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Revista Brasileira de Psicodrama
versão On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.17 no.1 São Paulo 2009
ARTIGOS PREMIADOS COM O "PRÊMIO FEBRAP" 2008
Um espaço para ser: sociopsicodrama em um abrigo para crianças
A place to be. Socio-psychodrama at a refuge for children
Ana Cristina Benevides Pinto*I;Érica Oliveira Lima**, II; Alice Maria Bovy de C. Costa***
ISociedade de Psciodrama - São Paulo
IIInstituto de Máscaras – Fortaleza
RESUMO
Neste artigo apresentamos uma experiência de intervenção sociopsicodramática com crianças abrigadas, portadoras de HIV, e como compreendemos a reparação da matriz de identidade destas crianças à luz de conceitos psicodramáticos como vínculos residuais, papéis de fantasia e autotele. Agregamos também contribuições da teoria sistêmica e da psicologia em geral, destacando a eficácia do sociodrama, diante de sofrimentos humanos tão intensos, visando à preservação do homem espontâneo-criativo.
Palavras chave: Perda ambígua, matriz de identidade, sociodrama, autotele, vínculos, espontaneidade-criatividade, papel de essência.
ABSTRACT
Within this paper we present our experience of a socio-psychodramatic intervention at a refuge for HIV positive children, and our understanding of the reparative work of these children's matrix of identity in the light of psychodramatic concepts such as residual links, fantasy roles and auto-tele. We also bring together contributions of systemic theory and general psychology, emphasising the efficacy of sociodrama when working with such intense suffering, aiming at the preservation of spontaneous-creative man.
Keywords: Ambiguous loss, matrix of identity, sociodrama, auto-tele, links, spontaneity- creativity, core role.
I – INTRODUÇÃO
O que nos salva diante das amarras existenciais ou dos sofrimentos é o descobrimento do homem espontâneo e da natureza espontâneo-criativa da existência, de onde vamos construindo respostas para Como sobreviveremos?.
Esse instigante questionamento suscitado a partir de Moreno permeia o desenvolvimento deste trabalho, que ocorre com um grupo de crianças abrigadas numa instituição-abrigo sem fins lucrativos, mantida por doações denominadas adoções a distância (apadrinhamento) e administrada por religiosa, ligada a uma associação católica italiana.
A instituição abriga nove crianças entre 1 e 11 anos, acolhidas em situação de abandono ou de descaso e vitimizadas emocionalmente, fisicamente e/ou sexualmente. Dentre elas há dois pares de irmãos biológicos. Três são portadoras de HIV, uma de retardo mental moderado, uma teve diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e uma tem hipótese diagnóstica de depressão infantil grave.
No livro Psicodrama de Crianças, Zerka Moreno (1975, p.54) faz a seguinte descrição, que nos servirá de aquecimento:
"É absolutamente normal que você, ao acordar de um pesadelo horrível, procure um refúgio tranquilo no mundo da realidade diurna (a realidade de todos os dias). É para você, então, um enorme consolo encontrar-se novamente, na mesma, a mesma pessoa familiar, com o mesmo corpo e o mesmo espírito, com o qual você se identifica desde que se conhece. Ao encontrar a mesma existência, você então se sente à vontade, em segurança e tranquilidade. Todavia, em outras situações, quando você desperta, sente-se aborrecido ao perceber que é para sempre a mesma pessoa a qual se acha amarrado desde que nasceu. Parece, nesse caso, que você se encontra aprisionado a uma existência da qual não pode escapar. Nesses momentos, fica muito aborrecido por ser você mesmo, e sucede-lhe alimentar a esperança de que ao acordar, de manhã, se encontrará transformado em outro, com uma vida diferente: um pássaro, uma borboleta ou uma mulher montada num cavalo branco; ou qualquer outra existência que lhe pudesse proporcionar uma nova experiência no mundo. Mas, afinal, você se acha preso a si mesmo, com esse corpo e esse espírito, inevitavelmente, é sempre o mesmo. Por isso tomamos a liberdade de lhe declarar simplesmente: a existência do indivíduo é irreversível. Essa irreversibilidade constitui uma "Daseins Qualität", uma qualidade da existência. (...)"
Este texto introduziu o posicionamento de Zerka, no tocante à necessidade prévia de que compreendamos o mundo no qual o paciente vive se quisermos aplicar uma forma séria de psicoterapia.
Ainda mais quando direcionado à psicoterapia com crianças, sobre a qual Zerka (1975, p.55) enfatiza:
"(...) é mister, de antemão, tentarmos compreender e recriar, para nós mesmos, o mundo no qual a criança vive durante os três primeiros anos de sua existência, antes de empreendermos qualquer experiência científica com uma criança. (...) Melhor, nós mesmos devemos ter a coragem de nos reduzirmos à condição infantil e pensarmos como se fôssemos uma criança. A criança jamais perde a esperança de se tornar o centro e o senhor do universo."
Muita coragem se faz necessária para nos reduzirmos à condição de uma criança de abrigo e para lidarmos com tanta ambiguidade e ambivalência, ao mesmo tempo em que cuidamos para não cair numa cultura piegas e devastadora da natureza espontâneo-criativa da existência humana.
Buscando compreender o mundo em que as crianças do abrigo vivem, constatamos que a instituição, na prática, perde o caráter transitório, porque as crianças não regressam à família biológica nem são adotadas. Ainda mais quando são crianças portadoras de HIV ou de deficiência mental. Sendo assim, a maioria das crianças abrigadas passa os importantes primeiros anos de vida e de formação da identidade assistidas pela instituição.
