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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.28 no.3 São Paulo set./dez. 2020

 

DOI: 10.15329/2318-0498.19456
ARTIGO ORIGINAL

 

Socionomia e psicologia ambiental: algumas bases comuns

 

Socionomy and environmental psychology: some common basis

 

Socionomía y psicología ambiental: algunas bases comunes

 

 

Debora de Mello e SouzaI*, Marlise Aparecida BassaniI

IPontifícia Universidade Católica – São Paulo (SP), Brasil. https://orcid.org/0000-0003-1712-9209 https://orcid.org/0000-0003-4886-0301

 

 


RESUMO

O artigo constitui-se de revisão bibliográfica e articulação teórico-metodológica aproximando a socionomia da psicologia ambiental, campo de pesquisa relevante para o século 21, considerando a crise humano-ambiental contemporânea. O método de seleção das fontes e os critérios de inclusão e exclusão de literatura e de artigos possibilitaram identificar origens comuns da socionomia e da psicologia ambiental, embasando discussão sobre fundamentos epistemológicos que viabilizam a aproximação proposta. Concluiu-se que, embora evidenciem-se semelhanças históricas e epistemológicas, localizou-se, nas fontes consultadas, apenas uma pesquisa associando intencionalmente a socionomia à psicologia ambiental. Como contribuição heurística, os autores sugerem a utilização dos métodos sociopsicodramáticos em futuros estudos em psicologia ambiental.

Palavras-chave:Socionomia; Psicologia Ambiental; Método Sociopsicodramático; Sustentabilidade.


ABSTRACT

The article consists of a bibliographic review and theoretical-methodological articulation to bring socionomy closer to environmental psychology, a relevant research field for the 21st century, given the contemporary human-environmental crisis. The source selection method and the inclusion and exclusion criteria of literature and articles made it possible to identify common origins for socionomy and environmental psychology, based on a discussion of epistemological foundations that make the proposed approach possible. Although historical and epistemological similarities are evident, only one research report intentionally associating socionomy with environmental psychology was found across the sources consulted. As a heuristic contribution, the authors suggest the use of sociopsychodramatic methods in future studies on environmental psychology.

Keywords: Socionomy; Environmental Psychology; Sociopsychodramatic Method; Sustainability.


RESUMEN

El artículo consiste en una revisión bibliográfica y una articulación teórico-metodológica entre la socionomía y la psicología ambiental, un campo de investigación relevante para el siglo 21, dada la crisis humano-ambiental contemporánea. El método de selección de fuentes y los criterios de inclusión y exclusión de la literatura y los artículos permitieron identificar los orígenes comunes de la socionomía y la psicología ambiental, basados en la discusión de los fundamentos epistemológicos que permiten el enfoque propuesto. Se concluyó que, a pesar de señalar similitudes históricas y epistemológicas, solo se encontró una investigación en las fuentes consultadas, asociando intencionalmente la socionomía con la psicología ambiental. Como contribución heurística, los autores sugieren el uso de métodos sociopsicodramáticos en futuros estudios en psicología ambiental.

Palabras-clave: Socionomía; Psicología Ambiental; Método Sociopsicodramático; Sostenibilidad.


 

 

 

INTRODUÇÃO

Em meio a desafios e crises que se apresentam para a sustentabilidade planetária na contemporaneidade, o resgate das origens comuns entre a socionomia e a psicologia ambiental visa articular e sugerir novas possibilidades de aplicações de métodos socionômicos em estudos com enfoque em psicologia ambiental, campo científico que deve demandar, no século 21, um aporte cada vez maior de atenção por parte da comunidade científica.

O método utilizado para a revisão bibliográfica e a discussão apresentada no artigo consistiu em selecionar um conjunto de bases de dados, indexadores e literatura que pudesse indicar conteúdos e estudos que relacionassem as palavras e as expressões-chave “Jacob Levy Moreno”, “socionomia”, “psicologia ambiental”, “método sociodramático” e “método sociopsicodramático”, tanto em português como em inglês. Foram utilizados os seguintes indexadores e periódicos: Google Acadêmico, PubMed®, ResearchGate, Scientific Electronic Library Online (SciELO), Journal Storage (JSTOR), Journal of Environmental Psychology e American Society of Group Psychoterapy and Psychodrama (ASGPP). Foram também mobilizados registros históricos e obras literárias biográficas sobre Moreno (Almeida, 2012; Blatner, 2011; Fonseca, 1980; Marineau, 1992; 2007; Moreno, 2016) e a psicologia ambiental (Altman, 1976; Barker, 1968; 1987; Bassani 2011; Billmann-Mahecha, 2017; Canter & Youngs, 2012; Gifford, 2014; Hartmut & Renier 1993; Moser, 1998; 2018; Pol, 2006; 2007; Rivlin, 2003; Sommer, 1959; Uzzel, 1979).

Como método de seleção para inclusão e exclusão de conteúdos consultados nas bases de dados, as palavras-chave foram consideradas conjuntamente para a identificação de estudos que associassem ou fizessem referências diretas à socionomia, a seus conceitos e aos métodos sociopsicodramáticos no campo da psicologia ambiental. Para as fontes históricas, utilizou-se, como critério, a seleção de autores que fizessem menção direta a Moreno, à socionomia ou a publicações, instituições, locais, teorias e práticas, que tivessem relações com citações do próprio Moreno ou de seus biógrafos.

