Services on Demand
article
Indicators
Share
Nova Perspectiva Sistêmica
Print version ISSN 0104-7841On-line version ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.27 no.61 São Paulo May/Aug. 2018
ARTIGOS
Modelo bioecológico do desenvolvimento humano na intervenção psicossocial com adolescentes em conflito com a lei
Bioecological model of human development in psychosocial intervention with adolescents in conflict with the law
Mariane Comelli dos SantosI, Elisangela BöingII
I Prefeitura Municipal de Florianópolis, SC, Brasil.
II Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
RESUMO
Em relação ao trabalho com adolescentes em conflito com a lei no Brasil, têm-se as medidas socioeducativas como estratégias para a sua responsabilização e proteção social. Por se constituírem como um campo de atuação para psicólogos, o presente estudo objetivou articular conceitos e elementos teóricos do Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano (MBDH) às demandas de intervenção do psicólogo e sua equipe no Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), visando ao desenvolvimento de reflexões teórico-práticas que contribuam com a assistência. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, utilizando o método documental e articulação teórico-prática, baseada no MBDH. Os resultados apontam que o MBDH contribui com a compreensão do desenvolvimento dos adolescentes em conflito com a lei, bem como na reflexão sobre as práticas profissionais, em especial, do psicólogo, no contexto das medidas socioeducativas em meio aberto.
Palavras-chave: desenvolvimento humano; adolescência; medidas socioeducativas.
ABSTRACT
Regarding working with adolescents in conflict with the law in Brazil, the Socio Educational System is a strategy for their accountability and social protection. As also constitute as a workfield for psychologists, this study aims to articulate concepts and theoretical elements of Bioecological Model Human Development (BMHD) to the psychologist and his team interventions demands at the Social Protection Service to Adolescents attended in the SocioEducational System (Assisted Freedom and Provision of Services to the Community), aiming at the development of theoretical-practical reflections that contribute to the assistance. This is a qualitative research, using the documentary method and a theoretical and practical articulation based on BMHD. The results show that the BMHD contributes in understanding the development of adolescents in conflict with the law, as well as reflection on professional practices, in particular the psychologist in the context of Socio Educational System in an open environment.
Key Words: human development; adolescence; socioeducational measures.
INTRODUÇÃO
A temática do adolescente em conflito com a lei tem ganhado destaque com as crescentes discussões acerca da redução da maioridade penal no Brasil. Desse modo, reflexões sobre o assunto têm se mostrado pertinentes não apenas para fundamentar posicionamentos, mas, principalmente, para embasar políticas públicas destinadas a esses adolescentes e suas famílias.
O estigma que envolve o adolescente em conflito com a lei pode, muitas vezes, dificultar a percepção deste como um ser humano em desenvolvimento e sujeito de direitos. Assim, reconhecer no autor de ato infracional um cidadão parece ser, para muitos, algo impróprio e sem sentido (Volpi, 2010). Contudo, existem políticas públicas destinadas a essa temática que tentam congregar os interesses da segurança pública e a defesa e garantia dos direitos desses adolescentes.
No que se refere ao tema do adolescente em conflito com a lei, as políticas públicas destinadas a esse fim são pautadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), sendo este último um subsistema dentro do Sistema de Garantia de Direitos (SGD). A lei do SINASE (Lei Nº 12.594/2012) e o ECA (Lei nº 8069/1990) reconhecem o adolescente como uma pessoa em desenvolvimento, sujeito de direitos e destinatário de proteção integral. Ao mesmo tempo, também é considerado como alguém que possui responsabilidades frente à situação de prática de ato infracional.
Como forma de responsabilizá-lo pelo ato e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe proteção e garantia de direitos, são aplicadas as medidas socioeducativas. Essas são um conjunto de ações que deve oportunizar educação formal, profissionalização, saúde, lazer, socialização e demais direitos aos adolescentes que cometeram ato infracional. São, portanto, uma condição especial de acesso a todos os direitos sociais, políticos e civis (Volpi, 2010). O ECA (Lei nº 8069/1990) descreve seis medidas socioeducativas: Advertência, Obrigação de Reparar o Dano, Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), Liberdade Assistida (LA), Semiliberdade e Internação. O presente estudo abordará trabalho com as medidas de PSC e LA, que são chamadas medidas em meio aberto. Segundo a referida lei, a PSC consiste na realização de tarefas gratuitas junto a instituições de interesse público. Já a LA consiste em um acompanhamento, por um período mínimo de seis meses, por pessoa ou equipe capacitada, de modo a promover a inclusão social do adolescente e sua família.
Assim, os Serviços de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas de LA e PSC, regulamentados pelo SINASE, como parte do SGD, são serviços oferecidos a partir de uma complexa articulação entre o Sistema de Justiça, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Sistema Único de Saúde (SUS), o Sistema de Educação e o Sistema de Segurança Pública (CFP, 2012). Essa política também se constitui como um campo de atuação para profissionais da área da Psicologia.
Foi pensando na intervenção dos psicólogos no referido Serviço, especificamente em sua atuação no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que o presente estudo foi idealizado. O trabalho do psicólogo nas medidas socioeducativas contribui para auxiliar no processo de reflexão do adolescente e sua família no que se refere à situação de ato infracional, sempre partindo de suas experiências e referenciais, seus objetivos de vida e seus projetos de futuro. Também se baseia em uma compreensão contextualizada do ato infracional, considerando questões sociais, culturais e econômicas, bem como os vínculos familiares e comunitários (CFP, 2016). Para isso, é importante que o profissional seja capaz de compreender o que significa ser sujeito em desenvolvimento em uma determinada realidade e como se dá esse desenvolvimento em um dado contexto familiar, social e histórico, possibilitando intervenções profissionais mais abrangentes.
Na Psicologia, há muitas teorias sobre o desenvolvimento e todas trazem contribuições importantes para a compreensão do fenômeno. Contudo, tendo em vista o caráter psicossocial do trabalho dos psicólogos nos Serviços de Medidas Socioeducativas em meio aberto, o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano, de Urie Bronfenbrenner (Bronfenbrenner, 2011), traz uma contribuição especial por oferecer um aporte teórico e metodológico para a compreensão do desenvolvimento como um processo complexo.
