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Barbaroi
Print version ISSN 0104-6578
Barbaroi no.38 Santa Cruz do Sul June 2013
ARTIGOS
A cartografia como método para as ciências humanas e sociais
The cartography as a method for the humanities and social sciences
Kleber Prado FilhoI; Marcela Montalvão TetiII
IUniversidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Santa Catarina - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro - Brasil
RESUMO
Este artigo busca recolher num diálogo entre Foucault e Deleuze elementos metodológicos que possibilitem realizar uma cartografia social. Não se trata aqui de "sistematizar o método cartográfico", mas de reunir apontamentos e indicações nesse diálogo, que sirvam de suporte para análises críticas, estudos e pesquisas, ao mesmo tempo em que sirvam como instrumentos de resistência. Diferentemente da cartografia tradicional, que traça mapas de territórios, relevo e distribuição populacional, uma cartografia social faz diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade. Como método presta-se à análise e desmontagem de dispositivos, ação que consiste em desemaranhar suas enredadas linhas, além de instrumentalizar a resistência aos seus modos de objetivação e subjetivação. Tal como proposta por Foucault e Deleuze, a análise cartográfica configura-se como instrumento para uma história do presente, possibilitando a crítica do nosso tempo e daquilo que somos.
Palavras-chave: Cartografia. Dispositivo. Heterotopias.
ABSTRACT
This article seeks to collect a dialogue between Foucault and Deleuze methods that will allow to perform a social cartography. This is not to "the systematic mapping method", but to gather notes and information in this dialogue, which serve as support for critical analysis, studies and research while serving as instruments of resistance. Unlike traditional cartography, which traces territories maps, topography and population distribution, social cartography is a relationship diagrams, and crosses between fighting forces, funding, games of truth, utterances games, objectivity and subjectivity, self-productions and self-estetizations, practices of resistance and freedom. As a method lends itself to analysis and removal of devices, an action that is to unravel their tangled lines, and resistance to equip their modes of objectification and subjectification.As proposed by Foucault and Deleuze cartographic analysis appears as an instrument of this story, allowing criticism of our time and what we are.
Keywords: Cartography. Devices. Heterotopies.
Introdução
A exemplo do que acontece quando que se trata de formulações metodológicas a partir dos estudos de Foucault, falar de cartografia como método para as ciências humanas e sociais requer algumas considerações iniciais.
Primeiro, deve-se notar que essa não é exatamente uma formulação foucaultiana. A cartografia é algo que Deleuze desenvolve a partir de algumas indicações de M. Foucault, que resulta de um diálogo entre os dois em relação à questão, o que faz dela uma produção a quatro mãos desses dois filósofos - amigos e parceiros em alguns projetos - ligados, ambos, à tradição nietzschiana.
O esboço de um método cartográfico deve ser feito levando em conta as já conhecidas perspectivas metodológicas de Foucault - arqueologia do saber, genealogia do poder e genealogia da ética - visto ser a análise cartográfica ao mesmo tempo uma derivação e uma incorporação dessas perspectivas. Deleuze refere-se a Foucault como cartógrafo em um texto de 19861, mas já se apresentam elementos cartográficos numa entrevista por ele - Foucault concedida à revista Hérodote em 19762, tratando da sua relação com o campo da Geografia.Discute-se ali certa "espacialização da história" observável em suas genealogias, bem como a aplicação da arqueologia como cartografia ou geopolítica dos discursos3, pistas que se tornam evidentes pelo seu emprego de "metáforas espaciais", tais como: posição, campo, deslocamento, território, domínio, solo, arquipélago, geopolítica, paisagem, entre outras, dando mostras de uma dimensão espaço-temporal em suas análises. Há também referências à cartografia como método rizomático na "Introdução" de "Mil platôs", conhecido texto de Deleuze e Guattari, datado de 1980.