 

PSICOLOGIA AMBIENTAL, SOCIONOMIA E SUAS AS ORIGENS COMUNS

Atualmente, a psicologia ambiental é um campo de estudos em crescimento dentro da psicologia e congrega, de forma multidisciplinar, pesquisadores e profissionais de todo o mundo, com um interesse comum no estudo da interação das pessoas com seu ambiente, diante dos amplos desafios para a sustentabilidade (International Association of People-Environment Studies, 2018).

Ao serem resgatadas as raízes da psicologia ambiental, nota-se sua origem em meio às mesmas correntes de pensamento, movimentos e locais onde o próprio Moreno, criador da socionomia, também atuou, sendo possível concluir que tanto a socionomia moreniana quanto a corrente da psicologia ambiental, mais ligada à psicologia social, constituíram-se em ambientes científicos e geográficos comuns na Europa e nos Estados Unidos, durante o final do século 19 e primeira metade do século 20. Ainda da perspectiva histórica, constata-se que a socionomia e a corrente da psicologia ambiental, de influência mais centrada na psicologia social, apresentam, em sua gênese, a influência comum de temas e autores da sociologia, como Mead (1934) e Simmel (1892/1993). Essas referências comuns foram citadas por Moreno (1934/1992), ao longo do desenvolvimento da socionomia, e também por pesquisadores dos campos da psicologia social, em estudos e publicações que produziram conhecimentos fundamentais na origem da psicologia ambiental.

Corroborando tal visão, Pol (2006) apresenta um levantamento histórico da psicologia ambiental como um processo evolutivo que ocorreu em etapas. Em uma primeira etapa, o autor identifica suas origens na Alemanha, no final do século 19 e início do século 20, com influencia de Hellpach (1877–1955), Stern (1871–1938), Muchow (1892–1933), Simmel (1858–1919) e Brunswick (1903–1955) que, embora não fosse austríaco e nem alemão, formou-se em Viena, assim como Moreno, o que possibilita a hipótese te terem participado das mesmas redes intelectuais da Alemanha e na Áustria naquele período; por último, tem-se Kurt Lewin (1890–1947), com quem Moreno teve estreita colaboração por certo período. Todos esses autores, assim como Moreno, inauguraram novas formas de pesquisa, considerando a inter-relação pessoa-ambiente.

Como eixo inicial da revisão bibliográfica realizada para este artigo, Pol (2006) remete aos estudos de precursores da psicologia ambiental contemporâneos a Moreno e pertencentes aos mesmos círculos sociais e geográficos, permitindo identificar similaridades entre alguns dos trabalhos desses autores e a trajetória de criação da socionomia moreniana.

Identificando-se tais relações, dedicaremos a primeira parte do artigo a explorar como essa rede de autores mencionada por Pol (2006) considerou, assim como Moreno, as inter-relações pessoa-ambiente como pontos-chave de suas epistemologias – entendendo-se o conceito de ambiente como os elementos temporais, culturais e espaciais indissociavelmente e destacando-se que, embora na literatura moreniana, as questões das interações sociais tenham recebido maior destaque, estas não se dissipam do conjunto de elementos compreendido como ambiente, tanto na obra de Moreno como na dos autores precursores da psicologia ambiental.

Na segunda parte deste artigo, agregam-se, à análise do artigo de Pol (2006), outros autores, principalmente de estudos do início da segunda metade do século 20 e das interconexões entre Moreno e autores precursores da primeira fase americana da psicologia ambiental, como Lewin (1947), Sommer (1959) e Barker (1968). Inclui-se, nesta revisão, o estudo realizado por Freeman (2004), sobre a rede social de cientistas dos quais Moreno fez parte, ressaltando-se a função dos intelectuais, que imigraram durante os conflitos na Europa em função da Segunda Guerra, na criação de novas correntes na sociologia e na psicologia – uma vez que ocuparam cadeiras acadêmicas em várias universidades em outras partes do mundo. Essa rede influenciou nos novos rumos das ciências não só na Europa, mas em todos os continentes, e consolidou as ciências baseadas em fundamentos interacionistas, nos quais incluem-se a socionomia e a psicologia ambiental como expoentes.

Por fim, na última parte do artigo, articulam-se os conceitos e as práticas socionômicas visivelmente relacionados aos conceitos de psicologia ambiental, incitando novas possibilidades intencionais de colaboração da socionomia nesse campo.

 

INTER-RELAÇÕES PESSOA-AMBIENTE – A ALEMANHA E A ÁUSTRIA COMO PALCOS DO PRIMEIRO ATO

Em 1902, Hellpach, aluno e colaborador de Wundt, em Leipzig, publicou seu primeiro estudo sobre cultura e sistema nervoso e, em 19111, publicou Geopsique, trabalho de grande repercussão para a época e que analisava efeitos climáticos e geográficos nas atividades das pessoas; o efeito da cor e da forma; o efeito de ambientes extremos – como os trópicos ou o ártico e o efeito dos microclimas urbanos. Seu trabalho foi amplamente lido, tendo sido traduzido para diversos idiomas, e atribui-se a ele a criação do termo “psicologia ambiental” (Pol, 2006).

Hellpach era envolvido em questões políticas e, após a Primeira Guerra, passou a contribuir com correntes nacionalistas, chegando, como proeminente líder político, em 1925, a concorrer à Presidência da Alemanha. Dos precursores da psicologia ambiental citados por Pol (2006) e que partilharam de ambientes comuns a Moreno, Hellpach é o único que não tem relação com as fontes comuns também citadas por Moreno – valendo um destaque sobre como as diferenças culturais e ideológicas entre Moreno e Hellpach interferem no fato deste não ser identificado em nenhuma citação de Moreno.