Bronfenbrenner situa o desenvolvimento humano no contexto, não apenas familiar, mas também histórico e social, criticando os métodos “artificiais” utilizados até então para o estudo do desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1996). Também é notória a ênfase demonstrada pelo autor na articulação entre teoria e prática, fato que reforça a importância de suas contribuições para a reflexão sobre a prática psicológica no contexto das medidas socioeducativas.
Por fim, dentre as contribuições de Bronfenbrenner, destaca-se a constante preocupação do autor com a articulação entre a ciência e as políticas públicas. Para ele, aqueles que planejam as políticas precisam utilizar-se da ciência e vice-versa. E, nesse sentido, o autor revisou e aprimorou constantemente a sua teoria visando à sua aplicação para melhorar a qualidade de vida dos seres humanos, reconhecendo nas políticas públicas poderosos instrumentos para esse fim (Bronfenbrenner, 2011).
Desse modo, o presente estudo se justifica pela necessidade de buscar embasamentos teóricos apropriados para a compreensão do processo de desenvolvimento de adolescentes em conflito com a lei, de modo a aprimorar as possibilidades de atuação dos psicólogos nessa política pública. A convergência entre as ideias sobre o desenvolvimento humano concebidas por Bronfenbrenner e a política de Assistência Social justifica a articulação proposta entre o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano e a prática profissional na área das medidas socioeducativas. Dessa forma, espera-se contribuir com o aperfeiçoamento do trabalho dos profissionais que atuam nessa área, bem como honrar o desejo do autor de que seus estudos servissem como base para o planejamento e execução de políticas públicas.
É importante ressaltar que o presente estudo não pretende fazer uma revisão completa da teoria de Bronfenbrenner, tendo em vista que outros estudos já se propuseram a este fim (Benetti, Vieira, Crepaldi & Schneider, 2013; Cecconello & Koller, 2003). O que se pretende, por meio desse trabalho, é discutir alguns aspectos da teoria que possam ser aplicáveis ao trabalho do psicólogo com as medidas socioeducativas em meio aberto.
Diante disso, o presente estudo objetivou articular conceitos e elementos teóricos do Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano às demandas de intervenção do psicólogo e sua equipe no Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), visando ao desenvolvimento de reflexões teórico-práticas que contribuam com a assistência. Para tanto, foi realizada uma caracterização da proposta de intervenção do serviço em questão com os adolescentes e suas famílias, identificando os desafios da prática profissional do psicólogo nesse serviço. Além disso, foram identificados aspectos do Modelo Bioecológico do Desenvolvimento que se aplicam à compreensão do desenvolvimento dos adolescentes autores de ato infracional e à intervenção profissional nesse serviço.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
ECA, SINASE e Serviço de Proteção Social Especial ao Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa de LA e PSC
O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 1990, dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Em seu Título III, trata da prática de ato infracional, considerado como conduta descrita como crime ou contravenção penal. Também determina que os indivíduos menores de 18 anos são considerados penalmente inimputáveis, estando sujeitos à aplicação de medidas socioeducativas em situações de prática de ato infracional. As medidas socioeducativas existentes são: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semiliberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII – medidas de proteção – descritas no art. 101.
De acordo com a Resolução no 119/2006, o adolescente deve ser alvo de um conjunto de ações socioeducativas que colaborem com a sua formação cidadã, auxiliando-o a se relacionar melhor consigo mesmo e com os outros e a se afastar da prática de atos infracionais. A medida socioeducativa deve auxiliar no desenvolvimento de capacidades decisórias relacionadas ao interesse próprio e ao bem comum, potencializando competências pessoais, relacionais, cognitivas e produtivas (Resolução no 119/2006).
O presente estudo trará um enfoque nas medidas III e IV, que são as medidas em meio aberto. De acordo com o ECA, a Prestação de Serviços à Comunidade consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos, bem como em programas comunitários ou governamentais. No que se refere à medida de Liberdade Assistida, o objetivo é prestar um acompanhamento psicossocial ao adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social, bem como supervisionar a frequência e o aproveitamento escolar do adolescente, promover a profissionalização do mesmo e sua inserção no mercado de trabalho (Lei nº 8069/1990).
Já a Lei nº 12.594, de 2012, institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que regulamenta a execução dessas medidas socioeducativas. Apresenta um conjunto de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento ao adolescente em conflito com a lei. Nesse documento, são elencados os principais objetivos das medidas socioeducativas: I - a responsabilização do adolescente no que se refere ao ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação; II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais; e III - a desaprovação da conduta infracional (Lei no. 12594/2012).
Tendo em vista essas regulamentações, o Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas de LA e PSC situa-se no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), e é entendido como um Serviço de Proteção Social Especial de Média Complexidade dentro da política do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Essa classificação se deve pelo fato de o referido Serviço atender a situações de risco pessoal ou social por ameaça ou violação de direitos, mas sem rompimento de vínculos familiares e comunitários, demandando ações especializadas. Esse serviço apresenta os seguintes objetivos: realizar acompanhamento psicossocial dos adolescentes que praticaram ato infracional; criar condições para a construção/reconstrução de projetos de vida que visem à ruptura com os atos infracionais; estabelecer contratos com o adolescente que regularão o processo de execução da Medida Socioeducativa; auxiliar no desenvolvimento da autoconfiança e da autonomia; possibilitar acessos e oportunidades para a ampliação do universo informacional e cultural, bem como a descoberta e desenvolvimento de habilidades; fortalecer a convivência familiar e comunitária (CNAS, 2014).
Diante disso, tem-se o psicólogo como um dos componentes da equipe técnica que acompanha os adolescentes, juntamente com a figura do assistente social e, em alguns casos, do advogado. O trabalho do psicólogo envolve, portanto, a abordagem individual do adolescente quanto ao exercício de seus direitos e responsabilidades, bem como na elaboração e execução de ações coletivas que promovam transformação das instituições e mentalidades em relação ao estereótipo do adolescente em conflito com a lei (CFP, 2012).
