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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.70 São Paulo maio/ago. 2021

 

FAMÍLIA E COMUNIDADE EM FOCO

 

ENTREVISTA

 

 

Adriana Scoz da Cunha LimaI; Helena Maffei CruzI; Edna Maria Malheiros da Costa; Giovana Beatriz Kalva MedinaII

IInstituto Noos, São Paulo/SP Brasil
IIFAE Centro Universitário, Curitiba/PR, Brasil

 

 

"Não basta ser pai, tem que participar": as vozes dos pais de crianças e adolescentes com deficiência. Giovanna Medina e Edna Malheiros, integrantes do X ICCP, apresentaram seu trabalho de conclusão do curso com o título acima. Nós, Adriana Scoz da Cunha Lima e Helena Maffei Cruz, consideramos importante e pouco explorado o lugar dos homens nessa situação e entrevistamos as autoras para compartilhar com você, leitor, os achados dessas conversas. Os encontros com os pais foram gravados e eles assinaram a permissão para a gravação e divulgação do documento escrito no último encontro. "E" indica indiscriminadamente as entrevistadoras e "R" as autoras.

E - Como surgiu a ideia de entrevistar homens pais de crianças com deficiências?

R - Sabemos que ser pai de uma criança ou jovem com deficiência impõe muitos desafios, porém poucos sabem a realidade dessa experiência. De maneira geral, vemos a presença constante de mães de crianças e jovens com deficiência nos encontros promovidos nas instituições. Mas o que pensam e sentem os pais?

E - Seu objetivo então foi ouvir as vozes dos pais de crianças e adolescentes com deficiência?

R - Sim, ouvindo o relato de suas experiências pensamos contribuir com a disseminação de conhecimento que venha a diminuir o preconceito e favorecer o apoio aos pais que se encontram nessa situação.

E - Como vocês desenvolveram esse projeto?

R - Enviamos uma carta-convite para 10 pais, alguns responderam da impossibilidade de participar e quatro aceitaram o convite. Havíamos programado dois encontros, porém o vínculo que se estabeleceu entre os pais e a disponibilidade do grupo mobilizou a todos, inclusive a nós, a realizarmos um terceiro encontro. Os encontros foram bem participativos, estabeleceram-se conexões, houve crescimento e o resultado foi positivo. Estamos programando um quarto encontro, para colaborativamente concluirmos o Documento Coletivo.

E - Como vocês conheceram esses pais?

R - Por meio do Laboratório de Pesquisas em Educação sobre o Desenvolvimento Humano - LAPEEDH, de Curitiba. Houve uma indicação de pais que já haviam sido atendidos em algum momento pelos programas oferecidos pelo laboratório. Entramos em contato com esses para fazer o convite.

E - Qual o perfil dos participantes? Podemos visualizar o quadro que apresentaram?

 

 

R - Perfil dos Participantes

E - Como se desenvolveram os encontros?

R - Iniciamos com um acolhimento em que se apresentaram falando algo de si e pedimos para expressarem uma qualidade com a primeira letra do nome. Queríamos conhecer a experiência de cada um, dando vez e voz a esses pais, com perguntas disparadoras como:

- Como foi para você a chegada do seu filho? O que você sentiu? O que lhe veio à mente? O que você pensou?

- Como é ser pai de uma criança especial?

- Qual foi o seu maior desafio?

- O que você gostaria que as pessoas soubessem acerca do que você vive?

As respostas apontaram para o desejo de deixá-los crescer, ter autonomia, ao mesmo tempo o medo de eles serem maltratados, sofrerem bullying e eles, pais, não estarem presentes. Ficou a pergunta: como eles vão se defender?

Perguntamos também como foi o diagnóstico, a chegada de um filho diferente. Um deles respondeu: "Eu guardei para mim, pois tinha mais um dia de férias, e eu pensei, se elas (esposa e filha) souberem, vai acabar esse nosso período de férias, eu guardei, chorei, me recompus. E aí tivemos aquele período complicado, de buscar informações, que foi realmente de luto."