A urgência por transformações e o limiar entre a irreversibilidade, como qualidade da existência, citada por Zerka, permeiam as relações intra e interpsíquicas do grupo do abrigo como um todo, incluindo crianças e profissionais, de forma angustiante mas esperançosa.
Como dado interveniente, acrescenta-se a constituição religiosa da instituição, cujos valores cristãos e católicos norteiam muitas condutas e posicionamentos, gerando preceitos internalizados pelas crianças e reforçados por visitantes assistencialistas que transitam pelo abrigo e que interferem momentaneamente em sua dinâmica.
Transitamos entre a dura realidade do abandono, da violência, da morte, da doença, da pobreza e da natureza espontânea criativa pulsante e esperançosa, principalmente entre as crianças.
Para buscar o equilíbrio entre esse contexto e o potencial criativo e espontâneo das crianças, foi proposto um trabalho sociopsicodramático, realizado por duas psicólogas e uma estagiária em psicologia, que se desenrola há um ano e seis meses. O trabalho consiste no atendimento grupal, de oito das crianças abrigadas, durante uma hora e meia, semanalmente, em uma sala destinada para esse fim, na própria instituição. O grupo é intitulado Grupo de Treinamento de Papéis de Convivência. As sessões são realizadas com a utilização de ego-auxiliar treinado. São usadas técnicas e jogos psicodramáticos, teatro espontâneo e técnicas lúdicas e projetivas durante os encontros. Também semanalmente se dão a orientação de cuidadores e o encontro da equipe para estudo, supervisão e planejamento das sessões.
Com isso, vem-se percebendo que a definição do papel de abrigado tem sido um importante fator de estruturação da identidade das crianças, promovendo maior autonomia relacional nos contextos grupal e social. É perceptível que o nível de ansiedade cede ao desempenho do papel fraterno e da cooperação entre iguais e para com os cuidadores. Fica claro que a prática sociopsicodramática oportuniza o contato e a construção de modelos relacionais saudáveis, fazendo diminuírem as incongruências grupais.
Reafirma-se, portanto, o que se acessa na literatura psicodramática, que a característica relacional do ser humano é o grande veículo de cura e de superação das adversidades, que corrobora, diretamente, para a eficácia do método psicodramático, em especial, do sociodrama.
UM ESPAÇO NOVO: O GRUPO DE CONVIVÊNCIA
Quando fomos contatadas para realizar este trabalho, realizamos investigações sobre a realidade institucional e relacional para traçarmos estratégias de intervenção.
A proposta inicial foi que as crianças participassem de atendimentos em psicoterapia individual e de sociodrama focalizando as questões relacionais de um grupo de convivência com fortes características familiares.
O tema família tem um sido um dos grandes desafios deste trabalho, pois as crianças e os adultos cuidadores convivem numa configuração familiar: as crianças, irmãs biológicas em alguns casos, dividem quartos, refeições, transporte, atividades escolares, religiosas e de lazer, cooperam e competem, caracterizando vínculos fraternos; a freira responsável por elas e pelo abrigo é chamada de irmã, de tia, de mãe e de "vó", pelas crianças; e há empregados domésticos e uma rotina doméstica, que acontece em uma chácara, cujo prédio principal é uma casa.
Entretanto, algumas crianças sabem que vêm de outra organização familiar, ainda existente, em que as pessoas com laços sanguíneos convivem. Outras não, pois são filhas de mães solteiras, moradoras de rua, portadoras de HIV, ou que já faleceram ou que são desconhecidas.
Aquelas crianças, cuja família biológica existe, vivenciam a perda ambígua, no sentido da ausência de algo que elas sabem estar presente, o que dificulta a construção das suas matrizes de identidade, por razões como as citadas por Zerka: "(...) sucede-lhe alimentar a esperança de que ao acordar, de manhã, se encontrará transformado em outro, com uma vida diferente (...)", no caso, a família que virá reintegrá-las.
Tal movimento psicodinâmico assemelha-se aos das crianças que sonham com as famílias que poderiam adotá-las, ou com as famílias de outro país, que as apadrinham e de que elas sentem-se como parte, chegando a nomear: "Esta é a família da fulana!" (sic). Porém, a inserção factual nesta família não acontece, acentuando a sensação da perda ambígua.
Pauline Boss (2000, p. 61), no livro "Ambiguous loss: learning to live with unresolved grief", explicita que o reconhecimento da perda ambígua dar-se-á diferentemente em cada indivíduo:
"Por mais de um século, a concepção de ambivalência esteve central na psicologia e na psiquiatria, focando primariamente nos impulsos contrastantes na psique. Foi genericamente compreendido para indicar um conflito entre sentimentos positivos e negativos em direção a pessoas ou a conjunto de ideias. A resolução da ambivalência depende essencialmente da ajuda à pessoa para reconhecer seus sentimentos conflitantes. A partir de uma visão psicológica, o problema é que alguns sentimentos em relação aos relacionamentos são usualmente mais acessíveis para a consciência individual de uns do que de outros."
Esta afirmação e outras constatações justificam o nosso encaminhamento para psicoterapia individual. Entretanto, os recursos financeiros inviabilizaram esta proposta, e restou-nos o sociodrama com as crianças e a orientação aos profissionais que lidam com elas, na tentativa de promover saúde mental e qualidade de vida para o grupo.
Sabemos que as situações provisórias ou muito oscilantes danificam a formação da identidade da criança, gerando confusão por não suprir a sua necessidade básica de referenciais de valores éticos, de condutas e de atitudes, que são fornecidos pelo meio familiar e social a que ela pertence. Como diz Britto (2002, p.79): "O provisório, o passageiro, tira do indivíduo a condição de pertencer, que quer dizer ser ou fazer parte de alguma coisa. Pertencer é uma necessidade intrínseca da existência humana".