Hellpach, sendo representante de correntes nacionalistas que suportaram o regime nazista participava de redes e átomos sociais diametralmente opostos a Moreno, que era pertencente a uma família de judeus romenos, imigrantes na Áustria. Durante o tempo que viveu na Áustria, Moreno atuou como médico comunitário e em campos de refugiados, trabalhando com imigrantes, em Viena. Dedicava-se a causas completamente distintas às da linha simpatizante com a eugenia, seguida por cientistas alemães como Hellpach. Moreno compunha uma classe de cientistas, artistas, filósofos e pensadores que fazia resistência e distanciava-se do pensamento ultranacionalista que se formava na Alemanha e na Áustria, o qual originou, mais tarde, o nazismo e a Segunda Guerra.

Os cientistas opositores ao ultranacionalismo, que passava a ser predominante na Alemanha entre as décadas de 1920 e 1930, ou se exilaram ou sofreram graves consequências. Foi o caso de Martha Muchow, precursora da psicologia ambiental, destacada por Pol (2006) e colaboradora de William Stern, mencionado por Moreno em seu livro Psicodrama (Moreno, 1946/1997).

 

MORENO, MUCHOW E BRUNSWICK: PIONEIROS FORA DOS LABORATÓRIOS

Tal qual Moreno e sua colaboradora Helen Jennings (1905–1966), durante o início da década de 1930, Martha Muchow e William Stern constituíram uma dupla que trabalhava em novas teorias sobre desenvolvimento. Stern foi o criador do quociente de inteligência (QI) e atuava expressivamente, em seu laboratório em Hamburgo, no desenvolvimento da psicologia experimental e da psicologia diferencial, com foco em entender particularidades e intencionalidades dos indivíduos vistos à luz de suas preferências e escolhas.

Muchow, entre 1919 e 1933, paralelamente ao seu trabalho com Stern, desenvolveu pesquisas pioneiras sobre a infância e o relacionamento entre grupos de crianças e como estas, utilizando a criatividade, transformavam o ambiente urbano (Billman-Marecha, 2017).

Simultaneamente, a temática da infância e da criatividade em ambientes fora de laboratórios também foi de interesse de Moreno (1992), o que o levou a atuar por um período, no início de sua vida profissional, com crianças nos parques de Viena e, mais maduro, em sua fase americana, o fez dedicar-se aos estudos de matriz de identidade e desenvolvimento de papeis a partir da infância, tornando-se este um dos eixos centrais de sua teoria.

Embora os enfoques das pesquisas de Muchow e de Moreno fossem diferentes, a proximidade dos métodos de investigação é notável. Ambos associaram observação em ambientes espontâneos e não controlados em laboratórios, com o uso de etnografia e cartografia. Além disso, assumiam um posicionamento participativo como pesquisadores na relação com os membros das comunidades pesquisadas, que era algo novo para a época.

Muchow estabeleceu um olhar direcionado para a relação das crianças com o espaço em que viviam, dando ênfase aos sentidos subjetivos construídos a partir desses espaços (Billman-Marecha, 2017). Moreno (1994), por sua vez, analisou as relações entre as meninas de Hudson, os vínculos e escolhas entre si e quanto aos espaços e às habitações que ocupavam, mapeando todos os fenômenos sociométricos do grupo na comunidade em questão. Ambos os trabalhos apresentavam orientação fenomenológica clara. Muchow baseava-se filosoficamente no pensamento de Husserl, o que era explicitado em suas escolhas metodológicas (Billmann-Mahecha, 2017). Da mesma forma, Moreno sempre expressou sua visão fenomenológica-existencial inspirada em autores como Bergson e Kierkgaard (Moreno, 1959/1999).

Entre muitos outros exemplos de estudos que passaram a ser realizados naquela época, as conclusões e as contribuições dos trabalhos de Muchow e Moreno geraram grandes impactos nos meios acadêmicos na década de 1930, apoiando a compreensão de uma nova natureza de pesquisas e chancelando a inviabilidade de se considerarem indivíduos isolados de suas relações sociais ou mesmo de seus ambientes, tanto no campo da sociologia como da psicologia (Billman-Marecha, 2017).

Infelizmente, Muchow sofreu profundamente os impactos de um ambiente hostil promovido pelo partido nacionalista, então vitorioso nas eleições. Ao assumir a liderança interina do laboratório de pesquisas em psicologia da Universidade de Hamburgo, após Stern, cientista judeu, ter sido afastado, Muchow foi acusada por autoridades nazistas de realizar projetos que iriam contra a postura do governo e teve suas pesquisas interrompidas. Suicidou-se em 1933, no período pré-Segunda Guerra. As semelhanças e a comparabilidade entre as pesquisas de Moreno e Muchow são citadas por Billmann-Mahecha (2017). A autora, que realizou um levantamento histórico das publicações originais de ambos da época, identifica o método de sociogramas de Moreno como bastante semelhante ao de Muchow. Ela relata que a publicação dos trabalhos de Muchow, que ocorreu logo após o falecimento da autora, em 1933, antecedeu a publicação dos sociogramas de Moreno que, em 1934, publicou, nos Estados Unidos, estudos sobre Hudson, uma escola de meninas em Nova Iorque.

