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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.1 São Paulo mar. 2008

 

ARTIGOS

 

A capacidade de estar vivo

 

La capacidad de estar vivo

 

The capacity of being alive

 

 

Rahel Boraks*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho, ilustrado com casos clínicos, busca acompanhar o desenvolvimento e a expressão da capacidade de estar vivo nas várias etapas do amadurecimento, segundo a teoria de Winnicott. O tema se expande para realçar as implicações que tem com a experiência corporal, emocional e afetiva, até alcançar questões relativas à ambivalência de paciente e analista quanto à capacidade de estar vivo.

Palavras-chave: Relação analítica; Vitalidade em Winnicott; Sobrevivência; Presença viva do analista; Sentir-se real; Estar vivo.


RESUMEN

Este trabajo, ilustrado con casos clínicos, trata de acompañar el desarrollo y la expresión de la capacidad de estar vivo en las varias etapas del madurar. Utilizando la teoría de Winnicott, el tema se expande, para destacar las implicaciones que tiene con la experiencia corporal, emocional y afectiva, hasta llegar en cuestiones relativas a la ambivalencia del paciente y del analista teniendo en cuenta la capacidad de estar vivo.

Palavras clave: Relación analítica; Vitalidad en Winnicott; Supervivencia; Presencia viva del analista; Sentirse verdadero; Estar vivo.


ABSTRACT

Illustrated by two clinical cases, this paper’s attempt is to accompany the development and expression of the capacity of being alive in several stages of maturation. The theme is expanded by referring to Winnicott’s theory in order to outline its implications with bodily, emotional and affective experience up to the point where it reaches issues related to the patient’s and analyst’s ambivalence keeping in mind the capacity of being alive.

Keywords: Analytical relation; Vitality in Winnicott; Survival; Alive presence of the analyst; To feel itself real; To be alive.


 

 

Um psicanalista deve ser capaz de reconhecer com tristeza e compaixão que, entre as piores e mais lesivas perdas que um ser humano pode ter, está a perda da capacidade de estar vivo para sua própria experiência.

Thomas Ogden, 2005

 

A psicanálise, no seu início, esteve muito empenhada em derrubar os projetos de perfeição humana que dominavam o saber do século xviii. Ao longo dos anos, com as mudanças de contexto histórico e cultural, várias teorias psicanalíticas possibilitaram novas visões de homem, as quais foram sendo incorporadas ao conhecimento da natureza humana e favoreceram o aparecimento de visões diferentes sobre o que seria a “vida”. Assim, cada teoria tem para si uma versão e um projeto diferente do que seja a capacidade de estar vivo. No entanto, a questão nunca chegou a ser de fato discutida pela psicanálise, ficando restrita às entrelinhas do que cada uma dessas teorias propõe em termos de desenvolvimento emocional e da visão de homem que norteia cada uma delas.

Winnicott, movido pela busca da conexão consigo mesmo e pela importância que dava ao gesto como elemento capaz de transformar a potencialidade numa experiência viva, atribuiu um lugar de destaque ao corpo, considerando-o elemento fundamental para o sentir-se vivo nas etapas mais primitivas do desenvolvimento. Valorizava de modo radical o que é real e vivo em cada um, atribuindo inicialmente ao corpo esta condição de manutenção da singularidade.

Winnicott descreve o nosso início em termos de vida corporal dizendo que, no corpo, tudo se inicia como função, como funcionamento de uma anatomia viva, para depois se tornar fantasia existente em um “dentro”. Destaca que é o corpo que abriga o ser, que lhe dá morada e que inicialmente sustenta o sentir-se vivo. É também o corpo que nos possibilita ter um lugar de onde podemos iniciar a vida a partir do que nos é conhecido, do que é nosso e do que vivemos primeiramente de modo sensorial.

Dado que as primeiras experiências se organizam de modo corporal, pode-se dizer que a vitalidade inicial se expressa de modo global no sentido de abarcar o sujeito como um todo. O destino dessa vitalidade depende, em grande parte, da expressividade não intrusiva da mãe e da capacidade do ambiente de acolher estados excitados e sustentar momentos de relaxamento. A organização corporal da experiência é a primeira de uma série de outras transformações que ocorrem de modo não linear e compreende outras formas de experiência interdependentes, que se influenciam mutuamente. Assim, a personalidade vai se tornando mais complexa, mais rica, e sua dinâmica contribui para a vitalidade. O corpo, sugere Winnicott, faz parte da personalidade; tudo o que se passa dentro e fora das partes que o compõem diz respeito à personalidade.