Outra função importante da equipe técnica nesse serviço é a elaboração de documentos (relatórios e planos individuais de atendimento) sobre a situação psicossocial do adolescente e sua família e sobre o andamento da medida socioeducativa. Esses documentos subsidiarão as decisões jurídicas referentes aos processos judiciais de cada adolescente (CFP, 2012).
Para o bom andamento da medida socioeducativa e para o desenvolvimento de documentos consistentes e elucidativos é necessário que o profissional construa uma visão completa sobre cada caso, abordando a maior quantidade possível de aspectos que cercam a vida de cada adolescente (família, escola, trabalho, amigos, comunidade, relação consigo mesmo, espiritualidade etc.). Diante desse desafio, acredita-se que o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano pode auxiliar o psicólogo e demais colegas de equipe na construção desse panorama, bem como fundamentar intervenções psicossociais condizentes com os objetivos das medidas socioeducativas.
Concepção de Desenvolvimento Humano e Adolescência para Bronfenbrenner
Para Bronfenbrenner (2011), o desenvolvimento deve ser entendido como um
fenômeno de continuidade e de mudança das características biopsicológicas dos seres humanos como indivíduos e grupos. Esse fenômeno se estende ao longo do ciclo de vida humano por meio das sucessivas gerações e ao longo do tempo histórico, tanto passado, quanto presente (p. 43).
O caráter contínuo de reorganização do sujeito ao longo do seu desenvolvimento ocorre em diferentes níveis, incluindo ações, percepções, atividades e interações da pessoa com seus contextos. Assim, o desenvolvimento é estimulado ou inibido de acordo com o grau de interação do sujeito com as pessoas, bem como pela sua participação e engajamento em diferentes contextos. Ou seja, o desenvolvimento depende, prioritariamente, do equilíbrio entre o indivíduo e seus contextos ambientais, que podem promover ou limitar mudanças (Sifuentes, Dessen, & Oliveira, 2007).
Considerando, especificamente, o desenvolvimento humano no período da adolescência, o modelo proposto e a concepção de desenvolvimento que o embasa, auxilia na investigação de como se dá essa influência recíproca entre o adolescente e o seu contexto. O sujeito que vive a fase da adolescência é compreendido como um ser de características próprias (individuais, psicológicas e biológicas) e com uma forma peculiar de lidar com suas vivências. É entendido como um sujeito ativo que é produto e, ao mesmo tempo, produtor do seu desenvolvimento. Estes conhecimentos contribuem para a superação da visão da adolescência como um período turbulento e instável, de modo a consolidar uma concepção mais positiva do desenvolvimento do adolescente (Senna & Dessen, 2012).
Na adolescência, considera-se que a família ainda é o microssistema principal do sujeito. Contudo, o funcionamento desse microssistema sofre influências de outros contextos em que os familiares participam. Na medida em que o adolescente passa a participar de outros microssistemas e a ampliar sua rede social, há a formação de novas relações e influências entre a família, o adolescente e os demais contextos (Senna & Dessen, 2012).
A definição de desenvolvimento proposta por Bronfenbrenner vai ao encontro da concepção de adolescente enquanto sujeito em desenvolvimento apresentada pelo ECA, que fundamenta a concepção de medidas socioeducativas. Ou seja, sendo a mudança e a influência mútua entre sujeito e ambiente condições inerentes ao processo de desenvolvimento humano, as possibilidades de mudança e a corresponsabilização dos microssistemas em que o adolescente está inserido devem ser consideradas no momento de julgamento de um ato infracional praticado por um adolescente. E essas possibilidades podem ser concretizadas por meio das medidas socioeducativas.
O Modelo PPCT – Pessoa, Processo, Contexto e Tempo
A partir da compreensão do desenvolvimento humano como um processo complexo e que acontece ao longo de todo o ciclo de vida, Bronfenbrenner destaca, em sua Teoria Bioecológica, que as diferentes formas de interação das pessoas não se devem apenas ao contexto em que se desenvolveram, mas também ao processo, que é definido como a relação entre o ambiente e as características da pessoa em desenvolvimento. Assim, o Modelo Bioecológico propõe que o desenvolvimento humano seja compreendido pela interação entre quatro núcleos: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo (Cecconello & Koller, 2003).
Essas quatro dimensões não devem ser entendidas como categorias pré-definidas, mas como uma forma de delimitar focos de compreensão do processo de desenvolvimento. No caso das pesquisas em desenvolvimento humano, o modelo PPCT serve como direções e sentidos para onde o pesquisador deve lançar o “olhar” holístico e sistêmico, procurando estabelecer interações significativas com os indivíduos que integram os ambientes a serem estudados (Silveira, Garcia, Pietro, & Yunes, 2009).
O processo refere-se à interação recíproca progressivamente mais complexa entre um ser em desenvolvimento e as pessoas, objetos e símbolos presentes no ambiente ao seu redor. São também chamados de processos proximais, que, segundo Bronfenbrenner (2011), são a força motriz para o desenvolvimento. Podem gerar dois tipos de efeitos: competência - desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e capacidade de conduzir os próprios comportamentos; ou disfunção - dificuldade em manter o controle e a integração do comportamento (Morais & Koller, 2005).
No que se refere aos atributos de pessoa, tem-se as características determinadas biopsicologicamente e aquelas construídas na interação da pessoa com o ambiente. As características da pessoa são entendidas, simultaneamente, como produtoras e como produtos do desenvolvimento e são divididas em três núcleos básicos: as características de disposição, os recursos biopsicológicos e as de demanda. As características de disposição são aquelas capazes de promover o desenvolvimento ou retardá-lo, como a curiosidade, responsividade, impulsividade etc. Os recursos biopsicológicos envolvem deficiências ou atributos psicológicos, como defeitos genéticos ou capacidades e habilidades. Por fim, temos as características de demanda, que se referem a atributos, inatos ou não, que são capazes de estimular ou desencorajar reações do ambiente social, como as características de gênero, etnia, temperamento e aparência (Bronfenbrenner & Morris, 1998 como citado em Cecconello & Koller, 2003). De forma geral, as características de pessoa são atributos que facilitam ou dificultam o estabelecimento e o engajamento nas relações (nos processos proximais).