Sob esta ótica, recorremos à vivência sociodramática para esclarecer ou desenvolver nas crianças a noção de pertencimento àquele grupo, para expandir, em seguida, a outros núcleos de pertencimento e, desta forma, contribuir para construção da sua Matriz de Identidade.
Surge, então, a necessidade de ajustes dentro da heterogeneidade do grupo. Além de idades diferentes, algumas crianças chegaram ao abrigo ainda bebês e outras com até cinco anos, bem como com demandas emocionais diversas e em diferentes níveis de evolução cognitiva e maturacional. Citando Moreno (1975, p.112), para ilustrar e aprofundar:
"Essa coexistência, co-ação e co-experiência que, na fase primária, exemplificam a relação do bebê com as pessoas e coisas à sua volta, são características da matriz de identidade. Essa matriz de identidade lança os alicerces do primeiro processo de aprendizagem emocional da criança. Uma vez estabelecida a matriz de identidade e completamente formado o complexo de imagens intimamente associadas à sua intensa participação na "unicidade" do ato, estão criadas as bases para "futuros" atos combinatórios."
Os ajustes supracitados são estratégias de funcionamento do grupo, desde aspectos formais, como crianças de idades mais próximas formarem subgrupos, até jogos dramáticos e histórias infantis evocativos da trama oculta do grupo.
Um dos ajustes foi feito para privilegiar a diferença entre as crianças que chegaram ao abrigo ainda bebês e que estabeleceram as relações primárias com a freira, no papel materno, por exemplo, das que trazem, como características da matriz de identidade, alicerces frágeis de um processo de aprendizagem emocional que tem no seu bojo o abandono da figura amada. Outro ajuste foi feito para homogeneizar etariamente o grupo. Para isso, em algumas sessões é feito o atendimento em subgrupos, de quatro crianças, o que proporciona o trabalho de demandas mais ligadas à faixa de idade a que pertencem.
Assim, torna-se lento e difícil o que Moreno (1975, p. 119) fala da Matriz de Identidade, como a habilidade de dissolver-se gradualmente na mesma proporção em que a criança vai ganhando autonomia ou o desenvolvimento do sentido de proximidade e distância, quando a criança começa a ser atraída para pessoas e objetos ou a afastar-se deles. "Este é o primeiro reflexo social – indicando o aparecimento do fator tele, e é o núcleo dos subsequentes padrões de atração - repulsa e das emoções especializadas – por outras palavras, de forças sociais que cercam o indivíduo ulteriormente."
As crianças, que tiveram um contato inicial com a mãe biológica ou com outra figura materna, que não a da irmã, e hoje estão no abrigo, trazem lacunas na fase primitiva da Matriz de Identidade, algo facilmente constatado diante do comportamento de se aproximarem de qualquer visitante e pediram para morar com ele.
A falha na aprendizagem do sentido de proximidade e distância comprometeu a definição das fronteiras emocionais e das noções de público e privado nestas crianças, impedindo que elas pudessem evoluir para a segunda fase da Matriz de Identidade, na qual, segundo Moreno, a criança usa a experiência de unicidade para a inversão de papéis.
No caso das crianças, que chegaram ao abrigo ainda bebês, entendemos que o que elas vivenciam corresponde a inscrições no plano sinestésico, que se manifestam ao nível psicossomático. São, portanto, carentes de canais de expressão. Recorremos ao descrito por Bustos (1999, p.36):
"(...) Não existe discriminação entre o eu e o não-eu, portanto, gera-se uma inscrição corporal precoce da noção do mundo. Essa inscrição primária não é simbolizável, já que não há aparato senso-receptor capaz de transformar e tornar relativa à inscrição. Simplesmente, 'o mundo é assim', e depois transformado em 'eu sou assim'. Nessa etapa, o intrapsíquico e o interpsíquico (vincular) configuram um todo indiferenciado. 'Uma das múltiplas vantagens do método psicodramático consiste na possibilidade de recriar com toda precisão esse primeiro universo e ter a capacidade inédita de observá-lo."
Na busca por fundamentos que prestassem os benefícios do método psicodramático, ocorreu-nos a percepção de que a categoria do momento, com seus fatores – locus, status nascendi e matriz – oportunizar-nos-ia estruturar nossa compreensão ampliando o surgimento de possibilidades para lidar com as crianças.
Perazzo (1999, p. 200) esclarece-nos:
"Bustos considera o locus, neste sentido, como sendo as circunstâncias desencadeantes de um conflito. A sua matriz seria a resposta do sujeito a estas circunstâncias, que resulta num mesmo mecanismo de defesa que passa a ser utilizado e reutilizado por ele, repetitivamente, em outros papéis sociais (efeito cacho), quando as circunstâncias se assemelham à circunstância inicial. Portanto, em outro locus."
Considerando que o locus é condicionante, a matriz é determinante e o status nascendi, mesmo com uma função condicionante, nos mostra o momento específico da forma como a pessoa reagiu ao que lhe foi apresentado, nosso foco de intervenção maior estaria na resposta do indivíduo a este conjunto de fatores.
Partimos em busca da única possibilidade de mudança, que acreditamos estar na resposta do sujeito, por isso comungamos com a ideia do Perazzo (1999, p. 203):
"(...) a resposta nova só pode ser entendida como sendo um status nascendi relacional novo, decorrente da mesma matriz, configurada por um vínculo atual ou residual, imerso num locus (circunstâncias) modificado pela força imaginativa e metafórica da realidade suplementar, o que nos devolve o psicodrama como noção permanente de movimento relacional, vincular ou existencial, ou tudo isso."
