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Revista Brasileira de Psicodrama

Print version ISSN 0104-5393On-line version ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.1 São Paulo June 2016

https://doi.org/10.15329/0104-5393.20160005 

ARTIGOS INÉDITOS

 

O vínculo entre profissional de saúde e pessoas com transtornos alimentares

 

The bond between health professionals and people with eating disorders

 

La relación entre profesionales de la salud y personas con trastornos de la alimentación

 

 

Tatiane Mitleton Borges RamosI; Luiz Jorge PedrãoII; Daniela de Figueiredo RibeiroIII; Antonio dos Santos AndradeIV

IPrefeitura de Ibaté, SP - e-mail: mitleton@yahoo.com.br
IIUniversidade de São Paulo (USP) - e-mail: lujope@eerp.usp.br
IIIUniversidade de São Paulo (USP) - e-mail: ribares@netsite.com.br
IVDepartamento de Psicologia da FFCLRP/USP - e-mail: antandras@ffclrp.usp.br

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo contribuir para a compreensão do vínculo interpessoal entre profissionais de saúde e pessoas portadoras de transtornos alimentares, por meio do relato de um estudo de caso com uma participante de sete entrevistas em grupo focal, conduzidas segundo o método psicodramático, com temas escolhidos entre aqueles da escala SATIS-BR. Os resultados permitiram afirmar que a participante demonstrou inegável desenvolvimento de sua espontaneidade, expresso na conscientização das representações inadequadas que a bloqueavam em papéis cristalizados e vínculos enrijecidos com os profissionais, ilustrativos da conserva cultural em que se encontrava aprisionada.

Palavras-chave: psicodrama, terapia de grupo de encontro, treinamento de sensibilidade, distúrbios do ato de comer, vínculo interpessoal


ABSTRACT

The paper aims to contribute to the understanding of the interpersonal relationship between professionals and people with eating disorders, through the report of a case study with a participant of seven focus group interviews, conducted according to the methods of psychodrama, based on themes chosen from the SATIS-BR scale. From the results it was possible to state that the participant demonstrated undeniable development in spontaneity expressed in her awareness of the inadequate representations that were blocking her in crystallized roles and tense links with professionals, which illustrates the cultural conserve in which she was held captive.

Keywords: psychodrama, encounter group therapy, sensitivity training, eating disorders, interpersonal bonds


RESUMEN

Este artículo tiene por objetivo contribuir a la comprensión de la relación interpersonal entre los profesionales de la salud y las personas con trastornos de la alimentación, a través del informe de un estudio de caso con una participante de siete entrevistas en grupo focal, realizado según el método de psicodrama, con temas elegidos de la escala SATIS-BR. Los resultados confirmaron que la participante ha presentado el desarrollo evidente de su espontaneidad, expresado en la concienciación de las representaciones inadecuadas que la bloqueaban en papéles cristalizados y vínculos rígidos con los profesionales, ilustrativos de la conserva cultural en la cual se encontraba encarcelada.

Palabras-clave: psicodrama, terapia de grupo de encuentro, entrenamiento sensitivo, trastornos de la ingestión de alimentos, relación interpersonal


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta um recorte da tese de doutorado que buscou conhecer como se estabeleciam os vínculos na relação entre o profissional de saúde e o paciente com anorexia nervosa e bulimia, tendo em vista as peculiaridades no tratamento de pessoas portadoras de transtornos alimentares (TAs), bem como a resistência inicial dos pacientes em aceitar o tratamento. A opção pela entrevista de grupo focal psicodramática como forma de investigação teve como objetivo oferecer aos usuários do serviço investigado um espaço de discussão sobre a assistência prestada, utilizando-se o psicodrama como meio para desenvolver seu protagonismo e sua autonomia no tratamento.

O vínculo interpessoal no contexto de atenção à saúde é um elemento inerente à postura do profissional. O vínculo constrói-se em relações próximas e claras entre o profissional e o usuário, sendo importante que a equipe possa sensibilizar-se com o sofrimento e a demanda dos usuários, bem como estimular a autonomia destes diante de suas condições de saúde e doença (Bispo Junior & Gerschman, 2013). Por meio do vínculo, profissionais e usuários podem construir sentidos e significados sobre a saúde e intervir diretamente sobre a estruturação e a organização do serviço, garantindo uma melhora na assistência (Fontanella, Setoue & Melo, 2013).

