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Nova Perspectiva Sistêmica
versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363
Nova perspect. sist. vol.28 no.63 São Paulo enero/abr. 2019
CONVERSANDO COM A MÍDIA
Atypical
Paula AyubI
I Centro de Convivência Movimento, São Paulo/SP, Brasil.
Atypical é uma série da Netflix, de 2017, escrita e dirigida por Robia Rashid.
A trama, classificada como drama/comédia, retrata a vida de um Estudante do terceiro ano do Ensino Médio com autismo em uma família de classe média norte-americana.
O termo atypical, conceito trazido da neurodiversidade, busca expressar a amplitude de modos diversos de pensar e agir no mundo em contraposição ao modo típico das pessoas comuns.
A compreensão hoje acerca do conceito de autismo vai além dos movimentos de mãos e balanceios tidos como estereotipados e clássicos descritos na literatura. Compreende-se hoje que o modo de pensar do autismo abrange 1% da população mundial e notadamente vem surpreendendo em termos de quão amplo é o leque de habilidades do pensamento atípico.
Sam Gardner, protagonista da série – interpretado por Keir Gilchrist, que não tem autismo -, tem 18 anos e vive com sua mãe, pai e irmã. Estuda e trabalha em uma loja de eletrônicos e tem um grande amigo indiano que é seu guru sentimental. Sam também faz terapia, onde conversa sobre seus anseios e vontades. Sam quer namorar.
Claramente, como uma obra de ficção, Robia mistura fantasia e realidade numa trama bem envolvente. Ao público leigo, fica difícil perceber os limites de um e outro, favorecendo uma visão do autismo como performances de altas habilidades intelectuais, independência e pouco envolvimento afetivo. Questões que foram muito bem resolvidas na segunda temporada, quando pessoas no espectro passam a fazer parte do elenco e enriquecer ainda mais a aventura de adentrar um modo atípico de pensar.
Nos primeiros episódios da série, as conversas com Sam apresentavam-se como‘típicas’, havendo uma presunção de que o personagem compreendia tudo o que lhe era dito. Uma das questões mais importantes no diálogo com pessoas neuroatípicas é nos certificarmos de que o que queremos dizer está sendo compreendido pela outra parte e, ainda, se compreendemos verdadeiramente o que está além das palavras quando algo nos é perguntado.
Sam, sem conseguir decidir quais roupas usar para escola, cria uma espécie de “uniforme”, repetindo todos os dias o mesmo modelo. Esse é um tema recorrente com jovens atípicos na vida real. Escolas que permitem o uso de roupas comuns demandam muito tempo de discussão - entre os jovens e familiares - sobre o uso ou não do uniforme. Embora aparentemente superficial, o tema gera constrangimento e comentários de colegas de sala - na maioria das vezes cruéis, representados também na série.
Outro ponto, não menos importante, diz respeito às desagradáveis experiências sensoriais que pessoas com autismo apresentam. Sons, luzes, toques, cheiros e até o gosto de determinadas coisas podem gerar sensações extremamente desagradáveis, podendo ocasionar até comportamentos de crise - respostas ríspidas, gritos, movimentos bruscos, auto ou heteroagressão, corridas em disparada, entre outros. Para evitar tais reações, Sam utiliza um fone de ouvido durante os intervalos das aulas - para se proteger do ruído dos alunos nos corredores. O que se sabe, pela literatura e segundo depoimentos de jovens atípicos, é que há uma hiperssensibilização de toda área sensorial. Conseguem imaginar? O leve toque de uma pessoa dizendo “com licença” pode ser motivo para desencadear uma crise em qualquer lugar público. E, com certeza, essa é uma das maiores preocupações dos pais sobre a independência e autonomia de seus filhos e filhas.
Sem dúvidas, a série Atypical promove discussões e uma aproximação do diferente, do diverso; daquilo que, por não conhecermos em profundidade, nos afasta e que chamamos de estranho ou bizarro. Duras palavras para descrever alguém que se sente incomum, comparado à maioria das pessoas; são palavras que ferem pais, irmãos, amigos e profissionais de pessoas que estão buscando seu lugar na sociedade.