O corpo, enquanto apresentação primitiva da capacidade de estar vivo, é uma decorrência dos cuidados especializados e simples da mãe, os quais precisam ser oferecidos de modo vivo e devem emergir de sua vitalidade corporal e emocional. Isso significa que a mãe deve, de modo contínuo, apresentar o bebê ao seu corpo e este ao seu psiquismo. Nessa concepção, na qual um ser se dá a partir da presença humana do outro, estar vivo é poder ser nutrido física e emocionalmente, é poder ser sustentado e poder conviver. O amadurecimento será facilitado dependendo essencialmente do tipo de troca, de proximidade e de uso do corpo da mãe.

André Green mostrou, no artigo “A mãe morta”, as conseqüências que uma mãe desvitalizada pode ter para a vida emocional de um indivíduo. Winnicott aponta (caso Ihiro) o quanto essa tarefa materna pode ser difícil, se uma anomalia corporal faz a mãe se sentir envergonhada, culpada, assustada, excitada ou desamparada. A qualidade da capacidade de identificação e da responsividade materna contribui para o que somos capazes de aprender com a vida e, principalmente, para aquilo que em nosso self suporta o apetite para o viver.

O resultado dessa interação inicial é o estabelecimento de um eixo central em torno do qual o sentir-se vivo se organiza, um eixo que serve de sustentação e possibilita, ao mesmo tempo, certa flexibilidade que evita que a personalidade se organize em torno de estados de rigidez. Esse eixo se forma como decorrência da adaptação materna e permite alternâncias do estado de ser, sem que estas sejam experimentadas como vivências de despedaçamento.

Assim, realizar a capacidade de estar vivo ao longo da vida tem a ver com a proximidade de algo que se assemelha a um corpo materno, um íntimo flexível, ora organizado em certa direção, ora rarefeito, à mercê de qualquer destino. É o representante da vitalidade e sua expansão que caminham na direção de ampliar maiores e mais profundas possibilidades de sentir-se vivo.

Por outro lado, a desconexão com o corpo leva ao que Winnicott chamou de despersonalização, favorecendo muitas vezes um sentimento de não ser real para si mesmo. Isso pode se manifestar de várias formas e com muitas nuances. Com grande freqüência se produz um desalojamento no qual o vigor corporal– que, com seu tônus e prontidão, deveria contribuir para a capacidade de estar vivo– permanece enclausurado em áreas dissociadas do self, impedindo a experiência de vitalidade. A sobrevivência se torna o foco do sujeito, que luta para mantê-la em detrimento do que seria estar realmente vivo.

Em certas circunstâncias a capacidade de estar vivo e sentir-se real pode ser perdida. No entanto, é preciso destacar que ter uma experiência de perda implica uma organização emocional sofisticada, capaz de manter o indivíduo vivo para a própria experiência da perda. O que se observa com muita freqüência, na clínica atual, é que alguns indivíduos nem sequer chegaram a alcançar a experiência de estar vivo e, diante da perda, é o próprio selfque naufraga, evidenciando uma vitalidade falsa ou não integrada.

Ana veio me procurar para que eu a ajudasse a lidar com a filha, que tem 10 anos. Ana é solteira e não tem nenhum contato com o pai da menina, com quem manteve um flerte rápido. Na época da gravidez, como não sUSPeitasse que estava grávida, tomou uma medicação que interferiu na formação do feto. A filha nasceu com deformações físicas que exigiram muitas cirurgias, para que sua aparência se tornasse mais amena para si e para os que a rodeiam. Hoje, Ana vive com a filha na casa de seus pais. Diz que os avós não ligam muito para a neta, “porque ela é bem difícil mesmo”. A avó nunca deu atenção e o avô atualmente está farto de suas “aprontações”.

Ana não se dá conta das dificuldades que ambas têm. Descreve a filha como inteligente, “uma gracinha”. Tenho a impressão de que repete essa afirmação para si mesma no intuito de esconder e negar a culpa e a vergonha que sente. Parece não ter sUSPeita alguma sobre o que possa estar acontecendo, mas deixa entrever que vive num ambiente frio e desumano, no qual os seus pais assumem a postura do “você fez, você paga”. Parece que um encadeamento trágico de eventos é utilizado pela personalidade de Ana para servir como uma espécie de organizador substituto do que não teve tempo de amadurecer a partir do próprio gesto.

