompanham e seguem este processo.22-24
O termo indica frequentemente também um período durante o qual, em consequência de políticas sociais e de intervenções legislativas, foi sancionada a definitiva crise da centralidade do manicômio; representa um grande processo de reforma, rico de experiências e de sucessos.25,26
Mas esse termo se presta a inúmeros equívocos e interpretações, segundo os contextos e as épocas em que o evento foi se implementando. A dificuldade não é apenas terminológica, mas indica diferenças conceituais.
O que acontece, por exemplo, em um sistema sanitário universalista e igualitário é diferente do que acontece em um sistema sanitário não igualitário e privado.
A desinstitucionalização em um contexto em que existe ainda o manicômio ou pouco se faz para alcançar a curto prazo sua superação é completamente diferente da desinstitu-cionalização realizada em um contexto onde ao contrario não tem mais manicômio.27
Mas até nesse caso há uma diferença substancial entre quem acha que a desinstitucionalização seja historicamente limitada ao alcance de um objetivo e quem ao contrario acha que é uma modalidade de pensamento e de ação - um processo - destinado a se desenvolver no tempo. Alem disso, existem desigualdades entre quem se limita à reabilitação psicossocial do indivíduo e quem acha que deve incidir também sobre as razões que levam à doença, e as diferentes maneiras de enfrentá-la.28,29
Em alguns países houve movimentos que, partindo de experiências práticas de mudança institucional, encontraram seu orgânico e radical desenvolvimento em leis de reforma, e produziram uma nova organização comunitária da saúde mental e um novo paradigma da saúde/doença. Em outros contextos foram realizados, em geral, simplesmente redução de camas nos hospitais psiquiátricos e as altas aconteceram sem significativos processos de reinserção social.30,31
QUAL DESINSTITUCIONALIZAÇÃO?
Experiências profundamente diversas entre si, embora interligadas com objetivos comuns, costumam ser simplisticamente reduzidas em um termo que coloca no mesmo nível muitas posições. Em alguns trabalhos meus, proponho distinguir a desinstitucionalização em alguns de seus estágios de evolução que defini como a "de hospitalização", a "habilitação psico/social", a "inclusão social" e enfim a "promoção do valor social".32
Agora vou limitar-me a falar apenas de uma desinstitucionalização completa e de uma sua realização incompleta; alem disso, mais do que falar de limites e possibilidades da desinstitucionalização, parece-me oportuno distinguir entre o que não é desins-titucionalização em relação ao que ao contrario a representa.
Acho, em todo caso, que a desinstitucio-nalização não é a reforma psiquiátrica (nem a italiana, nem a brasileira) embora a reforma abra espaço para muitos de seus conteúdos; a desinstitucionalização é diferente da simples de desospitalização; não consiste na reabilitação psicossocial; certamente não consiste na antipsiquiatria. Mais do que um tratamento ou uma adaptação, a desinstitucionalização consiste em um crescimento da pessoa.
