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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.26 no.58 São Paulo ago. 2017

 

CONVERSANDO COM A MÍDIA

 

O encontro em mim entre Ove e Blake

   

 

Janice Rechulski

 


 

 

Nasci em um mundo, me desenvolvi em um outro e agora estou neste terceiro, que eu não compreendo, do qual eu não sou parte. (Antônio Cândido citado por Vergueiro, 2017)

Quero compartilhar meu encontro com Ove e Blake, protagonistas dos filmes Um homem chamado Ove e Eu, Daniel Blake. Cada um deles nos leva a entrar em contato com as exigências existenciais que temos que enfrentar diante das perdas, principalmente quando a elas se soma a falta de um refúgio seguro que permita a emergência de um significado para o que foi vivido.

Ove e Blake são dois homens nascidos em uma Europa empobrecida e assolada pela Segunda Guerra Mundial. Ambos desenvolveram muitas habilidades ao longo da vida e, com suas mãos, constroem o mundo e um sentido para o viver. Estão diante de uma bifurcação do tempo em que seus mundos entram em colapso e o acaso entoa uma nota fundamental no curso dos acontecimentos.

Ove acredita que os problemas podem ser resolvidos com ordem, sistemática e ação, bastando, para isso, seguir o manual de instruções. Porém, os acontecimento de sua vida, ao mesmo tempo em que lhe confirmam a validade de seguir a instrução, mostram-lhe que isso não basta. Ele precisa transcender a si mesmo.

Blake pertence ao mundo do justo, do consensual e da solidariedade. Neste mundo cibernético contemporâneo, ele não encontra seu lugar, parece perder sua existência e sua identidade. Daniel Blake protagoniza a desumanização do homem pela máquina burocrática do sistema, que elimina seus direitos ao torná-lo desabilitado diante das novas exigências impostas pela modernização tecnológica.

Ove é um grande lutador. Por mais combalido que se encontre diante das perdas, algo o faz crer que a vida proverá o necessário. Talvez tenha aprendido a viver com pouco. Traz em sua bagagem grandes virtudes. Honestidade, integridade, justiça, solidariedade. Esse substrato interior permite que ele, diante de situações catastróficas, se mostre destemido e impetuoso. Sua fragilidade apenas se insinua.

Blake enfrenta as dificuldades deixando-se esculpir a duras penas. Sente cada golpe da estaca a tocar firmemente sua pele sensível à indiferença e à alienação compulsória. Persistência, flexibilidade, empatia e humildade são os atributos que permitem sua sobrevivência quando as instituições que deveriam fornecer as soluções para seus problemas criam problemas ainda maiores, fazendo de sua vida um pesadelo do qual, para despertar, precisa se transformar.

Ove é um homem grande, forte, rude e, às vezes, truculento com as palavras. Esta rudeza esconde um grande e frágil coração. Um coração dolorido por tantas perdas e lutos que lhe tiram, um a um, o colo de sua mãe, o olhar de seu pai, a segurança de sua casa, a mão de sua esposa, o sonho do filho desejado, o calor dos abraços. Tendo perdido tudo, ainda resta o fio de Ariadne que o vínculo com o trabalho lhe provê. Mas quando este último fio se quebra, recebe a última pá de cal para se enterrar, ainda cheio de vida.

Blake tem os olhos sensíveis. Tendo aprendido em seu ofício a modelar a madeira em belas formas, percebe de longe a opacidade dos olhos quando perdem o viço. Basta olhar no espelho. Ele está caminhando no fio de uma navalha – e como lhe doem os pés! Não pode ficar indiferente ao ver a mesma tortura sendo perpetrada a outrem. Quando se apercebe de que não está só em sua dor, constrói uma ponte através da qual uma nova esperança desponta no horizonte.

Quem conhece o amor sabe que ele habita entre nós e sua presença nos faz sentir vivos. Pode ser raro, randômico, frágil muitas vezes mas, nem por isso, menos marcante quando percebido. Na verdade, o amor está entre as formas mais poderosas de significado na vida e vai muito além do amor romântico propriamente dito. A percepção repentina do amor pode dar a quem o vê a sensação de estar diante de um milagre, dada sua leveza, humildade e generosidade. (PONDÉ, 2016) 

Vejamos, a seguir, de que modo o amor se torna um protagonista nas vidas de Ove e Blake, com efeitos reparadores e amplificadores.