O contexto é caracterizado por qualquer evento ou condição fora do organismo que é capaz de influenciar ou ser influenciado pela pessoa em desenvolvimento (Benetti, Vieira, Crepaldi, & Schneider, 2013). Esses eventos ou condições são considerados sistemas que são classificados por Bronfenbrenner (1996) como: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. De acordo com o autor, esses sistemas são organizados como estruturas concêntricas que compõem o meio ambiente ecológico.
O microssistema se refere aos ambientes que a pessoa em desenvolvimento frequenta e às relações que ela estabelece face a face (Bronfenbrenner, 1996). No caso dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, os microssistemas dos quais o adolescente faz parte podem incluir a família, o grupo de amigos, o serviço de proteção pelo qual ele é atendido etc.
Já o mesossistema é o conjunto de microssistemas que a pessoa possui e as inter-relações constituídas entre eles (Bronfenbrenner, 1996). A relação estabelecida entre a família do adolescente e o serviço de proteção podem fazer parte do mesossistema do adolescente, bem como a relação entre a escola em que ele estuda e o serviço de saúde pelo qual é atendido.
No exossistema, encontram-se os ambientes em que a pessoa em desenvolvimento não participa diretamente, mas que acarretam influências indiretas em sua vida (Bronfenbrenner, 1996), como os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que são instâncias de deliberação municipais que controlam e promovem ações para o bem-estar social das crianças e adolescentes. No caso dos CMDCAs, mesmo que o adolescente não participe diretamente desses espaços, as decisões lá tomadas e as ações executadas podem repercutir em mudanças em seu contexto.
Por fim, o macrossistema se refere aos padrões globais que envolvem as ideologias, crenças e valores da sociedade em que vive a pessoa em desenvolvimento (Bronfenbrenner, 1996). No caso dos adolescentes, o estigma do “menor infrator” e as políticas públicas voltadas para essa temática são exemplos de componentes do macrossistema.
Por fim, tem-se o tempo como o quarto fator influente no processo de desenvolvimento, e é o que permite examinar a influência das mudanças e continuidades que ocorrem ao longo do ciclo vital para o desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1986, como citado em Cecconello & Koller, 2003). Nessa concepção, o tempo refere-se não somente à idade cronológica do indivíduo, mas também ao tempo social e histórico (Sifuentes, Dessen, & Oliveira, 2007).
Cada um dos componentes do modelo PPCT possui uma função primordial e deve ser compreendido a partir da integração e das relações funcionais com os demais. Considerando-se esses quatro componentes, o conceito de desenvolvimento se torna mais sistêmico e plural (Sifuentes, Dessen, & Oliveira, 2007).
Relações de Afeto, Reciprocidade e Equilíbrio de Poder
Bronfenbrenner (1996) define que “sempre que uma pessoa em um ambiente presta atenção às atividades de outra pessoa, ou delas participa, existe uma relação” (p. 46). Desse modo, segundo o autor, a presença de uma relação em ambas as direções define uma díade. A díade constitui um contexto crítico do desenvolvimento e tem função de bloco construtor básico do microssistema, possibilitando a formação de estruturas interpessoais maiores.
O autor apresenta, ainda, uma diferenciação entre díade observacional, díade de atividade conjunta e díade primária. A primeira ocorre quando um dos componentes observa e aprende a atividade do outro, que, por sua vez, reconhece o interesse demonstrado pelo observador. A segunda é aquela em que os dois participantes se unem na realização de uma atividade. Por fim, a terceira refere-se a quando a relação continua a existir mesmo quando os componentes da díade não se encontram juntos, devido ao vínculo formado entre eles (Bronfenbrenner, 1996).
Nas relações diádicas, e, em especial, nas díades de atividade conjunta, Bronfenbrenner (1996) identifica três propriedades fundamentais: reciprocidade, equilíbrio de poder e relação afetiva. A reciprocidade se refere à influência mútua entre os comportamentos dos componentes da díade. De acordo com o autor, o feedback mútuo entre as partes age como motivador para perseverarem na atividade e engajarem-se em padrões de interação progressivamente mais complexos.
Já no que se refere ao equilíbrio de poder, Bronfenbrenner (1996) aponta que as díades podem apresentar diferenças entre seus componentes, sendo que um possui mais influência do que o outro. Contudo, isso não significa que esse poder de influência não possa oscilar entre os componentes no decorrer das interações. Para o autor, a situação ideal para aprendizagem e desenvolvimento é aquela em que o equilíbrio de poder gradualmente se altera em favor da pessoa em desenvolvimento, ou seja, quando esta recebe uma crescente oportunidade de exercer controle sobre a situação.
Por fim, no que se refere à relação afetiva, Bronfenbrenner (1996) aponta que, conforme os participantes da díade se envolvem nas interações, é provável que desenvolvam sentimentos mais acentuados em relação um ao outro. Esses sentimentos podem ser reciprocamente positivos, negativos ou assimétricos. Para o autor, na medida em que os sentimentos entre as partes são positivos e mútuos, maior é a probabilidade de ocorrência de processos desenvolvimentais.
MÉTODO
O presente estudo caracteriza-se como uma pesquisa de abordagem qualitativa, utilizando o método documental e articulação teórico-prática, baseada no Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano, de Urie Bronfenbrenner.
Para isso, o presente estudo foi dividido em duas etapas. Na primeira etapa do estudo, realizou-se a análise documental das “Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogos em Programas de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto”, publicadas pelo CFP (2012), de modo a identificar os desafios do trabalho com as medidas socioeducativas. Para tanto, também se contou com a descrição dos desafios encontrados na prática profissional de uma das autoras no serviço em questão.