Outro disse que sempre havia sido o suporte para a esposa, e sempre procurava cuidar dela, e esse foi o único momento em que se inverteram os papéis, e que ele literalmente chorou e ela acolheu.

As respostas de como é ser pai de uma criança especial giraram em torno da frustração, quando se procura socializar a criança com Down, percebe-se as diferenças, a necessidade de ser forte e a frase "Não basta ser pai tem que participar", que escolhemos para título do trabalho.

Isto é, ser pai de uma criança especial é realmente um desafio. É necessário que haja muita dedicação, até renúncias. Conseguir conciliar as atividades da vida de adulto com o cuidar dos filhos.

Foi apontado também um sentimento de ausência que incomoda muito. Trabalhar bastante, sair cedo, chegar tarde, não poder atender, dar a atenção necessária, não poder colaborar com a esposa nas atividades do dia a dia, que não se referem apenas a esse filho. Uma queixa de estar sendo bem exaustivo, até extenuante.

E - Como terminou esse primeiro encontro?

R - Perguntamos o que eles gostariam que as pessoas soubessem sobre a sua experiência. Resumindo as respostas, o pedido é para que sejam reconhecidas as dificuldades que pais ou famílias enfrentam. As pessoas se afastam da família, há um grande número de pais que vão embora deixando a esposa sozinha por conta dessa situação. (...) Também enfatizaram a importância de a sociedade como um todo saber que a educação de uma criança especial é diferente. Que as pessoas se coloquem um pouco no lugar deles para poderem ajudar seus filhos ou no mínimo respeitarem.

Perguntados sobre como foi e como estavam saindo do nosso encontro, as respostas foram: proveitoso, bem, agradável, curioso.

E - Quanto tempo depois aconteceu o segundo encontro? Como ocorreu?

R - Os encontros foram realizados quinzenalmente, no dia e horário que os pais escolheram como o melhor para se adequar às suas agendas. Como acolhimento perguntamos a cada um como estavam chegando e pusemos a música Homem também chora, do Gonzaguinha. Nosso objetivo era que eles conversassem entre eles sobre suas vivências, expressando as dificuldades e avanços. Perguntamos se se sentiam ouvidos, incluídos na criação do(a) filho(a), e as repostas foram positivas, mas também apontando para descontinuidades no atendimento, da preferência de alguns profissionais pelas crianças mais fáceis de lidar.

Perguntamos também o que eles gostariam de saber um do outro e que não havia sido falado. Surgiram falas sobre preocupação com a sexualidade, divisão de trabalhos em casa, sobre a responsabilidade, cansaço, especialmente nos fins de semana. Um pai relatou que às vezes há atrito com a esposa e que foram uma vez para um hotel só os dois como uma forma de recarregar a relação.

Eles falaram coisas muito importantes para nós, abriram um pouco de suas vidas. Perguntamos: se seu filho tivesse ouvido você falar, e ele pudesse se expressar claramente como pensa e como se sente, o que você acha que ele diria?

As respostas foram emocionantes. "Diriam que eu sou um paizão, que dou atenção para eles. Pai tem que dar mais atenção ao que o filho fala."

"O N. reconheceria meu esforço, meu empenho, para o bem-estar dele. Diria 'meu pai tem se esforçado'".

"Eu acredito que o M. repetiria uma frase frequente. Papai vem. Gostaria que o papai fosse mais presente. O que isso representa para mim? Muitas vezes me representa um conflito. Porque eu gostaria de fato estar mais presente."

E - Como terminou esse encontro?

R - Perguntamos se alguém gostaria de acrescentar algo. Uma resposta foi: "quero dizer para o R. e o M., foi muito importante para mim, que vocês me inspiraram a reflexão. De como vocês lidam com as angústias da alma. Ouvir isso me inspirou." Outra: "às vezes nos sentimos isolados. Já participei de algumas associações. Momento de desabafo mesmo, e de não guardar só para si."