Fomos construindo coletivamente um novo espaço grupal, com a entrada de novos membros, num vínculo assimétrico e diferenciado, experimentado entre as crianças e a unidade funcional que lhes foi apresentada. As psicoterapeutas possuíam características empáticas e disponibilidade para se colocarem no lugar da criança, visando estabelecer confiança e segurança na relação, ao mesmo tempo em que ofertavam clareza dos papéis de cada um.
Destacamos que a constância nas atividades, a definição clara no desempenho dos papéis sociais e grupais e o rigor no respeito aos critérios do contrato terapêutico, elaborados e firmados pelas partes envolvidas no processo, quando do início do atendimento, foram e são aspectos essenciais para o nascimento e a manutenção de relações télicas entre as crianças e as terapeutas, capazes de gerar modificação na dinâmica dos papéis.
Assim, as crianças conseguem identificar que o espaço físico da sala do sociodrama se transforma num espaço seguro, protegido para trabalhar as questões emocionais, relacionais e afetivas, a partir da reunião deste grupo. Percebem também que, deste trabalho, surgem alternativas para administrarem conflitos, expressarem os sentimentos, os desejos, as necessidades e para desenvolverem zelo na relação com o outro.
No vínculo com as psicoterapeutas, as crianças estão internalizando um novo modelo relacional, capaz de resgatar relações de confiança com um adulto, visando ao favorecimento da transposição desta para o ambiente social, numa dinâmica relacional saudável, a partir do reconhecimento de si mesmo e do outro, como portadores de identidades e de papéis distintos, definidos no contexto no qual estão inseridos.
A decisão por trabalhar com sociodrama decorreu da clara percepção de que o foco do trabalho é o grupo, objetivando o bom funcionamento entre pessoas de convivência direta.
Esclarece-nos Aguiar (1998 p. 26):
"Chama-se Sociodrama a situação em que o teatro espontâneo é utilizado com vistas ao desenvolvimento de um grupo preexistente e que, em princípio, continuará existindo depois dessa intervenção. O objetivo que preside a existência desses grupos com os quais se trabalha vincula-se ao cotidiano da vida, diferentemente dos grupos que são formados para fins especificamente terapêuticos. Incluem-se, pois, nesse caso, os casais, as famílias, as equipes de trabalho, os associados de uma instituição, os grupos dirigentes, os alunos de uma turma ou de uma escola e assim por diante.
Em princípio, num sociodrama, todos os membros do grupo-cliente comparecem às sessões de teatro espontâneo e são estimulados a participar da forma mais intensa possível. Vale lembrar que essa é a diferenciação proposta pelo próprio Moreno, que para tanto utiliza como critério o 'quem é o sujeito' (cliente, no nosso linguajar profissional): no psicodrama, o sujeito é o indivíduo; no sociodrama, o grupo."
Porém, em alguns momentos, a sociodinâmica grupal nos conduzia para um protagonista. Para a possibilidade de que isto aconteça, novamente, somos aclaradas por Moysés Aguiar (1998, p.37):
"Vale lembrar que é perfeitamente possível que se adote como estratégia sociodramática a encenação centrada num protagonista, inclusive tomando como cena embrionária um relato da vida pessoal do emergente grupal."
Esta experiência de exercício do sociodrama nos possibilitou constatar o surgimento concomitante, ou inserido na mesma trama grupal, das dificuldades coletivas e dos problemas relativos aos vínculos residuais intrapsíquicos. É clara a visão do singular dentro do plural como grande traço do método sociodramático.
Focalizando esta dialética do plural e do singular, encontramos uma comunhão de experiências anteriores das crianças, que não são claramente explicitadas, porém, intensamente presentes. Identificamos este movimento com a descrição de Seixas (1992, p. 78) referindo-se à terapia familiar:
"Muitas destas relações, que fazem parte do co-inconsciente grupal, são relações pertinentes à matriz de identidade dos membros da família, porque lhes permitiram perceberem-se como diferentes dos outros componentes da matriz e lhe ajudaram a construir sua própria identidade. Constituem-se modelos relacionais precoces, que se perpetuam por toda a vida em forma de papéis. Quando estes modelos relacionais se transferem de um papel para outro, na vida da pessoa, geram vínculos transferenciais."
As relações, que fazem parte do co-inconsciente grupal deste grupo, são relações pertinentes à matriz de identidade de cada criança, com falhas comprometedoras da própria identidade, cujos modelos relacionais precoces carecem de reparação para que não sejam transferidos para outros papéis, e venham a gerar vínculos transferenciais.
Dessa forma, os vínculos residuais da matriz de identidade de cada criança, que continha uma configuração sociométrica própria e que inicia o estabelecimento da identidade dela, reaparecem na configuração grupal atual.
Tais vínculos estão incorporados à história de cada criança, preservando- se no plano da fantasia, como memória ou como falta. A princípio, é uma ausência, semelhante a uma cova, que antes abrigava raízes de uma planta, mas que, mesmo sem a planta, ainda se reconhece como um espaço para tal, por ter sido. É como se a ausência de suprimento familiar presentificada pelos vínculos residuais prosseguisse como condição de busca pelo estabelecimento de vínculos sadios.
Sendo a identidade um fenômeno relacional - o reconhecimento da criança ao perceber o que a identifica e o que a diferencia de seus colegas/ irmãos e também como é percebida – poderá ser reformulada pela confirmação dos seus remanescentes.
Outro aspecto instigante desta ausência é que ela pode favorecer para a formação de certo legado familiar, construído no plano da fantasia. Isso ocorre, também, como um recurso criado pela criança, que gera a ilusão de que os atributos da família de origem estariam ligados a ela, de alguma forma, dando-lhe a condição de pertencimento e o sentimento de ser alguém.
