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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

https://doi.org/10.38034/nps.v30i70.644 

10.38034/nps.v30i70.644 ARTIGO

 

Do método clínico centrado na pessoa à terapia de família relacional sistêmica: diálogos possíveis

 

From person-centered approach to systemic relational family therapy: possible dialogues

 

Del método clínico centrado en la persona a la terapia familiar relacional sistémica: posibles diálogos

 

 

Tamiris Esteves Nagem; Simone Bambini Negozio

Instituto de Terapia Familiar, São Paulo/SP Brasil

 

 


RESUMO

No contexto da Reforma Sanitária, surge a Atenção Primária à Saúde (APS), porta de entrada e coordenadora das redes de atenção em saúde, e a Estratégia Saúde da Família (ESF) como operacionalização desse novo formato de organização. A ESF, pautada no entendimento do contexto em que se insere sua população adscrita, no trabalho interdisciplinar e na construção de uma abordagem integral e resolutiva, enfatiza a passagem para um modelo complexo, trabalhando com paradigmas que norteiam o pensamento sistêmico pós-moderno: a complexidade, a instabilidade e a intersubjetividade. Este relato traz um enfoque na relação entre o campo de atuação da medicina de família e comunidade, que ocorre sobretudo no contexto da APS - com o método clínico centrado na pessoa e a abordagem familiar - e o campo de atuação da terapia de família relacional sistêmica, entendendo tais abordagens como semelhantes em sua inclusão de questões psicossociais, do contexto, da família e do próprio profissional no modelo de comunicação.

Palavras chave: terapia familiar; atenção primária à saúde; medicina de família e comunidade.


ABSTRACT

Within the Healthcare Reform, the Primary Health Care (APS) arises, considered to be the entrance and the coordinator for and of the Healthcare Networks, and the Family Health Program (ESF) emerges to establish and make operational this new organization. The ESF, based on the understanding of the context in which its community is inserted, on the interdisciplinary work and on the development of an integral and resoluble approach, emphasizes the transition to a complex model. The Program (ESF) works with paradigms that guide the post-modern systemic thinking: the complexity, the instability and the intersubjectivity. This report focuses on the relation between the Family Medicine's field of action, which occurs especially in the context of the APS, having its person-centered approach and the familiar approach, and the Systemic Family Therapy's field of action, understanding such approaches as similar in their inclusion of psychosocial issues, context, family and the healthcare professional in the communication model.

Keywords: family therapy; primary health care; family practice.


RESUMEN

En el contexto de la Reforma en Salud surge la Atención Primaria de Salud (APS), puerta de entrada y coordinadora de las redes de atención de salud, y la Estrategia de Salud de la Familia (ESF) como la operacionalización de este nuevo formato organizativo. La ESF, basada en la comprensión del contexto que se inserta su población registrada, en el trabajo interdisciplinario y en la construcción de un enfoque integral y resolutivo; enfatiza la transición a un modelo complejo, trabaja con paradigmas que guían el pensamiento sistémico posmoderno: complejidad, inestabilidad e intersubjetividad. Este informe se centra en la relación entre el campo de acción de la medicina familiar y comunitária, que se da principalmente en el contexto de la APS - con el método clínico centrado en la persona y el enfoque familiar - y el campo de acción de la terapia familiar relacional sistémica, entendiendo tales enfoques como similares en su inclusión de las cuestiones psicosociales, el contexto, la familia y el propio profesional en el modelo de comunicación.

Palabras clave: terapia familiar; atención primaria de salud; medicina familiar y comunitaria.


 

 

INTRODUÇÃO

No contexto da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), surge a Atenção Primária à Saúde (APS), porta de entrada e coordenadora das redes de atenção à saúde, tendo como atributos essenciais a atenção no primeiro contato, a longitu-dinalidade, a integralidade e a coordenação do cuidado; e como atributos derivados a orientação familiar e comunitária e a competência cultural. Além disso, é criada a Estratégia Saúde da Família (ESF) como operacionalização desse novo formato de organização do sistema de saúde, a qual preconiza a família como unidade de cuidado e o trabalho interdisciplinar das equipes (Mattos, 2009; Guanaes & Mattos, 2011; Oliveira & Pereira, 2013).

Partindo do modelo sistêmico, família pode ser definida como um conjunto de pessoas que interagem entre si como um todo funcional, com estruturas e padrões de funcionamento, que organizam tanto sua estabilidade quanto sua capacidade para mudança (Guanaes & Mattos, 2011). Dessa forma, a análise da família não é a soma das análises de seus membros individuais, uma vez que o comportamento de cada indivíduo afeta e é afetado pelo comportamento de cada uma das outras pessoas. Sendo assim, os indivíduos só podem ser compreendidos dentro dos contextos interacionais nos quais estão inseridos, considerando não só o núcleo familiar, mas também o seu contexto sócio-histórico e cultural (Cerveny, 2001).