Perguntados sobre como estavam saindo, as palavras foram: impactado, satisfeito, reflexivo, motivado.

E - Entendi que vocês haviam pensado em dois encontros, mas houve também um terceiro?

R - Pelo entrosamento e abertura que houve nos dois primeiros, buscamos ouvir organizadamente as vozes, em ordem alfabética dos nomes, com o objetivo da construção de um documento que auxilie na disseminação do conhecimento sobre essa realidade. Um documento público, conforme a proposta da Terapia Narrativa.

 

PAIS SENDO PAIS

Somos quatro pais que, como qualquer outro pai, dentre as muitas características que nos definem, amamos nossos filhos e queremos que eles sejam felizes. Temos, contudo, uma característica em comum que nos une - temos filhos especiais e queremos ser tratados e respeitados como qualquer pai, assim como queremos, também, que nossos filhos sejam respeitados e tratados, como quaisquer filhos.

Este documento é direcionado para pais, mães, irmãos, crianças, adolescentes, membros da comunidade, para as pessoas que estão descobrindo que a diversidade faz parte do mundo, enfim, para todas as pessoas, mas em especial é direcionado aos pais homens que, como nós, têm filhos com necessidades especiais.

De modo geral, nós vivemos experiências semelhantes de situações adversas: o pré-conceito dentro da própria família; obstáculos da dificuldade financeira na infância; nos debatemos tendo que aprender tudo do começo, batendo a cabeça algumas vezes até aprender qual o melhor caminho a seguir nessa jornada que a vida nos apresentou.

Ao compartilharmos nossas histórias pudemos perceber que, ao termos um filho com necessidades especiais, vivemos experiências de situações adversas semelhantes. Uma delas foi ter que lidar com o preconceito dentro da nossa própria família em relação à condição do nosso filho. Dentre outras dificuldades: "eu sempre era o suporte para a minha esposa, e eu sempre procurava cuidar dela, e o momento da notícia foi o único momento que invertemos os papéis, e que eu literalmente chorei e ela me acolheu"; "o mundo tem muita gente má, tem pessoas boas e pessoas que vão criticar, fazer bullying, é possível eles passarem por isso, e eu não estou lá"; "quando meu filho diz 'eu vou casar', e ele conta com quem, e aí eu paro e penso, como vai ser essa questão? Essa possibilidade de futuro, de ter uma família, do trabalho?"; "como eles vão se defender?". "Neste momento podemos sentir uma inquietação e um desconforto, pois não saber como vai ser o futuro dos nossos filhos é algo que aperta o coração".

Não foi fácil aprender a ser pai de um filho com necessidades especiais. Logo de início vem o impacto da notícia. Um de nós compartilhou que no primeiro ano do diagnóstico do seu filho, "quebrou muito a cara", ele não sabia nada, tentou várias coisas e, algumas vezes, se frustrou. O que o ajudou a enfrentar esse desafio foi a resiliência. Minha mãe sempre me cobrou muito, afirma ele. Sua mãe lhe dizia, "filho, se você começou você vai até o fim". Suas palavras muito me incentivaram nos momentos difíceis

Para outro de nós, quando seu filho com síndrome de Down nasceu, teve que lidar com a falta de conhecimento de alguns familiares que só conseguiam enxergar as dificuldades que viriam pela frente. Para fazer frente à nova situação, ele teve que acionar sua habilidade de exercer sua racionalidade. Manter o foco na bênção de trazer um filho ao mundo, sonhar com todo o futuro que ele teria, podendo se desenvolver em uma família que o ama, ajudou a ter compreensão e a seguir adiante.

