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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.1 São Paulo mar. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Raquel Plut Ajzenberg*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Diana Lichtenstein Corso e Mario Corso. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006, 328p.

O estilo fluido, repleto de imagens e leveza, denota a generosidade dos autores de Fadas no divã para com os leitores. Sem retóricas acrobáticas e longe de reducionismos pedagógicos, oferece-nos um manuseio prático do livro, a fim de que possamos usá-lo de acordo com nossas expectativas, necessidades e desejos. Já no início, o leitor é também recebido pela escrita igualmente lúcida e desenvolta de Maria Rita Kehl, que discute questões pontuais e pertinentes trazidas pelo casal Diana Lichtenstein Corso e MarioCorso, algumas das quais também serão aqui abordadas.

Trazendo-nos o fruto de um trabalho intenso de três anos, Diana e Mario Corso ampliam o universo de referências de pais, educadores e psicólogos ao destacar, em cada um dos contos escolhidos, preciosidades metafóricas que apresentam os dilemas e as angústias do viver. Contribui para essa ampliação a forma como os autores compõem seu discurso, privilegiando o impacto e a eficácia das fantasias nos leitores. Ou seja, cientes de sua função de psicanalistas, eles não se propõem à crítica literária, mas sim a aprofundar a temática das histórias infanto-juvenis, estabelecendo conexões e evocando associações com os mais diversos conceitos da psicanálise – os recursos psicanalíticos, nessa medida, são operantes para a construção de um sentido que amplia o espaço de reflexão. Nessa perspectiva, ganha destaque o fato de o conteúdo dos temas universais, como ocorre nos mitos, não terem sentido intrínseco (ou sentido em si mesmo), mas serem, sim, estruturas geradoras de significados. Em sintonia com as idéias da psicanálise, os autores não atribuem ao símbolo ou sonho uma interpretação totalizante; ao contrário, ambos são vistos como mutáveis e múltiplos de sentido. Levam em conta, então, a singularidade, a sobredeterminação, os deslocamentos; enfim, toda a complexidade e infl uência dos aspectos inconscientes na apreensão do mundo.

Para fazer essa leitura, os autores revelam suas bases sólidas em Freud, destacando ainda aspectos da obra de Lacan, de Winnicott e de Bruno Bettelheim, para evidenciar e realçar as implicações de cada uma das considerações. Aliando análises precisas e clareza, o casal apresenta então diversas formulações dos contos selecionados, sendo que a escolha dos que fariam parte da coletânea teve como critério primordial as fantasias que despertam. Cada grupo de contos mereceu um estudo minucioso sobre a montagem do enredo, as origens, a configuração dos personagens, os detalhes etc. Os clássicos foram agrupados e circunscritos numa temática comum e parecem estar dispostos numa ordem que tenta acompanhar o processo evolutivo de crescimento.

Para exemplificar, cito alguns deles. Os contos “Patinho Feio” e “Dumbo” nos remetem às primeiras angústias de separação e desamparo infantil. “Chapeuzinho Vermelho” e “Os três porquinhos” referem-se à curiosidade sexual infantil, à oralidade, à sedução por um adulto e à construção da função paterna. Já nos contos “Pele de Asno” e “Bicho peludo” podemos ter acesso às formas indiretas ou disfarçadas da sexualidade, que, apesar de atrair, causam ao mesmo tempo ameaça e repulsa. A passagem da infância para adolescência, o período de latência (típico de “Bela Adormecida”) e a busca necessária de outros horizontes além do familiar são ilustrados nos contos “Rapunzel” e “A Bela e a Fera”. Quanto ao universo do menino, vemos nos contos “Pinóquio” e “João e o pé de feijão”, por exemplo, a trajetória em busca de identidade autônoma, mediante desafios e superações das diversas facetas da figura do pai, o que representa a necessária morte simbólica deste.

Outro elemento destacado pelos autores, e que caracteriza esses contos, diz respeito ao antagonismo e à disputa – representantes dos objetos parciais do universo infantil –, que são vivenciados pelos personagens: uma “mãe-fada” vista como boa, terna e meiga, e uma “mãe-bruxa”, severa e punitiva, por exemplo. Próximos da linguagem dos sonhos, dando lugar às vivências arcaicas, os personagens contracenam com figuras antagônicas por meio de sentimentos, atos e idéias, em narrativas que incluem contradições e paradoxos. Através da personificação dos personagens, entram em jogo as forças da ambivalência em relação às figuras signifi cativas.

Assim como as poções mágicas, os venenos e potes tão presentes em histórias desse gênero teriam como função destilar a agressividade e a inveja, que, muitas vezes, retornam em formatos persecutórios (monstros, castigos, punições etc). Já as soluções mágicas e os finais felizes redimem e equilibram, tendo uma função reparatória nos embates entre amor e ódio.