Na segunda etapa, realizou-se a articulação entre alguns conceitos do Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano com a compreensão do processo de desenvolvimento dos adolescentes atendidos no programa e, consequentemente, com as práticas do psicólogo e sua equipe, no contexto das medidas socioeducativas em meio aberto.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Desafios do Trabalho nas Medidas Socioeducativas
Como em qualquer área de atuação para o psicólogo, o trabalho com as medidas socioeducativas impõe uma série de desafios ao profissional. Uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2012), da qual resultou a publicação “Referência Técnica para Atuação de Psicólogas(os) em Programas de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto”, apontou cinco grandes desafios ao trabalho da Psicologia nesse contexto. A pesquisa ouviu psicólogos que atuam na área em diferentes localidades do país.
O primeiro desafio apontado é a potencialidade da medida em meio aberto de evitar futuras medidas de privação de liberdade. Para se chegar a este fim, são necessários o conhecimento da legislação pertinente e a atuação profissional de acordo com seus parâmetros, além da compreensão das características peculiares da adolescência como etapa do ciclo de vida e da clareza do objetivo de responsabilização do adolescente pelo ato infracional praticado. Por fim, destaca-se o fato de que há questões que extrapolam o alcance de resolução com o adolescente e sua família, uma vez que envolvem outras esferas de intervenções, inclusive, políticas (CFP, 2012). Isso significa que a eficácia da medida socioeducativa não depende apenas da equipe técnica, do adolescente e sua família, pois envolve também a rede pública de atendimento e as políticas públicas relacionadas ao atendimento socioeducativo. A inter-relação entre esses diversos sistemas constitui um desafio para a efetivação das medidas socioeducativas.
O segundo desafio registrado pela pesquisa se refere à adoção de parâmetros nacionais do SINASE que especifiquem esferas de atuação dos profissionais envolvidos, sem perder de vista a singularidade de cada contexto sociodemográfico, de cada profissional e de cada adolescente. Com isso, garante-se que todas as práticas profissionais nesse âmbito sejam pautadas pelos pressupostos básicos da garantia de direitos e promoção da cidadania (CFP, 2012).
Outro desafio identificado pela pesquisa do CFP (2012) é a relação estabelecida entre a equipe técnica e a família do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa. O limiar entre corresponsabilização e culpabilização, muitas vezes, pode ser tênue. Para que o profissional atue mais na perspectiva da corresponsabilização, é necessário que compreenda a prática de ato infracional como um fenômeno multideterminado, ou seja, perceba que a família possui sua parcela de responsabilidade frente à situação, mas não é a “culpada” e nem o único sistema no entorno do adolescente que deve trabalhar para produzir mudanças.
O quarto desafio refere-se à elaboração de um Plano Individual de Atendimento, que é um documento construído conjuntamente entre o adolescente, a equipe técnica e a família, e que irá nortear a execução da MSE. Esse documento deve conter informações sobre o contexto de vida do adolescente atendido, bem como objetivos para o acompanhamento socioeducativo do mesmo. O desafio apontado pela pesquisa se refere à construção desse documento com objetivos que sejam coerentes com os desejos do adolescente, condizentes com suas possibilidades – individuais, familiares e da rede de atendimento da região, e possíveis dentro do tempo determinado para a MSE (CFP, 2012).
Por fim, o quinto desafio relaciona-se ao tempo de cumprimento das MSEs. Realizar todo esse trabalho e enfrentar todos esses desafios dentro de um limite de tempo estabelecido pelo poder judiciário é uma tarefa necessária à equipe técnica. Portanto, embora não se possa perder de vista a complexidade da interação dos sistemas que fazem parte da vida de cada adolescente atendido, o foco do trabalho é a prática de ato infracional (CFP, 2012).
No que se refere à prática profissional de uma das autoras do presente estudo, é possível apontar, além dos desafios já indicados pela pesquisa do CFP (2012), outros dois desafios importantes para os psicólogos.
Um deles é a separação entre o poder judiciário e o Serviço de Proteção Social Especial ao Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa de LA e PSC. Embora esses sejam órgãos distintos no que se refere à gestão, financiamento e finalidade, suas funções são complementares no que se refere às situações de adolescentes em conflito com a lei. Enquanto o primeiro tem a função de apuração do ato infracional e das decisões sobre suas consequências para o adolescente que o praticou, o segundo executa essas medidas e, por meio de relatórios, subsidia as seguintes decisões judiciais referentes a esses processos. Contudo, para o adolescente e sua família, essa diferenciação entre um serviço e outro, geralmente, não é evidente e gera desconfianças por parte dos mesmos sobre quais demandas podem ser trazidas à equipe, sem que isso cause consequências ao processo judicial. Logo, cabe à equipe das medidas socioeducativas construir um vínculo de confiança com o adolescente e sua família, de modo a fazê-los compreender essa distinção e, consequentemente, deixá-los mais seguros para apresentarem suas demandas.
Outro desafio encontrado na prática é a disseminação de uma compreensão mais ampliada sobre a prática de atos infracionais por adolescentes. Tendo em vista a necessidade de um trabalho articulado com outros setores, como saúde, educação e cultura, faz-se necessário que o psicólogo e sua equipe trabalhem para desconstruir concepções baseadas no senso comum sobre o adolescente em conflito com a lei, de modo a “preparar o terreno” antes do planejamento de uma intervenção articulada. Assim, antes de estabelecer essa articulação com outros setores, é necessário ter clareza sobre qual é a visão daqueles profissionais envolvidos sobre o adolescente a ser atendido, de modo a evitar preconceitos e discriminações que possam dificultar o alcance dos objetivos da intervenção.
O Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano e suas Contribuições para o Trabalho nas Medidas Socioeducativas em Meio Aberto
Retomando o modelo PPCT e, mais especificamente, pensando nos atributos de processo, é possível pensar que a medida socioeducativa pode atuar como promotora de processos proximais no desenvolvimento dos adolescentes atendidos, na medida em que suscita novas interações do adolescente com pessoas (outros adolescentes, orientadores de PSC, equipe técnica de atendimento socioeducativo, professores, profissionais de saúde), ambientes (escola, trabalho, ambientes de profissionalização, de lazer, de cultura), situações (entrevistas de emprego, processos seletivos, confecção de documentos) etc. Com isso, espera-se que essas interações progressivamente mais complexas auxiliem no desenvolvimento de novas competências por parte do adolescente atendido. Conforme Silveira et al. (2009), tanto a pesquisa, quanto a intervenção, a partir desse modelo, tornam-se oportunidades de interações efetivas que possuem o potencial de ampliar o mundo de relações e de significados que colaborem para o desenvolvimento humano.