Esse exercício de método também leva em conta desenvolvimentos recentes produzidos no Brasil e publicados nos trabalhos de Rolnik (1986;1989); de Fonseca&Kirst (2003); de Albuquerque Júnior, Veiga-Neto & Souza Filho (2008); de Passos, Kastrup&Escóssia (2009); entre outros trabalhos, com os quais se quer dialogar no sentido de uma produção coletiva. Todas essas publicações exploram trajetórias cartográficas a partir da perspectiva foucaultiana, dando visibilidade a diferentes facetas ou pistas do método cartográfico. Assim, esta reflexão se apropria de algumas explorações relativas ao tema além de introduzir as suas próprias, buscando uma articulação possível entre propostas diversas até porque não se pretende aqui uma "unificação de método" - visando compor coletivamente estratégias de análise crítica do nosso presente, além de instrumentalizar o agenciamento de resistências em relação àquilo que nos produz e assujeita. Este é o universo conceitual, de debates e preocupações, que orienta o percurso desta reflexão.
É bom lembrar ainda que existem tantas cartografias possíveis quanto campos a serem cartografados, o que coloca a necessidade de uma proposição metodológica estratégica em relação a cada situação ou contexto a ser analisado, indicando que dessa perspectiva método e objeto são figuras singulares e correlativas,produzidas no mesmo movimento, e que não se trata aqui de metodologia como conjunto de regras e procedimentos preestabelecidos, mas como estratégia flexível de análise crítica.
Cartografando o método
Objetivando uma caracterização preliminar, pelo mesmo motivo envolvido na proposição da arqueologia como análise de discursos - uma coincidência de termos - deve-se de saída marcar as diferenças entre o método aqui exposto e a prática cartográfica tradicional, nossa velha conhecida "ciência dos mapas".
A cartografia tradicional encontra-se ligada ao campo de conhecimento da geografia e busca ser um conhecimento preciso, fundado em bases matemáticas, estatísticas, contando com instrumentos e técnicas sofisticadas. Sua especialidade é traçar mapas referentes a territórios, regiões e suas fronteiras, demarcações, sua topografia, acidentes geográficos, como pode ainda tratar da distribuição de uma população em um espaço, mostrando suas características étnicas, sociais, econômicas, de saúde, educação, alimentação, entre outras.O mapa como representação de um território e das características de uma população é um instrumento fundamental da Geografia física e da Geografia humana, a Demografia.
O termo "cartografia" utiliza especificidades da geografia para criar relações de diferença entre "territórios" e dar conta de um "espaço". Assim, "Cartografia" é um termo que faz referência à ideia de "mapa", contrapondo à topologia quantitativa, que caracteriza o terreno de forma estática e extensa, uma outra de cunho dinâmico, que procura capturar intensidades, ou seja, disponível ao registro do acompanhamento das transformações decorrias no terreno percorrido e à implicação do sujeito percebedor no mundo cartografado. (FONSECA e KIRST, 2003, p.92).
Assim, a cartografia social aqui descrita liga-se aos campos de conhecimento das ciências sociais e humanas e, mais que mapeamento físico, trata de movimentos, relações, jogos de poder, enfrentamentos entre forças, lutas, jogos de verdade, enunciações, modos de objetivação, de subjetivação, de estetização de si mesmo, práticas de resistência e de liberdade. Não se refere a método como proposição de regras, procedimentos ou protocolos de pesquisa, mas, sim, como estratégia de análise crítica e ação política,olhar crítico que acompanha e descreve relações, trajetórias, formações rizomáticas, a composição de dispositivos, apontando linhas de fuga, ruptura e resistência.
Tal estratégia desenha não exatamente mapas no sentido tradicional do termo e sim diagramas, que não se referem à topografia, mas a uma topologia dinâmica, a lugares e movimentos de poder, traça diagramas de poder, expõe as linhas de força, diagrama enfrentamentos, densidades, intensidades.
O diagrama não é mais o arquivo, auditivo ou visual, é o mapa, a cartografia, coextensiva a todo o campo social. É uma máquina abstrata. Definindose por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda distinção de forma entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação nãodiscursiva. É uma máquina quase muda e cega, embora seja ela que faça ver e falar.