Nela o paciente é finalmente o verdadeiro protagonista da cura: considera os próprios pontos de força e de fraqueza, as oportunidades e os aspectos problemáticos de sua vida pessoal; constrói estratégias "úteis" para sua vida, até mesmo em redes de sentido frágeis e provisórias. Em geral reconhece-se para o paciente o valor da competência adquirida com a própria experiência.33
São conceitos expressos com convicção pelos defensores da chamada "recovery" e, portanto, do meu ponto de vista, a recovery nada mais é do que um aspecto da desinstitucionalização, ou melhor, é a desinstitucionalização do ponto de vista do paciente.34
A "retomada subjetiva" da pessoa (prestem atenção: não do "paciente", nem do "cliente",nem do "usuario", mas da pessoa!) elabora dialeticamente o conceito de doença superando a tradicional dicotomia entre o ponto de vista do paciente e aquele do médico; corrige o narcisismo e as instâncias pedagógicas embutidas no cuidar, atenua a presunção profissional do tratamento; implica num reposicionamento dos objetivos de cura - não mais como reabilitação ou redução do dano, mas como bem-estar dos usuários; redefine o conceito de responsabilidade - em psiquiatria a responsabilidade é atribuída apenas ao médico, enquanto na "retomada subjetiva" é do próprio usuário a responsabilidade por si mesmo; reduz o espaço vicarial tradicionalmente ocupado pela família e pela sociedade. Mais do que um processo de cura, a "retomada subjetiva" é um percurso de atribuição de sentido, oferece ao sujeito a oportunidade de alcançar um novo equilíbrio existencial.34,35
Tradicionalmente a cura é considerada, ao contrario, apenas a partir da utilidade que ela oferece. Seu valor se reduz à produção de um resultado. Mas o sofrimento e a doença provocam uma alteração tão profunda que não é suficiente intervir com um simples ato técnico-reparador: é necessário encontrar um novo equilíbrio para a existência. Como consequência, o verdadeiro significado da cura - o "primeiro dever do médico" - se funda na capacidade do curador de aderir a uma experiência global, se baseia na sua disponibilidade para participar, com intensidade profissional e emocional, do evento existencial que investe o paciente.
A cura se torna "diálogo" entre pessoas, cujas palavras, porém, não se referem a um saber acadêmico, a uma metalinguagem, e sim a um saber prático próprio da subjetividade das pessoas. A reflexão sobre o sintoma - elemento revelador de como e onde se situar na linguagem da saúde - é de fato apenas o esboço sobre o qual construir o diálogo. A cura, mais do que uma tomada de consciência, é uma pesquisa que se funda no exercício de um poder social reconhecido ao paciente e experimentado em concreto no dia-a-dia. Nas palavras de Agostino Pirella, é exatamente na passagem do "perceber-se" do paciente (através do pensamento) para seu "realizar-se" (através da ação) que se constitui o fundamento da desinstitucionalização cumprida.34,35
Quando o raciocínio clínico exige a redução em diagnóstico, quando impõe a esquematização da terapia, a desinstitucio-nalização transcende a disciplina médica e envolve outros saberes. É uma atitude, porém, que não repudia o saber clínico: o inclui em um saber mais amplo e complexo, e ao mesmo tempo mais acessível e controlável. A arte da cura nasce da escuta, da capacidade de fazer silêncio dentro de nós, para acolher o outro, mas também para nós mesmos livrar-nos, descobrindo nossos limites e também nossas possibilidades, amiúde contidas ou desconhecidas. Não há terapia sem um inteligente pôr-se em jogo. "A lógica da relação entre médico e doente - dizia Franco Basaglia em suas "Conferências Brasileiras" de 1979 - é sempre a mesma, é o doente depender do médico: é evidente que não se trata de uma relação de reciprocidade. Mas quando não há reciprocidade não há liberdade entre as pessoas. O verdadeiro problema se torna então como mudar esse tipo de relação". Por esse motivo não haverá êxito de cura do paciente se não se produzir, sempre e também, uma mudança, uma "cura" do curador.
A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO JUDICIÁRIO
Não há duvida que, para nós que praticamos a desinstitucionalização, o Manicômio Judiciário seja uma instituição monstruosa, anacrônica, sem valor científico. Além - seja claro! - da necessidade, portanto, de realizar um tratamento decoroso, saudável para os pacientes. E por isso quero esclarecer que não pretendo formular juízos sobre colegas que trabalham no HPJ: estou ciente de que se trata sempre de situações complexas, fruto de varias responsabilidades cruzadas.
De qualquer modo a reforma da psiquiatria italiana tornou inevitável a superação do Manicômio Judiciário: tendo totalmente mudado a maneira de entender a doença mental, precisava fazer uma nova leitura dos conceitos de imputabilidade (a incapacidade de entender e de querer) e do conceito de periculosidade social para a doença mental. Pouco depois da promulgação da lei deu-se início, de fato, a ações visando que fosse "automaticamente" sancionada a superação do Manicômio Judiciário.