Ouço Ana e começo a sUSPeitar que a experiência de frieza que tenho no contato com ela é o que restou do desastre de um selfincipiente, agora em estado de involução. Ana fala comigo num tom rápido, um tanto quanto entrecortado, como se dissesse que já está tudo entendido, parecendo tentar garantir que eu não me detenha em nenhum detalhe. Parece necessitar encerrar rapidamente a questão, para não correr o risco de saber da dor que vive. Penso que a falta de acolhimento do ambiente em relação a Ana e desta em relação à filha são motivos suficientes para despersonalizá-las, tanto no que diz respeito à integração do corpo, como no que diz respeito ao sentimento de existência.

A filha de Ana, a quem darei o nome de Michele, liga freqüentemente para a polícia, avisando que sua mãe foi assassinada. Isso faz com que três ou quatro viaturas se desloquem e cheguem com estardalhaço à sua casa. Além disso, Michele tem roubado na escola e em casa. O material escolar é jogado no lixo e todo tipo de atuação acontece com freqüência nos banheiros da escola, em casa e onde mais estiver. Penso que Michele sente que o seu ambiente foi “assassinado”.

Eu ouço o que Ana me diz e experimento uma sensação de vazio, de gelo interior. Tudo o que ela relata tem um tom muito impessoal. Parece contar algo que não tem nada a ver com ela, mas que lhe serve para encobrir os imensos vazios internos. Por vezes percebo que não consigo fixar minha atenção e a imagino falando essas mesmas coisas, com a mesma entonação, a outra pessoa com quem estivesse “batendo um papo” muito descomprometido. Ana não mostra nenhuma emoção, não ri, não chora, não se irrita, não vive. Não parece sentir que está falando de uma pessoa, de uma vida, de sua filha. Ao mesmo tempo em que observo Ana, penso que Michele luta. Talvez lute bravamente para ter sua existência reconhecida. Afinal, é só assim que pode se sentir de fato viva. Reflito muito rapidamente que para ter vida não basta respirar, comer, pensar, ter relações sexuais.

Passa pela minha cabeça o fato de que, ainda que eu possa considerar muitos ângulos da questão, o que mais me impressiona é a insistência de Michele e seu empenho em ter reconhecida a sua existência num ambiente que a ignora.

Ao longo da conversa com Ana, surgem questões do tipo: o que de fato significa estar vivo? Por que o sentimento de vitalidade é importante para nós? E, em termos doo que sentimos, a que nos leva estarmos vivos? Tento insistir comigo mesma, sem saber bem por quê, e percebo que, se me atenho por um instante e procuro ouvir e relembrar minhas próprias experiências de quando me sinto viva, vejo que elas não estão confinadas a determinados momentos. Elas existem no contínuo de intensidade de um momento banal até aquele momento em que experienciei êxtase. Posso perceber ainda que, entre as recordações dos meus momentos de maior vitalidade, existem aqueles marcados por sofrimento, perda e dor, e que aquilo que estou considerando vitalidade não é, de modo algum, uma experiência estática ou uniforme.

Sabendo que corro o risco de não conseguir responder a nenhuma outra das minhas questões, arrisco neste momento uma resposta a uma das perguntas que surgiram antes. Viver é, em última análise, a possibilidade que temos de sustentar oscilações em nós; quando estas são reduzidas por agonias e/ou medos, ficamos reduzidos a meros sobreviventes, o que significa que não estamos propriamente vivos.

Sublinho o termo capacidade, como tantas vezes o fez Winnicott, para destacar o fato de que a vitalidade é a conseqüência de elementos que se acumulam em nós ao longo de um tempo e em determinado espaço. Esse espaço se caracteriza pela ilusão que nos ajuda a manter um jogo de alternativas e alternâncias, um constante brincar entre fora e dentro, entre submissão e idiossincrasia, de forma que a vitalidade se faça presente nas nossas relações.

Assim, sentir-se vivo não é algo inerente. É a somatória de experiências que ao longo do desenvolvimento se tornam emocionais e adquirem sentido para nós. A tarefa de viver é uma tarefa em que a constância se define pela manutenção do jogo.

Até que ponto usamos ou podemos usar uns aos outros para manter essa possibilidade em nós? Até que ponto aceitamos ou toleramos as variações inevitáveis que acompanham toda experiência e, de modo mais particular, a possibilidade de nos sentirmos vivos e aprendermos com as vicissitudes dessa aventura? Até que ponto podemos desenvolver nossa capacidade para o viver?