O médico de família e comunidade tem como campo principal de atuação o nível da APS. Segundo o Tratado de Medicina de Família e Comunidade (MFC), a MFC

[é] definida como a especialidade médica que presta assistência à saúde de forma continuada, integral e abrangente para as pessoas, suas famílias e a comunidade. Ela se distingue por conhecer as pessoas intimamente ao longo do tempo e de compartilhar sua confiança, respeito e amizade, bem como por fornecer cuidados a uma população indiferenciada por idade, gênero, doença ou sistema de órgãos. (Lopes & Dias, 2019, p. 1)

Dentre os princípios da MFC estão: o médico de família e comunidade é um clínico qualificado, sua atuação é influenciada pela comunidade, ele é recurso de uma população definida e a relação médico-pessoa é fundamental para o seu desempenho (Lopes & Dias, 2019).

A ESF, pautada no entendimento do contexto no qual se insere sua população adscrita, no trabalho interdisciplinar e na construção de uma abordagem integral e resolutiva, enfatiza a passagem para um modelo complexo, que valoriza os processos de significação social e de interação entre usuários e profissionais de saúde (Cadoná & Scarparo, 2015). No entanto, ainda se configura um desafio o rompimento com o modelo hegemônico moderno, com práticas centradas na doença e no cuidado individual (Guanaes & Mattos, 2011).

Em 2015, Tamiris Esteves Nagem iniciou a residência médica de MFC em São Bernardo do Campo, onde teve a oportunidade de conhecer o Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) e alguns princípios da abordagem familiar, que eram suas principais bagagens ao adentrar o curso de Terapia Familiar em 2017.

O MCCP é composto por quatro componentes: explorando a saúde, a doença e a experiência da doença (percepções e experiências da saúde, histórico, exame físico e exames complementares, dimensões da experiência da doença - sentimentos, ideias, efeitos no funcionamento e expectativas); entendendo a pessoa como um todo (pessoa - história de vida, questões pessoais e de desenvolvimento; o contexto próximo - família, trabalho, apoio social; o contexto amplo - cultura, comunidade, ecossistema); elaborando um plano conjunto de manejo dos problemas; e intensificando a relação entre a pessoa e o médico. Ao utilizar essa abordagem, há evidências de maior satisfação do usuário e do médico, indicando impacto positivo em desfechos importantes e diminuição de custos relacionados ao sistema de saúde (Stewart et al., 2017).

Ao iniciar o curso de terapia familiar, Tamiris notou confluências entre o MCCP e a terapia familiar relacional sistêmica, dentre elas: a importância de colocar a pessoa no centro de seu cuidado, entendendo os significados que ela atribui à saúde e ao adoecer, e de promover a autonomia; a corresponsabilização do médico e da pessoa, que definem juntos os problemas, as metas e os papéis; a importância da família como um laboratório de afetos, cujo entendimento de suas estrutura e funções ajuda na compreensão de como as pessoas desempenham seus papéis ou como enfrentam dificuldades; e por fim, a importância da contextualização e do compartilhamento do poder.

O curso de terapia familiar sistêmica contribuiu sobremaneira para a sistema-tização de conceitos fundamentais, dentre eles os três princípios do pensamento sistêmico pós-moderno: o princípio da complexidade, o princípio da instabilidade e o princípio da intersubjetividade. O primeiro considera os diversos contextos envolvidos ao avaliarmos um fenômeno, indo em direção contrária à linearidade e à noção causa-efeito. O segundo nos desafia a sair da impaciência terapêutica, colocando-nos diante da imprevisibilidade da vida, que está em constante transformação. O último, enfim, admite o observador como coconstrutor da realidade, negando a possibilidade de neutralidade e fazendo um convite à utilização da não neutralidade de forma potencializadora (Vasconcellos, 2006).

O artigo apresenta um relato de experiência da atuação de Tamiris Esteves Nagem em uma Unidade Básica de Saúde (UBS), sob supervisão da docente Simone Bambini Negozio. Por esse motivo, as seções Metodologia e Discussão estão escritas em primeira pessoa do singular, a partir da perspectiva de Tamiris Esteves Nagem.