Mas a coisa não teve êxito, seja por uma espécie de arrependimento dos legisladores em relação à reforma psiquiátrica, cujo radicalismo talvez não tivesse sido adequadamente ponderado, seja por razões contingentes, seja por dependerem, os Manicômios Judiciários, do Ministério da Justiça, que é distinto do Ministério da Saúde, autor da reforma.
Contudo, em situações particulares (entre elas a experiência de Trieste) foram instauradas práticas de institucionalização alternativas ao Manicômio Judiciário. Baseavam-se na recusa, por parte dos peritos psiquiátricos, de considerar não imputável o paciente incriminado, atribuindo-lhe, nos casos mais graves, apenas a "parcial" incapacidade de entender e de querer, e logo lhe oferecendo abrigo nos serviços próprios.
Essa prática revelou-se "instrumentalmente" útil para evitar que o paciente fosse encaminhado para o Manicômio Judiciário, mas sobretudo resultou ser a resposta mais correta tanto para as necessidades dos pacientes quanto para as exigências da justiça. (Preciso sublinhar que a verdadeira desinstitucionalização aconteceu sempre antes do que qualquer promulgação de lei!)
A credibilidade dessa resposta era consequência da intervenção instaurada voluntariamente pelo Departamento de Saúde Mental de Trieste no interior do cárcere: demonstrava a capacidade dos serviços psiquiátricos de assumir a cura do paciente grave e problemático - aplicando aquilo que poderíamos definir como o "paradigma do último" - e a solução, consequente a esta ideia de cura, também das "exigências" de custodia por periculosidade social. A cura, neste caso, apresentava-se como integração dos dois paradigmas, do tratamento e do cuidado, mas também como a maneira de superar os mesmos limites impostos pela normativa, redesenhando criativamente a realidade conforme chaves de leitura alternativas à idéia dominante na norma.
Ao mesmo tempo, o resultado positivo da lei de reforma psiquiátrica resolvia alguns temores da opinião pública: após a lei difundira-se o temor que o fechamento do hospital psiquiátrico instauraria uma situação de perigo social, com aumento de suicídios e de atos de violência por parte dos pacientes psiquiátricos, e com o aumento proporcional das internações nos Manicômios Judiciários.
A realidade demonstrou exatamente o contrário: o número das internações em Manicômio Judiciário diminuiu, graças a uma grande diminuição de encaminhamentos por parte dos serviços territoriais e, se a quota de internações se manteve a um certo nível, isso se devia apenas ao encaminhamento pelas autoridades carcerárias de detentos acometidos por alguma doença mental.
Ficou talvez evidente a crise de uma outra instituição - o cárcere - com um número de detentos superior à sua capacidade, mas sobretudo com sua incapacidade de instaurar práticas alternativas à detenção para enfrentar a criminalização das necessidades sociais.
Como reconhecimento dos resultados positivos da desinstitucionalização, alguns setores da magistratura superaram progressivamente as resistências iniciais, introduzindo mudanças substanciais na normativa jurídica e penal. Em 2003 o Tribunal Supremo Constitucional quebrou o automatismo entre medida de segurança e encaminhamento ao Manicômio Judiciário, consentindo a aplicação da medida de segurança em lugares alternativos (por exemplo nas residências gerenciadas pelos serviços psiquiátricos públicos) e seguindo uma praxe a ser definida caso a caso.
Além disso, foi introduzida também uma disposição que diferenciava as funções do Juiz do Tribunal, que estabelece as medidas de segurança, daquelas do Juiz Tutelar. Esse tinha de fato a possibilidade de reformular (até em função de mudanças acontecidas em um segundo tempo) as medidas de segurança anteriores. Na substância, as medidas de segurança não eram aplicadas automaticamente, mas somente nos casos em que resultava evidente a periculosidade da pessoa no momento em que a medida de segurança vinha a ser executada.