Ogden (1995) chama a atenção para o fato de que alguns pacientes não podem reconhecer a vitalidade quando estão numa relação analítica, por medo das conseqüências desse reconhecimento. Esse fato produz formações substitutivas, organizações reativas com função de proteção que muitas vezes mascaram a vitalidade ou mesmo a própria falta de vitalidade que se estabelece na análise.

Entendo que a vitalidade da relação transferencial ocorre no entre da relação e envolve o par na experiência emocional do momento. É uma experiência subjetiva que ou se faz presente, ou o analisando se sente isolado e desconsiderado, apresentando sinais de desvitalidade. Para aquelas pessoas que por diferentes razões se tornaram meros zumbis ou sobreviventes, a tarefa do analista na relação transferencial será a de transformar um modo de sobreviver em uma experiência viva e vitalizadora.

No entanto, nem sempre manter vivo o entre é garantia da presença da vitalidade. Existem circunstâncias de vida em que a falta de vitalidade é a única saída para evitar estados de agonia impensável– a própria falta de vitalidade é o que de melhor se pode fazer com a vida.

Nessas situações o analista precisa preservar a própria vitalidade, que se expressa em termos de oscilações entre vitalidade e desvitalidade, com as quais deve sonhar, brincar e tentar nutrir seu analisando, para lhe propiciar a oportunidade de ter uma experiência de dependência disponível dentro de si. A tarefa é especialmente complicada para algumas pessoas. Pacientes como Michele e Ana não “vivem”; eles lutam para manter as organizações protetoras rígidas que evitam estados de agonia, ao preço de uma não-vida.

De modo geral, é possível observar, não importa o enfoque psicanalítico, que a psicopatologia é o preço que as pessoas pagam para manter a sobrevivência frente a ameaças oriundas do ambiente ou de suas próprias fantasias. São essas organizações que empurram o sujeito na direção de não necessitar e/ou não desejar. Essas pessoas sobrevivem enquanto não experimentam aquilo a que damos o nome de viver. Não imaginam que pode existir um mundo no qual seja seguro estar vivo. Sendo sua dissociação muito precoce, o que resta da vitalidade são meros vestígios que se mantêm congelados e, assim estando, interrompem o curso da criação do si-mesmo, carregando a vitalidade para um claustro muitas vezes impenetrável. Essas pessoas descrevem a si mesmas como vivendo um processo de aprisionamento ou afogamento.

Há um aspecto que diz respeito a todos nós que nos engajamos na aventura de oferecer um espaço que possibilite o encontro com a própria vitalidade: para que esta seja integrada, é importante que possa ser uma “experiência” tanto para o analista como para o analisando. Estou me referindo a um jogo, a uma abertura para se deixar ser transformado pelo outro e ser capaz, ao mesmo tempo, de criar um sentido próprio para essa transformação. É esta dinâmica transformado/transformador que deve estar presente no encontro analítico, sem o que se perderá a vitalidade e a própria análise.

O modo pelo qual essas transformações serão oferecidas ao paciente deverá seguir um estilo particular em cada relação, um estilo que preserve e privilegie a singularidade do analisando e da pessoa do analista, sustentando a vitalidade da relação. Se o analista (levado por filiações rígidas a determinada corrente ou filiação teórica, por exemplo) perde de vista o modo de inscrição que determinado paciente lhe propõe, o brincar transformador se rompe e o paciente se sente privado da oportunidade de usar o analista para se conectar com o mais genuíno de si mesmo. Usar o analista é, em si, um sinal de vitalidade; quando isso não é possível, surgem sinais de dispersão e de desesperança quanto à possibilidade de alcançar uma existência mais plena.

Apresento a seguir dois casos que oferecem a oportunidade de refletir mais sobre a questão da capacidade de estar vivo.

 

Caso 1

Maria estava para começar um tratamento quimioterápico em função de um câncer de ovário, mas não foi sobre isso que falou desde a sua primeira sessão. Dizia que tinha vindo buscar análise porque era uma pessoa má, sem consideração, dura, antipática e agressiva. Fazia essas auto-acusações em tom afirmativo, revelando não ter nenhum espaço para a dúvida. Estava cheia de certeza sobre quem ela era, mas eu a ouvia e não acreditava nela. Ocorreu-me que outras pessoas que eu conhecia e que eram cruéis, sem consideração pelos outros ou severas não eram desse jeito. Simplesmente agiam, não se importavam com os outros, colocavam a si mesmas em primeiro lugar.