Pretende-se discorrer sobre os diálogos possíveis entre o campo de atuação da MFC - com o MCCP e a abordagem familiar - e o campo da terapia familiar rela-cional sistêmica, entendendo tais abordagens como semelhantes em sua inclusão de questões psicossociais, do contexto, da família e do próprio profissional no modelo de comunicação.

 

METODOLOGIA

Este estudo constitui um relato de experiência, a partir de um relato de caso, de minha atuação como médica de família e comunidade em uma UBS de um município de São Paulo, paralelamente à formação em terapia de família relacional sistêmica no Instituto de Terapia Familiar de São Paulo (ITF-SP), de 2017 a 2020. Foi realizado relato de um caso acompanhado durante todo o meu processo de formação no ITF-SP, sendo pontuados avanços na abordagem específica do caso, bem como na atuação como médica de família e comunidade, utilizando-me de conceitos do método clínico centrado na pessoa, da terapia de família relacional sistêmica e do construcionismo social. Com o intuito de preservar o sigilo, foram usados nomes fictícios ao longo da descrição do caso. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Moriah, vinculado à Plataforma Brasil, e conta com anuência da pessoa cujo caso foi relatado.

 

DISCUSSÃO

Contexto

Destacarei as impressões gerais sobre Carlos - adscrito em meu território de abrangência da UBS - seu contexto próximo, suas ideias sobre sua saúde, sua doença e sua experiência da doença, itens que pertencem aos primeiros dois componentes do MCCP, fundamentais para a construção de vínculo e a compreensão de expectativas, bem como para o desenrolar de todo o trajeto terapêutico e o plano conjunto.

Realizei seu acompanhamento longitudinal de 2017 a 2019 e em média realizá-vamos um atendimento por mês, com duração de aproximadamente 40 minutos, exceto quando Carlos tinha alguma exacerbação. Nessa situação, o atendimento era feito semanalmente ou quinzenalmente. A maior parte dos atendimentos na UBS deu-se exclusivamente com Carlos, mas houve alguns atendimentos compartilhados com a sua companheira (Joana) e a sua enteada (Karina). Carlos também realizava acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de referência da região.

Carlos é um homem de 51 anos, branco, heterossexual, casado, afastado do trabalho como mecânico (recebe auxílio-doença), na fase de ciclo de vida de família com filhos adolescentes. É alto, tem aparência entristecida, grande parte das vezes olhando para baixo. Costumeiramente fica isolado na sala de espera, distante das outras pessoas, sempre com uma garrafa de água. Utiliza corte de cabelo jovial, em geral parecido com a moda dos jogadores de futebol, e roupas esportivas.

Gosta de ir à academia e desejaria retornar ao trabalho, mas não julga ser possível. Sua grande aspiração é voltar a ter contato com o Carlinhos, filho de seu primeiro casamento, que apresenta paralisia cerebral. Fala muito também em ir embora e se isolar de tudo: "quem sabe assim as coisas melhoram". Sente muita falta da mãe, falecida há 1 ano, que era uma de suas motivações para viver. Preocupase com a educação de Karina, acredita que os mais novos devem respeitar os mais velhos, deseja repassar para ela a educação que teve do seu pai: "que era dura, mas funcionava", mas se chateia, pois se sente desautorizado por Joana. Pensa ainda em se separar de Joana, sente-se preterido por ela: "ela passa o dia inteiro trabalhando e quando chega só fica no celular". Atribui ainda certo preconceito de Joana em relação aos seus problemas de saúde mental.

Considerava que seu problema era devido a uma depressão sem cura, falava sobre um grande vazio e uma sensação de desesperança, além de exaustão física, responsável por comprometer sua vontade de se engajar em outras atividades, ou mesmo de frequentar a academia. Talvez pudesse ser um castigo de Deus, ele pensava. Queria melhorar, ia às consultas, usava os remédios, acreditava que as diversas medicações fossem ajudar, mas era tomado constantemente por uma frustração frente a concretude mental e física desses sentimentos dolorosos, e à pouca eficácia das medicações frente às suas expectativas de cura. Carlos tinha como diagnósticos psiquiátricos: transtorno de personalidade histriônico, transtorno de ansiedade e antecedente de tentativas de suicídio.

Sobre a atuação da terapeuta e recursos teóricos utilizados

"Nosso intelecto intrometido

Deforma a bela forma das coisas:

Nós assassinamos para dissecar."

(Wordsworth)

Neste item discorrerei sobre os elementos teóricos significativos tanto para o desenrolar do caso descrito, quanto para minha prática enquanto médica de família e comunidade.