Segundo Kloetzel (1999), o vínculo pode ser compreendido a partir de três dimensões: a afetividade, a continuidade e a relação terapêutica. A afetividade é o domínio subjetivo do profissional de gostar de sua profissão e interessar-se pela pessoa do paciente; por meio da afetividade torna-se possível a construção de um vínculo firme e estável entre profissional e usuário.

A continuidade está intimamente ligada à esfera da responsabilidade do profissional e implica a sua atitude em assumir os cuidados pelo paciente, dentro de uma dada possibilidade de intervenção. Assim, o profissional assume a indicação e a garantia dos caminhos a serem percorridos para a resolução do problema do paciente, não cabendo a transferência burocrática para outra instância decisória, ou nível de atenção (Bispo Junior & Gerschman, 2013).

A relação terapêutica compreende um tipo específico de relação, no qual está presente uma atitude de atenção, interesse e compartilhamento, diferentemente de uma relação sujeito-objeto, mas próxima de uma atitude sujeito-sujeito, em que se criam espaços de convivência e interação entre os sujeitos tratados, então, como autônomos (Cotta et al., 2013). Assim, é essencial que haja uma postura de escuta, divisão de responsabilidades, autoconhecimento (ou conhecimento do outro por parte do profissional) e a consideração dos elementos de tele e transferência para que haja uma relação terapêutica efetiva.

Com relação ao tratamento dos transtornos alimentares (TAs), o estabelecimento do vínculo do profissional com o paciente é o primeiro desafio a ser vencido. Segundo Warren, Schafer, Crowley e Olivardia (2012), os pacientes com TAs são considerados difíceis ou provocadores e eliciadores de sentimentos ambivalentes como piedade, raiva, impotência e frustração nos profissionais de saúde. Em função desses aspectos, o conflito relacional que se apresenta entre o profissional e o paciente com TAs pode dificultar a formação de vínculos interpessoais consistentes (Linville, Benton, O'Neil & Sturm, 2010; Martins & Caccavo, 2012).

Para Carvalho, Politano e Franco (2008), o homem é concebido por Moreno como um ser de relação, atuante no aqui e agora, e deve ser entendido e tratado nas ruas, na vida, no contato e na interação com o outro. Diferentemente de outros autores que consideram o vínculo como um desdobramento da individualidade do homem, Moreno o considera como a matriz da própria individualidade humana. Essa concepção coloca o Psicodrama como referencial teórico privilegiado para tratar do vínculo interpessoal.

Vieira, Torres e Moita (2013) apresentam um programa de intervenção psicodramática para mulheres obesas. Os autores partiram de evidências da literatura de que o comportamento de ingestão alimentar compulsiva parece estar associado a perturbações emocionais intensas e recorreram ao uso do psicodrama com o objetivo de liberação da espontaneidade e da expressão emocional, o que diminuiria essas perturbações. Com base nos resultados, foi possível comprovar a eficácia da estratégia psicoterápica psicodramática.

O desenvolvimento da criatividade e da espontaneidade por meio do Psicodrama foi relatado ainda nos estudos de Carnabucci e Ciotola (2013), que demonstraram que o Psicodrama utilizado no tratamento dos TAs é útil para trazer ao paciente maior consciência de seu estado e permitir que ele esteja apto a rever seus papéis desajustados e fazer escolhas mais espontâneas para o desenvolvimento de seu self. Assim, com a dramatização, o paciente pode acessar as forças internas para nomear obstáculos, a fim de resolvê-los, e para ganhar a oportunidade de aumentar sua criatividade.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo é apresentar a compreensão do processo de vínculo de uma das sete integrantes de um grupo de entrevista focal fundamentada nos princípios do Psicodrama, realizada em um serviço de assistência a pessoas diagnosticadas com transtornos alimentares.

 

METODOLOGIA

O serviço em que o estudo foi realizado está inserido em uma instituição macro-hospitalar pública, de natureza acadêmica. No atendimento aos pacientes com TAs, conta atualmente com cerca de vinte profissionais, entre médicos nutrólogos, nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e residentes e estagiários supervisionados. Nas internações, há a participação de terapeutas ocupacionais, médicos clínicos gerais e enfermeiros.