Para outro dos quatro pais, como ele era muito parecido com sua mãe e ela sempre foi uma pessoa de muita fé, nunca se curvou diante das dificuldades, isso o fortaleceu. Ele se lembra que em momentos que tinham apenas arroz com margarina para comer, essa era a refeição. Sua mãe o ensinou a ter confiança de que iriam conseguir superar as dificuldades. E quando seu filho chegou, ele segurou na mão de Deus (música: Segura na mão de Deus e vai...) e seguiu, sem titubear. Com isso, outro mundo se abriu diante dos seus olhos, podendo ver coisas que antes ele não conseguia enxergar.

Com essas experiências que vivenciamos, aprendemos que a racionalidade, a resiliência e a confiança foram e são habilidades fundamentais para nos ajudar a seguir em frente, e vencermos os obstáculos que surgiram.

Compreendemos então que a confiança, a resiliência e a racionalidade contribuem para que possamos continuar nossa caminhada, pensando da seguinte forma: quando a racionalidade falha precisamos ser resilientes, quando a resiliência falha precisamos ter confiança em nossos propósitos. Essas são habilidades que se apoiam e se complementam para dar forças para nós, pais, cumprirmos nossa missão de proporcionar o melhor possível para nossos filhos e filhas.

Para finalizar, gostaríamos de falar aos pais que, como nós, estão vivendo os desafios de ser pai de um filho com necessidades especiais que:

1. "Houve muito crescimento e descobri que existe outro lado que eu não conhecia. A partir do momento que passei a vivenciar meu novo contexto, eu passei a ver a vida com outros olhos, um novo horizonte se abriu, passei a perceber detalhes e situações que até então não tinha notado. Isso me deixou mais sensível para perceber como vivem as pessoas com deficiência";

2. "Diante das dificuldades eu descobri a importância de ser ouvido nas minhas dificuldades e entendi que não estava sozinho e que sempre tem alguém disposto a ajudar";

3. "Tive oportunidade de conhecer profissionais que me ajudaram muito, escutei outros pais e suas histórias, tudo isso me ajudou muito";

4. "Descobri que esse novo mundo, de ter um filho especial, também tem outro lado, que não é romântico, mas é possível e tem diversas possibilidades".

Saudações, B., D., M., e R.

 

Para o encerramento foram elaboradas pelas entrevistadoras:

a) Carta de agradecimento ao grupo;

b) Carta individual, que enviaram no dia seguinte, agradecendo e ressaltando a competência e a contribuição de cada um ao grupo e ao trabalho.

As histórias vividas são muito mais
ricas do que qualquer narrativa.

Marilene Grandesso

 

 

ENTREVISTADORAS

ADRIANA SCOZ DA CUNHA LIMA
Pedagoga com especializações em: Psicopedagogia, Terapia de Casal e Família, Mediação de Conflitos e Práticas Colaborativas e Dialógicas. Terapeuta e mediadora de famílias e casais no Instituto Noos e em consultório particular. Diretora do Instituto Noos - 2020 a 2022.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8917-1994
E-mail: adrianasclima15@gmail.com
HELENA MAFFEI CRUZ
Bacharel em Ciências Sociais e psicóloga, mestrado em Psicologia Clínica, formação em Psicanálise e Terapia de Casal e Família, terapeuta de adultos, famílias e casais em consultório, faculty do Instituto TAOS, diretora do Instituto Noos.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0073-3197
E-mail: helenamcruz@uol.com.br

 

ENTREVISTADAS

EDNA MARIA MALHEIROS DA COSTA
Psicopedagoga com formação em Psicanálise e em Terapia de Família e especialização em Teoria da Ação Humana, Sexualidade Humana e Gerontologia. Atende em consultório Famílias, Casais e Indivíduos; professora do Curso de Formação em Terapia de Família e Terapia Comunitária Integrativa.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3754-4805
E-mail: emalhei@hotlink.com.br
GIOVANA BEATRIZ KALVA MEDINA
Psicóloga, com formação em Terapia Familiar Sistêmica, Mestrado e Doutorado em Educação. Atende em consultório Famílias, Casais e Indivíduos; professora no curso de Graduação em Psicologia da FAE.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4464-9701
E-mail: giovannabkmedina@fae.edu

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