O trecho do poema transcrito na epígrafe, "assassinamos para dissecar", remete à ideia da categorização para compreensão, a saber, de segregar para entender, e à noção biologicista de entender a doença e não a pessoa (Asen, Tomson, Young & Tomson, 2012). No livro sobre o MCCP, há um trecho que diz: "[a] coleta de dados biomédicos detalhados é evidentemente essencial para entender os problemas médicos da pessoa, mas é também incompleta se não houver um entendimento igualmente detalhado da pessoa que está passando pelos problemas" (Stewart et al., 2017, p. 97).

Essas citações levam à reflexão sobre meu percurso acadêmico e sobre o quanto aprendemos, como médicos, o enfoque na coleta de dados, o quanto "assas-sinávamos para dissecar". Já na residência de MFC, com o MCCP, surge o compartilhamento de poder com a pessoa, o equilíbrio entre o objetivo e o subjetivo, a interconexão entre corpo e mente, a ideia da centralidade da experiência de quem adoece: "[p]rimeiro, o reconhecimento de que a experiência do paciente com a doença é primária. Nosso próprio sistema de abstrações diagnósticas, embora muito poderoso, é secundário. Na experiência do paciente, pode não haver separação entre corpo e mente" 1 (McWhinnet, Freeman & Epstein, 2001, p. 238, tradução nossa).

Durante o curso de terapia familiar observei que, apesar de conhecer alguns conceitos, como o princípio da complexidade, o princípio da instabilidade e o princípio da intersubjetividade, eles não estavam incorporados em minha prática. Apenas a partir das relações construídas no decorrer do curso, e em um constante círculo hermenêutico a partir do contato com novas ideias, foi possível construir uma nova prática. O círculo hermenêutico é um conceito relacionado aos filósofos Heidegger e Gadamer, sobre ele podemos dizer:

Quando tivermos que compreender alguma coisa específica, teríamos a possibilidade de ver e ouvir algo que nunca havíamos visto e ouvido antes. Esta nova experiência poderia realimentar nosso pré conhecimento [preconceito: formado pela maneira como vivemos nossas vidas] e dar-lhe uma nova nuance ou até mesmo mudá-lo. Esta relação circular entre o pré-conhecimento mais geral e a experiência singular é chamada de círculo hermenêutico. (Andersen, 2004, p. 21)

Compreendi que apesar de intelectualmente entender algumas questões, a minha linguagem, por vezes, distanciava-se do que buscava, pois faltava compreender como colocar tais conceitos em prática. Quais outras formas de linguagem e de comunicação favoreceriam o processo terapêutico? De que forma o MCCP poderia ser potencializado por outras formas de conversas?

No livro Pragmática da Comunicação Humana, de Watzlawick Beavin e Jackson, são postulados os axiomas da comunicação humana, dentre eles, o que relaciona conteúdo e relação: "[t]oda a comunicação tem um aspecto de conteúdo e um aspecto de relação tais que o segundo classifica o primeiro e é, portanto, uma me-tacomunicação" (1967, p. 50). Assim, a ideia de que dentro de um atendimento é importante não apenas o conteúdo, mas sim todo o processo relacional, isto é, como a pessoa conta a história, quais emoções eu e a pessoa atendida expressamos ao seu contar, como nos relacionamos, foi algo extremamente importante para minha prática clínica, já que conhecer o conteúdo não significa compreender o processo (Asen et al., 2012).

Os conteúdos estão rígidos no tempo, há pouco a ser feito sobre o que passou, os acontecimentos não mudam; enquanto o processo é vivo, dinâmico e flexível (Asen et al., 2012). Carlos pode não mudar o fato de sua mãe ter falecido, mas pode criar diferentes formas de se relacionar com esse acontecimento, inclusive sendo essa relação mutável ao longo do tempo. Ter em mente o processo nos amplia o horizonte, ao passo que o foco exclusivo no conteúdo, nos aprisiona. Tais ideias remetem ao seguinte trecho:

A terapia tradicional foca o passado para compreender o presente. A terapia com uma sensibilidade construcionista coloca o seu foco no momento interativo: o passado, o presente e o futuro como eles são narrados no presente. Para esse fim, em vez de procurar oferecer aos clientes novos recursos para a ação, a terapia tenta ajudar os clientes a utilizarem os recursos conversa-cionais que eles já possuem, em novas e diferentes arenas conversacionais. (McNamee, 2005, p. 31)

Outra ideia fundamental para a prática foi conhecer a experiência do grupo de Milão, cujo foco no processo de entrevista e menor atenção às intervenções foi inovador. Gostaria de destacar a circularidade, que parte do pressuposto de que a informação é uma diferença e de que diferença é uma relação (ou mudança na relação), segundo Bateson, "[a] unidade elementar de informação é uma diferença que faz a diferença" 2 (1987, p. 321, tradução nossa), e para termos uma prática que ative a circularidade nos valemos principalmente de perguntas (Boscolo, Cecchin, Hoffman & Penn, 1993; Bateson, 1987; Selvini, Boscolo, Cecchin, & Prata, 1980).