Num primeiro momento pareceu-me que Maria contava com um certo constrangimento, que seu sucesso profissional estava diretamente relacionado à sua crueldade. Diz respeito dos seus funcionários: “Trato todo mundo igual, não tem moleza comigo. Me deu motivo pra desconfiar, eu já boto pra correr. Porque a vida também não me deu moleza”. Com certo desânimo e desalento, me comunicava que achava não poder “sair dessa” porque, com certeza, tinha desenvolvido câncer em função “desse jeito” dela.

Com o passar do tempo Maria começou a contar sua história. Viera com 10 anos para São Paulo, com uma família que a adotara numa cidade do interior do Norte. Aos 10 anos já tomava conta das quatro crianças que o casal tinha. Seu tom de voz sempre era muito baixo, e foi nesse tom que me contou sobre a morte do pais em sua cidade, por vingança de outra família. Ela assistira a tudo escondida num caixote. Foi muito maltratada em casa de vários parentes, até que uma família a adotou para usá-la como empregada doméstica. Permaneceu ali até a adolescência, quando fugiu para o interior, onde acabou se prostituindo. Foi recolhida por um centro assistencial onde lhe ensinaram corte e costura, e esse é o seu sustento até hoje.

Foi ficando claro para mim que ela se transformara no que era preciso para sobreviver. Parecia que precisava de mim como testemunha para humanizar seu sofrimento. Era importante que eu testemunhasse a sua história, e, assim, havia dias em que eu ouvia e não conseguia dizer nada, além de ficar horrorizada com o que ela ia me contando.

Um dia, logo depois de me contar mais uma de suas terríveis experiências, Maria me falou: “Eu tenho uma escuridão e um vazio enorme dentro de mim”. Nesse dia eu pensei que o câncer estava contribuindo para que ela integrasse a sua história e que as terríveis ocorrências de sua vida estavam adquirindo um sentido mais humano para si mesma.

Depois de aproximadamente seis meses de convívio analítico, Maria começou a detalhar suas relações de trabalho, como usava as pessoas, como as manipulava em seu próprio interesse e benefício, como as desprezava e, principalmente, o quanto desconfiava de todo mundo.

Ia ficando cada vez mais clara para mim a sua solidão, mas ela não tinha contato com esse aspecto dissociado de si. Ela tinha se “adaptado”. Toda a sua vida estava organizada em torno da sobrevivência. Eu me perguntava: será que ela teria chegado a viver algum dia? A pergunta se repetia em mim e ecoava, indo ao encontro do que Winnicott dizia: “É preciso chegar a sentir-se vivo. Não basta existir, é preciso chegar a poder relaxar”.

Um dia Maria me contou um sonho, o primeiro de que conseguiu lembrar: “Eu estava olhando no espelho e via uma imagem escura. Não conseguia ver nada de mim. De repente, parecia que a minha imagem se juntava no espelho com aquela escuridão e eu ia andando para dentro de um corredor escuro e, quando já estava com muito medo, de repente vi um ponto lá longe. Quando cheguei mais perto, vi que era uma flor da palma linda, igual tinha lá na minha terra. Quando tem seca lá, o gado come aquilo e a flor é muito bonita. Você já viu alguma?” Eu lhe digo: “Estou vendo agora”. Maria se emociona e começa a chorar.

Penso que ela está viva neste momento, diferente de outros encontros que tivemos, nos quais esteve usando todos os seus recursos para garantir a sobrevivência.

 

Caso 2

A sra. E já passou por outras análises. Quando nos encontramos pela primeira vez, sentia-se muito ansiosa, desorientada, sem rumo e deprimida. Não conseguia ter nenhum indício de qual era a fonte de sua dor e se mostrava muito distante de qualquer contato mais profundo consigo mesma.

Vinha de uma família abastada, mas descrevia as relações primeiras como muito pobres, praticamente inexistentes. Retratava o pai como alguém sempre muito ocupado, os irmãos sendo motivo de orgulho, enquanto as irmãs e ela, um peso que deveria ser tolerado, uma vez que para a família as mulheres não representavam pessoas que contassem para a sucessão.