Assim, mesmo sem uma redefinição orgânica da estrutura normativa, foi implementado um processo de reforma que tocou os canais de ingresso e os mecanismos de saída dos Manicômios Judiciários, sem considerar que uma outra consistente ajuda para a solução deste impasse, na realidade, já tinha sido dada pelo Decreto de Lei de 1999, que transferia as funções sanitárias dos Institutos Penitenciários para o Sistema Sanitário Nacional, e colocava as premissas para que finalmente fosse enfrentado com dignidade o grave problema da saúde no cárcere.
Implantavam-se assim as condições para resolver o equívoco subjacente às funções do Manicômio Judiciário, que ambiguamente se baseia numa não imputabilidade por causa de doença, mas que de fato é estruturado apenas sobre exigências de custódia. O decreto também obrigava os Serviços psiquiátricos territoriais a assumir a responsabilidade dos pacientes do Manicômio Judiciário.
A passagem da medicina penitenciária para o SSN foi, contudo, muito difícil, e somente com a Lei Financeira de 2008, e graças também à tenacidade de alguns sujeitos e de algumas organizações, esse processo pôde ser encaminhado.
Esta ultima lei abriu espaços operacionais importantes para a cura dos réus com distúrbios mentais, pois considera o valor terapêutico da territorialidade. Imbuída na territorialidade está de fato a ideia da continuidade terapêutica - quer dizer - a possibilidade de incidir sobre as causas do mal-estar e a ativação dos recursos sociais da comunidade. O conceito de territorialidade, de um ponto de vista estratégico, tornou ainda mais significativa a hipótese de um envolvimento direto das Regiões na solução dos Manicômios Judiciários: cada Região italiana vai assim assumir a tarefa de tirar cada cidadão seu para fora do Manicômio Judiciário e quanto mais possível perto da sua residência, atribuindo a responsabilidade de sua cura aos Serviços Psiquiátricos territoriais. Sobre esta hipótese está se organizando a Conferencia Estado Regiões, sob o impulso das regiões da Toscana e da Emilia Romagna.
Afinal, enquanto durante anos viveu-se em uma condição de incerteza e de frustração porque as numerosas tentativas de superar os Hospitais Psiquiátricos Judiciários eram consideradas ambiciosas pelos legisladores e, portanto, eram recusadas, pouco a pouco criaram-se as premissas para uma progressiva e efetiva superação do Manicômio Judiciário.
Diante da impossibilidade de obter em linha reta a abolição da não imputabilidade, determinou-se uma sinergia de intervenções que envolveram operadores da saúde mental, da justiça e políticos, visando realizar um projeto que, passo a passo, torne "inútil" o Manicômio Judiciário, seja criando condições alternativas à internação, seja criando condições que o esvaziem, dando possibilidade de segurança e tratamento.
Estas sentenças de fato deram um golpe forte à existência do Hospital de Psiquiátrico Judiciário. Forte, mas não definitivo! Antes de tudo, porque a possibilidade de aplicar medidas alternativas e reduzir os tempos de internação em Manicômio Judiciário permaneceu discricionária por parte dos magistrados, e logo porque existem sempre dificuldades quando se trata de aplicar recursos e procedimentos entre ministérios diferentes.
Mas ainda mais importante para o sucesso do projeto é a disponibilidade de muitos Departamentos de Saúde Mental de aceitar e assumir a tarefa de "cuidar" dos pacientes responsáveis por um crime.
Esta dificuldade constitui um exemplo da problemática da cura e da desins-titucionalização evidenciada anteriormente. Desenvolveu-se na Itália uma espécie de equívoco sobre o mandato da psiquiatria no após reforma. Existem serviços - os chamados "serviços fracos" - que põem em prática uma desinstitucionalização incompleta: ficam fechados nos fins de semana, os operadores seguem uma política de espera em seus ambulatórios, concebem suas intervenções somente no âmbito de um tratamento privado entre paciente e terapeuta, e vivem o papel sanitário que lhes foi atribuído pela reforma como uma substancial libertação das responsabilidades legais anteriormente presentes no manicômio.37
Pode acontecer nesses serviços que os pacientes fiquem fisicamente atados durante a internação no hospital civil.