As perguntas não são neutras ou objetivas, podem ser compreendidas como intervenções na consulta, com o potencial de trazer novas ideias e perspectivas, com a capacidade de mudar significados, fornecendo informações não apenas ao terapeuta, mas sobretudo à pessoa (Asen et al., 2012). Dialogando com tais questões, Tom Andersen, em Processos Reflexivos, aborda a importância das perguntas no contexto terapêutico: "[n]ossa contribuição é constituída basicamente de perguntas, em particular, daquelas que geralmente nossos interlocutores não se fazem e que dão possibilidade a muitas respostas que, por sua vez, podem gerar novas perguntas" (Andersen, 2002, p. 64).

Tom Andersen (2002) aborda ainda: o ritmo das conversações; a importância de estar atento aos sinais analógicos; a garantia de tempo para que terapeuta e pessoa tenham o espaço necessário para as suas falas internas durante a conversa; o teor de determinada conversa, se é confortável ou desconfortável; a importância de não interpretar, já que agir de acordo com nossas impressões é válido, caso procuremos confirmação ou refutação de nossas ideias, ao invés de tomá-las como verdades (Andersen, 2002; Asen et al., 2012).

Foi importante aprender a preciosidade das perguntas, as quais garantem um aumento gradual do campo de observação. Mesmo nas ocasiões em que a família não estava diretamente presente em um atendimento, através dos questionamentos era possível trazer inúmeras vozes àquela conversa. Carlos, por exemplo, sentia-se desconfortável com a participação da companheira e da enteada em seus atendimentos, dessa forma, as perguntas foram aliadas na construção de outras narrativas e distinções possíveis.

Existem diversas modalidades de perguntas, dentre elas as que avaliam mudanças na relação e as perguntas triádicas, nas quais se convida formalmente um membro da família à metacomunicação sobre o relacionamento de dois outros, na presença deles; isso torna possível a quebra de algumas regras familiares e expõe determinados elementos da relação não observados anteriormente (Selvini et al., 1980). Karl Tomm (1988) também discute sobre os tipos de perguntas, classificando-as em lineares, estratégicas, circulares e reflexivas, e discute os possíveis efeitos de cada uma delas no terapeuta e na família. As lineares, de intenção investigativa, teriam um efeito conservativo na família e de julgamento no terapeuta; as estratégicas, de intenção corretiva, teriam um efeito repressor na família e opositor no terapeuta; as circulares, de intenção exploratória, teriam um efeito liberador na família e de aceitação no terapeuta; e por fim, as reflexivas, de intenção facilitadora, teriam efeito generativo na família e criativo no terapeuta.

Outra mudança paradigmática importante na atuação como médica de família e comunidade foi a compreensão da passagem do intrapsíquico ao inter-relacional. Marilene Grandesso (2011) ressalta a mudança do foco das teorias clínicas do indivíduo para os sistemas humanos, surge assim um novo modelo para se pensar os problemas humanos, que passam a ser vistos como sistêmicos. Assim, o comportamento não é apenas o produto de processos intrapsíquicos, mas o resultado de interações dentro de um sistema, reiterando a importância do contexto e da causalidade circular (Grandesso, 2011). Levar na bagagem essa lente de observação colabora na compreensão de legados familiares, de padrões de comportamentos, de formas aprendidas para lidar com dificuldades e para se relacionar, além de estar apta a vislumbrar em cada indivíduo o laboratório de afetos construído (e em permanente construção) pelo sistema familiar.

Uma das noções mais relevantes aprendida com a terapia de família foi a ideia de competência das famílias, discutida por Guy Ausloos (2011). Talvez pelo enfoque de minha graduação ter como objetivo encontrar o que está "errado" para poder "consertar", a noção de valorizar o que funciona e é positivo seja posta de lado em algumas circunstâncias; contudo, o conceito de Ausloos fez sentido, afinal as famílias sabem o que não vai bem, sabem tanto que nos dizem e procuram ajuda. A ideia de pensar recursos, de emaranhar uma busca conjunta com as famílias sobre suas competências, foi algo transformador em minha prática.