Em se tratando dos processos que geram competências ou disfunções, é válido ressaltar que os adolescentes chegam ao serviço de medidas socioeducativas por uma “disfunção social”, ou seja, por um comportamento que fere as normas sociais preestabelecidas. Entretanto, é fundamental que esses adolescentes não sejam reconhecidos e tratados apenas a partir da “disfunção social” apresentada, tendo em vista que são seres humanos complexos e em desenvolvimento. O estigma do “menor infrator” visto, muitas vezes, como a disfunção em pessoa, atrapalha o processo socioeducativo na medida em que incute no adolescente a descrença em suas competências. Com isso, o trabalho das equipes consiste em, partindo da compreensão das “disfunções”, conseguir identificar, valorizar e potencializar competências.
Nesse sentido, em se tratando de processos promotores de competências, o conceito de resiliência oculta proposto por Ungar (2001, como citado por Libório & Ungar, 2010) pode auxiliar no trabalho de potencialização das competências dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. Resiliência oculta se refere aos caminhos não convencionais de acesso à saúde (como agressividade, envolvimento em atividades ilícitas, abandono escolar etc.) que podem se apresentar no desenvolvimento de jovens marginalizados e que, apesar de serem considerados “disfuncionais” em nosso meio social, podem possuir uma função protetiva na vida desses jovens. Isso não significa que a intervenção psicossocial ocorrerá no sentido de valorizar esses caminhos não convencionais, mas, sim, atuará para reconhecer seu significado e sua importância na vida do adolescente e, a partir disso, ser capaz de propor novos caminhos.
Ao se refletir sobre os atributos de pessoa, é possível pensar as medidas socioeducativas como espaços para a identificação e fortalecimento dos atributos de pessoa de cada adolescente atendido, incentivando o autoconhecimento e a autoestima. A reflexão sobre as características de demanda, como idade, etnia e gênero e de que forma essas influenciam o desenvolvimento também pode fazer parte do trabalho do psicólogo nesse contexto. No que se refere aos atributos do contexto e à divisão didática entre o micro, meso, exo e macrossistemas, percebe-se que essa conceituação de Bronfenbrenner se faz muito útil para pensar o trabalho com os adolescentes nas medidas socioeducativas em meio aberto. A figura a seguir foi criada para ilustrar uma possível análise de contexto de um adolescente fictício em cumprimento de medida socioeducativa, baseada nos conceitos propostos por Bronfenbrenner.
Figura 1: Análise de contexto de um adolescente fictício em cumprimento de MSE.
A partir da figura é possível pensar intervenções do psicólogo que atua nas medidas socioeducativas em cada um dos níveis de análise. No microssistema, que são os ambientes nos quais as interações com o sujeito em desenvolvimento acontecem diretamente (Bronfenbrenner, 1996), podemos localizar a família, os amigos, a comunidade, as relações estabelecidas a partir da religião, a polícia, a rede de atendimento utilizada pelo adolescente, as instituições de PSC (para aqueles que cumprem essa medida), a equipe técnica responsável pela execução da medida socioeducativa etc.
Ainda no que se refere ao microssistema, algumas intervenções possíveis nesse nível são: atendimento familiar, como o intuito de mobilizar a todos para o cumprimento dos objetivos da MSE, bem como para identificar e trabalhar outras demandas apresentadas pelo núcleo familiar; contato com a escola e seus profissionais, objetivando firmar parcerias para o trabalho com o adolescente; atendimento ao adolescente, auxiliando-o na identificação dos componentes do seu microssistema e na reflexão sobre sua relação com cada um deles; identificar alguns componentes mais significativos do microssistema do adolescente (ex. professor, amigo, líder religioso ou comunitário) e mobilizá-los para auxiliarem no cumprimento dos objetivos da medida socioeducativa, bem como proporcionar possíveis novos componentes para o seu microssistema, inserindo-o em cursos profissionalizantes, atividades culturais etc.
Quando o sujeito em desenvolvimento sai de um microssistema conhecido para incluir-se em um novo contexto, ocorre um movimento no espaço ecológico. Por meio da passagem por vários microssistemas, o sujeito adquire novos conhecimentos e experimenta novos papeis e novas relações. Essas transições promovem o desenvolvimento na medida em que o sujeito se sente apoiado, estabelece relações significativas e confere sentido às experiências (Poletto & Koller, 2008).
Ao se pensar em intervenções no mesossistema, que, segundo Bronfenbrenner (1996), são interações entre microssistemas, é possível: atuar na mediação da comunicação entre família e escola, família e rede de atendimento; comunicar-se com o poder judiciário, por meio de reuniões e relatórios, de modo a fornecer informações que possam subsidiar as decisões judiciais; identificar e preparar instituições parceiras para receber os adolescentes que precisam cumprir a medida socioeducativa de PSC. Nesse nível de intervenção, a atuação do profissional não acontece diretamente com o adolescente, mas com componentes do seu microssistema, com o intuito de mobilizar reorganizações que possam promover o seu desenvolvimento.
O exossistema é a associação de dois ou mais contextos relacionados ao sujeito em desenvolvimento, mas sem a sua inserção direta em um deles (Bronfenbrenner, 1996). Nesse nível, o psicólogo pode trabalhar: participando de espaços deliberativos como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, que propõem e executam ações na área da infância e adolescência; contribuindo para a proposição de melhorias na gestão dos serviços públicos locais; orientando, juntamente com o assistente social, os familiares do adolescente acerca de questões trabalhistas, de saúde, educacionais etc., que terão um impacto indireto na vida do mesmo.