Torna-se constatável a formulação de um elo com a família de origem, mesmo que no nível da fantasia, quando as crianças expressam raiva e descontentamento, caso alguém ofenda um membro desta família ou faça um comentário pejorativo sobre ela.
Tal legado, o contexto social também pode ou não confirmar como característica ontológica, mesmo que paradigmática ou escravizadora. É o caso de crianças, descendentes de genitores delinquentes, que ao se comportarem de forma dita anti-social, são percebidas como delinquentes em potencial, pelos adultos circundantes, que acessam sua história anterior ao abrigo. Talvez seja uma conserva cultural que impeça muitos casos de adoção e que deteriore, ainda mais, a auto-estima, por comprometer a autotele. Moreno (1975, p. 465) nos mostra o quanto a conserva cultural é impedimento para a liberação da espontaneidade também por arraigarse na dimensão social: "É óbvio que a história da conserva cultural, dentro da estrutura mental e social do homem – uma história que remonta há milhares de anos – constitui a maior de todas as barreiras à infiltração da espontaneidade no padrão total da civilização hodierna."
A citação aponta para o caráter social da conserva cultural predispondo à dificultação de uma resposta nova, oriunda de uma percepção nova sobre esta criança, advinda do contexto social.
Da mesma forma, ocorre na esfera intrapsíquica, referindo-nos à identidade como fenômeno relacional, o comprometimento da autotele desta criança diante da energia relacional que a circunda. A imagem que ela vai construindo de si mesma é o âmago dos fenômenos manifestos no trabalho sociodramático.
Na busca da captação das vivências destas crianças, sem a pretensão de explicá-las, mas procurando meios de compreendê-las como fenômenos a serem transformados através da realidade suplementar, recorremos à tentativa de entender o comprometimento da autotele delas, considerando a sua relevância para o desenvolvimento humano. Enquadramos o entendimento desse aspecto na explicação de Fonseca (2000,pp126-7) sobre o processo autotele-autotransferência, no qual o homem oscila permanentemente:
"Esse processo rege a percepção, captação ou consciência de si mesmo, ou seja, a relação do indivíduo consigo mesmo (eu-eu). E essa regência insere-se na esfera da fantasia-realidade porque nunca somos exatamente o que imaginamos ser. A auto-imagem que oscila entre o (auto)télico e o (auto)transferencial contém um aspecto corporal externo e um interno."
Observamos, assim, que, diante das suas autoimagens, as crianças constroem papéis de fantasia de algumas figuras importantes para elas, como a mãe, o pai ou os padrinhos. Atrevendo-nos ao que Zerka (Moreno, 2001) fala, em casar intuição com inspiração, vamos prosseguindo no nosso raciocínio.
Estes papéis de fantasia, atuados no plano da fantasia, parecem oferecer a algumas crianças experiências estruturantes da sua matriz de identidade. Ou seja, com estes papéis, as crianças adquirem o sentido de proximidade e de distância, à medida que a atuação do papel oscila entre a fantasia e a realidade. Com esta aquisição, elas vão administrando as emoções relacionadas às forças de atração e repulsa, cujo reflexo social indica a emergência do fator tele, por Moreno.
A intuição nos leva a perceber a habilidade interna das crianças de prolongarem em si mesmas o que Moreno (1961) apud Fonseca (2000, p. 113) chama de incubação psicológica, seja com ego-auxiliares substitutos reais – os cuidadores institucionais – seja com papéis de fantasia.
As crianças transitam fluentemente na realidade suplementar, como Zerka (2001, p.45) descreve ao se referir às constatações de Moreno: "Moreno constatou que seus protagonistas se moviam dentro de áreas que não eram reais para ninguém, exceto, para eles, e eram de caráter puramente subjetivo." Esta fluência torna-se grande facilitadora das atividades propostas e construídas com o grupo na prática sociodramática, transformando-o num espaço no qual as crianças podem aprender a administrar seu próprio mundo de forma espontâneo-criativa, através da ação.
Construir respostas novas com crianças é valer-se da força imaginativa e metafórica da realidade suplementar do grupo, cuja facilidade se apresenta no brinquedo imaginativo ou no desempenho de papéis inseridos nos recursos naturais de desenvolvimento.
Através da atuação no faz-de-conta, as crianças trazem dados da realidade subjetiva, enquanto expressam as vivências, os sentimentos e as emoções, bem como da realidade objetiva, quando recorrem a elementos desta realidade no intuito de mudá-los ou de se adaptar a eles. Vejamos estes aspectos ilustrados na descrição das sessões abaixo:
Sessão 1:
As crianças iniciaram a sessão repetindo o movimento que vinha ocorrendo há algumas semanas. Entraram na sala organizando cadeiras e almofadas de forma a construírem casas individuais e coletivas em que se dividiam, fazendo grupos de moradores.
Nesta tarde o movimento de algumas crianças, especialmente da C., tornou diferente aquela construção, pois, em vez de casas, foi construído um hospital.
Via-se que a dinâmica era de um hospital público, movimentado e com demanda infantil. Os médicos, A. e Ad., examinavam e receitavam, com pressa, prescrições para os pacientes, que, no contexto dramático, eram trazidos pelos pais.
As psicoterapeutas do grupo associaram o que estava sendo trazido pelo grupo com o que ele vive no contexto social, já que conhecem o histórico de algumas crianças de frequentar hospitais para acompanhamentos de patologias crônicas, mesmo que estando assintomáticas.
Isso se confirmou a partir de frases como "Eu não sei por que venho tanto ao hospital se eu não me sinto doente" (sic) e "Minha filhinha vive no hospital, mas o doutor sempre diz que ela não tem nada" (sic).