Sete pacientes que estavam em tratamento há mais de um ano frequentaram as entrevistas em grupo focal de enfoque psicodramático e uma participante, Nadir (nome fictício), foi a escolhida para ser apresentada neste artigo, por ter frequentado mais vezes as entrevistas em grupo focal e ter demonstrado nelas maior protagonismo.

A entrevista em grupo focal é uma técnica que permite conduzir uma discussão interativa que elicie maior e mais profunda compreensão de percepções, crenças, atitudes e experiências, a partir de múltiplos pontos de vista, bem como documentar o contexto do qual essa compreensão foi derivada (Vaughn, Schumm & Sinagub, 1996).

Os temas abordados durante as entrevistas em grupo focal foram definidos com base em questões da Escala de Avaliação da Satisfação dos Usuários com os Serviços de Saúde Mental -SATIS-BR (World Health Organization, 1996). A pesquisadora analisou as doze questões daSATIS-BR e, a partir delas, criou as sete questões que foram tema para a entrevista de grupo focal psicodramática: "Como foi o primeiro contato com o profissional e com o serviço?", "O que você acha a respeito da compreensão da equipe sobre o seu problema e da ajuda de que você necessita?", "Como é a sua autonomia na participação das decisões sobre o seu tratamento?", "Como você sente que os profissionais o acolhem?", "O que você acha da competência da equipe e da competência do terapeuta principal para realizar a assistência ao usuário?", "Está satisfeito com o modo como a equipe do serviço está ajudando você?", "E o que acha sobre o tipo de ajuda dada a você pela equipe?". Assim, foram realizados sete encontros de entrevista de grupo focal psicodramático e cada um deles explorava uma dessas questões.

Os recursos psicodramáticos, do palco, do diretor, do ego-auxiliar, da protagonista e da plateia, bem como as fases de aquecimento, dramatização e compartilhamento, utilizados nas entrevistas em grupo focal, permitiram variadas possibilidades de expressão simultânea das participantes, em que elas puderam transitar por aspectos concretos e imaginários e acessar múltiplos níveis da experiência intra e interpessoal. As participantes puderam escolher como expressar sua subjetividade e modular os níveis em que se sentiam seguras ou confortáveis para desvelar suas experiências inter e intrassubjetivas. Essa flexibilidade no uso de recursos possibilitou romper com alguns entraves ou obstáculos de expressão que poderiam emergir na pesquisa e possibilitaram que as participantes vivenciassem o papel do outro e refletissem sobre opróprio papel (Brito, 2006).

No registro dos dados das entrevistas em grupo focal foram seguidas as recomendações de Menegazzo, Tomasini e Zuretti (1995) sobre o processamento psicodramático. A análise das transcrições das sessões foi do tipo análise temática, que está inserida na análise de conteúdo, conforme Minayo (2000).

O projeto e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, elaborados para essa pesquisa, foram apreciados e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto e da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Processo HCRP nº 6913/2010, sendo ajustados rigorosamente às normas definidas pelo Conselho Nacional de Saúde, na Resolução nº 196/96 (Conselho Nacional de Saúde, 1996).

 

A DRAMATIZAÇÃO: PALCO PARA O SURGIMENTO DE UM TRATAMENTO MAIS ESPONTÂNEO E CRIATIVO

A análise temática das transcrições das dramatizações ocorridas no decorrer dos grupos focais revelou que as entrevistas em grupo focal propiciaram ao protagonista: expressar mais claramente seus sentimentos, analisar criticamente os temas abordados, desenvolver maior flexibilidade de seu ponto de vista, desenvolver maior inteligência emocional, aumentar sua empatia para com os profissionais, responsabilizar-se, compreender o potencial do tratamento, revivenciar sentimentos com relação ao tratamento e readaptar-se a situações.

As entrevistas em grupo focal conduzidas de acordo com o Psicodrama também funcionaram como um recurso terapêutico, na medida em que puderam fazer com que as participantes experimentassem e desenvolvessem sua espontaneidade.