Outro autor citado por Pol (2006) também entre estes precursores da Psicologia Ambiental é Egon Brunswick, nascido na Hungria, país fronteiriço com a Romênia, onde nasceu Moreno. Embora 14 anos mais jovem que Moreno e não havendo registros encontrados ao longo desta pesquisa de que tenham se conhecido, assim como Moreno, Brunswick teve sua trajetória de carreira partindo da formação na Universidade de Viena e imigrando para os Estados Unidos, nos anos 1930.

Como psicólogo, um de seus principais legados para a psicologia ambiental foi a crítica aos métodos experimentais desenhados em laboratório e o esforço em propor novas metodologias para compreensão dos organismos em seus ambientes reais e não artificiais (Pol, 2006). Essa é uma visão similar à defendida por Moreno e buscou na sociometria, nas intervenções de campo e no método dramático um caminho para solucionar tal questão e criar métodos inovadores para seu tempo.

 

SIMMEL, MORENO E MEAD: A MICROSSOCIOLOGIA

Considerado um dos pais da sociologia alemã, Simmel influenciou uma vasta corrente de pesquisadores que passou a adotar, a partir do século 19, a epistemologia interacionista pessoa-ambiente na busca por compreender o ser humano e seus fenômenos sociais. Afastando-se do estruturalismo em grande escala, Simmel enfocava em seu trabalho a microssociologia e, segundo Pol (2006), é um dos principais precursores da psicologia ambiental.

Com base na pesquisa realizada para este artigo, identificou-se que Simmel é um autor mencionado de forma destacada no trabalho de Moreno, tendo sido citado em Quem Sobreviverá? (Moreno, 1992), em Psicodrama (Moreno, 1997) e em Psicoterapia de Grupo e Psicodrama (Moreno, 1999).

Entre os muitos fenômenos sociais que Simmel se propôs a estudar, alguns localizam-se em consonância direta com temáticas apresentadas por Moreno anos depois. De maneira peculiar, Moreno (1992) e Simmel (1993) dedicaram-se, por exemplo, à discussão, à compreensão e, no caso de Moreno, à intervenção acerca do papel das prostitutas na sociedade. É ao analisarmos a forma como ambos elegeram essa temática e suas diferentes maneiras de a abordarem que podemos clarificar a existência de bases comuns e as complementaridades entre seus trabalhos. Simmel escreveu sobre o tema da prostituição em 1892, quando Moreno ainda tinha 3 anos de idade. Em Filosofia do Amor, Simmel abre seu texto com as seguintes palavras:

A indignação moral que a “boa sociedade” manifesta em relação à prostituição é, sob muitos aspectos, matéria de ceticismo. Como se a prostituição não fosse a consequência inevitável de um estado de coisas que esta “boa sociedade”, justamente, impõe ao conjunto da população! Como se fosse a vontade absolutamente livre das mulheres se prostituírem [...]. Essas reflexões indicam o único ponto de vista a partir do qual a prostituição pode ser corretamente julgada tanto quanto ao presente, como quanto ao futuro, a saber: no contexto da situação social e cultural global (Simmel, 1993, p. 1).

O texto de Simmel prossegue assim, direto e crítico ao modus operandi científico que isola fenômenos e atribui ao indivíduo, à genética ou a estruturas fixas a ordem e a causa das coisas. Simmel desconstrói, assim, a estabilidade estrutural do positivismo e estabelece a relação pessoa-ambiente como algo dinâmico, mutável e socialmente constituído. Dada a repercussão e a influência que Simmel exerceu em sua época, pode-se até criar a hipótese de Moreno ter entrado em contato especificamente com esse texto citado sobre a prostituição em algum ponto de sua formação. Sabe-se por Marineau (1992), seu biógrafo, que o jovem Moreno, em seu período filosófico e espiritual, encontrou a forma com a qual queria lidar com as questões com as quais se deparava no mundo e “para encontrar a resposta, fez todo o tipo de leitura [...]. Tornou-se absolutamente convencido de que a ação era mais importante do que as palavras, que a experiência era melhor mestra, se comparada aos livros” (Marineau, 1992, p. 40).

Diferentemente de Simmel, que se concentrou em escrever sua analise crítica sobre a estigmatização das prostitutas, Moreno (1992) optou por viver, na prática, entre 1913 e 1914, uma ação voltada à classe de prostitutas de Viena, relatada em Quem Sobreviverá? e a qual atribui a gênese de seus primeiros insights para desenvolver seu método de psicoterapia de grupo:

Foi em 1913 que comecei a visitar suas casas, acompanhado de um médico especialista em doenças venéreas [...]. Essas visitas não tinham o objetivo de “reformar” ou “analisar” as moças [...]. As prostitutas haviam sido estigmatizadas como pecadoras desprezíveis e pessoas indignas durante muito tempo, em nossa civilização e isso as fizeram aceitar este fato como algo imutável [...] ao perceberem nossos propósitos e alguns benefícios possíveis [...]. De fora, parecia um “sindicato de prostitutas”. Começamos, porém, a perceber que um “indivíduo poderia tornar-se agente terapêutico do outro” e as potencialidades de uma psicoterapia de grupo, a nível de realidade, cristalizaram-se em nossas mentes (Moreno, 1992, vol. I, p. 36).

É logo na sequência dessa passagem, em Quem Sobreviverá?, que Moreno (1992) cita também a gênese de sua teoria das relações interpessoais, que começa a ser desenvolvida em Viena, durante o ano de 1914, ao qual Moreno atribui certa influência ao trabalho de Simmel, referindo-se à sociometria como um passo adiante em relação ao pensamento sociológico do autor. A partir da sociometria, Moreno busca responder algumas das perguntas constantes no trabalho de Simmel.