De fato, já no “Projeto para uma psicologia científica”, Freud (1895) descrevia o desejo infantil de encontrar a vivência oceânica do prazer ilimitado. Os contos traduzem essa ânsia, e seus heróis encenam os infindáveis obstáculos. É no enfrentamento dialético prazer-realidade que são estabelecidas as diferenças entre eu-mundo, dentro-fora, realidade-fantasia.

Os autores discutem as idéias de Bruno Bettelheim referentes aos aspectos terapêuticos do conto, na medida em que a criança encontra solução, sugestões em forma simbólica para lidar com conflitos ou imagens, que estruturam seus devaneios. Mas ressaltam que, muito mais que uma forma de expressar o que se passa conosco, a força dessas histórias infantis se reflete, de certa forma, a posteriori, quando a angústia é difusa – ao encontrar um contorno para o sofrimento, ela se configura em diferentes possibilidades de representação. Mais uma vez há semelhanças com as idéias de Freud sobre construções em análise: o analista traduz o inconsciente em imagens acessíveis, ampliando o contato com partes mais primitivas ou ocultas.

Poderia o conto, então, ter efeito na reconstrução de áreas devastadas pela intervenção do traumático? Talvez certo direcionamento para reorganizar e dar formas intermediárias a vivências pouco elaboradas, e nesse sentido teria o caráter de figurabilidade. Seria como uma ponte a ser construída entre a força pulsional e a realidade, no sentido de adquirir algum tipo de forma ou sentido.

Vale destacar também a referência à obra de Winnicott, que nos traz a função da “ilusão” como constitutiva da rede representacional da criança. Por meio do enredo, ela pode colocar em cena o inesperado, o suspense, as perdas e os abandonos, bem como as soluções mágicas. Trata-se do espaço transicional, onde pode movimentar-se entre as fantasias idealizadas e as situações geradoras de angústia e desamparo infantil. Cada criança fará, então, sua trajetória de alívio, descarga e desprazer. Horror e fascínio caminham juntos, e seu conteúdo ressoa na subjetividade de cada um. É no espaço da ilusão, como bem lembra o casal Corso, que encontramos condições para desenvolver os processos primário e secundário.

Mas o que faz com que algumas histórias persistam por tanto tempo? Eis um dos eixos que também permeiam Fadas no divã. Os autores lembram que essas narrativas partem da tradição oral, ainda que tenham se transformado ao longo do tempo; e a maioria delas permite o acesso às origens, ao folclore, às estruturas sociais de determinada época. Além disso, ao traçar as transformações sofridas pela diversidade das culturas e dos tempos históricos nos quais estão inseridas, os autores avançam na discussão, afirmando que algumas tramas sobreviveram graças à capacidade de representar conteúdos do inconsciente infantil, num esquema imaginário em que se apóiam elementos conscientes e inconscientes, os quais podem mudar conforme o cenário e a época em que a narrativa é contada. Assim, certos temas têm ressonância em núcleos permanentes do humano, tais como o amor, a exclusão, a identidade, a sexualidade. Seriam, pois, como relíquias das narrativas humanas que carregam valores e crença de outra época.

A segunda parte do livro dedica-se a analisar histórias contemporâneas. Ficam evidentes as transformações sofridas pelos contos de fadas, que tomaram forma de história em quadrinhos, ficções científicas e filmes, como Mafalda, Snoopy, Calvin, Harry Potter e muitos outros que, de certa forma, dão expressão às novas necessidades subjetivas.

Em cada capítulo, encontramos um rico detalhamento de questões polêmicas da atualidade, referentes a família, escola e adolescência. O casal Corso não se esquiva de entrar em questões bastante controversas e atuais, como a infl uência da televisão, dos jogos, computadores, filmes etc. Assinalam que os pais de hoje muitas vezes não se sentem legitimados como influência dominante na educação de seus filhos e acabam projetando insuficiências e temores no alvo externo. Afirmam os autores: “Não se deve esquecer de que as histórias somente mobilizam algo que as crianças já têm em seu interior, e a constituição de sua personalidade se dá a partir do que a família lhes transmite, consciente ou inconscientemente” (p. 306).

Destaco aqui uma das histórias citadas no livro. Trata-se de um quadrinho brasileiro, bem popular entre as crianças: Turma da Mônica. A temática gira em torno da intransigência infantil, da passagem da família para o grupo (latência) e dos revezes e conseqüências do crescimento: Mônica encarnaria o adulto e seus poderes, visto pela ótica infantil, que com sua agressividade impõe as vontades a todos que estão em volta. Já no personagem Cascão, podemos ver em ação a estrutura da fobia: o medo, entendido como uma angústia difusa que remete ao representante paterno, e a organização do objeto fóbico (no caso, água) mostram a importância do delineamento dessa angústia. Magali representaria uma oralidade sem regras, desejo sem conseqüências, sonho acalentado dentro de um universo regido pelo princípio do prazer.