Nadir relata que depois de ter feito uma dramatização do seu primeiro contato com o serviço pôde compreender melhor seu estado naquele momento e esclarecer diversos aspectos sobre sua condição. Revelou que, por meio da dramatização de seu primeiro contato com o serviço, conseguiu "mergulhar" na cena conflitante e reestruturar, pelo processo de integração catártica, alguns aspectos de sua relação com o tratamento e com ela mesma. Esse processo a conduziu a maior liberdade de pensamento sobre esse momento e maior reflexão criativa, que a permitiu sair de seu pensamento cristalizado e enxergar seu primeiro contato com o tratamento, de forma mais ampla e que abarcou os vários aspectos envolvidos naquela situação. A dramatização permitiu que a protagonista conseguisse desenvolver novas percepções e formas mais adequadas de pensar sobre aquele momento, em clara demonstração de liberação da espontaneidade. Permitiu-lhe dar voz aos papéis que estivessem em consonância mais saudável com o self, como o papel de um usuário responsável pelo seu tratamento e pela forma como é construída a relação com o profissional.

Esse efeito da dramatização dos primeiros encontros estendeu-se durante os outros encontros e fez com que Nadir tomasse consciência de seu papel de "vítima" e "culpada" diante do tratamento, bem como exercitasse o papel de uma paciente mais responsável pela sua relação terapêutica com o profissional e pelo seu tratamento, tal como revelou sua fala, no 4º Encontro: "Eu não tinha noção até começar a fazer essa dinâmica [...] o quanto de responsabilidade a gente tem também na forma como se dá essa relação [com o profissional]".

As entrevistas em grupo focal, conduzidas sob a perspectiva do Psicodrama, possibilitaram à protagonista criar no palco, por realidade suplementar, com a dramatização, um tratamento mais espontâneo e adequado às suas necessidades e assim perceber, com essa reflexão, o potencial do tratamento e suas deficiências. Nesse processo psicodramático, Nadir refletiu sobre a postura profissional adequada e a postura profissional inadequada ao vínculo entre paciente e profissional.

A postura profissional adequada foi por ela concebida como tendo por características: a firmeza profissional, a atenção do profissional ao paciente, a educação, a amizade e a acessibilidade, o olhar integral ao paciente, a aceitação incondicional sem pré-conceitos ou juízos de valor, a flexibilidade e o empenho em resolver as necessidades do paciente.

Nadir relatou que alguns profissionais do serviço conseguiram estabelecer um vínculo mais próximo com os pacientes e também uma relação terapêutica eficaz. Esses profissionais foram descritos por ela como profissionais que assumem a postura de diálogo e interesse pela fala do usuário e que se mostram compreensivos, afetuosos e empáticos, buscando soluções para o problema apresentado pela paciente. Além disso, foi apontado que esse profissional ideal mostra-se autêntico na relação terapêutica quando é congruente com seus sentimentos, seus pensamentos e suas atitudes. Em alguns momentos é também necessário que esses profissionais se portem de maneira mais firme e diretiva, para fazer com que o paciente participe do tratamento (Souza, 1968). A postura firme do profissional que assiste pessoas diagnosticadas com TAs é necessária para o fortalecimento do vínculo entre o profissional e o paciente e para restringir os comportamentos de risco desse último (Silva & Santos, 2006).

Esses aspectos apontados por Nadir parecem corroborar as duas dimensões essenciais ao profissional para um cuidado integral: a dimensão da competência e a dimensão do cuidado, segundo Bonet (2004). A dimensão da competência está associada à linguagem das ciências básicas, dos conhecimentos e das habilidades médicas. A dimensão do cuidado está associada às atitudes de compaixão e de empatia do profissional e está relacionada ao "aspecto humano" da prática assistencial. Essas dimensões são recomendadas também por Silva Júnior e Mascarenhas (2004).

A postura profissional inadequada, segundo Nadir, teve como características: a falta de escuta qualificada, a abordagem biomédica de cuidado, o despreparo em abordar os aspectos emocionais do paciente, a inflexibilidade, o orgulho, a não mobilização para resolver os problemas dos pacientes, a falta de acompanhamento, o distanciamento do profissional com o paciente, a rotatividade de profissionais e a grosseria.

A protagonista relatou também haver deficiência na formação profissional, que permanece influenciada pelo modelo biomédico e, dessa forma, faz com que alguns profissionais realizem uma assistência muito voltada aos aspectos biológicos, em detrimento dos aspectos culturais, históricos, sociais e emocionais, com o que corrobora Lopez e Moreira (2013), para quem o processo de formação e capacitação do profissional, muitas vezes voltado ao tecnicismo, à fragmentação do cuidado ou à ênfase na dimensão patológica do ser assistido, produz profissionais pouco compreensivos ou empáticos e com percepção do sujeito atendido que se distancia da integralidade.