Com a imigração para os Estados Unidos, em 1925, Moreno transforma sua abordagem filosófica e mística em experimental. Nessa época, começam a ser publicados seus principais trabalhos em sociometria, podendo-se observar o alinhamento com a crítica sociológica de Simmel em questões centrais em Quem Sobreviverá?:

  1. Temos de recuar alguma forma menos diferenciada de sociedade para alcançar estágio de onde possamos começar de novo?
  2. Ou, poderemos superar os desequilíbrios, à medida que avançamos, sem interromper o fluxo presente de progresso?
  3. Que tipo de sociedade será capaz de fazê-lo e qual sobreviverá? (Moreno, 1992, vol. I, p. 119).

A partir da década de 1930, nos Estados Unidos, autores no campo da sociologia, como George Mead (1863–1931) – várias vezes citado por Moreno – e da psicologia social, como Kurt Lewin, com quem Moreno estabeleceu, por certo período, trocas interessantes e colaboração mútua, paralelamente se tornavam também vetores importantes da psicologia ambiental. Segundo Pol (2006), com a migração de um número significativo de psicólogos para os Estados Unidos, inicia-se uma segunda fase importante da psicologia ambiental, a qual o autor denomina “transição americana”.

 

KURT LEWIN E MORENO: ENCONTROS E DESENCONTROS

Após explorarmos a obra de autores anteriores, citados por Pol (2006), chegamos enfim no encontro em que Kurt Lewin conheceu Moreno em Columbia, onde estabeleceram contato próximo durante certo período. Moreno (1992) cita em seus trabalhos conversas e reuniões que tivera com Lewin, além de registros sobre terem compartilhado ideias, tanto sobre impressões pessoais de seus processos de adaptação como imigrantes europeus judeus na América, quanto em relação às questões teóricas e conceituais que desenvolviam.

Lewin faleceu abruptamente em 1947 e Moreno demonstrou publicamente sua admiração por ele, algo que raramente fez com qualquer outro autor ao longo de sua obra. Moreno também deixou pública, em um trecho do livro Quem Sobreviverá?, a dificuldade de comunicação que teve com alguns colaboradores e seguidores de Lewin, relatando o fato de que considerava que estes não agiram eticamente e tinham se apropriando de conceitos de pesquisas que Moreno compartilhara com Lewin, sem atribuírem a ele os devidos créditos (Moreno, 1992; Moreno, 2016).

Tais dificuldades de Moreno e sua rejeição a essa nova rede de pesquisadores que se formava são registradas mesmo antes da morte de Lewin. Delahanty (2009) relata que, em dado momento, quando o grupo de Lewin estabelecia uma comissão editorial de uma revista da qual fariam parte Kurt Lewin, Ronald Lippitt e Marion Radke, Lewin convidara Moreno para incorporar-se como membro, porém este não aceitou. Esse grupo foi responsável pela revista que publicou artigos póstumos de Lewin e deu início ao Centro de Investigação de Dinâmica de Grupo na Universidade de Michigan. Nas obras biográficas e autobiográficas sobre Moreno (Marineau, 1992; Moreno, 1992; Moreno, 2016; Freeman, 2004), há também menções sobre conflitos bastante disruptivos entre ele e seguidores de Lewin, o que pode intencionalmente ter provocado um movimento de distanciamento entre Moreno e tais grupos, passando-se reciprocamente a evitar atribuir citações de mérito tanto de um lado como de outro. Freemann (2004) e Moreno (2016) relatam que, nesse período, tornou-se recorrente, entre acadêmicos, evitar citar Moreno, por julgarem-no megalomaníaco e excêntrico, o que, de certa forma, levou-o ao isolamento da comunidade acadêmica, que se organizava em novas redes de contatos para estudos sobre as novas temáticas em psicologia ambiental .

 

MORENO E AS PRIMEIRAS PUBLICAÇÕES DA PSICOLOGIA AMBIENTAL AMERICANA

Entre as décadas de 1950 e 1970, do século 20, Moreno atuava como psiquiatra em instituições de Nova Iorque e para instâncias governamentais nos Estado Unidos, com veteranos de guerra. Realizava também intervenções em instituições escolares, presídios e hospitais, com o objetivo de tornar as relações nesses ambientes mais saudáveis. Comparando-se o trabalho de Moreno desta época com parte dos trabalhos citados por Pol (2007) dos autores que constituíram as bases teóricas importantes da psicologia ambiental, são perceptíveis as semelhanças. Nos grupos envolvidos com o desenvolvimento da psicologia ambiental americana, foram lançados vários estudos sobre o comportamento espacial em centros psiquiátricos e hospitais:

As obras de Osmond (1957) e Sommer e Ross (1958) oferecem um exemplo disso. Além disso, em 1958, William Ittelson e Harold Proshansky desenvolveram um projeto na Universidade da Cidade de Nova York (CUNY), sobre os fatores que influenciaram o design e a função dos hospitais psiquiátricos. Esta seria uma das bases do programa acadêmico de Psicologia Ambiental no CUNY (criado em 1967) e do primeiro livro didático sobre o assunto quase ao mesmo tempo, Roger Bailey (um arquiteto), Calvin Taylor (um psicólogo) e Hardin Branch (um psiquiatra) iniciaram um programa de treinamento para arquitetos e psicólogos, e convocaram uma reunião interdisciplinar em Salt Lake City com o nome de “Psicologia Arquitetural e Psiquiatria” (Bailey, Branchand Taylor, 1961).