Por fim, temos o macrossistema, que é um contexto de estrutura mais ampla e é composto de todos os padrões globais do micro, meso e exossistema (Benetti et al., 2013). As intervenções do psicólogo atuante nas medidas socioeducativas em meio aberto podem incluir a militância em movimentos sociais, a participação em espaços deliberativos para a construção/melhoria das políticas públicas e a disseminação de ideias contra o preconceito e a estigmatização do adolescente em conflito com a lei. Também é possível trabalhar com o adolescente sobre os aspectos envolvidos em seu macrossistema e como eles influenciam, direta e indiretamente, a sua vida.
É importante ressaltar que o presente estudo não pretende generalizar essa análise contextual para todos os adolescentes atendidos nos programas de medidas socioeducativas, tendo em vista que cada adolescente, como sujeito singular que é, terá suas especificidades. Também não é objetivo desse estudo esgotar as possibilidades de intervenção do psicólogo nesse contexto de trabalho. O que se pretende é apontar algumas possibilidades de intervenção organizadas à luz da teoria de Bronfenbrenner.
Ao se refletir sobre o atributo do tempo, o profissional das medidas socioeducativas também trabalha com este fator ao considerar o momento do ciclo de vida do adolescente e de sua família, e os estressores horizontais predizíveis e impredizíveis, ou seja, aqueles estressores inerentes ao processo de desenvolvimento, em especial os momentos de transição desenvolvimental; e os estressores que não são esperados (como doença, morte precoce, desemprego). Há ainda os estressores verticais do ciclo de vida familiar, que dizem respeito a acontecimentos, crenças, mitos, segredos familiares em uma perspectiva intergeracional (Carter & MacGoldrik, 2001).
Ainda com relação ao tempo, em diferentes níveis de análise deste fator propostos por Bronfenbrenner, há de se considerar o período de duração da medida socioeducativa e a periodicidade dos atendimentos (mesotempo), bem como a duração dos contatos com o adolescente e sua família (microtempo).
Ao ponderar todos estes aspectos relacionados ao fator tempo, o profissional amplia a sua compreensão a respeito do ato infracional do adolescente em todas as suas dimensões, de sua família e comunidade. Além disso, o profissional também pode refletir sobre sua prática buscando identificar em que medida o tempo de que dispõe para as intervenções (diretas e indiretas) com o adolescente é suficiente para que sua relação com ele, com sua família e demais profissionais dos diferentes setores envolvidos se constitua em processos proximais promotores de desenvolvimento.
Retomando o conceito de díade proposto por Bronfenbrenner, é possível pensar, como uma característica do trabalho com as medidas socioeducativas, a formação de uma relação diádica entre o adolescente e sua equipe técnica de referência. O objetivo da formação dessa díade é auxiliar o adolescente em seu processo de desenvolvimento. A partir da diferenciação entre as três modalidades de díade, é possível conceituar o relacionamento entre o adolescente atendido e sua equipe de referência como uma díade de atividade conjunta, na medida em que ambos identificam, pactuam e realizam atividades com o intuito de alcançar os objetivos acordados durante a medida socioeducativa. Assim, se um dos objetivos é a inserção do adolescente em curso profissionalizante, ele e a equipe trabalharão juntos para realizá-lo: adolescente e equipe identificam áreas de interesse do mesmo; equipe realiza pesquisa, identifica e informa o adolescente sobre cursos na área de interesse; adolescente (com ou sem ajuda da família) realiza matrícula no curso; adolescente frequenta as aulas.
A partir da relação diádica de atividade conjunta, é possível pensar sobre as questões de reciprocidade, equilíbrio de poder e afeto. A reciprocidade, nesse caso, significa que a resposta do adolescente influencia a resposta da equipe e vice-versa, promovendo a capacidade de geração de novas respostas que podem ser reproduzidas em outros contextos e em outras relações. Por exemplo, a equipe solicita que o adolescente confeccione algum documento pessoal e presta orientações sobre como fazê-lo. O adolescente, por sua vez, compreende as instruções e realiza a atividade sozinho. Isso gera confiança, na equipe e no próprio adolescente, na capacidade do mesmo de resolver sozinho situações práticas do cotidiano. Esse sentimento de confiança o auxilia nas próximas atividades que precisar executar, sejam elas solicitadas pela equipe ou uma atividade qualquer de sua rotina, como realizar matrícula escolar, abrir uma conta corrente no banco etc.
No trabalho nas medidas socioeducativas é preciso estar atento às relações de poder. Não se pode negar que há uma relação de poder entre o adolescente e sua equipe técnica de referência, uma vez que há uma determinação judicial para que ele cumpra a medida socioeducativa e a equipe técnica está presente para acompanhar o andamento do processo socioeducativo e também para relatá-lo às autoridades judiciais. Com isso, a “balança” pende para o lado da equipe técnica no que se refere ao controle da situação nos momentos iniciais da execução da medida socioeducativa.
Com o passar do tempo, se faz necessário, e vai ao encontro das ideias de Bronfenbrenner, que as intervenções da equipe sejam menos diretivas e mais promotoras da autonomia do adolescente. Assim, é comum que, no início do acompanhamento, a equipe solicite a presença de familiares nos atendimentos, de modo a trabalhar temas eleitos pela equipe como importantes (dinâmica familiar, ato infracional etc.). No decorrer do processo socioeducativo, é possível que o adolescente relate à equipe assuntos importantes para ele e decida se e quando a família será chamada para conversar sobre isso (sentimentos, projetos de futuro etc.).
Por fim, considerando a dimensão afetiva das relações diádicas, pensando-se na relação adolescente em conflito com a lei e equipe técnica das medidas socioeducativas, se faz necessário que essa equipe trabalhe em favor da formação de um vínculo afetivo positivo e de confiança com o adolescente. A construção desse vínculo é capaz de aumentar as chances de ocorrerem ganhos para o seu desenvolvimento.