Em meio a esse movimento, uma cena chamou atenção. C. colocou uma almofada embaixo da blusa, simulando estar grávida. A. conduziu-a para a maca e iniciou o parto. Quando C. se deu conta de que todos a observavam, hesitou em seguir com a cena. Ainda assim, estimulada por nós, o fez.
Ao ter o bebê, C. levantou da maca e saiu do hospital. Questionamos se ela não levaria a criança. Ela sinalizou que não. Uma das crianças levou para ela a almofada que simbolizava o recém-nascido, mas C. afastou-a de si, de forma enfática. Tentamos dialogar sobre a recusa, mas ela se fechou e não aceitou mais intervenções.
Com isso, as outras crianças já estavam dispersas.
Era hora de organizar a sala para encerrar a sessão.
Iniciamos esse movimento, enquanto as crianças compartilhavam brevemente como havia sido o grupo. C. não colaborou para a organização, nem disse mais palavra.
Encerramos a sessão sabendo que muitos conteúdos importantes emergiriam a partir dela.
Destacamos a importância de as crianças terem trazido este tema, porque embora algumas delas portem o vírus do HIV, realizem visitas regulares a um hospital público especializado em doenças infecto-contagiosas e façam uso diário de medicação específica, este assunto não é claramente abordado. Estabeleceu-se, então, uma comunicação cifrada, que passa a ser decifrada na cena dramática no desempenho dos papéis psicodramáticasno desempenho dos papna dramçasm hospital pwith os.
Visando apresentar uma perspectiva processual deste trabalho, descrevemos a seguir outra sessão, realizada algumas semanas depois da anteriormente descrita, mostrando novas inscrições no modo relacional das crianças com a sua própria história.
Sessão 2:
Ao entrar na sala, as crianças, desorganizada e rapidamente, puxaram do saco as bonecas e os bonecos de pano que haviam sido levados para serem utilizados na sessão. Deixamo-las à vontade com os brinquedos.
Algumas delas simulavam a dinâmica do cotidiano delas, enquanto outras cuidavam dos brinquedos como bebês. A condução de duas crianças nos chamou a atenção.
C. deixou sua boneca ao seu lado, de forma desinteressada, enquanto observava as outras crianças. Próximo a ela, V. rasgava sua boneca, com a feição má de quem deseja machucar. Interviemos nesse movimento. Durante a intervenção, percebemos que C. colocara a boneca na barriga, simulando uma gravidez, como já ocorrera em outras sessões.
Ao ver que dávamos atenção a ela, V. passou a puxar com força a boneca e a jogá-la pela sala. Ao questionarmos sobre as suas ações, ela disse que não queria "aquela menina que não servia para nada" (sic). Conversamos que "aquela menina" precisava de cuidados, solicitando, de outras crianças, que tipo de cuidados: "ela precisa de carinho, tia!" (sic), "E de dar comida também!" (sic), "E também de dar banho, de dar remédio e de levar para a escola!" (sic); diziam as outras crianças.
Questionamos por que aquela criança não iria receber tais cuidados e, sim, maus tratos. V. respondeu que era porque ela não queria e não gostava dela. Confrontamos essa resposta, em linguagem adequada, que nem sempre as crianças eram recusadas porque os pais queriam, mas, muitas vezes, era porque ou os pais não tinham condições de cuidar daquela criança, ou eram muito carentes, ou eram muito novos, ou tinham doenças que impossibilitavam, dentre outros. Por essa razão, enquanto algumas das outras crianças ouviam atentamente, inclusive C., continuamos explicando, para V., por que é que alguns pais entregavam suas crianças para pessoas ou instituições que pudessem cuidar delas. Falamos, que, na esperança de que isso acontecesse, alguns pais deixavam seus filhos em hospitais. "Ingual eu, tia?" (sic), questionou V. "Sim, V., igual a você", respondemos.
Na mesma hora, V. pegou a boneca, que já estava consertada, e passou a cuidar dela, a niná-la, ao mesmo tempo em que o fazíamos com ela. Passamos alguns instantes naquele movimento, que se dava simultaneamente ao movimento de C., que era de parir e cuidar da sua boneca, o que ocorreu de forma inaugural, já que em sessões anteriores C. recusava os objetos que simbolizavam filhos de forma enfática. Permitimos que continuassem bem à vontade com esse movimento de maternagem. Depois, calma e lentamente fomos encerrando a sessão.
O grupo, além de guarnecer as crianças quanto à sensação de existir e o sentimento de pertencimento, assegura o espaço existencial para o exercício da liberação da espontaneidade-criatividade. Assim elas podem dar respostas adequadas e inovadoras voltadas à sobrevivência emocional e relacional, enquanto conseguem perceber de forma diferente os aspectos dos papéis de mãe e de filho, abrindo espaço interno para novas formas de desempenho destes papéis, no transcorrer da vida, a partir do treinamento no contexto psicodramático.
Na última descrição de sessão, ressaltaremos a ressonância de uma resposta num papel, que, pelo efeito cacho, transborda para outro.
Sessão 3:
Era a primeira sessão desde a saída da antiga estagiária. As terapeutas propuseram trabalhar a elaboração da perda que se apresentava para o grupo de crianças, repetindo uma dinâmica já conhecida.
Naquela tarde as crianças estavam inquietas e curiosas sobre A., a nova estagiária. Questionavam-na sobre várias coisas, no intuito de conhecê-la. Todas as crianças o faziam, exceto M., que se mantinha perguntando pela antiga estagiária, mais retraído que os demais.