Mais tarde, o programa seria executado eventualmente por Irwin Altman. Também relevante neste momento foi o trabalho de Lawrence Good, no Fundo de Pesquisa do Hospital Estatal de Topeka (Pol, 2006, p. 4).

Nessa mesma época, Moreno também publica diversos estudos sobre a temática de intervenções em espaços hospitalares. Nesse período, ele já conduzia, desde a década de 1940, um projeto longo no St. Elizabeth’s Hospital, em Washington (Moreno, 1997). Envolvido com esse movimento de revisão de diversos espaços hospitalares nos Estados Unidos, é bem provável que Moreno tivesse tomado conhecimento dos movimentos mencionados, que embrionavam essa nova linha de estudos da psicologia ambiental americana, porém, não há registro, em suas obras pesquisada ou em textos de seus biógrafos, de citações que evidenciem que ele tenha se aproximado ou comentado a respeito desses processos. O foco na psicologia ambiental da época, mais concentrada na arquitetura e menos nos aspectos sociológicos, também distanciaria tais iniciativas dos temas centrais da socionomia.

Embora houvesse tal distanciamento, uma conexão interessante manteve-se a partir de um outro canal, a revista Sociometry, criada por Moreno e colaboradores em 1937. Foi essa a revista que favoreceu o início de uma série de publicações sobre novas linhas de estudos. Idealizada como veículo para comunicar novas formas de se criarem experimentos e produzir ciência, a revista manteve esse projeto editorial ao longo de sua história, sendo responsável por abrir espaço para publicações da psicologia social de Kurt Lewin e seus colaboradores, além de autores reconhecidos da psicologia ambiental, como Irwin Altman, Robert Sommer e Roger Barker.

Sommer2 (1983) revela que um de seus primeiros e mais citados artigos sobre psicologia ambiental, apresentado em 1959, fora recusado por outra publicação especializada em psicologia social, quando conseguiu que Dick Hill, editor naquele período da Sociometry o publicasse. O texto de Sommer relata uma pesquisa sobre fenômenos ligados ao relacionamento e ao espaço pessoal de pacientes esquizofrênicos em um hospital psiquiátrico, tópico ainda pouco incorporado como tema na psicologia social, mas pertinente ao projeto inovador de pautas que a Sociometry cobria.

Fields (2007) publica, no número de aniversário de 70 anos da revista, que tal projeto editorial inaugurado por Moreno foi audacioso, por integrar estudos com temáticas inovadoras e até controversas, mas com altos padrões metodológicos. Destaca que a revista teve papel fundamental no desenvolvimento de diversos campos novos de pesquisa das ciências sociais americana.

Entre a década de 1960 e início de 1970, período final de sua vida, Moreno afastou-se desse mundo editorial e acadêmico, embora ainda tenha tido papel central em eventos científicos. Ao escrever sobre a biografia de Moreno, seu filho, Jonathan Moreno (2016), descreve obstáculos que percebia entre seu pai e certas redes de acadêmicos e instituições com quem outrora trabalhara. Atribui esse processo à personalidade de seu pai e, também, ao não alinhamento de seus métodos à tendência positivista, que expelia abordagens que pudessem se caracterizar como pouco científicas ou alternativas.

 

O ELO PERDIDO E O RESGATE DE UMA EPISTEMOLOGIA COMUM

Lewin, que falecera em 1947, já não era um elo, uma ponte de diálogos, entre Moreno e os psicólogos sociais, que, mais tarde, deram origem a uma das correntes da psicologia ambiental.

Embora as práticas e os métodos criados por Moreno, como os conceitos de sociometria e de papéis sociais e a necessidade de se criarem instrumentos fora do laboratório, tenham sido pontos em comum entre a socionomia e a psicologia ambiental, da década de 1960 em diante, os elos que poderiam conectar tais conteúdos, entre as práticas socionômicas e o novo campo da psicologia ambiental, não se fortaleceram.

Também a partir da década de 1960, um dos elementos centrais da socionomia moreniana, o conceito de papel, foi utilizado por autores da psicologia ambiental de diferentes maneiras. São exemplo Barker (1968), Canter & Youngs (2012) e Uzzel (1979), porém alinhados com a visão de papeis sociais de Mead (1934), sem citações a Moreno, que se diferencia da visão de Mead como dito em suas próprias palavras:

Mead era um filósofo social, não voltado para a prática. Da teoria de uma ideia à ideia de sua aplicação há um grande passo. É historicamente interessante que eu venha do teatro com minha teoria de papéis e que tenha iniciado minhas pesquisas aparentemente antes. Não há dúvida, entretanto que eu e Mead trabalhamos independentemente um do outro. Ele era um professor de filosofia em Chicago, enquanto eu estudava medicina em Viena. O desenvolvimento de nossas ideias é diametralmente oposto. A maneira de trabalhar de Mead era mais de observação e a minha era a experimentação. (Moreno, 1999, p. 127)

De qualquer forma, tanto em Mead como em Moreno, o conceito de papel fornece a noção de que comportamentos não somente se alteram conforme mudamos de um cenário comportamental para o outro, como dentro de um mesmo cenário, variando conforme as relações criadas em determinado grupo.