Se há muitas funções e mesmo matérias diagramáticas, é porque todo diagrama é uma multiplicidade espaço-temporal. Mas, também, porque há tantos diagramas quanto campos sociais na História. (DELEUZE, 1988, p.44).
Ele faz uma exposição da relação de forças à medida que não desenha a "grande política" - do Estado, da sociedade, das instituições - mas, traça um esboço de relações capilares de poder, dando visibilidade à dinâmica micropolítica de um campo social. Como "máquina abstrata" que é, refere-se a uma multiplicidade espaço-temporal, intersocial, que em vez de reproduzir mundos preexistentes produz novos tipos de realidade e novas formas de verdade.
Um diagrama possibilita visualizar uma cartografia dos agenciamentos. Agenciamentos são "máquinas concretas": articulações singulares de forças que se mobilizam estrategicamente em torno de objetivos, envolvendo enunciações e relações de poder, tanto podendo capturar, anular e assujeitar, quanto organizar formas de resistência a jogos de objetivação e subjetivação. Uma análise de agenciamentos lida com vetores de forças em jogo num campo, formas de articulação de relações de saber-poder e efeitos de subjetividade, referindo-se centralmente a enfrentamentos e movimentos micropolíticos onde a constituição dos sujeitos está em questão.
Assim, a cartografia aqui apresentada não se refere a territórios, mas a campos de forças e relações; diz mais respeito a movimentos do que propriamente a posições fixas; desdobra-se no tempo, mas também no espaço, além de incorporar os métodos históricos de Foucault - o eixo metodológico saber-poder-subjetividade4 - à medida que se apresenta como método de análise de dispositivos.
É Deleuze quem afirma isso no texto anteriormente referido "Um novo cartógrafo", onde coloca a cartografia como método para desemaranhar as linhas de um dispositivo, tal qual se desfaz um novelo.
Desemaranhar as linhas de um dispositivo é, em cada caso, traçar um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas, é o que Foucault chama de 'trabalho de terreno'. É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas, que não se contentam apenas em compor um dispositivo, mas atravessam-no, arrastam-no, de norte a sul, de leste a oeste ou em diagonal. (DELEUZE, 2005, p.1)
Mas o que é mesmo um dispositivo? ...já se perguntava Deleuze! Essa é outra produção a quatro mãos desses dois filósofos, situada a meio caminho entre seus pensamentos.
Essa figura, central nas análises genealógicas, remete a uma maquinaria complexa que articula elementos e práticas diversas de saber e poder, produzindo efeitos de subjetividade é máquina social, até porque toda máquina é social antes de ser técnica.Em diferentes pontos dos livros "Vigiar e punir" e "A vontade de saber" Foucault aponta diversos elementos e características de um dispositivo, sem preocupação de reuni-los num conceito unitário - como de hábito - definindo-o inicialmente de forma "negativa", referindo-se àquilo que ele não é, por exemplo, quando trata das suas relações com as instituições, argumentando que apesar de muitas vezes apoiar-se em instituições, o dispositivo não coincide com elas nem deve ser confundido com as mesmas. No entanto, caminhando no sentido de uma descrição ampla surgem referências a aspectos de diversidade, complexidade, mobilidade, encobrimento, articulação, caráter estratégico, jogos saber x poder x subjetivação e modos de operação finos, sutis, capilares e subjetivantes, atribuídos à ação dos dispositivos.
Numa entrevista concedida a Alain Grosrichard em 19775, ele se dedica de forma mais detalhada à questão, buscando melhor definir seus contornos e relações, afirmando de saída tratar-se de uma rede que se forma entre um conjunto de elementos díspares e muito heterogêneos entre si, tais como: discursos, instituições e aparelhos diversos, organizações arquitetônicas, leis, regulamentos, decisões, medidas administrativas, conceitos científicos, enunciados, proposições filosóficas e morais, acrescentando que o dito e o não dito são componentes do dispositivo. Em seguida ele aborda o modo de relação existente entre estes elementos, que não é fixo nem estável, sendo da ordem dos jogos - das alternâncias e mudanças de posição, das modificações funcionais e reversibilidades -o que dificulta a visibilidade destas conexões e a resistência a estas práticas. Depois ele destaca a natureza estratégica do dispositivo, posto como artefato histórico que se forma em torno de problemas agudos e estratégicos para uma sociedade, tais como: loucura, criminalidade, sexualidade, saúde e educação, entre outros. Mais à frente ele sintetiza enfatizando as articulações saber-poder:
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (FOUCAULT, 1984, p.246).