Passar deste modelo judaico-cristão para o modelo sistêmico é buscar competências, capacidades, no que eles sabem fazer, mais do que insistir nos erros, nas dificuldades, nos fracassos; é circular a informação, mais do que buscar a confissão dos traumatismos que se enraíza em um passado estéril, permitirá inovações (Ausloos, 2011, p. 181).

A vida não para nunca: os vivos não são verdadeiramente desequilibrados, estão em equilíbrio permanente, eles não são disfuncionais, mas em funcionamento. E frequentemente falamos de resistência das famílias, o que era apenas a incapacidade do terapeuta de ver seu potencial evolutivo. É preciso deixar de falar de família disfuncional (mesmo que seja difícil se exprimir assim) para falar em família funcionando de modo diferente. (Ausloos, 2011, p. 36)

Vendo a família como competente surgem novos adjetivos, novos caminhos, novas formas de se referir a essas pessoas; a linguagem passa a ser uma aliada na mudança de visão, já que ela também constrói a forma como pensamos; por exemplo, se falamos em famílias disfuncionais, muito provavelmente tentaremos torná-las funcionais, se falamos em famílias resistentes, centramos o problema na atitude de tal família e não na relação entre família e terapeuta. A linguagem, como diz Andersen (2002), pode criar deficiência, cada linguagem tem uma consequência para quem descreve, bem como para quem é descrito. Cada vez que discuto com alguém sobre uma família, tento responder a seguinte pergunta proposta por Andersen (2002): "[s]e a família estivesse aqui, como seria para ela ouvir a discussão entre nós sobre as preocupações da equipe?" (p. 211).

Durante os atendimentos de Carlos houve uma mudança, esses inicialmente eram focados nos problemas, e passaram a ser focados também em suas competências, como a sua preocupação com a educação de Karina, a sua vontade de se exercitar, a sua ida às consultas mesmo sendo tão difícil sair de casa, o manter-se vivo mesmo quando uma de suas razões de viver houvesse partido.

Por fim, um autor inspirador é Michael White (2012). Uma das ideias que mais me marcou foi a da contra história em oposição à história dominante, presente na descrição do mapa de conversações de reautoria e no mapa de conversações que enfatizam acontecimentos singulares:

As conversações de reautoria convidam as pessoas a continuar a desenvolver e contar histórias sobre as suas vidas, mas também as ajudam a incluir alguns dos eventos e experiências mais negligenciadas, porém potencialmente significativos, que estão "em desvantagem" em relação às histórias dominantes. Esses eventos e experiências podem ser considerados "acontecimentos singulares" ou exceções ... As pessoas ficam curiosas, e fascinadas, em relação a aspectos anteriormente negligenciados de sua vida e relacionamentos, e à medida que prosseguem as conversações, essas narrativas alternativas ficam mais adensadas, mais significativamente enraizadas na história e propiciam às pessoas uma base para novas iniciativas ao lidar com os problemas, dificuldades e dilemas de sua vida. (White, 2012, p.75-76)

Michael White (2012) faz uma analogia aos textos literários ao dizer que as pessoas participam da produção de significado em suas vidas a partir de enquadramentos narrativos, produzidos por um panorama de ação (a sequência das ações) e um panorama de consciência (que vai construir uma narrativa a partir dos acontecimentos vividos). A partir dessas histórias, tem-se a construção da identidade; dessa forma, qualquer renegociação de histórias de vida também envolve uma renegociação da identidade (White, 2012).

Durante os atendimentos com Carlos, a ideia de contra história foi significativa, pois eu tinha a impressão de que estávamos rígidos no acontecimento, mergulhados na história do problema, mas ao ficar atenta aos acontecimentos singulares, aos poucos outras histórias foram possíveis de ser contadas e, assim, uma renegociação, ainda que discreta, da identidade começou a ser construída.

Michael White ainda faz uma analogia das conversações como construtoras de andaimes. Para isso, traz o conceito da zona de desenvolvimento proximal, desenvolvido por Vigotsky na pedagogia. Tal zona, no contexto da terapia narrativa, caracteriza-se pela possibilidade de preenchimento da lacuna entre o que é conhecido e familiar e o que pode ser possível que as pessoas saibam sobre suas vidas (Vigotsky, 1984; White, 2012). Gostaria de encerrar esta seção com o que White (2012) apresenta, e que sinaliza para outras formas de conversas que potencializem o MCCP:

Como discuti no início deste capítulo, a "zona de desenvolvimento proximal" não pode ser percorrida sem o tipo de parceria de conversações, que propicie uma construção de andaimes que apoie a pessoa em prosseguir por degraus manejáveis. Reconhecer que é nossa tarefa como terapeutas construir andaimes na zona proximal de desenvolvimento é um aspecto importante para honrar essa responsabilidade. (White, 2012, p. 306)

Desenvolvimento do caso

Neste item pretendo discorrer com mais ênfase sobre as peculiaridades do processo terapêutico de Carlos.