Pois bem, estas experiências revelam-se difíceis de aceitar a tarefa da assunção de responsabilidade do paciente responsável por um crime.
Ao contrário, para aqueles serviços que se fundam sobre a desinstitucionalização já cumprida - os chamados serviços "fortes", abertos nas 24 horas, com departamentos de internação hospitalar "no-restaint" (sem contenção); serviços nos quais o assumir a cura do paciente faz referência a uma capacidade de tratamento terapêutico, e também à exigência de responder às problemáticas sociais e existenciais mais complexas ligadas inevitavelmente ao desconforto psiquiátrico, pois bem, estas experiências não encontram dificuldade em demonstrar sua disponibilidade para assumir esta nova função de "cuidar".
A desinstitucionalização se traduz neste caso na capacidade de transformar o mandato de custódia no mandato de cura, dissolvendo, através de uma prática rigorosa, aqueles nós não resolvidos das contradições sociais que assumem o aspeto da periculosidade social e da exigência de custódia!38
Mas existe outro aspecto que repropõe de maneira emblemática o tema da completa ou incompleta desinstitucionalização. O projeto das Regiões revela o realismo sadio de quem se defronta com as contradições e foge das instâncias ideológicas. E isto até porque parece ser a única via historicamente possível.
Contudo, o aspecto minimalista do projeto corre o risco de não "aquecer o coração" das pessoas. É como se uma batalha crucial para o reconhecimento de direitos, batalha que diz respeito ao direito de todos, seja reduzida a uma operação de simples engenharia institucional. Na substância, existe a exigência de suscitar uma adesão profunda ao projeto, a necessidade de fazer com que se torne evidente uma motivação que "arraste" as mentes e os corações e que projete uma mudança que dê um sentido ao cotidiano e ao esforço do presente.
Nesta perspectiva ainda há muito para fazer: precisa ampliar o leque dos sujeitos envolvíveis, precisa estar cientes do papel que a sociedade civil pode/deve desenvolver. A presença ativa do voluntariado parece-nos decisiva, não pode ser uma função ancilar, subordinada, instrumental. O protagonismo dos voluntários é a expressão do "capital social", da ligação que se deve instaurar entre o compromisso dos profissionais e a sociedade civil.
Contudo, é exatamente esta exigência de perspectiva política que nos faz compreender melhor ainda que reduzir o número dos internos do Manicômio Judiciário, constituir pequenas estruturas eficientes, ancorar a gestão do louco responsável por um crime à organização sanitária, não resolve o nó central do estereótipo da periculosidade e da irrespon-sabilidade do louco, o nó górdio sobre o qual continuam a ser estruturadas ideologias e aparatos de repressão.
O juízo de incapacidade de entender e de querer é de fato a pedra angular sobre a qual se funda a ciência psiquiátrica e é também seu pecado original. A psiquiatria poderia no máximo falar de uma incapacidade parcial, porque a incapacidade total de entender e de querer não diz respeito à psiquiatria: poderia dizer respeito a um estado confusional de origem biológica, nunca a uma doença psiquiátrica.
A história demonstrou como, sobre uma premissa cientificamente duvidosa, tenha se criado uma espécie de automatismo entre o juízo de doença mental e o juízo de incapacidade de entender e de querer.