Observando essa dinâmica, eu, terapeuta, aproximei-me de M. e indaguei sobre como ele estava e como havia passado o final de semana. Contou-me que havia visitado os irmãos e que havia conhecido um sobrinho que nascera há pouco. Passou a falar, então, da violência do meio em que a família dele vive, de um episódio em que o irmão havia sido baleado e sobre a morte da mãe. Numa troca de perguntas e respostas, disse que queria ir, um dia, ao local onde a mãe estava. Perguntei se ele sabia onde era, se já havia estado lá, e como imaginava o local.
À proporção que ele descrevia, íamos montando, com almofadas, o cenário imaginado por M. Concluída essa organização, convidamos A. para ocupar o lugar da mãe de M. na cena, da forma como ele narrara: "eu acho que ela está deitada dormindo, com flores na mão e num lugar bem lindo" (sic).
No contexto psicodramático foi sendo possibilitado à criança despedirse da mãe e expressar um afeto contido, desde que se encontrava abrigado na instituição.
Foi uma cena forte, mobilizadora de muita emoção nas crianças, e que trouxe à sessão um profundo compartilhamento, em que as palavras foram insuficientes, se somando à gestos e ações para bastar.
Ao final, já no contexto grupal, M. declarou amor a A., que habilmente correspondeu. Em seguida, ele a "autorizou" a integrar o grupo. As outras crianças fizeram o mesmo, acolhendo A. com gestos e palavras afetuosos.
Organizamos a sala e voltamos à casa-sede do abrigo.
A criança, protagonista desta sessão, é uma das crianças com queixa de agressividade exacerbada, trazida pelos profissionais cuidadores. Nossa compreensão sobre a maior parte dos episódios de agressão entre as crianças é que o desamparo vivido por elas gera uma descarga agressiva, notadamente pela falta de clareza do que, in factu, aconteceu na sua história de vida.
Enquanto a história concreta das crianças não é sabida ou contada, elas vão aprendendo a desempenhar papéis na vida e a ir constituindo o desenvolvimento psicológico. Dentre estes papéis, queremos destacar um, em especial, que preenche uma importante lacuna existencial nesse grupo: o papel de filho de Deus. Este papel é bastante estimulado dentro da instituição, por ser religiosa, mas chama para uma reflexão diferenciada sobre que tipo de papel é este e sobre qual sua função.
Como todo papel tem seu contrapapel, este encontra o seu em Deus ou na Totalidade divina, como se quiser chamar, e passa pela transição no desempenho:
• role-taking, quando o papel é adotado na infância, variando com a cultura religiosa ou com a ausência dela, no berço biopsicossociocósmico da criança;
• role-playing, quando o papel é desempenhado seja em práticas religiosas, contemplativas, meditativas, reflexivas, ateias ou agnósticas;
• role-creating, quando o papel é reinventado, provavelmente na busca do que mais se aproxime da essência de e para cada pessoa.
O lócus em que se dá a complementaridade do papel de filho de Deus está na confluência entre o microcosmo (homem) e o macrocosmo(universo), assim, ousamos classificar este papel como papel de essência.
Independentemente da crença e recorrendo ao bom-humor moreniano, foram José e Maria que mais nos ajudaram na construção deste conceito: José Fonseca e Maria da Penha Nery.
Fonseca (2000, pp. 56-57) na explicação de um importante aspecto teórico do psicodrama interno, usa como referência o psiquiatra inglês Maurice Nicoll, segundo o qual funcionamos com sete centros vitais reguladores. Os dois superiores (o emocional e o intelectual) "correspondem ao funcionamento humano em uma esfera vital especial. Eles são acionados em situações próprias e específicas; são os centros da sabedoria humana (...). A manifestação do centro emocional superior surge por meio de premonições, revelações, visões, como as profecias descritas na Bíblia".
Estes centros correspondem ao que nos referimos como microcosmos ou o componente cósmico do ser humano, conforme destacado na obra moreniana e, dialeticamente, percebemos o macrocosmo, co-existindo.
Fonseca (2000, p. 98) traz um belíssimo trecho de Las palavras del padre de Moreno, do qual destacamos: "Dentro de mi alma/ Vive el Padre,/ Solamente El vive alli. El Padre y yo Su hijo/ Vivimos dentro de mi alma". Sendo a alma a essência do homem, classificamos o papel de filho de Deus com o termo papel de essência, por nós cunhado, pois, como diz Moreno, o Pai e Seu filho vivem dentro da alma.
Nery (2003, p. 16) fala dos muitos papéis imaginários que:
"podem surgir do redimensionamento psíquicos de papéis 'arquetípicos', ou seja, dos papéis enraizados nos mitos e em toda cultura e sociedade com funções determinadas e objetivas, por exemplo, o papel do salvador, do monstro, do deus, da bruxa, da fada; ou de personagens históricos que incorporam essas funções tais como o papel de Cristo, Napoleão e Hitler".
Esclarecemos, portanto, que o papel de filho de Deus não seria um papel imaginário ou arquetípico por transcender a questão mitológica ou cultural, à medida que enfatiza a dimensão cósmica do homem.
Atentamos que o desempenho do papel de filho de Deus incorpora a ideia do que Nery (2003, p. 17) chama de papéis latentes, das "funções que subjazem às condutas do papel social". No caso do papel de filho de Deus, nos referimos às condutas de um papel de essência, que requer, para sua expressão social, um papel social correspondente, como o de praticante religioso ou espiritual.
Então, o papel de filho de Deus pode ser desempenhado através de um papel social, tendo disponíveis características de personalidade, de cultura, ou pode ficar numa esfera mais voltada para si mesmo (conscienteinconsciente), que, mesmo assim, traz implícita a teia relacional na qual está inserido.