Porém, talvez tenha sido mesmo Deleuze quem mais desenvolveu a temática, afirmando mais uma vez, em outro texto, a cartografia como método e modo de enfrentamento dos dispositivos. Em uma palestra proferida num encontro internacional realizado logo após a morte de Foucault, intitulada: "O que é um dispositivo?"6 ele se refere aos seus trabalhos como uma análise histórica de dispositivos concretos, buscando cartografar e "desemaranhar" estes complexos novelos políticos, que se apresentam como conjuntos multilineares dotados de grande mobilidade.
Tais conjuntos são, conforme sua descrição, compostos por linhas de visibilidade e enunciação, envolvendo regimes de luz e de produção de verdades, além de jogos entre visível x invisível, visível x dizível, correspondendo à dimensão de saber dos dispositivos; eles apresentam também uma dimensão de poder, composta por linhas de força agindo como vetores que os atravessam; são ainda dotados de linhas de objetivação e subjetivação, implicando práticas produtoras de subjetividades e sujeitos, além de apresentarem linhas de ruptura e fratura que se entrecruzam em constante movimento de mutação, renovação e atualização.
Mesmo não reproduzindo um modo predeterminado de operação e funcionamento, pode-se afirmar que o movimento dos dispositivos envolve jogos singulares entre práticas de saber e poder, estrategicamente articuladas tendo em vista o problema em torno do qual se organizam, visando produzir as subjetividades daqueles que estão sujeitos à sua ação ou que são objetos da sua ação. Como não se trata de práticas simétricas nota-se um desnível entre elas: enquanto saber e poder operam de forma "positiva", produzindo "realidades" e sujeitos, a subjetividade é da ordem dos efeitos, sendo consequência das relações saber x poder.
A produção de subjetividade talvez seja a principal "função" de um dispositivo, o objetivo central das suas ações e práticas, envolvendo jogos de objetivação e subjetivação dos sujeitos. A objetivação refere-se à colocação dos corpos e subjetividades dos indivíduos como objetos para o saber e o poder modernos, implicando toda uma diversidade de sujeições e controles, envolvendo a produção de corpos e de indivíduos concretos, presos a identidades visíveis. A subjetivação implica um movimento do sujeito em relação a si mesmo no sentido de reconhecer-se como sujeito de um enunciado, de um preceito, de uma norma, fazendo com que estes operem no seu próprio corpo, o que envolve um conjunto de trabalhos e práticas de si visando estetizar-se e produzir-se conforme enunciado pelo preceito ou pela norma.
Avesso a toda descrição linearizante, um dispositivo é ao mesmo tempo maquinaria política concreta, conceito e modelo para composição de um método de análise crítica das nossas práticas cotidianas de poder; em outras palavras, é ao mesmo tempo conceito e prática, "função" e "matéria", objeto e método, além de ser ainda alvo de estratégias de desmontagem e resistência. Por isso mesmo o dispositivo constitui uma peça central da política moderna.
Mas é ainda central porque a modernidade multiplicou e disseminou amplamente esta maquinaria política complexa e de difícil visibilidade, constituindo uma rede articulada de dispositivos normalizantes em relação a problemas diversos, que exercem controle operando de forma fina, capilar e subjetivante, individualizando sujeitos, marcando seus corpos em jogos de identidade, de sexualização, normalizando suas condutas e governando cotidianamente suas vidas. A política moderna é normalizante e subjetivante, contando com recursos desenvolvidos pela(s) psicologia(s) ao longo do século XX.Em seu texto editado por Dreyfus & Rabinow, intitulado "O sujeito e o poder", Foucault trata da questão contemporânea estratégica e fundamental que envolve resistir aos jogos de objetivação e subjetivação operados pelos dispositivos, que implica ainda resistir aos modos de individualização e totalização característicos do Estado moderno.