Até quando permanecer este preconceito não poderá nos libertar realmente da idéia de manicômio, mesmo se fecharmos os manicômios e reduzirmos ao mínimo os Manicômios Judiciários. Até quando for mantida a idéia de não imputabilidade por doença mental, se negará ao paciente o direito de ser um sujeito e nascerão todas as instituições que procedem do manicômio e derivam do seu princípio; se negará ao psiquiatra a possibilidade de cura, sendo-lhe reconhecida no máximo a possibilidade de custódia e de manipulação. No momento em que pretendemos curar a doença mental devemos nos interrogar também sobre a normalidade e reconhecer a riqueza contraditória da diversidade.
Também o louco tem direito a um processo, tem direito a fazer valer suas razões e a ser condenado, pelo menos até quando esta for a lei para todos os outros. Naturalmente existem muitas possibilidades ou medidas alternativas para mitigar a pena, para curar e ajudar quem cometeu um crime. Em substância, trata-se de criar para todos, até para o louco criminal, o direito de cidadania.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta idéia que para salvaguardar uma pessoa precisa condená-la pode parecer um paradoxo. Mas ela exprime mais uma vez o oxímoro da desinstitucionalização cumprida. Há de fato uma figura retórica de linguagem que se chama "oximoro": juntam-se palavras de sentido oposto quando o código do idioma deve contradizer a si mesmo para expressar conceitos particularmente profundos.
Pois bem, a desinstitucionalização sempre foi um oximoro, porque é uma contradição radical, uma projeção que, para produzir efeitos inéditos e sugestivos, vai contra as regras e contra a opinião comum. A desinstitucionalização nega a instituição, mas inventa outra; se apresenta como uma utopia, mas age na concretude do hoje; é uma revolução, porque na aceleração do tempo torna possível um outro futuro, mas é também uma reforma, porque atravessa o interior das contradições para dissolvê-las na prática; joga as bases de um novo saber e é uma ação política, porque trabalha no centro do poder psiquiátrico e se integra com o social; é uma prática, mas abre novos horizontes para o conhecimento.
A desinstitucionalização, porém, mais do que uma nova ciência pode ser lida como um projeto epistemológico que vai além dos limites da disciplina psiquiátrica para se tornar "história" interna de todas as possíveis histórias das ciências. É o pensamento crítico, a prática em contraposição à abstração, é uma forma de conhecimento que se propõe à transformação do real. Contém uma forte referência ao critério da falsificabilidade de Popper, critica a idéia de um monopólio da verdade, opera em prol de uma racionalidade, é sempre aberta para uma rigorosa autocrítica.
Na desinstitucionalização é a socrática consciência dos limites do conhecimento o que induz cada um de nós a proceder por tentativas e erros, mas esta é também a melhor resposta às ideologias científicas, nas quais não são os problemas os nós irresolutos, mas as próprias respostas aos problemas dadas por disciplinas cegas e arrogantes...
Em conclusão, a desinstitucionalização nos ajudou responder ao quesito inicial: "Qual é o primeiro dever do médico"? Acho que sim!
A resposta está na capacidade de pôr em crise o papel de poder ínsito na relação terapêutica, está na recuperação de um profundo respeito para o outro, na atitude de responsabilidade, de curiosidade intelectual, de luta contra toda injustiça. Tobie Nathan, o célebre etnopsiquiatra francês, apontou que o verdadeiro problema na psiquiatria não diz tanto respeito à exigência de aumentar nossos conhecimentos, e sim à capacidade de se livrar deles, ou seja, de livrar-nos dos preconceitos, dos códigos preordenados e tranquili-zadores, das noções técnicas e científicas preconcebidas. E Isabelle Stengers sublinha que o que obstrói nossas exigências práticas de curadores nada mais é do que a singularidade daquilo com que estamos lidando (as contradições sociais da loucura) e que devemos nos tornar capazes de dirigirmos para esta singularidade e nunca tentar eliminá-la ou evitá-la.
Penso exatamente nos muitos esforços feitos para confrontar-nos com esta singularidade e para alinhar-nos sempre do lado dos últimos. Penso, por exemplo, nas noites passadas no hospital psiquiátrico compartilhando camas, banheiros, pratos dos internos.