Outra história que condensa várias questões da puberdade e adolescência é a série Harry Potter. Para os autores, o sucesso retumbante com o público se dá pelo fato de representar interesses importantes das crianças contemporâneas. Harry é um herói melancólico em busca de suas origens. Trava embates com figuras masculinas – uma boa e inocente, e outra má e ardilosa – que nada mais são do que faces da figura paterna. Todo o ódio é canalizado para o vilão Voldemort, para que assim Harry possa cuidar do nome de sua família e protegê-lo, livre de ambivalências. O colega Rony, por sua vez, procura um lugar dentro de sua numerosa família. Nesse grupo escolar, todos possuem um ideal, o que já denota certa força do desejo norteando o ideal de ego na constituição de identidade, mesmo que seja de vingança, sucesso etc.

O casal Corso faz ainda uma interpretação interessante das figuras dos Dementadores, monstros aterradores que roubam a força vital, sugando as boas lembranças. Seriam uma personificação da depressão, na medida em que engolem os laços afetivos e que os personagens, sem defesas, desmaiam. Metáfora pontual sobre as sintomatologias das patologias contemporâneas, principal pano de fundo dos casos borderline, nos quais a teia de representação é desfeita, advindo uma sensação de buraco ou vazio: “A arte é uma forma prévia de sabedoria, escreve-se de forma intuitiva, não teórica. Hoje nem as crianças ignoram os perigos da tristeza. Melhor assim, conhecendo os contornos do monstro fica mais fácil combatê-lo” (p. 265).

Os autores de Fadas no divã destacam também nas histórias de Harry Potter a presença das figuras mitológicas e fi ccionais das tradições ocidentais. Os personagens buscam encontrar não só suas origens, mas também a sabedoria de seus mestres – desejo que é analisado como crítica velada aos adultos de hoje, que deixam os filhos desamparados, pois o culto à juventude leva-os a imitar o comportamento jovem, negando a transcendência de gerações e empobrecendo suas possíveis figuras de identificação.

Outra preocupação dos autores é contribuir para questões da atualidade, discutindo por que os jogos e a televisão atraem tanto os púberes e adolescentes. Fugindo a lugares-comuns e visões moralistas ou à tentação de invocar catástrofes da contemporaneidade, eles abordam elementos da psicanálise nas interações com os fenômenos da cultura atual. Entendem que muitas dessas manifestações são instrumentos para o fantasiar do adolescente, como recursos de elaboração, tal qual o brincar para a criança:

Na brincadeira, está-se vivendo a personagem de uma trama, é como uma fantasia vivida, mas com a possibilidade de sair da cena. Nas fantasias, que encontram sua forma mais acabada na adolescência, é possível imaginar protagonista de uma trama na qual o personagem somos nós mesmos, mas jamais uma dificuldade obstruirá a realização desse sonho (p. 260).

Um jovem dispersivo pode, por exemplo, se imaginar magnata de videogame sem que lhe ocorra quanto de informática terá de aprender. A menina gordinha pode pensar em ser magrinha sem fazer nenhum sacrifício para tal. Ou seja: na juventude, vive-se em pensamento, sem acreditar em treinamento. Já adultos, sabemos o quanto somos exigidos em termos de esforços e dedicação para atingir nossas metas; por isso, resistimos aos devaneios e já não nos fascinamos tanto com promessas ilusórias. Sabemos “com quantos paus se faz uma canoa” (p. 260).

Por fim, ressaltamos algo fundamental neste livro: os autores convidam os pais e educadores, ou todos aqueles que de alguma maneira trabalham com crianças, a uma reflexão não acusatória, nem aleatória. Muito mais que discutir a essência do material utilizado, privilegiam a relação que o adulto estabelece com o jovem ou a criança, convidando-nos para um exercício ativo de nossas funções, como contar uma história e fornecer instrumentos para o pensamento, a curiosidade e a autorização para o sonhar.

“Poderíamos pensar que a mãe suficientemente narrativa é uma das facetas da mãe suficientemente boa (p. 300)”. Os autores enfatizam, assim, a relação que se estabelece entre a dupla, com o adulto se deixando envolver e tomando também para si o encantamento da infância perdida.

Diríamos que o casal Corso valoriza o regate da intimidade da dupla narrador-ouvinte, a tradição oral. Em síntese, o investimento feito pelo adulto, ou o discurso parental, cria potencial criativo: o elemento sonhante.

 

 

* Membro associado da SBPSP.

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