Nesse estudo, foi realizada uma variação da técnica de inversão de papéis, pois essa técnica só ocorre quando as pessoas envolvidas estão de fato presentes na dramatização (Monteiro, 1998). Na variação da técnica de inversão de papéis, o protagonista "troca" de papel, desempenhando o papel daquele a quem está se referindo, ao expressar o modo como o vê. Assim, nesse estudo, o protagonista desempenhou o papel do profissional, que não estava presente na entrevista em grupo, e o ego-auxiliar ou outro membro do grupo desempenhou o papel do protagonista. A variação da técnica de inversão de papéis permitiu que Nadir, mesmo em relação assimétrica, desenvolvesse a empatia pelo médico psiquiatra e conseguisse compreender melhor os seus pontos de vista. A técnica permitiu também que Nadir percebesse oquanto estava distanciada desse profissional e o quanto tinha se fechado em sua própriaopinião na forma de compreender o tratamento.

Adicionalmente, ao perceber que a variação da técnica de inversão de papéis provocava um aumento na empatia, Nadir chegou a sugerir até que ela fosse realizada com alguns profissionais do serviço, que, de acordo com a participante, tinham dificuldade de perceber o paciente de maneira integral, dizendo, no 7º Encontro: "Como seria um grupo desses com os médicos? [...] Todo esse movimento que a gente fez sempre de se colocar no lugar do médico, fazendo eles se colocarem no nosso lugar? Eu acho que muitos deles teriam dito assim: 'Olha ocontexto desse paciente, sabe? Nossa!' Exatamente porque eles não têm essa visãocontinuada, essa visão integrada". Indicando, assim, que alguns profissionais do serviço investigado apresentam dificuldade para oferecer a "afetividade", a "continuidade" e a "relação terapêutica" necessária para a consolidação do vínculo com o paciente, o que corrobora com o que diz Kloetzel (1999).

A afetividade do profissional parece ser de grande relevância, por exemplo, no contato inicial do paciente com o serviço. Nadir, em seu solilóquio, relatou que o momento inicial de contato com o serviço estava permeado de sentimentos como "medo, desorientação, culpa, vergonha, tristeza, angústia, aflição e resistência ao tratamento". Portanto, no acolhimento inicial, o profissional deve ser acolhedor, afetuoso e compreensivo em relação ao momento que paciente está vivendo. Profissionais com expressões "sisudas" ou que demonstrem irritação podem produzir no paciente recém-chegado impressões desagradáveis sobre o tratamento.

Segundo o recomendado pelo Ministério da Saúde (2004), além da afetividade, o profissional que recebe pela primeira vez o paciente no tratamento deve ser capaz de estabelecer com este uma relação terapêutica e uma escuta qualificada, a fim de compreender suas necessidades e demandas. Na pesquisa realizada, no entanto, percebeu-se que a protagonista não se sentiu escutada pelos profissionais, em seu primeiro contato com o serviço. Conforme relatou a protagonista, o profissional parecia mais almejar seguir o protocolo, do que ouvir queixas, sentimentos e pensamentos dela a respeito do tratamento ou do transtorno alimentar.

A participante afirmou ainda que alguns profissionais assumem, por vezes, postura autoritária, não permitindo que o paciente expresse sua opinião sobre o tratamento. Dessa forma, ela não se sentia participante do processo de construção de seu tratamento, pois suas demandas, críticas e sugestões sobre ele não eram escutadas por alguns profissionais presentes no serviço. Como afirmado por Ribeiro e Schraiber (1994), as dramatizações realizadas permitiram observar que muitos profissionais assumiam posição de "detentores do saber" sobre a saúde e sobre as práticas interventivas mais adequadas e acabavam não escutando as demandas e as necessidades dos usuários atendidos.

Franco e Merhy (2005) acreditam que um dos objetivos do vínculo é fazer com que os usuários se tornem cada vez mais autônomos, participativos e informados sobre seu tratamento. Nadir demonstra isto ao reclamar da falta de informações sobre seu tratamento e da impossibilidade de participar das decisões que eram tomadas pela equipe.