Ove, sempre se apoiando em suas competências para vencer os problemas que a vida lhe impõe, desenvolve um projeto: morrer para, finalmente, reencontrar seu grande amor, o sentido de sua vida. Ao considerar, a princípio, ser este um projeto de fácil execução, não pressagia a presença de vizinhos e inquilinos a apresentar inúmeras solicitações que o fazem abandonar reiteradamente seu projeto pessoal para ajudar na resolução dos problemas que, aos outros, parecem tão difíceis, mas, que, em suas mãos, encontram soluções simples e rápidas. O fio amarrado ao teto, no qual se pendura para tirar a própria vida, acaba se convertendo no fio condutor do amor, enredando Ove à família vizinha e, aos poucos, revitalizando seus vínculos com todo o condomínio onde vive. O que o salva talvez não seja o valor que ele dá à própria vida, mas o valor que dá à vida de cada outro.

Blake encontra as portas fechadas quando é mais premente encontrar um novo caminho. Para continuar, precisa voltar a trabalhar ou aposentar por invalidez, mas os dois caminhos lhe são vetados pela burocracia e pela ditadura da instituição médica. Sua vida está em suspenso. Como imaginar que a máquina sobrepuje as pessoas? Vê-se num mundo sem olhos, sem ouvidos e sem coração, sentindo-se desvalido e impotente. Entra para a massa dos homens invisíveis e inaudíveis, sem vez. A impotência que sente frente à indiferença com que os representantes dos órgãos públicos inviabilizam o acesso a direitos garantidos o faz desmoronar. Sente-se cada vez mais combalido. Num lampejo ofertado pelo acaso, um atalho de luz o faz abraçar a causa de uma mulher que quase desfalece a seus olhos. Ela carrega consigo duas crianças e sua integridade, que está prestes a perder. Tocado por este profundo desamparo, abre seu peito, brada em defesa da honra e muda seu destino. Este encontro permite a ele transcender suas próprias limitações e recuperar a dignidade, superando os entraves que o paralisam. No percurso desse encontro, o afeto e a delicadeza alimentam sua alma e sua vida de esperança.

Ove e Blake tocaram profundamente meu coração e fizeram meus olhos chorar. Quantas vezes, diante do desamparo, duvidamos do amor? Sem ele, como prosseguir? Ao refletir sobre estes dois personagens, penso que eles nos confirmam que os vínculos amorosos podem nos ajudar não apenas a sobreviver às catástrofes como, também, a inaugurar novos aspectos nossos e despertar outros que permaneciam adormecidos. Ove e Blake vivem as catástrofes como oportunidades para transcender. Mas isso só é possível graças aos encontros providos pelo acaso. Eles nos ensinam que podemos encontrar a esperança nos lugares e pessoas mais improváveis. Estejamos atentos.

Lembrete

Se procurar bem você acaba encontrando.
Não a explicação (duvidosa) da vida,
Mas a poesia (inexplicável) da vida.
Carlos Drummond de Andrade (2002)


Referências

Drumond, C. D. A. (2002). Poesia completa, São Paulo: Nova Aguilar.         [ Links ]

Holm, H. (2015). Um homem chamado Ove (Filme), roteiro adaptado do livro de Frederik Backman. Suécia: Tre Vänner Produktion AB.         [ Links ]

Loach, K. (Dir.) & Rebecca O'Brien (Prod.). (2016). Eu, Daniel Blake (Filme/DVD). Reino Unido, França e Bélgica: European Film Awards.         [ Links ]

Pondé, L. F. (2017, 27 de março). Delicadeza é a virtude necessária para a percepção do amor no mundo. Folha de Sao Paulo. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/03/1869990-delicadeza-e-a-virtude-necessaria-para-a-percepcao-do-amor-no-mundo.shtml        [ Links ]

Vergueiro, M. C. (2017, 05 de maio). O mundo do meu avô era o meu preferido, rememora neta de Antônio Cândido. Maria Clara (Ilustrada), Folha de São Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/05/1885549-o-mundo-do-meu-avo-era-o-meu-preferido-rememora-neta-de-candido.shtml.         [ Links ]

I Janice Rechulski, Psicóloga, terapeuta individual, de casais e famílias, sócia-fundadora e formadora do Instituto Sistemas Humanos.

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