Barker (1968), citado em vários trabalhos de psicologia ambiental, bem como por Moreno (1999)3 e estudiosos da socionomia pós-moreniana, como Blatner (2011), incorpora o conceito de papel para investigar quais variações locais poderiam influenciar, de maneira diferenciada, no comportamento do indivíduo. Para ele, a análise e a categorização dos cenários onde os comportamentos ocorrem permitiriam uma melhor compreensão da influência ambiental nos comportamentos humanos (Hartmut & Renier, 1993). Moreno testou tal aspecto insistentemente – por exemplo, em seus testes de espontaneidade (Moreno, 1997), porém, infelizmente, tais trabalhos não foram usados como fonte nesses estudos de psicologia ambiental publicados por Barker e outros autores.

A partir dos resultados obtidos, conclui-se que, embora tenham sido localizadas referências na literatura socionômica moreniana e pós-moreniana que se aproximem das temáticas da psicologia ambiental, o que já se constitui como contribuição relevante (Mello & Wechsler, 2017; Lima, 2018; Campolim de Almeida, 2009), identificou-se apenas um trabalho em que os termos pesquisados estivessem especificamente articulados e citados como resultado de uma aplicação teórico-metodológica intencionalmente associada (Mello e Souza, 2018). Nesse trabalho, a autora resgata o conceito de papéis retomando a leitura socionômica moreniana e associando-a a conceitos da psicologia ambiental.

Na psicologia ambiental, as inter-relações são estudadas a partir de uma concepção de que o humano impacta no ambiente e o ambiente impacta no humano, englobando-se no conceito de ambiente tanto os espaços construídos como os naturais e considerando-se, além das dimensões espaciais, os aspectos temporais e culturais. Nesse campo de estudos, transita-se também do particular e do privado ao público e global; identificam-se o tempo objetivo, marcado por cronologias, e também o tempo subjetivo, marcado pelas percepções individuais. Articulam-se, nesse campo, valores, crenças, referências religiosas e espirituais para a compreensão de comportamentos em seus espectros e conflitos, compreendendo a interdependência humano-ambiental e seus impactos na saúde e no bem-estar, assim como, de forma mais ampla, na investigação das motivações da ação ou da inação humana diante dos riscos da manutenção e da sustentabilidade da vida no planeta (Bassani, 2011).

Na socionomia valoriza-se, assim como na psicologia ambiental, tanto o espaço circundante, como a inter-relação entre pessoas e ambientes – e, numa perspectiva de saúde, a capacidade tanto das pessoas, como dos ambientes, serem agentes terapêuticos. Dado a este pressuposto, Moreno, ainda em 1936, buscou investidores para construção de seu próprio espaço para restauração de saúde mental: seu hospital psiquiátrico, chamado de Beacon House.

A partir do método dramático, o palco, construído a priori ou localizado intencionalmente em qualquer ambiente onde um socionomista possa trabalhar, configura o eixo no qual todos os “lugares” podem virtualmente estar. A movimentação dos personagens, sua localização, as proximidades e as distâncias se constituíam de elementos essenciais nessa metodologia de investigação das inter-relações. O tempo, o espaço e os seres em relação podem ser pesquisados a partir de técnicas de ação – e não apenas a partir de suas falas, mas da forma como se colocam e se movimentam em um determinado lugar/ambiente.

No hospital psiquiátrico construído por Moreno, ele pode expressar e colocar em prática, em consonância com suas visões filosóficas e teóricas da socionomia, os efeitos restauradores que um ambiente rigorosamente desenhado para a saúde pudesse promover. Moreno usou vários preceitos que a psicologia ambiental também lança mão, planejando cuidadosamente o local para intervenções com pacientes específicos que recebia e, quando necessário, criando situações hipotéticas, com a atuação de sua equipe de egos auxiliares em seu próprio espaço ou reproduzindo tais conceitos também em outros locais. Produziu experimentos sociais, em maior ou menor escala, desde grandes projetos, como o presídio de Sing Sing,  St. Elizabeth’s Hospital e a Escola Hudson, até atendimentos individuais, em seu próprio hospital, sem abrir mão da visão da pessoa em relação com seu ambiente e do ambiente considerado em toda sua potência de atravessamentos na vivência das pessoas.

Conforme Almeida (2012), a obra moreniana é dialógica e dialética e considera os fenômenos sempre como um “vir a ser”, compreendendo a ação humana a partir de papéis em situação relacional. A abordagem socionômica de Moreno não fecha a análise da personalidade ou de um fenômeno humano em uma estrutura isolada, mas considera a inter-relação pessoa-ambiente.

No trabalho socionômico, os eixos espaciais, temporais e culturais se estabelecem entrelaçados e podem ser vividos a partir do método dramático em uma estética vivencial, com robustas bases filosóficas e teóricas, o que nem sempre é compreendido em muitas instâncias dos meios acadêmicos e científicos. Sua orientação fenomenológica-existencial, associada à metodologia de ação, confronta-se com a demanda por métodos que buscam estatísticas e previsibilidade, o que Moreno apaziguou parcialmente e também não deixou de lado com suas publicações sobre sociometria. Na psicologia ambiental, da mesma forma, as dimensões de espaço, tempo e cultura são elementos essenciais, porém abordados a partir de metodologias mais convencionais e vinculadas às tradições metodológicas, em grande parte herdadas das psicologias social e experimental.