Um objeto politicamente relevante para análises cartográficas seriam, portanto, práticas de normalização em domínios diversos tais como: loucura, sexualidade,criminalidade, saúde, educação, entre outros.Nesse caso, como em outros tantos, a cartografia serve como método e instrumento ligados à problematização de uma história do presente, na medida em que possibilita uma crítica do nosso tempo, permitindo também enfrentar enunciações, modos de sujeição e resistir a jogos de objetivação x subjetivação que fazem de nós aquilo que somos.
A cartografia é da ordem do rizoma e é exatamente por isso que ela é o antídoto para a ação dos dispositivos. Na "Introdução" a "Mil platôs" Deleuze e Guattari desenvolvem uma concepção de rizoma fazendo ligações com a cartografia.
Essa figura inspirada numa "metáfora botânica" é ali apresentada como um tipo de olhar estratégico, modelo de funcionamento e ação, também de enfrentamento e resistência, que opera a partir de princípios diferentes daquele unitário, vertical, estrutural e disciplinar que orienta o modelo de análise e funcionamento característico da formação "árvore-raiz". O rizoma se estende e desdobra num plano horizontal, de forma acêntrica, indefinida e nãohierarquizada, abrindo-se para a multiplicidade, tanto de interpretações quanto de ações, remetendo à formação radicular da batata, da grama e da erva daninha. Ele não opera pelo jogo de oposição entre o uno e o múltiplo, não tem começo, fim ou centro, nem é formado por unidades, mas por dimensões ou direções variáveis, além de constituir multiplicidades lineares ao mesmo tempo em que é constituído por múltiplas linhas que se cruzam nele, formando uma rede móvel, conectando pontos e posições.Deve-se ainda ter em conta o aspecto subterrâneo de uma formação rizomática, que leva a um problema de visibilidade imediata dessa complexa e intrincada teia de relações.
E quais seriam os princípios próprios ao funcionamento rizomático?
. princípios de conexão e de heterogeneidade, destacando que qualquer ponto do rizoma pode e dever estar conectado a qualquer outro, formando uma rede heterogênea, variável, acêntrica e aberta;
. princípio de multiplicidade, recusando o enunciado da unidade e o pensamento centrado no Uno e no Mesmo, nessas supostas unidades de sujeito e objeto.
Inexistência, pois, de unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que fosse para abortar no objeto e para 'voltar' no sujeito. Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade). (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 16).
. princípio de ruptura assignificante, indicando que o rizoma pode ser rompido ou quebrado em qualquer ponto, como pode retomar sua operação a partir de uma de suas linhas. Ele é formado por linhas de segmentaridade que o estratificam, territorializam, organizam e lhe atribuem significado, mas compreende ainda linhas de desterritorialização e de fuga.
Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter uma às outras. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.18).
. princípios de cartografia e de decalcomania, indicando que o rizoma resiste à aplicação do modelo estrutural-gerativo, sendo avesso a quaisquer noções de "eixo genético" ou de "estrutura profunda". O modelo "árvore-raiz" reproduz em série decalques de um campo, uma situação, uma paisagem, enquanto o olhar rizomático traça uma cartografia, desenhando um mapa como diagrama variável. Em contraste com o decalque, que é fixo, reprodutivo e serializado,
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; (... ) Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que sempre volta ao 'mesmo'. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p.22).