Penso na emoção coletiva provada durante a cerimônia de "o sal e as árvores" em Imola, quando na hora do fechamento do manicômio, lembrando as palavras de Basaglia, nos comportamos como os antigos romanos que destruíam a cidade inimiga. Convidamos todos os que viveram naquele lugar - pacientes, enfermeiros, familiares e também os cidadãos - e jogamos sal nos quartos, nos pavilhões, e usamos bois para ararmos o terreno em volta do hospital, para que nunca mais nascesse um outro manicômio, e depois plantamos uma árvore em cada uma das 23 casas que surgiram para acolher quem não tinha mais uma casa própria. E naquele dia estávamos todos juntos, sólidos, em plena saúde.
Penso nas festas que, desde Gorizia até Trieste, e depois em todas as outras experiências, ao abolir as distâncias nos conferiram uma dimensão leve e alegre de nosso trabalho. Penso em Franco Basaglia, em seu sorriso, em seus tiques, em seu nunca se sentir satisfeito, em sua procura contínua por justiça, na sua capacidade de nunca humilhar ninguém e em seu desejo de convencer sem pretender vencer. Penso no seu escritório no hospital psiquiátrico de Trieste. Lá podia-se encontrar Goffman, Castel, Guattari, você escutava Franco falar no telefone com Foucault, ou vê-lo escrever uma carta para Sartre, encontravam-se lá jovens da Europa toda, encontravam-se muitos brasileiros que entusiasticamente participavam como protagonistas do fim do manicômio. Falavam-se varias línguas, lá dentro se encontrava o mundo, se percebia o respirar da história.
A porta estava sempre aberta e qualquer pessoa, jornalista, personagem ilustre, enfermeiro, psiquiatra - entrava e interagia. Os pacientes levavam para Franco seus problemas grandes ou pequenos, e sempre recebiam uma resposta.
Questionávamos-nos sobre tudo e Franco nos devolvia o mesmo pensamento que havíamos expressado, interpretando-o sempre de uma maneira original e profunda, assim que afinal nos descobríamos outros e melhores do que nos achávamos até aquele momento. Aquele escritório era nosso ágora, a nossa escola de desinstitucionalização onde trocávamos nossas subjetividade, ara um mundo caótico, excitante, em que todos éramos verdadeiros "companheiros"...
Na desordem da escrivaninha havia dois romances que Franco tentava ler e acho que não conseguia acabar, pois a leitura era interrompida por um tempo cheio demais e breve demais. Eram "Cem anos de solidão" de Gabriel Garcia Marques e "O homem sem qualidades" de Robert Müsil. Naqueles anos 70 estavam na moda.
Nunca pensei numa intencionalidade de significado para aqueles livros que encontrava na escrivaninha dele durante nossas intermináveis discussões, penso ao invés em uma simples coincidência.
No livro de Müsil o protagonista é descrito como um homem extraordinariamente dotado da "capacidade de pensar em tudo aquilo que poderia igualmente ser, e não dar a menor importância àquilo que é, em relação àquilo que ainda não é". E Franco Basaglia era como Ulrich, o protagonista do romance, um homem dotado exatamente daquele "sentido da possibilidade", da capacidade de pensar na utopia e de acreditar naquilo que bate contra o senso comum.
O livro de García Marques era ao contrário, a dimensão empolgante, mágica de um outro mundo fantástico, de uma outra realidade possível. Penso que aqueles livros representavam para nossa geração a necessidade de ver o mundo com um novo olhar, penso que eram o simbolo da grande capacidade de sonhar com que Basaglia nos contagiou a todos: aquele grande sonho da de institucionalização e da utopia, que, fechando para sempre o manicómio, tornou possível o impossível!
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Correspondência para:
gof9013@iperbole.bologna.it
Recebido em 22 de agosto de 2009.
Modificado em 02 de janeiro de 2010.
Aceito em 30 de janeiro de 2010.