Bronfenbrenner ajudando a pensar a prática do psicólogo no trabalho com as medidas socioeducativas em meio aberto
A partir da teoria estudada e dos desafios levantados, é possível pensar que, quanto mais os profissionais das medidas socioeducativas forem capazes de ampliar a sua compreensão a respeito do ato infracional, como um fenômeno complexo, como uma ação cometida pelo adolescente na relação com outras pessoas, em um contexto, em um determinado tempo, mais efetivas tenderão a ser as ações socioeducativas propostas e executadas. E quanto mais compreenderem que esse adolescente apresenta inúmeras outras características pessoais, estabelece inúmeras outras relações e está inserido em diversos contextos ao longo da sua história de vida, maior será a possibilidade de o profissional estabelecer uma relação com afeto, reciprocidade e equilíbrio de poder com o adolescente. Nesta relação, o adolescente em conflito com a lei viverá a experiência de “ser olhado de outra forma” por profissionais que condenam, sim, o ato infracional, mas nunca o desqualificam como pessoa, e que reconhecem e confirmam os seus recursos pessoais e relacionais saudáveis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As políticas públicas voltadas ao adolescente em conflito com a lei no Brasil já passaram por grandes mudanças e o SINASE é a concretização dessas transformações. Contudo, pode-se considerar que a consolidação do SINASE ainda é um processo em andamento. A luta contra os projetos que propõem a redução da maioridade penal, a humanização de centros socioeducativos de internação que ainda possuem características de instituições totais, o aperfeiçoamento dos serviços que executam as MSEs em meio aberto e a ampliação do acesso às discussões sobre a temática do adolescente em conflito com a lei, de modo a diluir visões preconceituosas e moralizantes sobre esses adolescentes, são alguns exemplos de desafios a serem enfrentados para a consolidação do SINASE.
Bronfenbrenner, com sua concepção de desenvolvimento humano como processo contínuo e complexo, contribui na compreensão do desenvolvimento dos adolescentes em conflito com a lei, bem como na reflexão sobre as práticas profissionais, em especial, do psicólogo, no contexto das medidas socioeducativas em meio aberto. A preocupação constante desse autor era de que seus estudos pudessem oferecer suporte para as políticas públicas, que, por sua vez, deveriam promover melhorias na vida das pessoas. Esse fato reforça a importância do autor para a ciência do desenvolvimento humano e, também, para a área das políticas públicas.
O SINASE, enquanto política pública, tem potencial para promover mudanças positivas na vida dos adolescentes atendidos e suas famílias. Portanto, a utilização dos conceitos desenvolvidos por Bronfenbrenner para a reflexão acerca da execução dessa política pública é uma forma de honrar o desejo do autor e, ao mesmo tempo, contribuir para a promoção de melhorias no processo de trabalho nesse contexto.
O Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano auxilia na integração dos aspectos individuais, sociais, interacionais e históricos que cercam a vida de cada adolescente e a sua relação com a equipe responsável pelo seu atendimento. Desse modo, a teoria em questão pode auxiliar essas equipes na construção de intervenções que façam sentido para eles e, ao mesmo tempo, produzam respostas às demandas da sociedade.
Referências
Bronfenbrenner, U. (1996) A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed. [ Links ] [ Links ]
Bronfenbrenner, U. (2011) Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed.
Carter, B. & McGoldrick, M. (2001). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Cecconello, A. M. & Koller, S. H. (2003) Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 16(3), 515-524. [ Links ]
Benetti, I. C., Vieira, M. L., Crepaldi, A. M., & Schneider, D. R. (2013). Fundamentos da Teoria Bioecológica de Urie Bronfenbrenner. Pensando Psicología, 9(16), 89-99. [ Links ]
Resolução nº 119, de 11 de dezembro de 2006. (2006). Dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e dá outras providências. Brasília, DF. Recuperado de http://www.direitosdacrianca.gov.br/conanda/resolucoes/119-resolucao-119-de-11-de-dezembro-de-2006/view
Conselho Federal de Psicologia – CFP. (2012). Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) em Programas de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto. Recuperado de http://crepop.pol.org.br/novo/wp-content/uploads/2012/10/Atua%C3%A7%C3%A3o-dasos-Psic%C3%B3logasos-em-Programas-de-Medidas-Socioeducativas-em-Meio-Aberto.pdf
Conselho Federal de Psicologia – CFP. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das(os) profissionais de Psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Nota-te%CC%81cnica-web.pdf
Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. (2014). Tipificação nacional de serviços socioassistenciais. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Recuperado de http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf
Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. (1990). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. (2012). Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional. Brasília, DF: Presidência da República. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm
Libório, R. M. C. & Ungar, M. (2010). Resiliência oculta: a construção social do conceito e suas implicações para práticas profissionais junto a adolescentes em situação de risco. Psicologia: Reflexão e Crítica, 23(3), 476-484. [ Links ]
Abordagem ecológica do desenvolvimento humano, psicologia positiva e resiliência: ênfase na saúde. In S. H. Koller (Org.), Ecologia do Desenvolvimento Humano: Pesquisa e Intervenção no Brasil (pp. 91-108). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Contextos ecológicos: promotores de resiliência, fatores de risco e de proteção. Estudos de Psicologia, 25(3), 405-416. [ Links ]
Senna, S. R. C. M. & Dessen, M. A. (2012). Contribuições das teorias do desenvolvimento humano para a concepção contemporânea da adolescência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28(1), 101-108. [ Links ]
Sifuentes, T. R., Dessen, M. A., & Oliveira, M. C. S. L. (2007). Desenvolvimento humano: desafios para a compreensão das trajetórias probabilísticas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 23(4), 379-386. [ Links ]
Silveira, S. B. A., Garcia, N. M., Pietro, A. T., & Yunes, M. A. (2009). Inserção ecológica: metodologia para pesquisar risco e intervir com proteção. Psicologia da Educação, 29(2), 57-74. [ Links ]
Volpi, M. (Org.). (2010). O adolescente e o ato infracional (8ª ed.). São Paulo: Cortez. [ Links ]
Recebido em: 19/03/2018
Aprovado em: 05/06/2018
I Psicóloga, Prefeitura Municipal de Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: maricomelli@gmail.com
II Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail: elisangelaboing@gmail.com