Durante os dois primeiros anos de análise, a paciente parecia não experimentar nenhum dos sentimentos de vazio, futilidade e estagnação que eu percebia nem ter nenhum contato com eles. Tudo isso estava presente, mas de modo muito dissociado. Muitas vezes, para preencher seus vazios, a sra. E mencionava números, algarismos que correspondiam, segundo ela, a tarefas que lhe estavam sendo destinadas. (Costumava consultar uma numeróloga, a quem usava como uma espécie de guia.) Outras vezes se referia a fases da lua, que davam algum sentido mágico ao que lhe parecia totalmente sem sentido. Eu procurava encontrar uma forma de me comunicar com ela. Freqüentemente me sentia invadida por informações desconexas, e cada vez que tentava lhe dizer alguma coisa como “Me sinto confusa”, ou “Você coloca questões e tem uma busca pessoal, mas também deixa claro que eu não devo responder a essas questões”, ela me olhava nesses momentos com um ar atônito, surpresa de ser considerada uma participante da conversa.

Durante muito tempo E se queixou principalmente da mãe, dizendo que ela era destrutiva e que a chamava de nula. Se eu ousava lhe perguntar se também se sentia olhada dessa maneira por mim, ela negava veemente e impulsivamente. Deixava claro, fosse qual fosse o conteúdo da questão, que ela não tinha a mínima possibilidade de sustentar dentro de si qualquer conseqüência do estar viva, mesmo quando isso fosse simplesmente sobreviver.

Parecia-me que sua personalidade havia se tornado uma caricatura de si mesma e que ela estava totalmente submetida ao que havia de falso dentro de si para não correr o risco de experienciar a vida que temia.

Por vezes tirava da bolsa um pedaço de papel e uma caneta e anotava alguma palavra que eu tivesse dito e que ela sUSPeitava poder causar algum impacto sobre alguém. Nessa época, pensei e lhe disse o quanto ela queria ser tocada, mas temia ser uma decepção para qualquer um que a alcançasse. Isso a fazia fugir, e com freqüência se sentia isolada. Algumas vezes, em função do seu desespero, parecia não compreender o sentido do que estávamos falando e, na falta de um registro interno, buscava simplesmente colar ou empilhar sobre si elementos que lhe dessem uma forma, forma que ela acabava por experimentar como oca. Isso a fazia repetir um ciclo vicioso no qual precisava buscar mais elementos que pudessem se colar nela assim. Mais futilidade se fazia necessária, para sustentar essa não-vida.

Freqüentemente não se sentia bem, e vivia o seu mal-estar de forma muito concreta, com temor de ser excluída da partilha dos bens de família. Eu via diante de mim alguém que temia não alcançar nunca os recursos necessários para ser. Ela parecia não acreditar ou ter alguma fé em que sua criatividade pudesse estar viva. Muitas vezes, quando eu tentava lhe dizer alguma coisa, ela começava a acelerar sua fala feita de retalhos de conversas antigas para se certificar de que não precisaria de mim: “Já sei o que você vai dizer”. Isso a ajudava a manter uma “certa autonomia”, tênue proteção contra um sentimento de despedaçamento.

Aos poucos, E pôde perceber como essa sua atitude servia para nos manter, a ela e a mim, a uma grande distância do que se passava com ela. Mesmo que eu percebesse que ela ainda não tinha condições de ter de fato uma experiência emocional, eu procurava me conectar e conectá-la com a experiência que eu pensava lhe fosse possível naquele momento. Nem sempre isso era alcançado. Sua linguagem refletia, quase sempre, uma profunda desorganização interna. Suas frases eram incompletas, recheadas de expressões livrescas, truncadas, resultado do que havia colecionado ao longo de anos de vazio. Ela preenchia as sessões com uma conversa aparentemente introspectiva que, em regra, me parecia falsa e não evoluía, para que pudéssemos alcançar elementos que lhe possibilitassem uma conexão um pouco maior consigo mesma.

Em torno do terceiro ano de análise sua ansiedade começou a dar sinais de atenuação. Isso se expressava através da diminuição da agitação corporal e de um discurso um pouco mais natural e pessoal. Também começava a surgir um certo alívio, quando E percebia ter conseguido conviver com as próprias angústias. Já não anotava palavras que eu tivesse dito, a citação de números diminuiu e seu tumulto interior parecia menos intenso, permitindo que alguma conversa se mantivesse entre nós.

Uma das questões presentes desde o início da nossa relação era o fato de ela ter uma dúvida constante sobre se a análise poderia ajudá-la. Nessa época a dúvida se tornou mais aguda e ela começou a indagar: “Será que é isso mesmo que eu preciso? Acho que já estou boa!” Também nessa época, novamente as nossas conversas pareciam não lhe acrescentar nenhuma compreensão sobre sua vida afetiva e profissional, que ela sentia estar capengando.