Como exemplo disso, Sam, em dado momento, aprende que precisa sorrir para demonstrar seu interesse nas garotas. A informação simples “sorria” não é suficiente para que ele possa demonstrar seu sentimento, pois, por falar demais, acaba por afastar as pessoas. Sua terapeuta auxilia dizendo que ele deveria fazer “70% menos” do que estava fazendo e, imediatamente, ele compreende o que é sorrir. Mundo confuso com mensagens confusas para quem pensa atipicamente. Sorriso não é apenas sorriso; há o sorriso de empatia, de paquera, de desprezo, de ironia... como saber?
No entanto, o que torna a série muito importante é a denúncia feita sobre a solidão e o isolamento em que a pessoa neuroatípica está submersa. Comparando o personagem Sam aos depoimentos das pessoas que acompanho no meu trabalho como psicóloga clínica, compreendo que a solidão é também uma forma de proteção. Relacionar-se está ligado a estar aberto e contribuir; segundo me dizem: “dá preguiça”, sim, tarefa árdua essa de se relacionar. Deve-se pensar em tudo e até adivinhar o que o outro está pensando. É como se todo o trabalho da relação ficasse apenas para um dos lados. O típico não precisa se adaptar, não precisa se encaixar e não precisa se explicar.
Para o pensamento típico, o atípico é determinado pela falta: falta de empatia, falta de simpatia, falta de polidez, falta de senso crítico, entre tantas outras faltas de habilidades que dão polimento aos relacionamentos sociais. O exercício de tais habilidades ou capacidades requer o envolvimento afetivo e emocional com o outro; vamos nos tornando mais empáticos, polidos, conforme crescemos e exercitamos cada vez mais os relacionamentos. Aprendemos lentamente que cada ação contém inúmeras outras e que cada uma delas é também aprendida na observação do outro, em relação.
Uma das características da pessoa com autismo ou no espectro do autismo quando pequena é o ensimesmamento, ou, ainda, a habilidade de voltar-se a si mesmo em detrimento do social. Tal característica vai dando lugar às relações sociais, muito lentamente e tardiamente no desenvolvimento, o que sugere um aprendizado tardio sobre as mesmas.
O aprendizado dialógico, quando as partes se abrem para a compreensão mútua, é um caminho de mão dupla. Tal caminho fica claro, na série, na relação de Sam e Zahid, uma amizade que cresce, onde Zahid, um jovem típico, aprende como é ter asperger, protegendo Sam de algumas situações, e dialoga sobre o modo típico de funcionar das pessoas.
Em determinada cena na sala de aula, na escola, o professor pede que formem grupos de trabalho. Sam fica paralisado em um canto da sala. Durante os anos de clínica, ouvi a narração da mesma cena pela voz de várias pessoas que acompanho que estão no espectro. É uma cena congelante para eles, um turbilhão de pensamentos percorre seus cérebros indo contra tudo o que os acalma: ruídos, quebra da rotina, aproximação, espontaneidade, escolha; isso, apenas para descrever a questão prática da formação de grupos. Até que tudo se acalme, não foram lembrados por nenhum grupo e não há mais grupos disponíveis na sala. Histórias de todo dia.
Atypical apresenta, ainda, uma rica história sobre questões familiares, a busca por terapeutas, o relacionamento de Sam e sua irmã, além de sessões de grupo com outros pais de jovens no espectro. A cada episódio, um novo recomeço, um novo aprendizado: sofrimento, isolamento. Mais um passo. A cada novo passo, uma nova porta se abre, um ensinamento é somado ao anterior e uma cadeia se estabelece e volta ao equilíbrio.
Atypical merece ser assistida por todos, merece ser degustada a cada passo acertado e a cada dor superada. Os jovens atípicos da segunda temporada contribuem em muito para uma compreensão das trajetórias corajosas e diárias de cada um deles.
Para terapeutas familiares que podem receber uma família com um filho que se desenvolve dentro do espectro autista, a série pode ser um disparador inicial de conhecimento dessa maneira de estar no mundo.
Referência
Rashid, R. (Diretor). (2018). Atypical [série para televisão]. [ Links ]
Sugestões de filmes
Balthazar, N. (Diretor). (2007). Ben X [Filme Cinematográfico].
Jackson, M. (Diretor). (2010). Temple Grandin [Filme Cinematográfico].
Levinson, B. (Diretor). (1999). Rain Man [Filme Cinematográfico].
Mayer, M. (Diretor). (2009). Adam [Filme Cinematográfico].
I Psicóloga, terapeuta de família pela PUC-SP, diretora do Centro de Convivência Movimento-SP, local para atendimento de pessoas com transtorno do espectro autista – TEA. E-mail: paula.ayub@gmail.com