Com relação à "continuidade" do serviço, observou-se que ela está sendo prejudicada pela rotatividade de profissionais no tratamento, que pode estar associada ao fato de o serviço ocorrer em um hospital-escola, onde muitos residentes e estagiários, em processo de formação, permanecem por curto período de estadia dentro da assistência. Alguns estudos (Stancato & Zilli, 2010) já apontam a rotatividade de profissionais em um tratamento de TAs como fator prejudicial, pois ela está diretamente relacionada à baixa produção de vínculos entre o profissional e o paciente, no contexto da assistência.

 

CONCLUSÃO

O processo psicodramático desenvolvido nos sete encontros ampliou a percepção de Nadir sobre ela mesma, sobre seu tratamento e sobre sua relação com os TAs e a fez perceber que, muitas vezes, assumia o papel de "vítima" e de "culpada", para se esquivar da responsabilidade do tratamento.

A possibilidade de se readaptar a situações já vividas ou imaginadas por meio das dramatizações fez com que Nadir experimentasse readaptações e posturas mais flexíveis em suas condutas e percebesse atitudes que gostaria que os profissionais tivessem e realizassem.

Quando a participante afirma que por meio do Psicodrama expressava melhor seus pensamentos e sentimentos, ela experimenta uma prática que gostaria de ver em alguns profissionais, tais como expressões de cordialidade ou autenticidade ao se comunicarem com os pacientes. Quando a protagonista diz ainda que pôde se colocar no papel do profissional através da técnica de inversão de papéis e compreendê-lo sem preconceitos, afirma que gostaria de ver alguns profissionais experimentando o lugar dos pacientes, sem preconceitos ou juízos de valor.

Dessa forma, pode-se supor que a adesão de Nadir ao processo psicodramático desenvolvido nos sete encontros pode ter sido causada pelo fato de encontrar nesse processo o vínculo que ela gostaria que estivesse presente na equipe de profissionais do serviço analisado. Diante da dificuldade de pessoas com TAs aderirem ao tratamento, pode-se pensar que o processo de Nadir, desenvolvido nas sete entrevistas de grupo focal, trouxe reflexões importantes sobre como fazer o vínculo de pessoas com TAs, que devem ser consideradas para odesenvolvimento de um tratamento cada vez mais centrado nas necessidades do usuário eresolutivo, tal como almeja o vínculo no contexto de atenção à saúde.

Ressalta-se que mais estudos a respeito desse tema devam ser realizados visando ampliar a compreensão sobre o assunto.

 

AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo apoio técnico.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 23/09/2015
Aceito: 02/06/2016

 

 

Tatiane Mitleton Borges Ramos. Psicóloga pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestre e Doutora em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). Psicodramatista (nível I, pelo Celeiro - Espaço Sociodramático de Franca). Avenida Prof. José Clozel, 1038. Jd. Morumbi. CEP: 14801-117. Araraquara, SP. Tel.: (16) 99609-9959.
Luiz Jorge Pedrão. Professor Doutor do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (DEPCH/EERP-USP). Especialista e Mestre em Enfermagem Psiquiátrica. Doutor em Saúde Mental. Avenida dos Bandeirantes, 3900, Campus Universitário, Monte Alegre, CEP: 14040-902. Ribeirão Preto, SP. Tel.: (16) 3315-3418.
Daniela de Figueiredo Ribeiro. Psicóloga e Doutora pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Psicodramatista (nível I, pelo Instituto de Psicodrama de Ribeirão Preto; nível II e nível III, pelo Celeiro - Espaço Sociodramático de Franca). Psicoterapeuta individual e de grupo no Celeiro - Espaço Sociodramático de Franca. Docente do Departamento de Psicologia e do PPGDR do Uni-FACEF - Centro Universitário Municipal de Franca. Rua Virgílio Pereira, 1625, Centro, CEP 14400-000. Franca, SP. Tel.: (16) 3702-5303.
Antonio dos Santos Andrade. Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos. Psicodramatista, Terapeuta de aluno e Supervisor de Psicodrama pelo Instituto de Psicodrama de Ribeirão Preto. Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Avenida Caramuru, 2450, apto. 76, torre 3, Alto da Boa Vista, CEP 14025-710. Ribeirão Preto, SP. Tel.: (16) 3235-1847 e 3315-3803.

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