Depois de algum tempo, comecei a observar que E desenvolveu um padrão nas nossas sessões que consistia em descrever minuciosamente o seu programa diário ou a programação semanal de seus filhos e de seus compromissos profissionais, conjeturando em torno de horários, dias e viabilidade de realizá-los. Eu não conseguia ver qual era o sentido dessas explicações e descrições e fui me percebendo novamente confusa e atordoada. Algumas vezes, fiquei com a impressão de que ela gostaria que eu a acompanhasse muito de perto; outras vezes, cheguei a pensar que esse detalhamento de horários e atividades, de possibilidades e alternativas, era uma proteção, exatamente para que eu não chegasse perto demais e não a conhecesse em demasia, para além do seu invólucro.

Na época, fui notando, aos poucos, um entusiasmo cada vez menor em atendê-la. Minha curiosidade a seu respeito estava completamente ausente. Ela me usava para perguntar sobre as atividades que deveria escolher, sobre qual horário eu acharia melhor para esta ou aquela atividade, e buscava estabelecer uma relação entre as suas escolhas e as previsões numerológicas. Minha mente foi ficando totalmente paralisada. Eu não conseguia mais ter nenhuma idéia sobre o que estaria nos acontecendo. Só me percebia ansiosa para que a sessão acabasse, olhando para o relógio que tenho na sala. Para passar o tempo eu ia brincando com minhas mãos, entrelaçando-as e girando os polegares um sobre o outro; depois ficava dedilhando sobre a perna, como quem produz um ritmo ou uma música. Esses movimentos não eram algo que eu tivesse decidido conscientemente, e foi assim que me percebi, um dia, abrindo e fechando a mão.

Meu movimento me lembrou, imediatamente, o funcionamento de um coração pulsando, e isso me conduziu a outra cena que lembrei ter visto num programa de televisão algumas semanas antes. A câmera focalizava um sorriso largo e só apareciam os olhos de uma senhora que se submetera a um transplante de coração. Esse coração havia sido doado por uma família que perdera a filha muito jovem, num acidente trágico. A mulher estava muito feliz, radiante com suas novas possibilidades. O programa também comentava o quanto a família, e sobretudo os filhos, dessa mulher estavam felizes com a nova vida, já que ela havia passado muito tempo na cama, à espera de um doador.

Essa associação que surgiu em mim tão inesperadamente foi muito esclarecedora. Comecei a conectar esses meus pensamentos e atitudes com o que estava se passando com a paciente. Pareceu-me que era de mim que ela esperava esse transplante revigorante. Ela aguardava um contato humano mais próximo e mais vitalizado, e esperava também que eu pudesse dar algum sentido àquilo em que ela não via sentido algum.

Eu disse a E que havia percebido sua insistente busca em direção à vida e que também percebia o esforço que ela estava fazendo na tentativa de juntar pedaços de vida. Disse ainda que, a meu ver, ela muitas vezes sentia tudo à sua volta e a si mesma sem vida, mas que havia uma esperança de que eu pudesse lhe oferecer um sopro vital caloroso, amoroso, mais humano e mais promissor. Ela ficou silenciosa, muito emocionada, talvez pela primeira vez em muitos meses. Percebi que ela pôde relaxar e que eu me sentia revitalizada. Percebi, também, que minha curiosidade por ela estava novamente presente e que eu conjeturava sobre o que viria a seguir.

 

Considerações finais

Para Freud a vida se relaciona à possibilidade de sublimação dos desejos, à transformação das intensidades internas em prazeres possíveis e às vicissitudes desse percurso para a vida psíquica.

Para Melanie Klein, a vida se liga à capacidade de experimentar depressão, não a depressão como expressão de desvitalidade, mas como expressão de uma certa desilusão com o self. Essa desilusão levaria ao fim deste como ídolo de si próprio e ao desenvolvimento do amor em relação ao outro e a si mesmo.

Para Winnicott, tal como o compreendo, a vida é a realização da vitalidade ao longo do existir. Relaciona-se com a singularidade posta em ação a cada gesto. A submissão excessiva, que eclipsa o singular e substitui o gesto espontâneo por organizações reativas, é a essência do que Winnicott considera não-vida. “Não que a vida seja melhor quando alguém tem vitalidade, é que sem vitalidade não há vida.” Esta, quando enriquecida pela experiência, revela a presença do outro e possui uma densidade que faz a diferença entre o simplesmente nascer e o existir de fato.