Na socionomia moreniana, o ambiente é inerente ao contexto. Os meios sociais, aspectos geográficos da cultura e da história, imbricam a construção das coordenadas espaço-temporais, fundantes para a construção do ser.  A socionomia utiliza-se do método sociopsicodramático que favorece um olhar sistemático ao distinguir os contextos onde se inserem os papéis. Ao diferenciar em contexto social, grupal e psicodramático, as dimensões em que os fenômenos podem ser analisados aproximam-se da psicologia ambiental, que também transita em análises ora das implicações particulares e privadas de uma experiência, ora das implicações públicas e globais.

Ao se coordenarem contextos na ação sociopsicodramática, orientada pela teoria socionômica, possibilita-se compreender concomitantemente os fenômenos coproduzidos nas dimensões tempo, espaço e pessoa. Ao analisarmos os fenômenos a partir do contexto social, visualizamos as interconexões entre papéis sociais e todo o macroambiente. Os aspectos culturais e históricos são evidenciados e estudados de forma ampla. A interiorização das pautas culturais, geradoras de certas condutas esperadas, como mãe, filho, professor, juiz, irmão, cidadão etc.4, podem ser discutidas e, inclusive, questionadas, desconstruindo paradigmas e repensando o quanto tais modelos e modos de funcionamento conservados de alguns papéis impactam nas dinâmicas humano-ambientais. No contexto grupal, podem-se trabalhar as relações de uma comunidade específica e a interação entre papéis também específicos. Podem-se viabilizar, nesse contexto, intervenções para um trabalho direcionado aos conflitos e a questões do grupo, em um determinado momento, ou mesmo para a pesquisa e a compreensão da rede intersubjetiva que dado grupo compartilha.

Já no contexto dramático, temos a grande diferenciação do método moreniano, que promove a pesquisa não só subjetiva, mas intersubjetiva dos fenômenos humano-ambientais, acessando outras dimensões, além da realidade linear instaurada na expressão factual. Pode compreender questões que escapam ao universo positivista, separam sujeito e objeto e buscam verdades universais, postulando um “assim é” definitivo para cada fenômeno para proporcionar o “como se” das coisas e experiências. No contexto dramático, o “como se” amplia possibilidades para sujeito-objeto serem experimentados, sentidos, pensados e compreendidos a partir de papéis assumidos em cena, desvelando as facetas múltiplas desta inter-relação.

Azevedo (2017) reforça que, para Moreno, são os papéis vividos nos ambientes – e, acrescenta-se aqui, nos contextos sociais, grupais e dramáticos – que constituem a configuração de um suposto “eu”. Para a autora, a sutileza dessa inversão revela uma mudança de espacialidade subjetiva, isto é, não se trata do mundo interior, mas da exterioridade do espaço relacional da atuação dos papéis, a medida que sustenta algo relativo à sensação de realidade existencial.

Conclusivamente, articulando-se conceitos da socionomia moreniana aos estudos realizados no campo da psicologia ambiental, complementam-se aparatos teóricos-metodológicos que podem se apoiar mutuamente em abordagens propositivas à crise humano-ambiental da atualidade.

A partir da criatividade e da espontaneidade, possibilitadas pelos instrumentos sociopsicodramáticos, podem-se encontrar proposições a favor da criação de novos paradigmas em resposta a essa crise, visível em eventos concretos, como pandemia, ameaças à biodiversidade, mudanças climáticas e esgotamento de recursos naturais.

É nesse contexto que se deflagra a necessidade emergente de revisão de meios de vida, (Giddens, 2002; Latour, 2014) e damos sentido ao que Kuhn (1970) pontuava, ao dizer que a crise tem, em seu significado, justamente o fato de indicar a chegada da ocasião para se renovarem os instrumentos.

A proposta de cruzar perspectivas da socionomia e da psicologia ambiental aponta, portanto, para férteis caminhos de investigação. Moreno propôs algo muito além do humanismo, extrapolando o estudo além do humano para um projeto bioátrico (Mello & Wescheler, 2017), com foco não apenas antropocêntrico, mas de impactos planetários, o que se assemelha e é enriquecido pelas bases oferecidas no movimento atual da psicologia ambiental. Ao se associar o repertório de instrumentos sociométricos e sociopsicodramáticos, consagrados ao longo do último século, em aplicações, pesquisas e intervenções no campo científico da psicologia ambiental, reúne-se um conjunto robusto e necessário diante dos grandes desafios de sustentabilidade que enfrentaremos como humanidade ao longo dos próximos anos.

 

CONTRIBUIÇÃO DAS AUTORAS

Ambas as autoras contribuiram igualmente na elaboração deste artigo.

 

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*Autora correspondente: debora.lanakana@gmail.com

Recebido: 21 Nov 2019 – Aceito: 03 Out  2020

Editor de Seção: Oriana Holsbach Hadler

 

 

1. Para esta pesquisa, tivemos acesso à edição brasileira, de 1967.

2. Robert Sommer também era próximo de Gardner Murphy, influente professor da Universidade de Columbia e responsável por apoiar Moreno e Hellen Jennings em seus primeiros estudos sobre sociometria.

3. Moreno cita, em Psicoterapia de Grupo e Psicodrama, o trabalho de Barker, que foi publicado na revista Sociometry, em 1942: “The social interrelations of strangers and acquaitances”, V: 169-179.

4. Ver em Moreno (1997) estudo comparativo sobre tipologia de papéis sociais valorizados e reconhecidos pelos participantes de uma pesquisa que visava compreender como se construíam pautas culturais e em que idade as crianças nascidas nas comunidades pesquisadas já reconheciam e diferenciavam tais modelos.

 

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