O primeiro contato com Carlos foi durante o acesso avançado da minha equipe de ESF. Ele trazia diversas queixas: palpitações, tremores, dores de cabeça, dores no peito. Chequei o prontuário, em que havia extensa investigação diagnostica, porém sem achados. Apesar disso, os sintomas estavam lá, eram reais, causavam desconforto e eram um problema para ele. Carlos apresentava algo chamado de sintomas medicamente inexplicáveis (SMI), para os quais existem algumas possibilidades de definição, podem ser entendidos como uma tendência pessoal a se apresentar e comunicar queixas somáticas quando submetido a um estresse psi-cossocial (Fortes, Tófoli, Chazan & Balester, 2013), ou um processo em que médico e/ou pessoa/família se focam de forma exclusiva e inadequada nos aspectos somáticos de um problema complexo (McWhinnet, Freeman & Epstein, 2001). Partindo do pressuposto de que se tratava de um problema complexo e de que, mesmo sem uma explicação anatomopatológica definitiva, existia, iniciei o processo terapêutico com Carlos.

Trabalhamos por longo período na reatribuição de tais sintomas, isto é, em uma construção de conexão entre as queixas somáticas e o sofrimento psíquico (Almeida, Tófoli & Fortes, 2019). Para tal, a compreensão da dinâmica interacio-nal do sintoma e o entendimento do corpo como comunicador ativo foram essenciais (Asen et al., 2012). Carlos começou a notar que em datas comemorativas apresentava uma exacerbação desses sintomas. Para ele foi importante reconhecer essa associação, pois dessa forma podia conversar não só sobre os sintomas, mas isso possibilitou também nomear adequadamente as angústias relacionadas a esse processo e, assim, ter uma sensação maior de controle sobre o que sentia: "[q]uan-do os médicos ajudam as pessoas a contar suas histórias de saúde e de experiência da doença, ajudam-nas a dar sentido e em última análise, controlar sua saúde e experiência da doença" (Stewart et al., 2017, p. 51).

Todas as perguntas sobre o sintoma partilham uma ideia organizacional semelhante, de que os sintomas não estão simplesmente "lá", como objetos anexados a indivíduos. Em vez disso, eles são vistos - ao menos em parte -como criados no espaço que existe entre as pessoas, não apenas dentro de indivíduos. Eles têm uma dimensão interacional. (Asen et al., 2012, p. 76)

Nesse primeiro momento do processo, foi muito importante realizar perguntas reflexivas, ter em mente a causalidade circular e focar no inter-relacional. Mas paralelamente eu valorizava em demasia os conteúdos e ainda tinha poucos recursos conversacionais que permitissem um maior foco nas competências e em narrativas alternativas.

Em um segundo momento do processo, Carlos e eu já conseguíamos conversar para além dos sintomas, falávamos sobre as angústias, sobre a tristeza, sobre a vontade de morrer, sobre a dificuldade em se relacionar com as pessoas; esse diálogo teve um aspecto importante na construção de vínculo, já que minha função era também tornar a dor possível de ser compartilhada. Houve algumas estratégias para trazer outras vozes e distinções para o processo terapêutico, como a construção do genograma e o atendimento compartilhado com a companheira e com a enteada. Entretanto, ainda nos encontrávamos submersos em narrativas saturadas de problemas.

Um terceiro momento de minha relação com Carlos foi possível ao iniciar abordagens que dialogavam com as práticas narrativas. Para minha surpresa, Carlos aceitou o convite de embarcar nesses novos olhares, nessas consultas houve muitos momentos de pausa e reflexão, calma e assimilação, momentos intensos de falas internas, minhas e dele. Em um dos atendimentos, combinamos que falaríamos sobre a mãe de Carlos, já que seria o dia em que ela faria aniversário. Usei a metodologia proposta por White (2012) nas conversas de remembrança, isto é, discutir sobre a contribuição da mãe de Carlos em sua vida, discutir a identidade de Carlos pelos olhos de sua mãe, conversar sobre quais as contribuições de Carlos na vida da mãe e, por fim, dialogar sobre as implicações dessas contribuições para ela. Um dos momentos mais belos foi a descrição de Carlos sobre como conseguiu ser forte enquanto sua mãe não estava bem de saúde, o quanto, apesar de suas dificuldades em se relacionar, conseguiu estabelecer contato com seus irmãos e centralizar o cuidado da mãe. Era incrível como o Carlos visto por sua mãe era capaz e potente, e, mais incrível ainda, que Carlos conseguisse vislumbrar traços dessa potência em si ao final de nossa conversa.