A vida não é simplesmente aquilo que acontece para quem não tem outra condição porque já nasceu. É a possibilidade de manter uma interação e um contínuo deslocamento entre os vários aspectos da experiência. Esses aspectos devem envolver o núcleo do ser e possibilitar, através do jogo que se estabelece entre eles, a aquisição de novos sentidos que nos conectem mais intimamente conosco e com a realidade externa.

Winnicott descreve um movimento saudável entre personalização e despersonalização, sugerindo que é preciso ser capaz de abandonar, momentaneamente, o fundamental impulso para existir. Pode-se dizer, assim, que estar vivo é ter e manter a esperança de recuperar a integração quando sentimos que a perdemos. Mais especificamente e dependendo do grau de integração alcançado, a capacidade de estar vivo liga-se à possibilidade de manter opostos em jogo, de transformar em fonte de inspiração os nossos horrores, nossas confusões e nossos conflitos, além de criar com eles um jogo que permita um novo lugar frente a nós mesmos e ao mundo.

O amadurecimento caminha em direção à realização da vitalidade em forma de emoção. Alcançada essa etapa, muitas vezes o sentir-se vivo ultrapassa aquilo que as palavras podem dizer. Em outros termos, a vitalidade, nos seus estágios mais evoluídos, tem a ver com a possibilidade de colocar em gesto a realidade interior– e de sabê-la maior do que aquilo que conseguimos pôr em palavras. Assim sendo, muitas vezes é à arte que recorremos na tentativa de dar expressão ao que é mais vívido em nós e que de outra forma permaneceria calado. Além das palavras, outras formas de expressão, como a música, a pintura, a poesia, o sonho e o brincar, expressam mais amplamente o que é a capacidade de estar vivo.

O amadurecimento revela que a vitalidade, contida na interdependência humana, tem a capacidade de transformar um acontecimento em experiência e fonte, não se distinguindo do que seja a capacidade de alguém estar vivo diante da própria experiência. Além disso, a tonalidade emocional e a qualidade dos nossos relacionamentos nos informam sobre os nossos movimentos para dentro e para fora do corpo, sobre o nosso sentimento de vitalidade e nossa capacidade de usá-lo.

A vitalidade abarca a possibilidade de ousar– ousar fazer o gesto– e de transgredir o já estabelecido em nós mesmos. Um certo abandono à experiência, uma entrega ela será a conseqüência da maior capacidade de estar vivo. Decorrem dessa capacidade também o poder acreditar, o poder abrigar a esperança de que existem coisas boas e pessoas em condição de nos ajudar a viver a nossa vida de um modo melhor. Cria-se em nós a oportunidade de usufruir do que é novo, daquilo que é prazer com o novo, com o que é espontâneo e com as trocas.

Quando a relação analítica toma a sua própria vitalidade como referencial e a capacidade de estar vivo do paciente e do analista estão presentes, cria-se um campo no qual duas pessoas poderão cooperar numa espécie de interjogo, para criar e/ou redesenhar as vivências decorrentes de experiências reais, de produtos da fantasia, de conseqüências de invasão e ou privação, oferecendo a ambos a oportunidade de expandir a capacidade de estar vivo.

Nesse jogo– no qual o analista precisa reconhecer subjetividade do paciente e ser tocado por ela–, atualiza-se a oportunidade de fazer uso da experiência que está presente na transferência e na contratransferência. Isso só é possível se houver um profundo envolvimento da pessoa do analista com aquilo que sua vitalidade o faz experimentar. Alguns desses aspectos podem ser vividos como surpresa, outros como terror, mas todos poderão contribuir para a integração e para a capacidade de brincar e sonhar.

Entendo, assim, que a relação analítica dá voz a áreas silenciadas e silenciosas do self que aguardam a presença humana do analista para terem a oportunidade de fazer parte do jogo intrapsíquico e serem agregadas como experiência emocional com que se pode conviver. Grande parte da função analítica diz respeito a sustentar e tornar possível a manutenção de opostos em jogo. Isso significa, muitas vezes, aprofundar a percepção dos nossos conflitos mais ameaçadores.

Desse modo, a capacidade de estar vivo não nos conduz a uma “inteireza” de nós mesmos nem nos coloca diante dela. De fato, ela nos obriga a renunciar aos mitos de harmonia que, eventualmente, alimentemos a nosso respeito. A capacidade de estar vivo nos habilita a conviver e criar a partir das nossas ambivalências. A partir, inclusive, da nossa ambivalência em relação à capacidade de estarmos vivos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rahel Boraks
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
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E-mail: boraks@uol.com.br

Recebido em 15.3.2008
Aceito em 10.4.2008

 

 

* Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.

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