O modo de funcionamento rizomático remete a uma forma de resistência política que envolve análise crítica e exercício concreto de liberdade, uma vez que subverte o modelo "árvore-raiz" operante nas grandes máquinas sociais do Estado, do Capital, da Ciência, das Instituições, da Linguagem. No entanto os dispositivos, como maquinarias políticas muito mais sutis, "orgânicas" e atualizadas, recusam a racionalidade verticalizada e hierarquizada dos "grandes poderes modernos", adotando também princípios de funcionamento rizomático, exigindo um enfrentamento de igual natureza, conduzido em termos de análise e ações estratégicas visando desemaranhar suas linhas, produzir rupturas, desterritorializações e reverter seus modos de operação.
Portanto, de forma curiosa, mas não como mera coincidência histórica, as mesmas características de complexidade e multiplicidade encontram-se presentes nesses "conceitos operatórios" - "conceitos-realidade" - que são o dispositivo, o rizoma e a cartografia, possibilitando que essa última funcione como método de análise e ferramenta para a desmontagem de dispositivos, uma vez que se orienta pelos mesmos princípios. Por outro lado, o modelo do rizoma serve como orientação metodológica para uma olhar cartográfico a ser aplicado sobre um campo, uma rede, uma teia de relações, sugerindo que a cartografia opere de modo rizomático, percorrendo os pontos, as linhas e a rede do rizoma, aplicando estratégias rizomáticas de análise e ação, percorrendo e desenhando trajetórias geopolíticas. A cartografia diz respeito a um método estratégico-rizomático.
A cartografia remete a heterotopias
Numa conferência realizada em 1967, disponível na edição brasileira dos "Ditos e escritos" com o título: "Outros espaços"7, Foucault trata da questão das "heterotopias", afirmando inicialmente que se o século XIX foi obcecado com a história, com o problema da historicidade, o século XX - e talvez ainda o nosso tempo - dedicaram-se predominantemente à problemática dos espaços, sem excluir, evidentemente, uma preocupação com o tempo. Assim, buscando traçar uma história dos espaços nas sociedades ocidentais, ele distingue três diferentes tipos de espaço: uma espacialidade de localização, fixante, hierarquizada e sacralizada, correlativa das sociedades feudais; uma espacialidade de extensão, aberta para um espaço infinito, inaugurada por Galileu no século XVII; e uma outra, que nos é contemporânea, caracterizada pelo posicionamento, que se define por relações entre pontos e elementos, formando séries, organogramas ou redes.
A constituição de espaços em redes complexas e móveis, envolvendo a articulação de elementos diversos e heterogêneos entre si - a exemplo do que se pode notar na composição dos dispositivos e no funcionamento rizomático -é, portanto, característica do nosso tempo, fazendo da rede uma "figura empírica da ontologia do presente", conforme Kastrup(In:FONSECA& KIRST, 2003). Segundo a autora, a formação em rede aponta para uma geometria variável e dinâmica, sugerindo uma multiplicidade vazada e aberta, em constante movimento, composta por nós, atravessada por linhas, que não deve ser definida por sua forma, extensão ou limites, mas por suas conexões, seus pontos de bifurcação e convergência.
Vivemos em espaços que não são vazios nem homogêneos, e sim, formados por relações, carregados de qualidades heterogêneas, que se comunicam e se ligam entre si.Espaço em rede, constituído por linhas e pontos, atravessado por relações e carregado de qualidades e intensidades, portanto, passível de ser cartografado! Nosso tecido social é formado tanto por espaços constituídos por relações mais disciplinares, formalistas, normalizadoras e de controle - aparelhos de produção, de governo, de justiça, prisões, manicômios, escolas, hospitais - como por espaços de fuga e resistência, como movimentos sociais, algumas ONGs, mas também festas, eventos. E em meio a essa diversidade e heterogeneidade interessam particularmente a ele, por suas singulares características, as utopias e heterotopias.
As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais.
Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraprosicionamentos, espécie de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se pode encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados ou invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias (FOUCAULT, 2001, p.414-415).
Na sequência ele irá expor os princípios da "heterotopologia", entendida como método de análise e descrição desses "espaços outros", que possibilita aplicações cartográficas e desenhos de diagramas, dando visibilidade às relações que os constituem, expondo a sua estranheza.
