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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.26 no.59 São Paulo dez. 2017
ECOS
Obesidade, família e transgeracionalidade: diálogos integrativos
Paulo Fernando Pereira de SouzaI
A revista Nova Perspectiva Sistêmica de agosto trouxe diversos artigos que chamam atenção pela profundidade e relevância. Dentre eles, escolhi comentar “Obesidade, Família e Transgeracionalidade: uma revisão Integrativa da Literatura”, (Coradini, Moré, & Scherer, 2017) justamente por ser uma revisão integrativa, um trabalho de fôlego que com justiça deve passar a ser citado como referência nas pesquisas sobre obesidade e família.
As autoras mencionam a escassez de estudos que abordem especificamente a relação entre histórico de vínculos afetivos familiares e o desenvolvimento da obesidade. Isso, de imediato, revela quão pouco se publica em terapia familiar ou com base em seus referenciais teóricos. Acreditamos que a terapia familiar pode ser intervenção clínica efetiva e capaz de facilitar a coordenação de diversos saberes e ações num mesmo movimento de mudança, mas se não houver produção científica na direção de comprovar o potencial da intervenção familiar, correremos o risco da prática da Terapia Familiar vir a ser considerada como uma intervenção alternativa, impossibilitada de ser remunerada pelos sistemas privados de saúde e excluída das políticas públicas.
Há mais de uma década assisti a um atendimento ao vivo de Maurizio Andolfi no qual ele pedia a uma mulher obesa que devolvesse os quilos de sofrimento e tristeza a cada um dos membros de sua família representados no genograma. Um belo movimento clínico, quase um roteiro para se pensar na pesquisa da relação entre obesidade, família e transgeracionalidade. Infelizmente, um roteiro que ainda não foi suficientemente explorado em pesquisas.
Quando pensamos na obesidade infantil, a lacuna é gritante. Não parece haver possibilidade de obesidade infantil sem participação da família, seja na construção do problema, seja nas estratégias para seu enfrentamento.
Visando à melhora da produção científica no campo, precisamos também questionar conceitos e instrumentos iniciando pela própria definição de família: em que medida estudos mãe-bebê, por exemplo, podem ser entendidos e classificados como estudos de família? O mesmo se pode questionar a respeito de casais ou irmãos. Entendemos a família como um sistema aberto? Como se define sua estrutura?
Conceitos como o Ciclo de Vida Familiar se mostram tão problemáticos nas adaptações a contextos sociais e culturais diversos que deveriam ser consensualmente evitados e substituídos, por exemplo, por trajetória familiar ou história familiar.
O tão difundido uso do genograma, poderoso instrumento clínico, pode ser questionado em relação à sua classificação como instrumento de pesquisa, porque embora seja um forte instrumento como elemento de composição de entrevistas semiestruturadas, é frágil instrumento de pesquisa da dinâmica familiar transgeracional. Basta pensar nas mudanças de composição familiar (além das histórias e compreensões) observadas na realização de genogramas por pessoas em diferentes momentos, como, por exemplo, alunos em início de formação em terapia familiar e ao final. Diferenças de genogramas feitos por irmãos ou primos também deveriam nos deixar alertas.
A rigor, o genograma nos conta da percepção de uma pessoa ou de um grupo da história da família, não exatamente da dinâmica familiar ou da própria família. Para atingirmos a dinâmica com maior propriedade, outros instrumentos deveriam ser utilizados, dentre eles, a própria entrevista familiar trigeracional.
Entendo também que precisamos usar o arsenal das teorias críticas para questionar nossos resultados exemplificando-os com o conceito de gênero. Para tanto, apoiar-me-ei em Connel (2000), que propõe que se pense em quatro dimensões relativas às relações de gênero, a saber:
1. relações de poder: o principal eixo do poder no sistema de gênero americano/europeu contemporâneo é a subordinação geral das mulheres e a dominação dos homens, estrutura chamada de patriarcado;
2. relações de produção: a divisão do trabalho se baseia no gênero; deve-se prestar atenção às consequências econômicas da divisão de gênero do trabalho e ao dividendo acumulado pelos homens resultante da divisão desigual dos produtos do trabalho social;
3. cathexis: a ligação emocional, a escolha de um objeto ao qual se dirigem e se ligam os desejos sexuais e afetivos. As formas pelas quais os desejos se configuram são um aspecto da ordem de gênero;
4. simbolismo: as qualidades valoradas e desejadas pela sociedade associadas aos homens e a associação oposta de valores indesejados às mulheres, bem como a construção do masculino como oposto ao feminino em pares dicotômicos. (Connel, 2000).
Connel (1995) considera que o gênero é uma maneira de estruturar a prática social em geral e não um tipo especial de prática, então, ele fica inevitavelmente imbricado com outras questões sociais, interagindo com questões políticas científicas, econômicas, de raça, classe ou nacionalidade. Torna-se fundamental pensar como cada interação se dá.
As configurações de práticas são sempre históricas: o fazer e refazer é um processo político que afeta o balanço de interesses na sociedade e a direção da mudança social. Não há neutralidade possível. Assim, é relevante pensar se os estudos científicos, em nosso caso particular, estudos sobre famílias, consideram as relações de poder e dominação entre homens e mulheres.
Na chamada divisão de gênero do trabalho (divisão sexual do trabalho também é uma denominação utilizada) o homem se torna referência para o espaço público e o provimento, enquanto a mulher tem a imagem ligada ao espaço doméstico e aos cuidados com a família. Essa divisão é elemento importante no sistema de dominação sobre as mulheres (Connel, 1995) e tem sido denunciada e atacada em diversas frentes.
Como revela Martins (2004), sustentáculos da divisão de gênero do trabalho, o “essencialismo” – construção da maternidade segundo aspectos biológicos – e o universalismo – ideia de que toda mulher é mãe real ou potencial, mãe biológica ou mãe na capacidade de cuidar de outros – produziram um discurso que ignora os aspectos contingenciais de a mulher ser a principal responsável pelos cuidados com a família, em especial com as crianças.
Derrubar os argumentos biológicos não faz menos consolidado ou mais móvel o sistema de gênero, ao contrário, ele apresenta uma enorme capacidade de permanência e reprodução, como aponta Bourdieu (1999).
Tendo em vista esses questionamentos, devemos nos manter críticos e atentos especialmente quando o termo “mãe” é usado como sinônimo de cuidador primário ou quando “mãe” equivale aos responsáveis ou mesmo à própria família (Souza, 2009). A responsabilização e culpabilização das mães são mantenedoras da atual ordem de gênero e, no mínimo, revelam uma visão estreita de dinâmica familiar.
Referências
Bourdieu, P. (1999). A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. [ Links ]
Connel, R. W. (1995). Masculinities. Berkeley; Los Angeles: University of California Press.
Connel, R. W. (2000). The men and the boys. Berkeley; Los Angeles: University of California Press.
Coradini, A. O., Moré, C. L. O. O, & D’Ávila Scherer, A. (2017). Obesidade, família e transgeracionalidade: uma revisão integrativa da literatura. Nova Perspectiva Sistêmica, 26(58), 17-37.
Martins, A. P. V. (2004). Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Fiocruz. [ Links ]
Souza, P. F. P. (2009). Homens invisíveis: identidades de homens atendidos pelas políticas sociais de atenção às famílias em situação de vulnerabilidade social. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP.
I Psicanalista, Terapeuta Familiar, Mestre em Psicologia Social, Recife, Brasil. E-mail: pfpsminas@uol.com.br