Dessa forma, acredito que o processo terapêutico com Carlos se deu em três fases: a primeira, de validação e reatribuição; a segunda, de compartilhamento da dor; e a terceira, de uma reinvenção dessa dor. Carlos foi reconstruindo, de forma discreta, sua narrativa e suas descrições, emergindo um olhar de afeto para si.

Consequentemente, os problemas, suas descrições e aqueles que os descrevem e definem estão em um fluxo de contínua mudança. As conversas nas quais nos envolvemos, graças ao nosso esforço para vivermos em acordo uns com os outros, são como histórias e relatos de um conto. São capazes de infinitas revisões e reinterpretações. Os problemas, de acordo com essa metáfora linguística, podem ser considerados como "fragmentos de significado" em uma batalha cuja configuração muda continuamente por meio do diálogo. (Anderson & Goolishian, 2018, p. 48)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para trazer outras vozes a essa reflexão final, relemos o texto Tornando-se dialógico: psicoterapia ou modo de vida?, de Jaakko Seikkula (2017). Pensamos que se tornar - ou melhor seria dizer: estar em constante tornar-se - dialógica, não só como pessoa e terapeuta, mas também como médica, foi algo potente e transformador. Foi possível aprender: a planejar menos, a ouvir mais e a responder responsivamente, a acreditar nas potencialidades e nos recursos da pessoa e de sua rede de apoio, a enxergar a pessoa como especialista de si mesma, a potência dos diálogos - como o nosso papel pode ser colaborar na criação de espaços em que sejam possíveis de existir, a importância: das narrativas, das contra histórias e da coconstrução de andaimes que possibilitem outros olhares (White, 2012; Seikkula, 2017).

Evidenciou-se a complementaridade e as confluências entre o MCCP e os paradigmas da terapia de família relacional sistêmica, que juntos, ampliam o escopo de atuação e de resolutividade do médico de família e comunidade: na condução de casos de famílias com crianças com comportamentos externalizantes (por exemplo, agressividade, hiperatividade e desobediência); na abordagem de sintomas indiferenciados e de sintomas medicamente inexplicados; no manejo de doenças crônicas nas famílias; no manejo de agravos de saúde relacionados ao contexto social; na abordagem a questões relativas à saúde mental etc. (Santos & Boing, 2019). No caso relatado exemplificou-se a atuação terapêutica com uma pessoa que apresentava sintomas medicamente inexplicados e um transtorno de saúde mental de base, demonstrando, assim, a aplicabilidade e a potencialidade do paradigma sistêmico relacional no cenário da APS.

Conforme pontuado ao longo do texto, como confluências entre o MCCP e a terapia de família relacional sistêmica, é possível citar: a importância de colocar a pessoa no centro de seu cuidado e de promover a sua autonomia; a corresponsa-bilização do médico e da pessoa a respeito de um plano terapêutico; a importância da família, cujo entendimento de suas estrutura e funções ajuda na compreensão de como as pessoas desempenham seus papéis ou como enfrentam dificuldades; a importância da contextualização e do compartilhamento do poder. Como complementaridade, vale recordar o princípio da MFC que diz sobre a relação médico--pessoa ser fundamental para o desempenho do médico. Ao se valer da circularidade, do enfoque à perspectiva inter-relacional, da atenção às contra histórias e da compreensão da centralidade da linguagem como aliada na construção de novas identidades, a terapia de família relacional sistêmica fornece recursos teóricos e metodológicos para a construção de uma linguagem e de uma forma de conversa que intensificam o processo terapêutico.

 

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Recebido em 06/03/2021
Aceito em 01/07/2021

 

 

TAMIRIS ESTEVES NAGEM
Médica de família e comunidade e terapeuta de família e de casal
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7729-5631
E-mail: tami.nagem@gmail.com
SIMONE BAMBINI NEGOZIO
Terapeuta Familiar, docente e membro da equipe gestora do Instituto de Terapia Familiar de São Paulo - ITFSP
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1215-8193
E-mail: sbnegozio@gmail.com

 

 

1 First the recognition that the patient's experience of illness is primary. Our own system of diagnostic abstractions, though very powerful, is secondary. In patient's experience, there may be no separation into mental and physical.
2 [a] "bit" of information is definable as a difference which makes a difference.

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