As heterotopias são uma constante nos agrupamentos humanos, embora assumam formas muito variadas. São características das nossas sociedades as "heterotopias de desvio", que localizam - ou excluem - aqueles indivíduos que se desviam de um comportamento socialmente considerado mediano ou normal, destacando-se os manicômios, as prisões e as clínicas de repouso.
Cada heterotopia tem um modo de funcionamento determinado em uma sociedade, em dado tempo, o que não impede que ela altere seu funcionamento conforme solicitações da cultura. Exemplo do cemitério, que em diferentes momentos opera de diferentes formas em nossa cultura, inclusive mudando de localização, passando de um lugar no centro da cidade, ao lado da igreja, para um local na sua periferia, o que se dá a partir do século XIX.
Uma heterotopia tem a capacidade de justapor em um espaço real vários espaços e posicionamentos incompatíveis entre si, produzindo efeitos de ilusão e estranhamento. Exemplo do teatro, do cinema e da milenar figura do jardim.
As heterotopias encontram-se ligadas a "recortes do tempo", apontando para heterocronias e operando quando os sujeitos entram numa ruptura absoluta com seu tempo tradicional. Exemplo aqui de heterotopias diversas mantendo diferentes relações com variados tempos: museus e bibliotecas como heterotopias de acumulação do tempo; mas também as festas populares e feiras, ligadas ao tempo naquilo que ele tem de mais superficial e passageiro, e ainda essas "heterotopias crônicas" que são as cidades de veraneio.
As heterotopias supõem um sistema de abertura, mas também de fechamento, que as isola, tornando-as penetráveis através de um protocolo de permissão ou algum tipo de ritualização ou purificação.
As heterotopias exercem uma função contraditória em relação ao restante dos espaços ou em termos do nível de organização dos espaços em uma sociedade: ou ela desempenha o papel de criar um espaço de ilusão que expõe o caráter ilusório de qualquer espaço real, ou, ao contrário, visa criar outro tipo de espaço, real, perfeito e meticuloso, expondo a desorganização e confusão dos espaços cotidianos. Elas operam assim como heterotopias de ilusão ou de compensação.
O que mais interessa à cartografia em termos das suas relações com as heterotopias é o desenvolvimento de um olhar crítico, de estranhamento das nossas espacializações cotidianas e, seguindo as pistas dos princípios da heterotopologia, produzir uma análise e descrição que mostrem a sua formação histórica, a genealogia da sua produção, além de possibilitar a criação de espaços outros, de fuga e resistência a essa geopolítica dos espaços. Essa postura implica desterritorialização de espaços fixos, demarcados, de reprodução, envolvendo reterritorialização e abertura para o novo e a diferença.
A cartografía serve de instrumento para saberes e práticas "psi"
A produção política da subjetividade é um dos focos centrais e estratégicos da análise cartográfica, implicando uma atenção especial a jogos de verdade e de enunciação, jogos de objetivação e subjetivação, modos de sujeição e assujeitamento, produção de corpos morais, sexuais, produtivos, estetizações e produções de si mesmo, formas de resistência, práticas de liberdade, o que faz dela um instrumento para as ciências de radical psi.
Neste sentido Rolnik (1989) apresenta uma proposta de realização de cartografias sentimentais - tomando o termo sentimental no sentido de afeto - objetivando traçar diagramas do afetar e ser afetado. Em suas próprias palavras:
Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos.
Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias.
O cartógrafo é antes de tudo um antropófago. (ROLNIK, 1989, p.15-16).
Essa última afirmação da autora tem a ver com o fato de que o cartógrafo se apropria de tudo que encontra pelo caminho para realizar seu trabalho, sem preconceitos, racismos ou fascismos. Ele não deve ser confundido com uma espécie de colonizador que traz na bagagem mapas e valores preestabelecidos, mas como alguém aberto a percorrer e descrever novos trajetos e caminhos que se apresentam como possíveis,munido de um olhar de estrangeiro.