A atuação do papel de filho de Deus transita em diversos níveis de consciência, que estariam diretamente relacionados à concepção de Deus, ou seja, a Imago Dei que norteia o desempenho do papel de filho de Deus através de experiências afetivas que interferem psiquicamente no sujeito. Assim, algumas pessoas meditam nos livros sagrados, cumprem liturgias, rituais ou outras práticas que, em algum nível da consciência, satisfazem às suas necessidades espirituais.
Tais experiências conferem autenticidade, motivação e recursos para a efetivação do vínculo virtual filho de Deus e Deus. Captam também a condição da aprendizagem, para, através do desempenho do papel, promover mudanças que conduzam à transcendência ou ascese como necessidade da dimensão espiritual do Homem. Estas ascéticas, por sua vez, ocorrem no nível da supraconsciência, como define Fonseca (2000, p. 96): "A supraconsciência se ocupa dos estados de consciência vividos em momentos especiais, fora do cotidiano – peak-experiences - como o encontro (de Moreno e de Buber).
A supraconsciência está presente, em graus moderados, durante os estados meditativos de não-pensamento, que são atingidos por meio do exercício da atenção deliberadamente voltada sobre si mesmo."
O papel de essência é, então, um vínculo virtual, cujo âmbito é o da fantasia (consciente-inconsciente) e do cósmico, pois não se encontra nas relações concretas. Tal vínculo replica a um desejo e à busca correspondente, mesmo que na imaginação da criança ou do adulto. Moysés Aguiar (1990, p.60) desdobra o raciocínio, trazendo mais dados relevantes para tais considerações:
"O comportamento de busca é descrito por Bally, como uma potencialidade instintiva de relação (desejo) que necessita de um complementar no meio. Quando esse complemento não se apresenta ao sujeito, este procura encontrá-lo, com uma expectativa que pode transbordar em inquietude e ansiedade. (...) essa busca tem um referencial sociométrico, em que o desejo define o critério ou o projeto dramático, os parceiros correspondem ao perfil do meio necessário à satisfação da necessidade, e as escolhas são idealizadas como recíprocas ou incongruentes, em função das potencialidades que o sujeito imagina possuir para a concretização de seus desejos."
A importância dos vínculos virtuais reside no fato de que estão por detrás das motivações que impulsionam as pessoas para a satisfação de suas carências. Confrontadas com a realidade, podem permitir a contaminação da sociometria atual pelos modelos e expectativas presentes na sociometria virtual. Essa contaminação implica uma transferencialidade, ou seja, as escolhas do momento podem ser feitas e percebidas por critérios divergentes dos adotados pelos parceiros reais, resultando em perda da possibilidade de uma interação télica.
No papel de essência, a tele-transferência ocorre de acordo com os critérios mobilizadores ou não da espontaneidade-criatividade do indivíduo, flexíveis e adequados, levando-o, ou não, ao desenvolvimento espiritual, essencial e cósmico.
No caso das crianças do abrigo, o papel de filho de Deus traz um importante exercício de pertencimento e completude, visto que um aspecto característico de Deus-Pai é o acolhimento e amor infindável por seus filhos. Porém, somente tornar-se-á possível se este exercício não transitar por dogmas e preceitos, que, por não adotarem os critérios anteriormente citados, e condensarem culpa, penitência e outros artigos de poder, desvirtuam o caráter transcendental e cósmico do papel de essência. Isto não impede que, no role-talking e no role-playing do papel de filho de Deus, as crianças possam experimentar e expressar a ambivalência deste vínculo, pois o mesmo Deus-Pai, que é fonte de amor supremo, incondicional e torna todos os seres humanos irmãos e iguais diante Dele, é todo-poderoso e não realiza, no raciocínio infantil, o desejo legítimo das crianças de estarem inseridas numa família ou não terem sido abandonadas e/ou maltratadas.
Tendo em vista que uma das propostas da prática sociodramática é liberar a espontaneidade, o grupo sociodramático permite que as crianças flexibilizem as suas percepções, expressem seus afetos, desafetos e possam internalizar Deus, tu eterno, como diz Fonseca (2000, p. 258), ao reconstruírem a si mesmas.
COMO SOBREVIVEREMOS? QUAIS ESPAÇOS DISPOMOS PARA SER? – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intervenção sociodramática neste grupo é um importantíssimo instrumento de prevenção da cristalização de feridas infantis de poder e violência. É uma resposta muito válida a Como Sobreviveremos?, uma vez que, em se tratando de um grupo de convivência de iguais, as crianças consigam, apesar das falhas nos clusters materno e paterno, aprender a compartilhar, dar e receber, cooperar e competir, que são traços prevalecentes na dinâmica da vida adulta.
O delicado processo de reconstrução de quem deveria estar exalando ou inaugurando a sua existência de forma saudável e feliz revigora-nos a dispor, para as crianças assistidas, mais espaços de formação de vínculos, que as distanciem das repetições de ciclos de opressão e abandono.
O profícuo exercício de compartilhamento de um trabalho como este, com os colegas psicodramatistas, alenta-nos para que mais espaços sociodramáticos estejam disponibilizados para outras crianças, pueris ou ainda guardadas nos escombros de adultos infelizes.
Salve a natureza espontâneo-criativa dos homens, afinal, somos filhos de Deus!
Referencias
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Endereço para correspondência
Centiser – Centro de tratamento e integração do Ser
Rua Carlos Vasconcelos, 2552 Joaquim Távora
Fortaleza – CE
e-mail: acfh@secrel.com.br
* Psicóloga, psicodramatista didata SOPSP – São Paulo
**Psicóloga, aluna em formação em psicodrama Instituto de Máscaras – Fortaleza
***Estudante de psicologia