Paisagens psicossociais remetem a "mundos" ou "tempos", constituídos como experiências históricas, nem exatamente pessoais, muito menos subjetivas no sentido de interiorizadas. Elas remetem a estéticas circulantes e formas coletivas de subjetividade, formas coletivas e históricas de existência, economias ou regimes de produção de corpos e subjetividades, modos históricos de relação com os outros e consigo mesmo, estetizações e formas históricas de elaboração e produção de si mesmo. Não exatamente experiências de sujeitos, mas experiências coletivas às quais estamos sujeitos, ou, das quais somos sujeitos, à medidaque nos constituímos nesse cenário histórico até certo ponto comum aos que vivem em determinado tempo, espaço ou cultura. Paisagens não focadas nem centradas nos sujeitos, mas em relações e jogos onde a sua constituição está em questão - problema político, portanto, para a cartografia, no sentido da recusa de reproduções identitárias e da afirmação do direito à diferença. É aqui que a questão da resistênciatorna-se mais crítica!
A cartografia coloca-se o desafio de conduzir a heterotopias: espaços outros,novos mundos, novas paisagens, novas relações, também novas formas de existência e de subjetividade, novos modos de relação do sujeito consigo mesmo que possibilitem exercício de liberdade - não liberdade como ideal abstrato, postoa priori, mas como prática concreta, como linha de fuga. A estratégia cartográfica permite escapar ao decalque, à cópia, à reprodução e à repetição de si mesmo, tornando possível a singularização, a produção de si mesmo a partir de novas estéticas da existência.
A subjetividade constitui objeto privilegiado para a cartografia; afinal, o que faz um psicólogo clínico senão uma cartografia infinitesimal da subjetividade, dos afetos, dos sentimentos? E não é necessário ser um clínico para desempenhar tal tarefa, pois essa pode ser também uma atividade possível para a psicologia social, buscando cartografar relações de naturezas diversas, formas circulantes de subjetividade, agenciamentos do desejo, práticas de objetivação e sujeição,modos de subjetivação e assujeitamento, práticas de resistência e de liberdade, ou mesmo formas históricas de estetização e produção de si mesmo.
Referências
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Data de recebimento: 14/12/2011
Data de aceite: 28/05/2013
Sobre os autores:
Kleber Prado Filho é professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Mestre em Administração pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Pósdoutor em História pela Unicamp. Endereço Eletrônico: kleberprado.psi@gmail.com.
Marcela Montalvão Teti é doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Endereço Eletrônico: marcelateti@gmail.com.
1 Texto intitulado: "Um novo cartógrafo", onde Deleuze trata das análises genealógicas levadas a efeito por Foucault em "Vigiar e punir", citado nas Referências.
2 Publicada no Brasil com o título: "Sobre a geografia", por Roberto Machado, no livro "Microfísica do poder", citado nas Referências.
3 Cartografia ou geopolítica dos discursos à medida que faz uma descrição não apenas histórica, mas também espacializante, exterior e panorâmica de domínios discursivos, mostrando enfrentamentos e relações de força em movimento num campo.
4 O eixo saber-poder-subjetividade diz respeito à estratégia metodológica de Foucault, que coloca em jogos esses três elementos de forma que saber e poder produzem efeitos de subjetividade e o próprio sujeito, mudando de perspectiva ao longo dos seus estudos, privilegiando em diferentes momentos a análise de cada um dos diferentes componentes dessa imbricada relação.
5 Originalmente publicada na revista Ornicar nº 10,em 07/77, como: "Le jeu de Michel Foucault". No Brasil foi publicada por Roberto Machado no livro "Microfísica do poder" - citado nas Referências - com o título: "Sobre a História da sexualidade".
6 Originalmente publicada nos anais do encontro internacional promovido em homenagem a Foucault em Paris, em janeiro de 1988. Está sendo utilizada aqui uma versão em português disponível na Internet, citada nas Referências.
7 Conferência no Círculo de Estudos Arquitetônicos em 14/03/1967, publicada no III vol. dos "Ditos e escritos", citado nas Referências.